'Dess - Uma História Interessante'

'Dess - Uma História Interessante'
AMO ESCREVER

CAPÍTULO 29 - CALMARIA

 



Havia muito mais luxo no apartamento em que eu vivia ao lado de Aiden. No entanto, nesse, onde habito agora, há a paz que nunca havia sentido antes. Após dias incontáveis de lutas e desencontros, enfim, a calmaria. 

Chego a ter medo da felicidade com a qual tenho vivido meus dias. Lembro-me do que minha mãe dizia sobre dias felizes ou risos constantes. 

"Rir muito é mau agouro".

- E eu digo que sua mãe estava errada. - Considera Vincenzo. - Infelizmente, ela não conheceu o amor. Nunca foi amada como vc é.

- Nunca. - Lastimo. Deitada ao seu lado, em nossa nova cama em nosso novo quarto, sussurro. - Ela amou o homem errado. Ambos tiveram um triste fim. 

- Não vamos nos lembrar disso agora, Dess. Não quero que fique triste. Não agora. - Abraçando-me com força, ele comenta num tom brincalhão. - Amei seu pijama novo.

- Amei o seu também. Estranhamente, ele é igual ao meu. 

- Igual ao seu e ao de Antoine. Pena eu não ter encontrado um do tamanho de nosso filho. - Um riso frouxo e ele argumenta. - Assim que ele nascer, eu vou comprar o dele. - Acariciando minha barriga proeminente, ele divaga. - Matteo vai ter uma família unida e feliz. Finalmente, o universo nos uniu. Eu mal posso acreditar.

- Sinto o mesmo. - Sorrio ao beijar sua boca. Deitada sobre seu corpo, tocando cada parte de seu rosto, observando cada detalhe, concluo. - Perdemos tanto tempo longe um do outro. Tanta coisa aconteceu. - Uma onda de pavor ameaça me afogar quando imploro. - Jura pra mim que nunca mais vai se afastar novamente?

- Não preciso jurar, Dess. Eu não pretendo ir a lugar algum.

- Vc já disse isso por muitas vezes e não cumpria com sua palavra.

- Agora, eu cumprirei. - Um beijo apaixonado e volto a lhe pedir.

- Jura que não vai nos abandonar? - Sorrindo, ele joga a cabeça para trás ao resmungar.

- Dess...

- Jura pelo nosso filho!?

- Juro. Tá bom assim? - Angustiada, rolo para o lado. Fixando meus olhos no teto, indago.

- Quando nosso filho nascer, vc vai poder morrer? - Encolhendo-se, ele me dá as costas ao reclamar.

- Esse papo de novo não, amor. 

- Vincenzo! - Exclamo antes de prorromper em lágrimas. Sentindo-me patética, cubro meu rosto com o travesseiro enquanto sinto seu corpo colado ao meu. Beijando minha nuca, ele me pede.

- Para de chorar, amor. Eu não vou morrer. Prometo. Não antes de viver muito até ver Antoine se casar. - Soluçando, refuto.

- Não. Não vai se continuar a lutar. - Arremessando o travesseiro contra o tapete, eu o encaro. Ele ri da minha voz fanha após assoar meu nariz e insistir em um assunto que o incomoda. - Para de lutar. Vc pode continuar a dar aulas. Eu continuo a trabalhar na boate. Vc ainda tem sua herança. Temos esse apartamento. Minhas economias...- Grito seu nome assim que o vejo revirar os olhos numa clara demonstração de exaustão. - Olha pra mim! Precisamos conversar sobre isso! Não adianta fugir! - Com suas mãos em minhas têmporas, ele elucida, mansamente. 

- Eu não quero fugir de nada. Só não quero falar disso agora. - Um sorriso cafajeste e ele continua. - Essa é a nossa última noite como solteiros e vc quer estragar tudo brigando? 

- Vincenzo...

- Dess...- Ronrona ele ao propor. - Não quer retirar esse lindo pijama que seu lindo futuro marido comprou e deixar eu te foder? - Arquejo antes de responder com uma pergunta.

- Vc costumava ser tarado assim antes de 'cair' ou foi só depois da 'queda'? Não me lembro de ler nada sobre anjos insaciáveis. - Desabotoando a blusa de meu pijama, ele refuta.

- Eu não sou tarado. Eu só gosto de sexo com vc. Eu era um bom anjo até conhecer uma linda e louca mulher que me desvirtuou. Vc foi a culpada.

- Eu??? - Rindo, eu o imito ao desabotoar sua camisa. - Mentira!!! Vc já devia pensar nisso antes de mergulhar na Terra!!! Devasso!!! - Com as mãos em meus seios, o olhar insano, ele confessa.

- Eu sou. Devasso e apaixonado por minha futura esposa. - Sua língua em meu pescoço me arrepia. De volta ao meu ouvido, ele ronrona. - Se ela te vir aqui, eu estarei em perigo. Dizem que ela luta muito bem. Melhor vc ir embora.

- Eu vou...- Sussurro contra sua boca. - Mas...antes...me fode.

Afoitos, nós nos despimos aos risos. Excitados, nós nos beijamos enquanto ele tenta me penetrar. Antoine, do lado de fora do quarto, decepa o clima quente ao esmurrar a porta e gritar.

- EU QUERO ENTRAR! É BOM PARAR COM SAFADEZA!

Imediatamente, eu o empurro para o lado. Instintivamente, tapamos nossas bocas com as mãos, arregalando nossos olhos como adolescentes em apuros. Contendo o riso, aviso.

- Já vamos abrir, filha. - Observando o pau ereto de Vincenzo e sua luta em escondê-lo debaixo da calça do pijama, gargalho. Descalça, vestida, caminho até a porta em madeira e a abro. Antoine, de braços cruzados, lança-me um olhar de reprovação ao perguntar.

- O que vcs estavam fazendo? - Desconversando, eu replico.

- O que a senhorita está fazendo com esse vestido? 

- Ele é lindo! Não é!? - Invadindo nosso quarto, vestida de 'dama de honra', ela desfila para Vincenzo ainda de pau duro, coberto pelo lençol, recostado à cabeceira. Jogo o edredom sobre seu pau antes de assistir Antoine saltar sobre o colchão e dramatizar. - Papai, eu posso dormir com vcs hoje? Eu tô nervosa. Muito nervosa. - Cruzando as pernas debaixo do edredom, Vincenzo cobre seu membro ereto com seu travesseiro ao indagar.

- Por que, filha? O que está te deixando nervosa?

- O casamento. A coreografia. Cassandra e aquele Liam safado...- Rimos juntos enquanto eu a afasto de Vincenzo e a sento em meu colo. Exagerada, ela reclama. - Ele agora não sai de perto dela, pai. Tá um 'grude só'. Ela passa o dia inteiro naquele celular, rindo feito besta. - Um revirar de olhos exagerado e ela prossegue seu monólogo sob nossos olhares compassivos. - Eu nunca nunca nunca nunca vou beijar ninguém, papai. Acho nojento...argh! Ela não se cansa de beijar!? Ela não sabe, mas o Liam vai se casar com ela. Não sei se conto ou não conto pra ela.

- Quem te disse isso, filha!? - Pergunto, intrigada. - O Liam!?

- Não. - Cobrindo o rosto com meu lençol, ela alerta. - É bom não me perguntar quem me disse porque eu não vou dizer. Mamãe não gosta de meus tios, pai. - Um olhar preocupado e ele considera.

- Ela está certa, filha. Seus únicos tios bacanas são o tio Doc e o tio Liam. Mais ninguém. Ok? - Descobrindo o rostinho, ela retruca.

- E o tio Miguel, papai!? Ele é bacana também!

- Ok. Tio Doc, tio Liam e tio Miguel. Só.

- Ok. Ok. - Concorda ela encaixando-se entre mim e Vincenzo. - Gosto desse colchão. É macio...

- O seu também é, mocinha. Já pra sua cama.

- Mas mãe...

- Dess...- Diz Vincenzo com aquele olhar benevolente. - Deixa ela dormir aqui. 

- Só se ela retirar, agora, esse vestido. Vai amassar. - Cruzando meus braços, desistindo de nossa 'despedida de solteiro' a sós, pergunto num rosnado. - Quer chegar toda amassada e feia na igreja amanhã?

- Não vai amassar, mamãe. - Alega ela abraçada ao tronco de Vincenzo. Um beijo em seu braço e ela repete. - Não vai amassar. Eu juro. 

- Antoine Rossi! Tira o vestido ou vai dormir no seu quarto!

- Mas ele é lindo, mamãe! Eu sou uma princesa! - Aos risos, Vincenzo não interfere em nossa conversa. Irritada, eu o pressiono.

- Não vai falar nada com a sua filha? Ela sabe que vc a deixa fazer tudo e te domina. Acorda, Vincenzo! Vc é o pai! Eduque! - Um olhar assustado e ele a toma em seus braços ao explicar.

- Não dá sorte dormir com vestido de dama de honra antes do casamento. 

- Quem disse essa besteira? - Bufando, jogo-me sobre o tapete. - Vc já ouviu isso, mãe?

