'Dess - Uma História Interessante'

'Dess - Uma História Interessante'
AMO ESCREVER

CAPÍTULO 43 - CONFUSO

 





Apesar de não ter notado o desempenho da debutante porque não tirava os olhos de Leo e Antoine, eu a elogio.

- Vc está perfeita. Alguns ajustes aqui e ali e...'voilà'! - Movendo meus braços como as asas de uma borboleta prestes a cair, afirmo. - Sua apresentação será 'meravigliosa'!

- Obrigada, tia! - Agradece-me ela por não ter cobrado nada por meu trabalho. Se ela soubesse que estou aqui somente para vigiar Antoine e Leo, ela,  certamente, não me agradeceria. - Vc é demais. Leo já havia me dito isso, mas, agora, eu vi com meus próprios olhos. Como aprendeu a dançar tão bem!? Vc já dançou profissionalmente em algum lugar!? - Se eu te disser a verdade, vc ainda vai me considerar 'demais'!? E seus pais!? Uma stripper de um puteiro como coreógrafa da adolescente inocente!? Talvez, ela não seja tão inocente quanto parece! - Tia!

- Oi?

- Esquece! - Rindo, ela diz que sou engraçada. - Vou treinar muito até a festa! Não irei te decepcionar!

- Tenho certeza disso! - Beijo o topo de sua cabeça e aconselho. - Treine mais um pouco com seu namorado. Ele é um tronco de árvore travestido de humano. - Gargalhando, ela se afasta e se mistura à turma de onde Antoine e Leo ainda não se afastaram. 

- Hora de ir embora, filha. 

- Sério, mãe!? O pessoal tá querendo comemorar o último ensaio na pizzaria aqui ao lado! - Um olhar  de cachorro pidão e ela me indaga. - Eu não posso ir com o Leo?

- Não. - Respondo sem rodeios. Entre os jovens, ela vai se esquecer de quem verdadeiramente é e vai se perder assim como eu me perdi quando tinha sua idade. Ou não? Ela não se parece em nada comigo quando eu tinha meus quinze anos. Aliás, eu nem sei quantos anos tem minha própria filha. - Mãe!!! Responde!!!

- Não! 

- Leo não pode ir lá pra casa!? Por quê!? A gente só quer comemorar o término dos ensaios e assistir aos filmes novos na TV!

- Se eu estiver pedindo muito, tia, pode falar, 'de boas'. Não quero ser aquele que rouba a harmonia de uma família bacana como a sua.

- Aaah...não.

- Não o que, mãe!? Ele pode ir ou não!?

- Ir aonde!? - Antoine me responde, impaciente.

- À nossa casa, mãe!

- Antoine, menos. Bem menos. Ok? - Surge Vincenzo, no ginásio, com Matteo em seu colo.

- Desculpa, pai.

- Peça desculpas à sua mãe. Ela só quer o seu bem. Está cansada por acumular funções só pra satisfazer seus desejos.

- Eu sei...- Assume Antoine, arrependida. Orgulhosa de Vincenzo por estar aprendendo a orientar nossa filha, eu o abraço. Recostando meu rosto em seu peitoral, agradeço.

- Obrigada, amor.

- Estamos juntos nessa, Dess. - Diz ele ao volante enquanto esperamos Leo e Antoine se despedirem de seus novos amigos de infância na porta do colégio. Dentro do carro, seco minhas lágrimas enquanto Vincenzo argumenta. - Vc tem medo que ela se entregue ao Leo? Isso nunca vai acontecer. Não é isso o que ela tem buscado. Acredite em mim. Antoine não é o tipo de menina que se deixa corromper pela lascívia. Ela está encantada por um sentimento puro e verdadeiro que, a partir de agora, os une para sempre.

- PRA SEMPRE!? - Grito, assustada. - Vc diz...sempre...pra sempre? Ela não pode se unir a ele! Ela é especial! Um serafim! Ela não pode!