- Sim...- Resmungo. - Mas pergunte ao seu pai que deve aprender a dizer 'não' quando se lida com crianças. Ele vai saber te responder. - De bruços, pendendo a cabeça para fora do colchão, ele indaga ao me encarar.

- É sério que vc tá me testando? 

- Sim. Vc vai ter que se acostumar a dizer 'não' daqui a alguns anos, amor. Comece agora. - Do chão, cruzo minhas pernas. Antoine insiste em permanecer com o vestido. Vincenzo, com sua voz mansa, tenta dissuadi-la da ideia, sem sucesso. Meus hormônios estão prestes a entrar em ebulição assim que a ouço perguntar com medo em cada palavra dita.

- Papai, seu nariz tá sangrando. Vc vai morrer?

De súbito, ergo-me do chão e corro até ele que, sorrindo, diz não ser nada.

- Eu te disse. Vc precisa parar de lutar.

- Dess. Para com isso. - Tomando a gaze de minhas mãos, ele afirma. - Eu tô bem. Vai passar. Deixa que eu limpo. - Antes de cruzar o batente da porta de nossa suíte, Vincenzo estaca ao ouvir a voz grave de Antoine alertar.

- Não vai. Vc precisa parar se quiser continuar.

Um suspiro e Antoine 'apaga' em nossa cama.


Evitamos conversar sobre a noite passada e a crescente angústia em ver nossa filha mergulhar em outro mundo enquanto a assistimos, impotentes. Evitamos enxergar a verdade por trás dos constantes sangramentos nasais de Vincenzo e optamos em nos concentramos no dia mais feliz de nossas vidas.

O dia em que Vincenzo e eu nos unimos diante do 'Crucificado', em uma singela capela, distante de onde moramos.

Poucos convidados. Amigos de verdade. Um tapete vermelho e nossa filha especial saltitando de felicidade à minha frente, espalhando pétalas de rosas brancas por onde passa. Borrando minha maquiagem com lágrimas que não consigo conter, eu a sigo, sorrindo. Tremendo, amparando-me no braço forte, e sempre presente, de Doc vejo minha vida toda passar em minha tela mental enquanto caminho até o altar. Revejo amigos que partiram sentados nos bancos vazios. Padre Pietro me aguarda no altar ao lado de seu grande amigo que não o enxerga como eu o enxergo. Sweet abraçada a Jujuba e Mimi, abre um sorriso triste. Ainda fraca, ela me envia um beijo. Uma súbita parada e Doc, preocupado, pergunta-me se estou bem. 

- Estou. - Respondo num fio de voz. Ao som de 'Ave Maria', sinto-me flutuar. De cabeça baixa, indago. - Podemos ir mais devagar? Não quero cair.

- Claro, meu anjo. Mais devagar.



Evito olhar ao redor e, talvez, enxergar Aiden em algum canto da pequena nave por onde passo até chegar ao altar onde Vincenzo, reluzente, me aguarda. Com os olhos úmidos, ele me repreende com ternura.

- Dess, vc borrou sua maquiagem. Que feio. - Comprimo o buquê  de flores do campo entre minhas mãos geladas enquanto recosto minha testa em seu ombro, manchando seu terno de batom e lágrimas. Beijando o topo de minha cabeça, ele sussurra. - Chora, amor. Chore de felicidade porque, daqui por diante, é tudo o que teremos. Nada mais vai nos separar, Dess. Nada. - Ainda de cabeça baixa, suplico.

- Prometa.

- Prometo. 

Sob as bênçãos invisíveis de Padre Pietro ao lado de Miguel, o Arcanjo, eu me uno, pela Eternidade, ao meu 'anjo caído'.




Debaixo de uma chuva de arroz e risos frenéticos, Vincenzo e eu corremos até a Kombi decorada por Liam e Cassandra com direito à latinhas penduradas em sua traseira e à placa de 'Recém-Casados'.

- É pra afastar as energias negativas, tia!!! - Vibra Cassandra ao ajeitar, cuidadosamente, a cauda do meu vestido antes de fechar a porta do carona. - Se quiser, Antoine vai comigo e com o Liam, tia!

- NUNCA! - Protesta Antoine no banco traseiro, agarrada ao buquê. - Não entro em carro de gente safada! - Gargalhando, Cassandra se afasta. Liam, ao seu lado, observa.

- E o buquê!? A noiva precisa jogar o buquê! - Arregalando os olhos borrados, exclamo.

- Puta que pariu! Eu me esqueci! - Abro a porta. Estabanada, subo os degraus da capela enquanto os convidados se amontoam junto à Kombi. Antoine se apressa em me entregar o buquê. Ao meu lado, ela protesta aos berros.

- SAI, CASSANDRA! VC NÃO!

Um coro de risos e aplausos e ela presta uma reverência por ser o centro das atenções. Arrisco uma olhadela para trás e arquejo ao encontrar o olhar emocionado de Vincenzo a uns dois degraus abaixo de mim.

- Joga, amor. - Incentiva-me ele com um ar de preocupação. Um leve arrepio e abro um sorriso desconfiado. - Vai! - Diz ele cruzando os braços. 

- Vc tá estranho! - Grito. - O que há!? - Uma gargalhada e ele joga a cabeça para trás. Um coro de 'Joga! Joga!' me confunde. Hesitante, eu o vejo dar um passo adiante. Antoine ordena.

- JOGA LOGO, MAMÃE! - Minha euforia é substituída por um estranho e súbito temor diante do portal da capela escura e sombria. Pressionada, movo meu braço para trás ao liberar o buquê. Curiosa, giro o pescoço e me alegro. Cassandra o alcança com a garra de um goleiro na final da Copa do Mundo. - Eu sabia...- Resmunga Antoine. Eles vão se casar. - Segundos antes de lhe dar a mão e beijar sua bochecha, ouço a voz gutural sussurrar em meu ouvido.

"Aproveite seus poucos dias de alegria, pois eles terão um breve fim".

Desorientada, fixo meu olhar no interior da capela de onde ele corre, em minha direção, em sua forma diabólica e salta sobre mim. Seu ódio me sufoca. Seu peso me empurra para trás. Meu corpo suspenso no ar é amparado por Vincenzo e Doc antes de rolar escada abaixo.

No colo de Vincenzo, tento compreender o que acaba de acontecer enquanto ouço o burburinho de nossos amigos causado pela minha queda quase fatal. Antoine chora, amparada por Cassandra que, carinhosamente,  lhe presenteia com o buquê. Encarando o olhar furioso de Vincenzo, sentindo seu coração acelerar, indago.

- Era ele? Por isso vc estava tão perto, né? - Forçando um sorriso, ele me pede.

- Esquece, Dess. Depois a gente fala disso. Vamos festejar nossa união? - Agarrando-me ao seu pescoço, insegura, assinto.

- Vamos...



Assim que chegamos ao salão, eu me surpreendo com o requinte da decoração, imaginando o quanto Vincenzo gastou somente por tentar me agradar. Eu sei. Eu deveria pular de alegria em ter um marido 'mão-aberta' e 'tals', mas, como diria Cassandra: 

'NÃO ROLA!'

Combinamos que gastaríamos pouco porque não somos ricos. Trabalho em uma boate como garçonete e ele dá aulas de boxe em sua academia. Temos uma filha com sete anos e um outro a caminho. Por que gastar tanto a fim de recepcionar nossos amigos que conhecem nossa vida e nossa luta!? Por que eu não relaxo e aprecio a porra da minha festa de casamento com o homem dos meus sonhos ao invés de ficar aqui, parada, pensando no quanto ele gastou!? Por que há garçons em uma festa que deveria ser simples!? Por que eu sou tão chata!? Por que um DJ em uma cabine se temos celular, bluetooth e caixas de som com alta potência!? Meus pés estão me matando! Por que eu quero chorar enquanto todos se divertem!? Por que Lúcifer me empurrou daquele jeito!? Ele nunca vai desistir de corromper Vincenzo!? Vincenzo já foi corrompido. Se ele, de fato, matou o 'italianinho' com a porra da tattoo da cruz invertida ou o induziu a ter uma 'overdose', ele já foi corrompido. Por que não conversamos sobre isso antes!? Se ele fez isso, Lúcifer tem mais poder sobre ele agora!? Vincenzo está longe da 'Luz'!?

- Dess...- Um leve toque em meu ombro e me assusto. - Dess!?

- Já volto! - Grito com a voz embargando. Arrasto a cauda de meu vestido enquanto corro até o banheiro do salão. Lá dentro, eu me tranco e choro apoiando-me na pia. Deixo a água correr pelo ralo enquanto penso que, assim que nosso filho nascer, Vincenzo será um homem normal. Mortal como qualquer um de nós. Lavo meu rosto com água fria. Com papel-toalha, retiro o que restara da maquiagem. Enraivecida, desmancho meu penteado, arrancando o véu de meus cabelos, ao brigar com meu reflexo. - NÃO MESMO! NÃO VOU DEIXAR QUE TIREM MEU HOMEM DE MIM! EU TÔ EXAUSTA DE TANTO LUTAR! ME DEEM UMA FOLGA! UMA FOLGA!!! - Estupidamente, com meus punhos cerrados, atinjo a superfície espelhada. Minha imagem fragmentada sorri para mim enquanto pingos de meu sangue mancham o mármore branco.



"Ele morreu no dia de nosso casamento. Vai acontecer o mesmo com vc".

- NÃO VAI! QUEM É VC!? POR QUE ME ODEIA!?

"Porque ele é meu, vagabunda".

Vincenzo grita por mim antes de forçar sua entrada, arrebentando o trinco da porta. Assustado com minha aparência, horrorizado diante do sangue em minhas mãos, ele rasga parte da cauda do meu vestido e, após lavar os ferimentos, ele as enfaixa, estancando o sangramento. Em silêncio, ele ajeita meus cabelos sem olhar em meus olhos. Sinto seu desapontamento antes de lhe pedir perdão.

- Não queria estragar nossa noite.

- Mas tá conseguindo. - Diz ele, ressentido. - Sei que não era o que vc tinha com Aiden, mas foi o melhor que pude fazer e vc age como louca. Tá arrependida? Ainda podemos anular o casamento. - Um beijo em seus lábios e imploro por perdão. - Dess, vc nunca está satisfeita comigo! Acha que não ouvi o que pensou!? 

- Eu não queria que gastasse tanto! Só isso!

- Eu gastei porque queria te ver feliz, porra!

- Não precisava! Eu só queria vc! Eu só quero vc e nossa família! Juntos! Pra sempre!

- Eu também, porra! 

- NÃO GRITA COMIGO! EU NÃO TÔ BEM!

Um sorriso sarcástico e ele se afasta ao comentar.

- Que bom ouvir isso no dia de nosso casamento, Dess. Vc sempre me surpreende. - Um passo adiante e eu o advirto.

- Não se atreva a me deixar aqui, sozinha!

- Fui! - Seguindo-o pelo corredor que leva ao salão, eu volto a adverti-lo. 

- Vincenzo Rossi! Olha pra mim! Sou sua esposa! Mãe de seus filhos! - Mordo o canto da boca assim que o vejo parar e baixar a cabeça, deixando escapar uma risada boba. Pousando minha mão em seu ombro, peço perdão. Num tom de voz baixo e vacilante, observo. - Essa foi a nossa primeira briga entre marido e mulher. Vamos terminar agora? - Diante dele, procuro seu olhar cheio de ternura e suplico. - Por favor. 

- Dess...

Eu sou muito burra. 

- É mesmo. Muito burra e linda. - Abraçando-me com força, ele murmura. - Se eu não te amasse tanto...

- Te amo mais. Eu não quero te perder. Ela disse...

- Shhh! - Sua mão tapa minha boca ao alertar. - Esqueça o que ela disse. Vc é a única no controle. Entendeu?

- Sim. - Sorrio. Apontando para o salão, pergunto. - Tem bolinho de queijo? Tô morrendo de fome.

Tomando-me em seus braços, ele gargalha. Antes de chegarmos ao salão, Liam nos faz parar. Constrangido, ele abre a mão e indaga.

- Alguém aqui precisa de 'band-aid'?

Olhando minhas mãos enfaixadas com retalhos do meu vestido, respondo que sim.

- Como sabia, Liam? - Um olhar de cumplicidade entre Liam e Vincenzo e, calada, permito que ele volte a cuidar de mim. Eu o amo por ter tanta paciência comigo. De volta aos braços de Vincenzo, devidamente, recomposta, deixo-me conduzir à festa. Lançando um olhar desconfiado a Liam, advirto-o, aos risos. - Não acaba aqui. Ainda vamos ter uma conversinha, 'Liam da Irlanda'!


Após sua terceira garrafa de cerveja, Vincenzo me convida a dançar em meio ao salão. Emocionada, reconhecendo a canção, eu me deixo levar por ele que parece ter treinado bastante para esse momento. 



Sem cometer nenhum erro em seus passos, ele sussurra enquanto somos o centro das atenções. 

- Um dia, vc me disse que gostaria de dançar essa música em seu casamento e eu nunca me esqueci. - Sob as luzes dos holofotes, ele enxuga minhas lágrimas discretas com um guardanapo em tecido ao confessar. - Eu torci pra que vc não a dançasse com Aiden e vc não dançou. Vc não dançou, minha 'The Flashback Girl'.

- Tinha que ser com vc, amor. - Um beijo casto e ele afirma, sorrindo.

- Tinha que ser comigo. Agora, eu tenho a certeza de que não 'caí' à toa.

Minha voz embarga enquanto assinto com a cabeça. Jamais me esquecerei desse momento. Tocada profundamente pela letra da música e pelo que ela representa nesse exato momento, paraliso. Vincenzo beija minha bochecha e avisa. 

- Estão todos nos olhando, amor. Vc é a bailarina. Me guia...

- Não consigo. Tenho tanto medo de ser feliz.

- Dá medo mesmo, Dess, mas nós seremos felizes, amor. Vc, Antoine, Matteo e eu seremos felizes pra sempre. Acredite. E, por favor, dança comigo. - Olhando ao redor, retomo minha postura de bailarina e o guio até o final. Meu coração quer saltar pela boca ao ouvir seu comentário sob os aplausos de nossos amigos.

- Mais uma canção para a nossa lista, Sra. Rossi. 

Antoine enlaça seus bracinhos em torno de nossa cintura, então, percebo o quanto ela cresceu. 

- Quer dançar, filha?

- Quero, papai! - Afastando-me de ambos, eu os admiro. Vincenzo a faz recostar sua cabecinha em seu ombro e a embala ao som de Sarah Mclean. "Angel" é o nome da canção que me faria chorar até que minhas lágrimas secassem dali a alguns anos. Partindo ao meio a tristeza profunda que cisma em me invadir, convido as amiguinhas do colégio de Antoine e peço ao DJ que toque algo mais alegre. Muiiiito mais alegre.

Antoine se diverte entre seus amigos sobre o piso cujos quadrados piscam em diversas cores. Vincenzo, João e Doc brindam, com cerveja, à nossa felicidade. Adele, esposa de Doc, o censura enquanto tomo minha terceira dose de Tequila, pedindo ao garçom que reabasteça meu prato com bolinhos de queijo. 

- Vc precisa jantar, Dess. Chega de bolinho de queijo.

- E vc não precisa comer, Vincenzo??? - Gargalho histericamente. Com a voz entaramelada, refuto. - Vc bebeu mais do que eu. Não se atreva a dizer que estou bêbada.

- Nunca... - Agarrando-o pela gola da camisa social branca e amassada, ronrono. 

- Não se atreva a sorrir assim pra mim novamente ou sou capaz de trepar com vc aqui mesmo. - Com sua mão, ele tapa a minha boca. Envergonhado, ele me arrasta para um dos cantos do salão e me avisa. 

- Não faça isso de novo ou vou te levar ao banheiro masculino. - Afastando-me dele, rindo à toa, retruco.

- Claro! Vc arrebentou a porta do banheiro feminino! Parabéns, Mr. 'Counter Puncher'! Mais uma conta a ser paga!

- Não me importo. - Diz ele junto a mim. - Vc ainda não percebeu que sou capaz de qualquer coisa por vc? - Uma súbita sensatez e indago num tom baixo.

- Vc matou o italiano da cruz invertida? Me diz a verdade. Eu luto com qualquer um por vc e por nossos filhos. Só me diga a verdade.

- Dess...- Resmunga ele revirando os lindos olhos azuis. Seus alunos da academia o sequestram de mim enquanto o vejo se afastar e pular feito criança entre eles. Sentada em uma das cadeiras, eu o aprecio. 

- Deixa aqui...- Ordeno ao garçom que me encara com incredulidade ao me ver tomar a garrafa de vinho de suas mãos. - O que é??? Eu quero beber, ué!!! É o dia mais feliz de minha vida!!! Não posso???- Sorrindo, o pobre garçom se afasta. Um gole de vinho e volto a admirar meu marido lindo, suado, relaxado entre os amigos. - Opa! - Soluço. Adele, ao meu lado, recomenda.

- Fica calma, Adessa. É só uma festa. Ela não...

- Calma??? Eu??? - Caminhando lentamente até o grupo onde meu marido se encontra, cumprimento seus amigos e alunos e, arqueando minhas sobrancelhas, dirijo-me à 'novinha' a quem Vincenzo dera aulas na época de minha luta. - Não me lembro de ter te enviado convite. 

- Dess! - Ignorando a leve reprovação de Vincenzo absolutamente despenteado, prossigo improvisando um coque no topo de minha cabeça. - Aliás, eu sequer sei seu nome. 

- Diana. - Responde-me ela abrindo um sorriso triunfante. - Seu marido me ensinou muita coisa. Sabia?

- Não me diga!? - Um passo adiante e a confronto. - Quer me explicar exatamente o que ele te ensinou!?

- Dess. Para.

- Me larga, Vincenzo! Vc tá bêbado e essa vaca tá te dando mole na nossa festa de casamento!

- Eu não faria isso aqui, 'tia'. No ringue seria bem mais fácil. Tranquilo. 

- "Tia???" - Um riso de ódio e comento. - Como vc é chula, sua 'vagaba'! - Um arroubo de ciúme e a puxo pelos cabelos ao gritar.