- Quem te disse isso, Dess!? Quem pode provar isso!? Ela é especial!? Sim! Talvez seja um serafim! Um querubim! E daí!? Alguém já escreveu sobre a história de serafins e querubins que se apaixonam por humanos e que se ferram no final!?

- Acho que não...- Respondo, confusa. - De mãos dadas, Antoine e Leo se aproximam do nosso carro. Vincenzo, preocupado em me acalmar, prossegue. - Então, deixa rolar, Dess. Pelo que ouvi naquela noite desagradável onde vc se libertou do espelho, Leo não é um simples humano. Filho de 'Astaroth, O grande duque do inferno', ele deve ter algum tipo de poder herdado do pai.

- Quem era Astaroth!? - Num tom sombrio, Vincenzo responde.

- A pergunta certa é: quem é Astaroth? Ele ainda existe, Dess.

- Puta que pariu! Agora todo mundo descende de algum ser diabólico ou celestial!? Que merda é essa!? Quem é essa coisa!?

- Quer mesmo saber?

- Acho que não.

- Ok.

- FALA! - Rindo de meu nervosismo, ele esclarece. 

- É demônio de uma hierarquia superior. Tanto que o chamam de 'Duque do Inferno'.

- Cacete! Sério!? Leo é filho dele!? Aaaah! - Levando a mão ao peito, ironizo. - Agora eu tô super tranquila! Vou dormir muito bem a partir de agora!

- Posso continuar?

- Vai! Continua! O que mais de pior eu posso ouvir dessa criatura fofa!?

- Ele, graças ao seu 'amiguinho', se rebelou contra o Criador e, contrariando sua própria vontade, foi expulso do Paraíso. Ele se diz injustiçado. Era um dos grandes serafins, mas, infelizmente, se deixou levar por Lúcifer e se deu mal.

- Vc também 'caiu' por engano. Né?

- Sim. Mas resolvi ficar e, te procurar. Eu não me revoltei. Eu amo O Criador. Ele não. Eu jamais o vi pessoalmente. Sei que está, hierarquicamente, abaixo de Lúcifer, apesar de comandar quarenta legiões de demônios. Ele ainda pensa ser um serafim e ainda deseja retornar ao Céu e convencer o Criador de que tudo foi um grande engano. Dizem que ele é bom em argumentar. Costuma conversar com humanos que os invoca.

- E quem invocaria um demônio!? Pra quê!? Conversar!?

- Ele tem poder de enxergar o passado e o futuro dos Humanos. Tem quem goste. Além disso, ele é o conselheiro daquele filho da puta que pensa ter algum parentesco com nosso filho.

- Conselheiro!? - Gargalho histericamente. - De Lúcifer!? Não acredito! Existem essas coisas no inferno!?

- Nosso mundo é um reflexo do Céu e do Inferno, Dess. O que tem aqui, já existia do 'Outro Lado'. - Intrigada, concluo.

- Se ele é amigo de Lúcifer, está ao lado dele. Logo, suas quarenta legiões lutam pelo mesmo objetivo que aquele verme!

- Pode ser. No que tá pensando?

- Que temos dois super times a nosso favor contra essa 'Legião' de bosta, de onde sua mãe escapou. A mesma que tem perturbado nossa vida! Aliás, precisamos revisar o plano de resgate de Cassie e de  Sean!

- Dess, nenhum dos dois demônios está ao nosso lado, porra! Eu já te falei que não se deve servir a dois senhores! Vc vive num mundo de fantasia! Eles são maus! Escolha seu lado! Acorda!

- Ok. Eu sei. Eu já escolhi o meu lado. É onde vc estiver.

- Nunca se deixe levar por esses anjos caídos, Dess. Eles são falsos. 

- Não vou. - Beijando o dorso de sua mão esquerda que descansa no câmbio de marcha, lembrando-me de Cassie e Sean, comento. - Precisamos de um plano.

- Que plano, mãe!? - Pergunta Antoine atirando-se no banco traseiro, puxando Leo para perto de si. Eufórico, Matteo bate palminhas e balbucia um 'naninha'! Leo, sem graça, se afasta diante de meu olhar incisivo. - Podemos participar desse plano!?