- Tranquila vai ser a surra que eu vou te dar, pirralha!

Vincenzo, aos risos, me agarra pela cintura enquanto Doc, embriagado, pede paz. João impede que a 'novinha' continue a me provocar, pedindo que ela se retire do salão.

- Vc não foi convidada. - Diz ele.

- Fui sim! O noivo me convidou! - Refuta ela, sorrindo. - Eu não tenho culpa se a noiva não 'confia no seu taco'. - Indignada, encaro Vincenzo ao perguntar num grito.

- Vincenzo! Isso é verdade!? Vc convidou essa vagabunda pra nossa festa!?



- Dess, eu chamei a galera da academia. Ela é uma das alunas. 

- E vc fala isso com naturalidade!? - Empurrando-me para longe do burburinho, ele toca meu rosto e, com ternura, os olhos de quem já bebeu além da conta, implora.

- Não estraga a nossa festa, amor. Ela não é nada. Olha pra mim. Eu estou tão feliz...

- Vc não vai expulsar essa mulher daqui!? 

- Fica 'de boas'. Eu sou 'bissexual'. Não tenho interesse em teu homem. - Um empurrão em seu peito e a faça cair contra o chão ao reclamar.

- Foda-se! Melhor que fosse lésbica! Sendo, 'bi' vc ainda me incomoda, sua merdinha!

- DESS! - De costas para ele, eu grito.

- CALA A BOCA, VINCENZO! VC É O CULPADO! SEMPRE BONZINHO DEMAIS!

- Tia, fica calma. - Pede-me Cassie, puxando-me para longe. - Tudo o que a vadia quer é te ver assim, descontrolada. 'Faz a louca'

- Como assim, Cassie!? Se fosse com o Liam vc já teria metido a mão na cara dela!

- Com certeza!

- Dess! Para! Todos estão reparando!

- Que reparem! - Grito ao me afastar de todos. - Eu amo meu marido! Morro de ciúmes dele! Qual é o problema!? - Roubando outra garrafa de vinho da bandeja do garçom, tomo três goles de uma só vez. Vincenzo tenta me livrar da garrafa. Um chute em sua perna e ele urra de dor. Antoine gargalha ao lado de seus amiguinhos ao comentar.

- Minha mãe é demais! Ela luta e dança muito bem!

Semicerrando os olhos, repito.

- 'Dança muito bem'...- Um outro gole de vinho e, lançando um olhar de desprezo a Vincenzo, caminho até o DJ com quem converso.

- Dess, o que vai fazer!? Não seja impulsiva, amor! - Diante dele, com as mãos na cintura, debocho.

- Impulsiva!? Imagina!

Um ligeiro gesto ao DJ e caminho até o centro da pista de dança. Vincenzo tenta, sem êxito, me levar de volta à mesa. Doc vem em meu socorro ao alertar, como nos bons tempos do 'California'.

- Ela vai dançar. Fica longe dela, amigo. Fica longe dela.



Aos primeiros acordes de "American Woman" de Lenny Kravitz, as luzes se apagam, exceto a que me ilumina. Ouço urros e palmas assim que rasgo a saia de meu vestido e o deixo curto na altura de meus joelhos. Minhas botas pretas de couro se destacam. Como no palco do 'California', encarno a stripper sem retirar as roupas. Danço de maneira sensual sem chegar à vulgaridade. Os olhares atentos de Antoine, de Cassandra, Liam e de Adele me orientam. A canção é extremamente sexy o que me faz dar o máximo de mim. Diante da 'novinha', eu a chicoteio com meus cabelos soltos. Não faço a menor ideia se isso a afetou ou não. O que me importa é o olhar fascinado e assustado de Vincenzo que, paralisado, permite que eu o use durante a canção. Rodopio ao seu redor. Beijo sua boca e, ao final, sentando-me em seu colo, cravo meus dedos em seus cabelos em desalinho e sussurro.

- Vc é meu. Só meu. Entendeu?

A música termina. Sou ovacionada por todos. Seus alunos me observam com um misto de desejo e fascinação. Levanto-me de seu colo e, ao procurar a ninfeta, não a encontro. 

Venci. 

- Perdeu, novinha.

- Dess, vc é tão idiota e tão sexy. - Puxando-me pela mão, ele me leva até o banheiro masculino e, por dentro, tranca a porta ao anunciar. - Vc foi uma garota travessa. Merece um castigo. 

Aos risos, eu o deixo me sentar no mármore frio da pia e, com seu pau ereto, me foder com força e prazer. Gemendo, comento.

- Essa é a primeira vez que vc me fode depois de casados. - Corrigindo-me, ele diz.

- É a primeira vez que eu faço amor com vc, Dess. Amor, Dess.




Revendo as fotos de nosso casamento, percebo que, pela primeira vez em minha vida, tomei a decisão correta. Estou no caminho certo. Vincenzo, Antoine e Matteo, em meu ventre, são a minha força para lutar por uma vida sem luxo, mas com conforto. Nosso apartamento é aconchegante, bem decorado e pincelado de amor por todos os cantos. Nossa filha cresce cercada de carinho e atenção. Matteo está cada vez maior e pesado, o que tem dificultado meu trabalho na boate e, infelizmente, afastado meu sonho em ser bailarina no 'Conservatório de Música e Dança' aonde não mais retornei, apesar de ter ganhado uma bolsa de estudos por minha excelente performance. Tento afastar os maus pensamentos e me convencer de que Matteo é mais do que eu poderia querer. É mais do que a realização de um sonho de infância. 

"Assim que ele nascer, vc começa a estudar, Dess", diz Vincenzo ao ouvir meus pensamentos, sentindo-se culpado. Não há culpados. Não há culpa. Há um sonho adiado enquanto vivo outro sonho. Sou mulher de um homem só. Um homem que lutou por mim por séculos e que, agora, é somente meu. Um pai exemplar, um amante irresistível que me curou de meu transtorno e eu o curei também. Seus impulsos agressivos se foram com a morte de Sweet. Talvez, ela despertasse algo em Vincenzo. Algo de ruim que possa ter ocorrido em outras vidas, como ele gosta de pensar. Ele sabe de algo e me esconde. Não me importo. Não quero saber. Sweet deve estar bem amparada onde quer que esteja. Estamos vivendo em paz e isso é tudo o que interessa.

- Além de seu sonho interrompido...- Diz Vincenzo, jogando-se, repentinamente, contra o sofá onde estou sentada. Um arquejo de susto e o repreendo.

- Vc tá suado! Sai daqui, Vincenzo! Vai sujar o sofá! - Beijando minha barriga, ele brinca. 

- Se sujar, eu limpo, amor. - Tomando as fotos de minhas mãos, ele comenta olhando-me nos olhos. - Assim que nosso filhão nascer, vc vai se matricular no    'Conservatório' e realizar seu sonho. Prometo. - Dando de ombros, refuto.

- Não me importo. Estou bem assim. - Observando foto por foto, ele retruca.

- Mentira. Eu sei o que sente e sei que tudo vai dar certo no momento certo. - Um beijo em minha boca e ele me impede de continuar a discutir. Mostrando-me uma das fotos onde o obturador da câmera captou o exato momento em que finalizo minha coreografia vingativa erguendo os dois braços, ele, cismado, comenta. - Tem alguma coisa de estranha nessa foto. Dá uma olhada.

- A única coisa estranha nessa foto sou eu. - Um riso curto e prossigo. - Eu estava 'doidona' e com muita raiva de vc com a 'novinha' que, aliás, sumiu...do nada. - Movendo a cabeça numa negativa, ele refuta.

- Não é isso. Tem alguém atrás de vc, no meio da pista de dança, e não sou eu e nem Antoine. Estávamos aqui...- Diz ele apontando o indicador para a foto. Seu dedo traça um círculo imaginário ao redor de um vulto muito próximo a mim. - Consegue ver? - Engolindo em seco, assinto em silêncio. Desconfiado, ele me encara e ordena, com ternura. - Dess, não me esconda nada. Quem é esse vulto? - Afastando-me dele, ligo a TV e aumento o som no volume máximo. - Dess! Fala comigo! Desliga a TV!

- Não! Não quero que leia meus pensamentos! Para! Me deixa em paz! - Caminhando até a cozinha, resmungo. - Me deixa quieta. Eu preciso descansar. Ainda vou trabalhar. - Bebo um litro de água num só gole enquanto ele me analisa com seus olhos azuis e plácidos. Recostando-se à pia, ele permanece calado. Incomodada, reclamo. - O que é??? Tô com sede!!!

- Por que tá nervosa, Dess?

- Não tô! De onde tirou isso!?

- O que ele te disse dessa vez?

- Ele quem??? Disse o quê??? - Impedindo-me de passar pela porta, ele me abraça com força e sussurra.

- Não vamos deixar que aquele anjo de merda estrague nossas vidas, Dess. O que ele te disse? - Tentando não pensar, choro em seu peito. Tarde demais. Ele acaba de ler o que acabo de me recordar. Afastando-me com seus braços, ele procura por meus olhos ao me interrogar. - Ele disse isso!? Que eu vou morrer assim que o nosso filho nascer!? Dess! vc acreditou nisso!? Quando ele te falou!? Vc estava dançando e depois nós fomos transar no banheiro!? Como...!?

- Não sei. - Choramingo de olhos fechados. - Não sei quando nem como. Ele apareceu do nada. Como num sonho, eu o vi e ouvi sem parar de dançar. Eu não quero acreditar nele, mas ele não vai desistir de vc e eu sou fraca pra lutar contra ele, Vincenzo! Eu não sou forte pra vencer o 'Anjo Caído'! A menos que eu queira desistir de viver e eu não quero!

- Não entendi...- Evitando seu olhar confuso, eu o abraço forte e digo.

- Nada. Falei por falar. Não me deixa sozinha, amor. Eu não vou conseguir sem vc.

- Eu não pretendo ir a lugar algum, Dess. Minha vida é aqui, com vcs. - Levando-me em seus braços de volta ao sofá, ele argumenta. - Antes de esclarecer essa questão de seu poder de destruição contra Lúcifer, gostaria de te fazer uma proposta. Aliás, uma intimação. - Um sorriso triste e, secando minhas lágrimas, indago.

- Qual?

- Quer ser minha recepcionista na academia? 

- Eu???

- Sim. Quem mais além de vc pra controlar nossas finanças e evitar que 'novinhas' abusadas frequentem nossas aulas? - Saltando em seu colo, vibro.

- Eu topo! Eu sempre quis estar ali entre vcs! Desde de quando vc me expulsou de lá...

- Não fala nisso, Dess. Isso é passado. - Acariciando seu terceiro filho em minha barriga, concordo.

- É passado. Agora tudo vai ser diferente. Nosso filho vai nascer.

- Vai...- Diz ele, esperançoso. - Vamos trabalhar juntos. Eu não vou mais precisar te esperar de madrugada na rua. Nada de perigo. Nada de riscos. - Animado, ele continua a tagarelar. - O salário não será tão bom quanto o da boate, mas eu posso bancar a nossa família, Dess. Tudo o que eu quero é que fiquemos juntos e seguros.

- Eu também...

- Por que esse ar de preocupação?

- Ele a tocou antes de partir.

- Em Antoine!?

- Eu não consegui impedir! - Defendo-me. - Eu estava sonhando ou algo parecido! - De pé, diante de mim, ele pergunta, enfurecido.

- Lúcifer tocou em Antoine!? Na nossa festa!? - De volta às lágrimas, graças à ebulição de hormônios, peço desculpas.

- A culpa foi minha. Se eu não tivesse feito aquele 'barraco', eu o teria visto e o expulsado. - Gosto de como ele vai da fúria ao riso solto. Parecendo despreocupado, ele me pega em seu colo e, caminhando até o nosso quarto, comenta.

- O que seria de uma festa de casamento sem um 'barraco'? - Enlaçando seu pescoço com meus braços, eu o encaro ao perguntar.

- Que olhar é esse, Vincenzo? Eu preciso me arrumar pra trabalhar. Não é hora de sexo!

- Sexo não tem hora, Dess e, hoje, não tem trabalho. Não na boate. - Arremessando-me contra a cama, ela salta ao meu lado e abrindo um de seus sorrisos iluminados, me faz arfar ao afirmar. - Hoje seu trabalho será aqui, comigo. 

- Vincenzo!

- Shhhh...


Mais um dos muitos momentos de intimidade dos quais eu jamais me enjoaria porque, a cada vez em que ele me toca, sinto algo novo, revigorante. Enfim, eu sei o que é amar e ser amada. Ao ver meu homem dormir em paz, tendo a certeza de que ele realmente dorme, volto a pensar no que Lúcifer dissera durante meu transe frenético na festa.

"Seu anjo vai perder mais do que suas asas, meu bem. É bom se preparar para dias difíceis. Estarei de olho em vcs".

- O que ele quis dizer com isso?

Em breve, descobriríamos juntos.




Há um mês, como recepcionista da academia de boxe de Vincenzo e João, tenho me disciplinado ao máximo. À proporção em que minha barriga vai crescendo e meu corpo se transformando, vejo outros corpos ganhando músculos, agilidade e beleza. Tento controlar meus ciúmes porque Vincenzo tem me tratado com o triplo de delicadeza e atenção. Eu o amo ainda mais por não me deixar pensar que estou longe da mulher sexy e bela que já fui. Vestindo batas, ainda me reservo o direito de expor minhas pernas e o meu sorriso aos alunos que se afeiçoaram a mim. Vincenzo diz que minha presença tem atraído um número maior de alunas que, antes de mim, não se atreviam a entrar em um local onde somente havia homens. Sinto-me honrada em fazer algo por ele que sempre me faz bem. Sempre satisfaz meus desejos, ainda que lhe custe caro. Nesses momentos, eu me odeio por ainda ter algo da garota de programa ambiciosa que julgava ter morrido. 

Sempre compro algo bonito e fútil a fim de decorar nossa casa ou complementar o enxoval de Matteo que, certamente, já tem, em seu lindo baú em madeira,  roupas até seus dois anos de idade. Talvez, a compulsão por sexo tenha se transformado em uma vontade quase que incontrolável em gastar nosso dinheiro com nossos filhos, ele ou nossa casa. Vincenzo nada fala. Apenas me observa em silêncio, sem me censurar.

- Gostaria que me reprovasse. Assim, eu teria algo que me impediria de gastar tanto.

- Vc não gasta muito. - Refuta Vincenzo à mesa de jantar bem posta com direito à taças para água, vinhos branco e tinto e talheres para diferentes utilidades. Um olhar benevolente e ele argumenta. - Só não vejo necessidade de tanta coisa sobre a mesa se somos pessoas simples recebendo nossos amigos igualmente simples. Vc me repreendeu tanto em gastar com a nossa festa e, agora, mudou de comportamento. - Contrariada, refuto, sentada à cabeceira oposta a dele. 

- Nossos amigos simples merecem o melhor que temos para dar, marido. Vc não concorda? - Um sorriso complacente e ele assente com a cabeça.

- Tem razão, Dess. - Dando tapinhas nas costas de Liam, ele afirma. - Cassie e Liam merecem o melhor. Estávamos com saudades, irmão.

- Irmão, pai??? Tio Liam é seu irmão??? - Rindo, Vincenzo responde num tom de cumplicidade. 

- É maneira de falar, filha. Liam e eu nos conhecemos há muito tempo...- Interrompendo sua resposta, Antoine faz a pergunta que não quer calar.

- Tio Liam também é um anjo??? Igual a vc???

- Oi??? Anjo??? - Cassie gargalha ao lado de Antoine. - Não surta, pirralha! - Um olhar lascivo a Liam e ela comenta. - De anjo ele não tem nada. - Liam ruboriza enquanto Antoine a chama de 'safada'. Cassie a beija na testa e continua a falar com os olhos vívidos de quem encontrou sua alma gêmea na Terra. - Tia, sua casa é linda! Super bem decorada! Amei essa coisa de misturar plantas, cores e móveis antigos! Eu quero que a nossa casa seja assim também, 'Coelhinho'! - Inebriado, ele responde.

- Como quiser, 'little princess'.

Um silêncio constrangedor paira no ar. Contenho minha gargalhada até que Antoine, sem a menor cerimônia, exploda, aos risos, apontando o garfo na direção de Cassandra e, para variar, de boca cheia, declarar.

- "Coelhinho"??? Tio, ela te chama de "Coelhinho"??? - Enciumada, ainda aos risos, ela considera. - Isso é patético, 'Little Princess'. - Diante do embaraço do casal, Vincenzo, esforçando-se em se manter sério, a repreende.

- Antoine Rossi! Pare, agora!

- Eu tô brincando, papai...- Choraminga ela enquanto tento parar de rir. Peço desculpas a Liam e Cassie observando o quanto Antoine se ressente quando repreendida por Vincenzo. Seu mundo cai sem a aprovação de seu pai. Ambos têm uma conexão que ainda não entendo. Após tantos anos de convivência, ainda me sinto distante dessa conexão. - Não grita comigo...

- Não vou gritar, filha. Mas o que vc fez é feio. Vc entende isso? - Largando os talheres, ela corre até Vincenzo e, em seu colo, chora, copiosamente. Arrependido, Vincenzo acaricia seus cachinhos e pede desculpas. 

- Não faz isso! - Interfiro, engolindo o riso. - Continua! Ela fez uma coisa feia! Precisa ser corrigida!

- Dess...- Apoiando meus cotovelos na mesa, eu o encaro ao argumentar, com doçura.

- Vincenzo, vc precisa aprender a lidar com ela. É uma criança e crianças precisam de correção. 

- Desculpa, Cassie...- Dramatiza Antoine contra o peito de Vincenzo. - Eu não queria rir de vcs, mas...- Voltando a rir, ela comenta. - "Coelhinho" é muito engraçado. Por que ele não te chama de "Safada"? Vc continua safada. 

- Porque esse apelido é seu, pirralha! Graças a vc, o mundo inteiro me conhece como "Safada". - No colo de Vincenzo, Antoine sorri ao admitir.

- Isso é verdade. Eu te chamo de safada porque vc era safada antes de encontrar o tio Liam. Agora, vc não é mais, né?