- Claro que não, filha! Desacelera! 'Realiza'! Isso aqui é papo de adulto!

- Dess...

- Eu só queria ajudar...- Choraminga ela no ombro de Leo. Com metade do meu corpo fora do meu assento, eu os afasto e proponho.

- Pode começar a me ajudar se mantendo longe dele!? Que grude! Leo, querido, mais pra esquerda, por favor! Coloca Matteo no meio de vcs! Obrigada!

- Mãe! Nós já saímos do ensaio! Chega de dar ordens!

- Não me diga!? Quer ver eu dar outra ordem saindo, quentinha, do forno!? Fica quieta! Eu não quero ouvir sua voz até chegarmos em casa!

Ouço a discreta risada de Leo num dos cantos do carro enquanto Antoine resmunga.

- Ela me trata como criança.

- Porque vc é uma criança, filha!

- Eu tenho quase quinze!

- Filha...- Diz Vincenzo, impaciente. - Faz o que sua mãe pediu, por favor. Daqui a pouco, ela desiste do baile e te proíbe de ir.

- Tem razão. - Concorda ela, de braços cruzados. - Calei!

Após um breve silêncio dentro do carro, sem rodeios, pergunto olhando-o pelo retrovisor interno.

- Leo, vc disse que não conheceu seu pai. Certo?

- Sim. E minha mãe nunca me falou dele. Por que, tia?

- Por nada. - Minto, ligando o som do carro. - Tô aqui pensando em Genética, Hereditariedade. Nada de tão importante...ou assustador. - Vincenzo gargalha ao volante. Dando de ombros, Leo olha para Antoine que, atrás de mim, curiosa, pergunta.

- Aquilo que a 'outra morta' falou à mesa pode ser verdade, mãe?

- O quê? Não me lembro. - Minto com os olhos fixos no limpador de para-brisas. Em seu movimento hipnótico. - Se vc não se recorda, eu não estava presente, filha. - Assusto-me assim que Leo, despretensiosamente, menciona seu nome.

- 'Astaroth'. Ela...aquela que parecia ser vc, mas não era, mencionou esse nome. 'Putz mano'! Que conversa sinistra.

- Concordo. Melhor mudarmos de assunto. - Proponho. - Já escolheu seu terno, Leo!? 

- Já! Irado! - Responde-me ele, entusiasmado. - Eu aluguei. Sai muito mais barato do que comprar um novo.

- Um pretinho básico? - Engulo meu sorriso assim que Antoine responde.

- Não, mãe. Um vermelho bem ao estilo infernal. - Contorcendo-me no meu banco, eu encaro Leo e pergunto, assustada.

- Sério!? Por quê!?

- 'Zoação', tia. Só pra destoar dos demais. Nada além disso. - Recostando-me no banco do carona, jogo a cabeça para trás e deixo escapar um 'Aaaah tá'. - E o vestido de Antoine, tia? Gostou?

- Oi??? Como assim???

- Eu ia te contar, mãe! Calma! - Desespera-se Antoine agarrando-se à minha cadeira.

- Contar o que, Antoine Rossi!?

- Por que não contou?

- Medo. - Meneando a cabeça, Leo lamenta.

- Vacilou.

- Antoine! Que vestido é esse!? - Vincenzo, ao volante, observa.

- Dess, se continuar assim, vai ter uma distensão muscular no pescoço. Quer pular para o banco traseiro?

- Vá pro inferno, Vincenzo!

- Calma, mãe! Eu vou te explicar tudo! Eu juro!

De volta ao meu lugar, inspiro e expiro e, entre irritada, desconfiada, impotente e preocupada, rosno.

- Em casa, a gente conversa.


- Eu fui a culpada, querida. Eu estou tão excitada com essa coisa de debutante que que me empolguei.

- Vc se empolgou demais, Celeste. Comprar um vestido pra minha filha sem a minha permissão!?

- Era um presente, mamãe.

- Ainda assim, foi sem a minha permissão!

- Presentes não precisam de permissão! - Refuta ela, indignada. - Ele ficou lindo em mim, mãe! Quer ver!?

- Agora vc quer me mostrar!? Só agora!?

- Tia, perdão. Eu não queria ter causado essa confusão. - Lamenta Leo sentado à bancada da cozinha enquanto Antoine corre até seu quarto prometendo voltar dentro de seu vestido. - Acho melhor eu ir embora. Já causei muito problema.

- Fica aí e come as batatas, Leo! - Ordeno, inquieta. - Vamos lanchar todos juntos! 

- Quer um suco de maracujá, Dess?

- Quero que vc enfie o maracujá no seu...- Sufocando um soluço, levo as mãos à boca e deixo escapar um 'Uau' assim que a vejo caminhar em nossa direção. Encabulada, ela para em frente à bancada. Celeste, carinhosamente, corrige sua postura, mantendo sua coluna vertebral ereta, o queixo erguido.

- É assim que uma princesa como vc deve andar, meu amor.

- Obrigada, vovó...- Emudeço diante de sua beleza estonteante dentro do vestido rosa, franzido abaixo dos seios. Simples, com alças finas e a saia plissada longa, insinuando  partes de seu corpo curvilíneo, os seios destacados pelo decote. Seus olhos brilham quando se encontram com os de Leo que, de queixo caído, se mantem calado. Vincenzo é o primeiro a partir o clima tenso com um abraço em Antoine. Em seu ouvido, comovido, ele sussurra.

- Vc está linda, filha.

- Obrigada, pai. Mãe? O que achou? - Deveria dizer em voz alta: 'Deslumbrante!', mas o medo de perder a garotinha que adorava ouvir minhas histórias antes de dormir me faz criticar.

- Um pouco exagerado para sua idade. - Seja lá qual for...- Que tal se jogássemos um xale em tule bordada sobre seus...- Próxima a ela, pigarreio e concluo. - Sobre essa parte onde seus...- Com um pano de prato, tentando cobrir seus seios, sinto-me patética quando Vincenzo o retira de minhas mãos e, fixando seus olhos nos meus, observa.

- Ela está perfeita, Dess. O decote não mostra nada. Nada além de um corpo perfeito de uma adolescente normal, consciente de seus deveres e pronta para se divertir. Certo? - Um arquejo de apreensão e concordo.

- Certo. - Um abraço e cochicho em seu ouvido. - Vc tá linda, filha.

- Obrigada, mãe. Mas não vale chorar...

- Não vou. - Minto. De volta à bancada, de costas para todos, alimento Matteo enquanto lágrimas escorrem de meus olhos. Estou perdendo minha filha. De uma forma ou de outra, ela vai partir. - Olha o aviãozinho! - Disfarço minha aflição brincando com Matteo, sempre faminto. Lembro-me de Sean, esquálido. Choro ainda mais por não ter feito nada ainda para salvá-lo dos monstros que se alimentam de seu sangue inocente. Um tapa na bancada e, emotiva, assusto Leo ao exclamar. - Acorda! Nunca viu Antoine antes!?

- Não assim...- Suspira ele. - Assim, tão tão...tão...

- Bela? - Sugere Enrico ao abraçar a neta. - Nunca a viu tão bela assim, Leo?

- Isso. Nunca. Ela está absolutamente bela. - Ruborizando, Antoine avisa antes de correr de volta ao quarto.

- Já volto!!! - Leo ainda leva um tempo para fechar a boca e voltar a devorar as batatas fritas e sugar o refrigerante no canudinho como se não houvesse amanhã. De cabeça baixa, ele evita meu olhar. Vincenzo, mais uma vez, intervém a meu favor ao comentar sobre os assuntos pertinentes à academia, o que faz com que Leo volte a se descontrair. Antoine, retorna com uma das camisas de seu pai que chegam a cobrir seus joelhos. Os cabelos presos, em desalinho lhe caem bem. Quase vejo minha filha de nove anos de volta. Quase...- Leo, conta pra minha mãe aquela história da tua mãe antes de vc nascer.