- Não...- Responde Cassie, 'desmanchando-se'. Ao beijar a bochecha de Liam, ela declara, arfando. - Agora eu encontrei meu verdadeiro amor.

- Eu te disse. - Sorrio. - Vc duvidou que encontraria seu amor, lá na praia, lembra? 

- Lembro. No dia em que vc me disse estar grávida. Graças ao Matteo, eu encontrei o Liam, tia. Fui atrás de um 'trampo' e encontro o amor. Matteo nem nasceu e já opera milagres. Hmmm! Essa carne tá divina! - Um olhar maravilhado ao teto e, ainda degustando a carne de cordeiro, ela pergunta. - Foi vc quem cozinhou, tia!? Eu nunca comi nada igual enquanto ainda morava com vcs!

- Meu 'Irish Stew'? - Afetando indiferença, comento. - Bobagem. É uma receita de família.

- Que família, Dess!? 

- Não se lembra dos meus tios? Tia Celeste amava o meu 'Boxty'. Por que tá me olhando assim, Vincenzo!? - Erguendo-se da cadeira, ele caminha em minha direção. Seu olhar confuso me encara ao sussurrar.

- Dess? É vc? - Olhando-o nos olhos, indago ao sorrir.

- Quem mais poderia ser, amor? - De joelhos, ao meu lado, ele me pede ao tocar num ponto entre meus olhos.

- Volta, Dess. Não se deixe controlar.

- Pai!?

- O que tá rolando aqui, tio!?

- Nada. - Diz Vincenzo de volta ao seu lugar à mesa. Olhando-me incisivamente, ele repete. - Nada. É que, às vezes, ela fica confusa. Distraída. Não é, Dess?

- Sim...- Respondo, distante. - Eu preciso dos meus remédios.

- Não pode, Dess. Vai fazer mal ao bebê.

- Eu sei...

- Que remédios, tia? Vc ainda toma o da 'tarja preta'?

- O que faz a 'outra' dormir. - Esclarece Antoine ao se sentar em meu colo. - Já se esqueceu? Ela já falou com vc, Cassie. Foi por pouco tempo, mas já falou. Mas vc resolveu morar na casa do tio Liam e deixar a gente... - Dando de ombros, ela lamenta. - Uma pena. Agora eu tenho um quarto só pra mim. - Um beijo em minha bochecha e ela prossegue, acariciando minha barriga. - Eu até gosto da 'outra', mas prefiro a mamãe.

- Eu não me lembro...- Divaga Cassandra. - Que parada 'sinistra'. Por que não me lembro?

- Provavelmente, o bonitão ali já mexeu em sua cabeça e vc nem percebeu.

- Como assim, tia?

- Vincenzo adora apagar memórias. Não é, amor?

- Que 'outra'? - Questiona Liam com o cenho franzido. - Do que ela está falando, Vincenzo?

- Depois conversamos.

- No nay never! Falamos agora! - Afirmo ao jogar o guardanapo de tecido no chão. - Por que eu tenho que me esconder!? Por que vc precisa me esconder, Vincenzo!? - Antoine salta de meu colo e, lentamente, caminha ao redor da mesa, deslizando os dedos nas cadeiras. Parada, ao lado de seu pai, ela cochicha ao seu ouvido. 

- Ela voltou, papai. Fica calmo. 

- Puta que pariu! - Exclama Cassandra, desnorteada. Um ligeiro olhar a Liam e ela recomeça. - Perdão, amor. Eu sei que vc não gosta de palavrão, mas...cacete! O que tá rolando aqui!? Ela não tinha partido, tio!?

- Nunca! - Rosno. - 'Striapach'!

- Vagabunda??? Eu???

- Calma, Cassie. - Pede Vincenzo. - Ela não fez por querer. 

- Fiz sim! Ela é vagabunda mesmo! Como diz sua filha, ela é safada!

- Peça desculpas a Cassie, Eileen!

- No nay never.

- Não precisa, tio. Deixa rolar.

- Eileen! - Revoltada, protesto.

- A mim, vc repreende! À sua filhinha, não! Ela diz o que quer quando quer!

- Eu posso. - Gaba-se Antoine enquanto tento, desesperadamente, retornar ao meu corpo. - Minha mãe, que não é vc, deixa eu falar tudo.

- Filha, para.

- "Filha, para". - Ironizo. - Olha no que vc se transformou! Um pai que não sabe educar a própria filha!

- Já disse pra calar a boca. Não vou repetir.

- Nossa. Que medo, 'Amadán'

- O que ela disse, 'Coelhinho'?

- Tolo. 'Amadán' é tolo em gaélico. - Arregalando os olhos, Cassandra comenta num tom baixo.

- Uau. Gaélico? Irado.

- Acho melhor irmos embora, amor.

- Não antes da sobremesa, Liam. - Lançando a ele um olhar de superioridade, elucido. - Seria deselegante nos deixar antes de apreciar minha torta. Aliás, vc deve ter experimentado uma 'Pavlova' de morango em algum momento em sua vida. Sendo irlandês...- Sem desviar os olhos dos meus, ele diz.

- É a minha preferida, Adessa. Mas, eu não sou irlandês. Meus pais eram. - Estalando os dedos das mãos, inflo minhas narinas ao corrigi-lo.

- Não sou Adessa, 'Coelhinho'. Pode me chamar de Eileen. Esse é o meu nome. - Confrontando o olhar decepcionado de Vincenzo, eu me ergo da cadeira e, antes de chegar à cozinha, advirto. - Não se atrevam a sair sem experimentar minha 'Pavlova'. Deu trabalho, viu?

Antes de abrir a geladeira onde guardo a torta, Vincenzo surge, repentinamente. Um sorriso em seu rosto e eu o impeço de me abraçar ao lamentar.

- Por que eu não posso ficar? Vc a ama mais do que a mim? Nosso filho nasceu, amor. Ele nasceu e vc o segurou em seus braços. Eu te dei isso. Eu te dei um filho. Será que 'sua Dess' vai conseguir te dar o mesmo? Talvez...

- Eileen! - Reconheço o pavor em seu olhar assim que concluo meu pensamento.

- Talvez esse bebê não deva nascer porque, se ele nascer, vc vai se esquecer de nosso filho, 'Collach'.

- Nunca mais fale isso. - Rosna ele ao comprimir meu pescoço com sua mão forte. - Se vc tentar algo contra meu filho, eu...

- Me mata? - Ironizo quase sem voz. - Vai matar o corpinho de 'sua Dess', anjo de merda? Será que seu transtorno está de volta? - Afastando-se, de súbito, ele me pede perdão. - Nunca. Eu nunca vou te perdoar, Vincenzo. Eu te dei tudo o que sempre quis. Uma família, um filho. Uma vida e vc a retirou de mim, bastardo. - De costas para mim, amparando-se no mármore da pia, ele murmura.

- Não fui eu. Foi o Aiden. Disso, vc se esqueceu.

- Não. Eu o odeio com todas as minhas forças, mas ela não. Ela ainda tem carinho pelo monstro que nos matou e vc ainda a quer de volta. Não sei se tenho nojo de vc ou se te amo ainda mais, Vincenzo. Me deixa ficar, por favor. Eu posso te fazer feliz. Eu posso.

- Eu sei que pode, meu anjo.

- O que tem na mão, Vincenzo? - Seu olhar frio me assusta enquanto eu o vejo se aproximar e se desculpar.

- Eu não queria isso. Vc me obrigou.

- CADÊ O BOLO!? - Cassandra grita da sala de jantar, distraindo-me por segundos. Uma picada incômoda em meu pescoço e levo um tempo até assimilar os acontecimentos. Lágrimas escorrem dos meus olhos enquanto o líquido morno invade minha Jugular. - Por quê? Eu te amei tanto...

- Pai? - A voz de Antoine se distancia assim que fecho meus olhos. Uma profunda e longa inspiração e me deixo levar de volta ao 'Nada'.

- Acabou? Ela já foi?

- Sim, filha. Ela está indo...



Ainda sonolenta, de madrugada, beijo os lábios de Vincenzo e me levanto da cama. Descalça, caminho até a cozinha. Com fome, corto uma fatia da torta já pela metade.

- É sério que comeram sem mim??? Ingratos, seu pai e irmã, meu filho!!! - Penso alto, alisando minha barriga com uma das mãos. A outra ergue o garfo até minha boca aberta. De esguelha, vejo seu vulto se aproximar segundos antes do tapa em minha mão. - O que foi isso??? Vincenzo!!! Quer me matar de susto??? - Catando os farelos da torta no piso frio, ele me pede perdão. Exasperado, ele pergunta.

- Vc chegou a comer algum pedaço!? - Indignada, respondo.

- Graças a vc, não! Eu tô faminta! Quero um pedaço da torta, porra! Que ódio! Sujou tudo! - Agarrado ao suporte para bolos, ele suplica.

- Dess, não coma! Pode ter algo que afete a saúde do nosso bebê!

- De onde tirou isso!? Cacete! A torta já foi comida! Alguém passou mal aqui!? 

- Não.