- Por que agora, Antoine? - Indaga ele, desconfiado. - Eu tô conversando com o seu pai. - Dando de ombros, ela morde seu sanduíche e, de boca cheia, responde.

- Por que eles precisam saber. Ué.

- Que história? - Roubo uma batata do prato de Antoine. - O que eu preciso saber?

- Vai por mim, mãe. - Alerta ela, devorando, faminta, seu hambúrguer. - Acho que vai ser de grande ajuda na 'Grande Batalha'.

- Antoine...- Reviro os olhos, incrédula. - Essa conversa de novo? Não existe a 'Grande Batalha'.

- Existe sim. - Afirma ela num tom severo. - E nós estamos no meio dela. Fala Leo!

- O quê!?

- Que sua mãe costumava invocar uma certa entidade antes de vc nascer. Ela gostava de mexer com forças ocultas e fazer perguntas a um certo ser maligno.

- Isso é bobagem, Antoine. - Refuta Leo.

- Não é não! - Protesto. - Com quem sua mãe costumava falar, Leo!?

- Não me lembro do nome, tia. E prefiro não me lembrar. Ela e suas amigas gostavam de realizar sessões de ocultismo na outra casa e parece que uma delas se deu mal. - Demonstrando incômodo em seu semblante, ele confessa. - Não me sinto bem ao falar sobre isso. Podemos mudar de assunto?

- Claro. - Afirma Vincenzo, resoluto. - Ninguém, nessa casa, vai te obrigar a se lembrar do que te faz mal, Leo. Fica tranquilo.

- Valeu, tio. Isso me enfraquece. Sei lá.

- Isso te suga a energia. - Esclarece Vincenzo. - Melhor deixar quieto. Ok?

- Ok. - Encarando-me, Vincenzo repete. 

- Ok? 

- Ok! - Lembrando-me do tal 'Astaroth', concordo. - Tudo bem! Não fui eu quem começou essa conversa! - Cochichando em meu ouvido, Antoine promete. 

- Depois te conto tudo, mãe. Ele pode nos ajudar muito, mas ainda não sabe disso. Tadinho.

- Tadinho...- Repito, antes de esbarrar meu braço no de Leo ao tentar roubar mais batatas fritas. 

Outra visão devastadora me faz levantar da banqueta alta. Em segundos, jogo Matteo  nos braços de Vincenzo e, correndo até a área de serviço, vomito no tanque de lavar roupas. Preocupado, Vincenzo me pergunta ao me seguir.

- O que viu, Dess? Isso nunca aconteceu antes.

- Depois, Vincenzo. Depois. Ainda não sei o que vi. - Da área de serviço, alerto num sussurro. - A mãe do Leo não tá bem, Vincenzo. Ela não faz ideia do que a espera.

- Puta que pariu. A gente não pode se cercar de pessoas normais? - Sem respostas, lavo a minha boca na torneira aberta e murmuro.

- Acho que não.




Mais uma vez, assisto Antoine dançar com seu amigo em uma festa no ginásio do colégio. Há menos de um ano, ela dançava com o Thor, um menininho de dez anos. Agora, ela se encanta ao dançar com um rapaz com pouco mais de dezoito. Se eu já não fosse louca, eu enlouqueceria. Da arquibancada, Vincenzo, Enrico, Celeste e Matteo em meu colo, admiramos sua desenvoltura. "Puxou à mãe!", vibra Celeste batendo palmas, eufórica. Feliz, Antoine consegue irradiar tanta luz que ofusca a debutante. Leo é o culpado. Eles se encaixam perfeitamente enquanto outros casais erram alguns passos. A coreografia foi um sucesso. A aniversariante parece ter se esquecido sua suposta humildade em casa e, sob aplausos, agradece por ter criado os passos que encantaram os convidados. Antes de Antoine ir até a debutante e criar uma confusão por minha causa, eu a puxo para longe do palco e, ao lado de Vincenzo e Leo, eu a elogio.

- Vc foi a melhor, filha. Tem o dom de dançar e encantar. Não se importe com ela. Aprenda que existem 'amigas' e 'amigas'. E, no momento, vc somente tem a mim e ao seu pai e avós como amigos de verdade.

- E eu!? - Indaga Leo, suado e indignado.

- E o Leo. Claro. 

- Leo é mais do que amigo! - Exulta ela exalando felicidade. Sob meu olhar apreensivo, ela esclarece. - Ele é meu 'Best Friend Forever' !

- Aaah tá. Continuam amigos. Isso é bom. 

- Minha mãe é boba. Né, Leo? - Suspira Antoine assim que Leo pega em sua mão e abre um sorriso encantador. Meus olhos lacrimejam. A voz embarga quando, antes de sairmos da festa em direção ao carro, com meu celular na mão, ordeno. - Parem! Quero eternizar esse momento!

- Uma 'selfie', mãe!?

- Não. - Minha voz volta a  embargar ao esclarecer. - Somente vcs dois. Leo, abrace Antoine. Antoine, recoste sua cabeça no ombro de Leo e sorriam. Apenas sorriam.

Minhas mãos trêmulas custam a centralizar a imagem de ambos. Vincenzo toma meu celular de minhas mãos e, igualmente, comovido, graceja.

- Digam 'Cheeseburguer'! - Rindo, eles repetem a palavra sem sentido e Vincenzo capta, com vários cliques, a imagem de Antoine completamente feliz ao lado de Leo.

Eu guardaria aquela imagem pele Eternidade, agradecendo ao Criador por ela ter realizado seus sonhos na Terra.


 Deixamos Matteo, Antoine e Leo sob os cuidados de Enrico e Celeste. Aflitos, eles nos pedem para termos cuidado.

- Aquele homem não é o que parece. Ele é cruel. Não tem coração.

- Ele chegou a te fazer mal, Celeste? - Pergunto a caminho do carro. - Por que tem tanto medo dele?

- Porque ele é covarde. Gosta de assistir ao sofrimento de outros que, infelizmente, não tiveram a sorte que eu tive de escapar da 'Legião'. - Dentro do carro de Vincenzo, perplexa, indago. 

- Então, ele pertence, de fato, à 'Legião'???

- É um dos líderes, filha. - Sufoco um soluço ao ouvir outra revelação bombástica de Celeste com seu rosto na janela de Vincenzo. - Cassie não é sua primeira esposa. Ele já se casou antes e fez com a outra esposa e filho o que tem feito com Cassie. Infelizmente, a pobre moça e a criança morreram de forma trágica.

- Maldito! Isso não vai se repetir com a minha Cassie!

- Vamos. - Diz Vincenzo, tenso, ao volante. - Já está tarde e não sabemos o que iremos encontrar.

- Vá com Deus, meu filho. - Abençoa-o Celeste, beijando Vincenzo na cabeça. Enrico, ao lado da minha janela, entrega-me seu rosário em madeira. Sorrindo, ele diz.

- Só por precaução. - Beijando minha bochecha, ele me abençoa. - Que o Criador te proteja e, quando chegar a hora, bata com força. 

- Oi???

Vincenzo pisa no acelerador e, sem entender as últimas palavras de Enrico, beijando o 'Crucificado' na pequena cruz, admito. - Tô com medo, Vincenzo.

- Somos dois. Qual o plano?

- Não faço ideia.

- Dess!!!

- Ué! O plano é entrar lá e resgatar Cassie e o Sean!

- E como faremos isso sem um plano??? Vc disse que tinha um plano!!!

- Vincenzo! Não me irrita! Não me deixa mais nervosa do que eu já estou!

- Ah tá! Agora, eu estou extremamente calmo! - De olhos fixos na estrada, ele resmunga. - Sem planos? Ninguém merece.