- Então! Por que eu passaria!? - Seguro o suporte envolvido em seus braços e travo uma luta pelo pedaço da torta enquanto ele ri de meu desespero. - Eu tô com fome! Teu filho tá com fome! Nós queremos essa torta, cachorro! Me dá!

- Não, Dess! - Diz ele, aos risos. - Dessa torta não! 

- POR QUE NÃO!? EU TÔ COM DESEJO DE COMER A PORRA DESSA TORTA! - Jogando-a na lixeira da pia, ele me mata, aos poucos. - Filho da puta...- Choramingo em seu abraço. - Eu queria só um pedacinho...

- Amor, eu compro outra igualzinha a essa. Peço agora mesmo. Deve ter alguma confeitaria aberta.

- Eu queria aquela, seu bosta.

- Não me xinga, amor. É para o seu bem.

- Vcs comeram sem mim. - Reclamo contra seu peitoral exposto. - Isso não é justo. Cassandra e Liam foram sem se despedirem de mim? Por quê? - Afastando-me com as mãos livres, ele me encara e, num tom sombrio, declara.

- Ela voltou, Dess. 

- Quem? - Em silêncio, ele me observa. - Tá de sacanagem!? De novo!? Puta que pariu! 'Hashtag' de volta ao inferno!? Não é possível...

- Fica calma.

- Calma como, Vincenzo!? A vaca quer matar meu filho e vc me pede calma!?

- Como sabe? Eu não te falei nada. - Insatisfeita e ainda faminta, abocanho uma maçã ao responder de boca cheia.

- Não precisa. Eu me lembrei quando te toquei. Meu grande e útil poder de merda. 

- Ela não vai mais voltar.

- Vc não pode ter certeza disso, Vincenzo! - Arremessando a maçã mordida contra a parede, vocifero. - A gente nunca vai se livrar dela ou de seu amiguinho chifrudo! Por que não podemos ter paz, cacete!? Por quê!? VINCENZO! - Grito apontando o indicador ao seu nariz. Meus lábios tremem ao avisar. - Tá sangrando de novo. Vc voltou a lutar? - Baixando a cabeça, ele limpa o sangue com papel-toalha e me revela algo avassalador.

- Eu perdi tudo, Dess. - Caminho, desorientada, até a sala onde me jogo contra o sofá ao indagar.

- Tudo o quê? Do que tá falando!? Vc tinha me prometido que não voltaria a lutar profissionalmente e mentiu! Eu te vi num ringue agora mesmo, Vincenzo!

- Eu precisei, Dess. - Diz ele, num desânimo. Baixando a cabeça, sentado na poltrona em couro, ele confessa. - Eu lutei pra pagar as contas. Eu perdi tudo e não sei como isso aconteceu.

- Tu tu tu tudo o quê? - Ajoelho-me diante dele e, procurando por seus olhos úmidos, volto a perguntar. - Do que tá falando? De sua herança? 

- Sim. - Passando a mão, nervosamente, sobre a cabeça, ele retruca. - Não sei o que houve. Eu não mexi em nada. Juro. Eu guardava aquela grana há séculos. Literalmente, há séculos. Eu a usaria para alguma emergência e na educação de nossos filhos. Eu sempre soube que teríamos filhos, mas agora...! Agora a grana sumiu, do nada! - Caída sobre o tapete, inspiro e expiro antes de comentar.

- Grana não some de bancos, Vincenzo. Alguém te roubou. Eu vi.

- Como???

- Acabo de ver! Eu te toquei, porra! Ele quis que eu soubesse!

- Quem???

- Aquele 'viado' se fez passar por vc! Falou com o gerente e 'raspou' sua conta!

- A nossa conta...- Profundamente abatido, ele cobre o rosto com as mãos e, pela primeira vez, chora diante de mim. - Era dos nossos filhos. Não é justo. Sei que errei. Eu falhei, Dess. Eu pratiquei o Mal, mas não deveriam punir os nossos filhos e sim, a mim. Essa grana era para o futuro deles. - Afasto suas pernas e, ajoelhada, invado o espaço entre elas. Retiro, cuidadosamente, suas mãos de seu lindo rosto e, procurando forças do fundo do meu ser, argumento.

- Eles terão um futuro fantástico, amor. Com ou sem essa grana. Estamos juntos e somos fortes e ainda jovens. Vamos trabalhar muito e construir uma vida bacana pra eles. Eu vendo tudo o que comprei de fútil. A gente faz propaganda da academia. Atrai mais alunos. Eu posso voltar a trabalhar na boate. Vai dar certo. Não chora mais, por favor. Eu não quero te ver assim, Vincenzo. Vc é o forte da relação, amor. Vc é quem me ergue sempre. Não desista.

- Não vou. - Afirma ele, secando as lágrimas de fracasso com o dorso das mãos. - Eu sei que errei. Estão me punindo. Eu mereço. 

- Seu Deus é vingativo?

- Não. Ele não. Existem outros abaixo d'Ele que coordenam tudo. Existem leis e eu infringi uma delas quando...

- Quando?

- Quando incitei o jovem italiano à morte. Ele 'cheirou' mais pó do que deveria, graças a mim. Eu sussurrei em seus ouvidos. Eu o odiava por tudo o que fez à nossa filha. Eu fui corrompido pelo ódio e é pelo ódio que eu vou vencer novamente. - Recuo, recostando-me à mesa de centro. - Não me olha assim, Dess. Eu vou fazer o que for preciso pelos nossos filhos.

- Seus filhos te querem vivo. E eu também. Vc não pode lutar, Vincenzo. Vc sabe que é perigoso. Não sei e não quero saber o que são esses sangramentos nasais, mas não são normais. Eu não quero que lute. - Erguendo-me do chão, repito em voz alta. - Eu não quero que lute, Vincenzo! 

- Calma, amor. O nosso filho...

- NÃO TOCA EM MIM! 

- Dess...- Diz ele me seguindo até o quarto. Jogo-me contra o colchão e abafo meu choro com um travesseiro de penas de ganso. Quem diabos compraria um travesseiro de penas de ganso!? Essa porra deve ter custado os olhos do meu...- Amor, olha pra mim. Vc precisa ficar calma. Nosso filho precisa de vc. - Sentando-me, de súbito, eu grito.

- NOSSO FILHO PRECISA DE UM PAI VIVO, VINCENZO! VIVO! SE CONTINUAR A LUTAR, VC MORRE!

- Não. Eu ainda sou imortal. - Engulo em seco e, com a voz embargando, eu alerto.

- Até que o nosso filho nasça. 


Recebo outra proposta do mesmo fotógrafo de meses atrás, ainda interessado em me ver posar nua. Em um outro momento de nossas vidas, eu não hesitaria em declinar o convite, porém, após vender quadros, tapetes e outras bugigangas que comprara sem compreender o porquê, ainda não temos a quantia suficiente para quitar algumas dívidas pendentes. A quantia proposta pelo fotógrafo nos tiraria do 'sufoco' por algum tempo, mas, algo me diz que não devo aceitar. Sinto a presença maligna de Lúcifer a cada vez em que vejo seu número piscando na tela do meu celular. Tocando na tecla verde, eu grito.

- Quando é que vc vai parar de encher o meu saco e entender que eu não vou posar nua!? - Desligo sem ouvir sua resposta. Solto o ar pela boca assim que ouço sua voz suave perguntar.

- Com quem minha linda esposa estava conversando em pleno horário de trabalho?

- Ninguém. - Minto, sorrindo. Debruçando-me sobre a bancada, beijo sua boca após o término do expediente. Não há alunos na academia. Somente Vincenzo e eu. Rezando para que ele não tenha me ouvido, brinco ao sair da recepção. - Sabe que daqui a alguns dias eu não vou caber nesse quadradinho, né? - Olhando-me no espelho, dramatizo. - Jesus! Eu tô uma baleia! Talvez ele nasça antes do tempo!

- Isso tudo é pra disfarçar, Dess?

- Oi? Não entendi. - Minto outra vez. - Disfarçar o quê? A gente precisa pegar Antoine na casa da amiguinha dela. Tá quase na hora.

- Quanto ele ofereceu, Dess? Vc ainda não aceitou? - Desviando-me de seu olhar incisivo, refuto.

- Não sou obrigada a te responder, idiota. Sai da frente. Eu me nego a brigar com vc novamente. É só o que a gente tem feito. Brigar, brigar, brigar. Trepar que é bom, nada! Nada! Vc não me acha atraente!? Ok! Dá até pra entender! Eu tô um monstro de gorda! Meus seios estão gigantescos e doloridos! Mas não briga comigo porque, a qualquer momento, eu posso chorar feito uma vaca alucinada! Depois não reclama! - Impedindo-me de entrar em nossa Kombi pela porta do carona, ele sorri inocentemente. Um dos sorrisos que mais gosto nele. - Vincenzo Rossi, saia da minha frente!

- Dess, vc é incrível. Eu sei que não aceitou por me respeitar. A grana era boa. Digo. É boa. Mas, por nossa família, vc não aceitou fazer o que gostava de fazer antes. Vc mudou por mim. Por Antoine. Por nosso filho. Te amo mais do que nunca.

- Porra...- Digo antes de chorar copiosamente. Amparada por seus braços, reclamo, entre soluços. - Que merda. Eu te avisei que meus hormônios...