- Inventa um, sabichão!!!

- Dess! Cala a boca e me deixa pensar!

- Vc não é bom nisso! Deixa que eu penso e vc ouve o que eu pensar! Viu!? Já temos um plano! O plano 'A'!

- 'A' de abestado!

- Vincenzo! Dirige! Quando chegarmos lá, eu terei um plano! Ok!? - Um palavrão e ele resmunga.

- Que Deus nos ajude. - Diante da mansão sombria de Cassie, sussurro, amedrontada.

- Amém...


O grande portão principal está entreaberto. Um empurrão e já estamos dentro do imenso e lindo jardim de Liam e Cassie. Apesar de estranharmos a facilidade com que invadimos sua casa, de mãos dadas, caminhamos até a escadaria que nos levaria à varanda. Uma olhadela e percebo o quanto eles devem ter gasto com as novas reformas, tornando o imóvel ainda mais luxuoso. Num solavanco, Vincenzo me esconde atrás de um arbusto e, ao meu lado, agachado, alerta.

- Se continuar pensando tanto, seremos descobertos e presos. Isso é invasão de domicílio.

- Desde quando??? - Cochicho, de joelhos. - Cassie é da família!!!

- Liam não, Dess! Ele mudou! Pode mandar nos prender, porra! Cadê seu plano!?

- No meu cu! - Rindo, ele cai sobre a grama úmida. Rindo dele, eu tento erguê-lo, sem forças. - Que porra de agentes secretos nós somos! - Ainda deitado no gramado, ele ri ao perguntar.

- Agentes secretos, Dess!? Isso é ridículo! - Um ruído nos fundos da casa e, de súbito, nos levantamos e nos escondemos dentro do gazebo em madeira, atrás dos vasos de plantas decorativas de onde consigo enxergar Liam e seus amigos malignos e esfumaçados, fora da casa, sob a luz que vem da área de serviço. Após um cumprimento cabalístico, girando ao redor de Liam, eles desaparecem como um ciclone sem força. Vincenzo me irrita ao me perguntar, num sussurro, o que estou vendo.

- Leia a porra dos meus pensamentos! Não dá pra contar! Não agora!

- Por que não!? 

- Porque eu tô com medo...- Apesar de todo o perigo que estamos correndo, Vincenzo me abraça e promete.

- Vai dar tudo certo. Deus é conosco. 

- Assim seja. - Murmuro em seu ouvido. - Eles se foram.

- Quem?

- A 'Legião'. - Cochicho. - Se não houver uma convenção deles aí dentro, suponho que a casa esteja vazia.

- Supõe? Legal. E o que a gente faz agora?

- Entra, porra! 

- Dess! Não! 

- Cassie está chorando! - Grito ao invadir a sala e subir os degraus até o segundo andar sem me dar conta de que fui vista. Alcanço o quarto de Sean e a vejo jogada num dos cantos do quarto, chorando, delirando, enquanto Sean chora em seu berço. Há sangue no lençol onde Sean está deitado. Em total desespero, eu o retiro do berço e constato picadas de agulhas em suas coxas e braços esquálidos. Seu rostinho está pálido. Tentando ser forte, eu o envolvo com um cobertor e me sento ao lado de Cassie. Ela não me reconhece. Suas pupilas dilatadas me fitam, curiosa. Seu tronco vai escorregando pela parede até o chão. Vincenzo chega em seguida e, assim que a vê, procura por sinais em seus antebraços. Com seus dedos, ele abre os olhos de Cassie e os examina com a luz da lanterna de seu celular. Nenhuma reação à luz. Chocada, percebo seus dedos azulados, a pele fria. 