Meu celular vibra no bolso de meu vestido comportado. Irritada, atendo.

- Eu já te pedi pra não ligar de novo, porra! - Surpreendida, exclamo. - Cassie! Há quanto tempo! Desculpa! - Gargalho. - Não era com vc!!! Como??? Não acredito!!! Quando??? - De braços cruzados, Vincenzo me observa. Se eu não estivesse me sentindo tão disforme, eu o agarraria agora mesmo e o esfolaria vivo de tanto sexo. - Vcs dois??? Meu Deus!!! Onde??? Não acredito!!! - Outra gargalhada histérica e volto a chorar. - Espera...- Assoo o nariz na barra do meu vestido largo e curto. - Fala!!! Não!!! Não mesmo!!! Tá!!! Vou esperar, hein??? Todos bem! Vincenzo tá me olhando como se eu fosse louca! Antoine tá daquele jeito que vc conhece! Ela sempre vai te chamar de 'safada'! Mesmo depois de casada! - Uma terceira e última gargalhada e me despeço. - Te amo! Manda logo!

- Não vai me contar o que a Cassie falou? - Pergunta-me ele, ao volante. - Vc ficou tão animada. - Olhando-me de esguelha, ele se assusta. - Por que tá chorando, Dess? É algo triste?

- Não. - Sorrio. - Não mesmo. Eles vão se casar, Vincenzo. Cassie e Liam estão noivos e nos querem como padrinhos. 

- Que bom. Mas eu já sabia.

- Paspalho. Por que perguntou então? E por que não me falou antes?

- Liam pediu pra não contar. Cassie queria te fazer uma surpresa.

- Detesto surpresas. Como eu vou subir no altar monstruosa desse jeito?

- Nunca mais fale assim, Dess. - Repreende-me ele com suavidade. Beijando o dorso de minha mão, ele me faz arfar. - Vc sempre foi linda, mas, agora, está particularmente espetacular. Só vc não enxerga isso.

- Se eu estivesse particularmente espetacular, alguém iria querer algo comigo, mas...- Dando de ombros, minto. - Por mim, tudo bem. - Uma súbita freada e ele estaciona a Kombi no acostamento da estrada esburacada. - O que houve!? O pneu furou!? Jesus! Antoine vai ficar nervosa! A gente não pode se atrasar, amor! VINCENZO! - Grito assim que ele mexe na lateral de meu banco, fazendo-o reclinar por completo. Deitada, esforçando-me por me reerguer, reclamo. - Me ajuda! Tá difícil com essa barriga!

- Shhh...- Sussurra ele deitando-se ao meu lado. Olhando-me com lascívia, ele sugere. - Por que vc não faz o que pensou em fazer?

- Eu? 

- Sim. Aquele lance de me esfolar vivo de tanto sexo. - Uma gargalhada eufórica e ruborizo. - A rainha do sexo vai recuar? - Retirando meu vestido, ele apalpa meus seios com carinho e admiração em seus lindos olhos insanos. - Estão ainda mais lindos, Dess. Não se menospreze. Esse é o momento mais precioso de uma mulher. Pena que muitas não se dão conta disso. Vcs, mães, têm um poder que desconhecem. - Um beijo ardente e arfando, pergunto.

- E Antoine?

- Vai nos aguardar um pouquinho porque, agora, eu quero foder minha linda mulher.

- Como diria sua filha: "Safado".


Um dia antes do casamento de Cassie e Liam, nossa família se mudou para o sobrado acima da academia de boxe. Sem condições de pagarmos pelo condomínio absurdo de nosso apartamento, optamos pela mudança. Antoine nos ajuda a abrirmos as caixas com nossos pertences sem notar o desânimo no rosto de seu pai. Sentindo-me pesada, exausta, varro o chão de nosso quarto após pendurar nossas roupas em cabides em um único armário. Vendemos o meu por ser maior e mais caro, absolutamente dispensável para quem se adaptou a uma vida simples, sem luxo, sem a ostentação que me acompanhava desde jovem até a morte de Aiden.

Prostrado em sua poltrona predileta, ele encara o teto enquanto empurro o berço de nosso filho para o centro do quarto. Movendo-se dentro de mim, Matteo parece me incentivar a não esmorecer. 

- Eu não vou, filho. Não vou. - Penso alto, cheirando seu travesseirinho com aroma de lavanda. Um chute forte e, sorrindo, reclamo. - Essa doeu, filho. - Antoine corre até mim e, entusiasmada, pede ao irmão que repita o gesto. 

- Maninho, chuta mais forte. Eu quero sentir. - Descansando na cadeira de balanço onde pretendo amamentá-lo, fixo meus olhos em Vincenzo. Triste e magoada com seu estranho distanciamento, peço.

- Vincenzo! Vem até aqui, por favor! - Despertando de algum tipo de transe, ele se ergue e caminha até o quarto. Um sorriso triste e ele pergunta.

- Aconteceu alguma, Dess? Tá sentindo dor?

- Sim. 

- Onde!? - Indaga-me ele, assustado. Pousando minha mão sobre meu peito, respondo num tom baixo.

- Aqui. - Compreendendo minha alusão, ele se ajoelha e, ao lado de Antoine, pousa sua mão em minha imensa barriga cuja pele esticada me dá a impressão de que vai se romper a qualquer momento. Assim que ele a toca, Matteo se move dentro de mim. Emocionado, ele chora e me pede perdão. - Pelo quê? Por me fazer a mulher mais feliz desse mundo?

- Vc sabe...

- Não sei de nada. A única coisa que sei que estou feliz por estar junto à minha família morando em nosso novo e singelo apartamento.

- É tão pequeno, Dess...

- Eu gosto dele, papai. - Abraçando-o pelo pescoço, ela nos impressiona. - É melhor do que o outro. Não tem sombras nas paredes.

- Sombras nas paredes??? Por que nunca me disse isso, filha??? - Um beijo em sua bochecha e ela responde a Vincenzo.

- Porque eram boazinhas. Não dava medo não. Medo eu tinha lá na casa do tio Aiden. Aquilo é que era um castelo bem mal assombrado mesmo! - Olhando-me nos olhos, ele refuta cheio de remorso.

- Mas, lá, vcs tinham de tudo. Roupas de grife, colégio particular, brinquedos caros, viagens ao exterior, carros novos...- Interrompo-o bruscamente ao declarar. 

- Exceto amor. Tínhamos de tudo o que o dinheiro maldito dele poderia nos dar, exceto o amor e a paz que temos aqui. Nunca mais fale daquele lugar de onde fugimos por medo e horror. Nunca mais se compare ao Aiden. Vc é muito muito muito melhor do que ele em tudo. Entendeu? 

- É isso aí, mamãe! - Exulta Antoine, saltitante, ao nos deixar a sós. Sábia, ela escolhe uma canção em meu celular e a faz tocar na caixa de som da sala. De lá, ela grita. - Escuta essa, mãe! Papai adora!



- Disso eu não sabia...- Comento com os olhos marejados. - Ela é linda. - Recostando sua cabeça em minhas coxas, ele volta a chorar. Acaricio seus cabelos enquanto ele se acalma. - Te amo tanto, idiota.

- Eu fiz tudo errado, Dess. Não era pra ser assim. - Erguendo a cabeça, expressando angústia em seu lindo rosto, ele confessa. - Eu não deveria ter feito aquilo. Eu não sou mau.

- Vc é humano, amor. - Enxugo suas lágrimas com um das muitas fraldas de pano de nosso filho. Enchendo-me de ternura por seu sofrimento, prossigo. -  Humanos erram. Humanos amam e odeiam. Humanos se arrependem, meu amor. A vida é feita disso. De erros e acertos. Bem-vindo ao meu mundo, marido. Não me deixa. Não se afaste de mim por ter errado. Quem mais errou nesse mundo do que eu!? E olha onde eu tô agora!?

- Na pobreza?

- Não. No paraíso. Se houver um, eu estou nele e vc é o meu anjo e sempre será. Mesmo sem asas, vc sempre vai ser meu anjo que 'caiu' por mim, uma humana cheia de pecados. Vc me curou, Vincenzo. Seu amor me curou. - Seus lábios tocam os meus. Sinto todas as fibras do meu corpo vibrarem de amor. Ele sente o mesmo. Estou em total conexão com ele e seus sentimentos. Ele nos ama e nos quer para sempre em sua vida.

- Ainda tem dúvida disso?

- Não. 

- Matteo deve estar rindo de seus pais chorões. - Chorando, sorrio ao concordar.

- Dois idiotas chorões.

- Que se amam.

- Sim.

- Que permanecerão unidos pra sempre? - Pergunta-me ele, inseguro.

- Pra sempre. - Repetindo o refrão da canção, complemento. - Até o final do Tempos.

- Até o final, Dess. Até o final.

Nosso filho volta a se mover em meu útero. Distraído e feliz, ele sorri enquanto escondo o pavor crescente. Acabo de ver onde ele esteve ontem e o devastador diagnóstico que seu médico lhe dera. Abraçada a ele, repito, angustiada.

- Até o final dos Tempos, amor. 


Continua...









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