- Overdose! - Diagnostica ele, estapeando o rosto de Cassie numa tentativa de reanimá-la. - Ela não pode dormir! - Erguendo-a em seus braços, ele me pede para segui-lo, com cautela. Agarrada a Sean, eu o obedeço. Grito quando algo puxa meus cabelos por trás. Dess! - Nos olhos arregalados de Vincenzo, vejo seu reflexo. Caindo contra o chão, sou arrastada pelo piso em madeira por Liam que me sorri, olhando para baixo. Grito de dor e ódio e esperneio sem largar Sean. Vincenzo deixa Cassie próxima ao degrau da escadaria por onde subimos e, como um felino, salta sobre Liam que, enfim, solta meus cabelos, deixando-me livre. Engatinhando até Cassie, ouço, com dificuldade, sua respiração. Grito por seu nome, estapeando seu rosto pálido e cadavérico. Desorientada, vejo Liam e Vincenzo lutando próximos ao 'guarda-corpo' em vidro que se liga ao corrimão da escada. Um assovio de Liam e seres sombrios flutuam sobre nossas cabeças e avançam contra Vincenzo.

Metade de seu corpo pende para fora do corredor do segundo andar. Ele resiste e insiste em lutar contra Liam e as sombras covardes quando  decido puxar o corpo quase sem vida de Cassie e de Sean até um dos quartos e os deixo jogados sobre um tapete persa. Corro até Vincenzo que está prestes a ceder e a cair de uma altura de aproximadamente três metros. Sem pensar, salto nas costas de Liam e envolvo seu pescoço com meu braço, aplicando pressão com meu antebraço em sua traqueia. Com meu bíceps em sua nuca, travo seus movimentos, aumentando a pressão. Ouço sua gargalhada diabólica enquanto uso de toda minha força para afastá-lo de Vincenzo. Recuando com rapidez, ele me empurra contra a parede. Urro de dor nas costas. Vincenzo se livra da queda. As sombras ainda nos cercam, atrapalhando nossos movimentos. Liam se vira em minha direção e, antes de atingir meu rosto com um soco, ele confessa.

- Eu sempre quis fazer isso!

Desnorteada, caio contra o piso. Vincenzo o xinga antes de disparar uma sequência de golpes no rosto de Liam, deixando-o  tonto. Aproveitando a vantagem de Vincenzo sobre o monstro covarde, arrasto-me até Cassie que, num esforço hercúleo, abraça seu filho. Envolvendo-os com meu corpo, sinto a presença das sombras com rostos e dentes pontiagudos dentro do quarto. Com o rosário de Enrico em minha mão esquerda, eu a ergo e, de olhos fechados, invoco o nome de Miguel, o Arcanjo.

- Nos proteja. - Sussurro sem forças. Um breve clarão e as sombras se dissipam. Com a visão, comprometida, enxergo um taco de baseball num dos cantos do cômodo. Há uma coleção deles pendurada na parede. Liam é fanático por Baseball. Utilizando-me do tato, escolho o mais pesado e comprido. Enchendo-me de ódio e coragem, segurando o taco, com as duas mãos firmes em sua base, caminho, cambaleante, até o corredor. Liam chuta Vincenzo que bate contra o 'guarda-corpo'. Com a pancada, o vidro se estilhaça em milhares de pedaços. Vincenzo se agarra à coluna em metal com o corpo pendurado. Uma queda e Vincenzo quebra, no mínimo, alguns ossos das pernas e coluna vertebral. Liam gargalha ao perguntar a Vincenzo. 

- Pronto pra voar, irmão? - Lembrando-me das palavras de Enrico, mantenho minhas pernas abertas e flexionadas e, erguendo o taco, giro meu corpo para trás, transferindo meu peso para a perna da frente. Impulsionando o taco com toda a força contra a cabeça de Liam, vibro ao vê-lo girar em torno de si mesmo e tombar inconsciente. 

- Vincenzo! - Largando o taco, agarro-me aos seus braços enquanto ele impulsiona suas pernas para o lado e, ágil, rola, seguro, sobre o chão do corredor do segundo andar. - Meu Deus. Eu quase te perdi. - Sussurro em seu ouvido enquanto o abraço. 

- Cadê a Cassie e o Sean!? - Erguendo-se, ele me dá sua mão e caminha até o quarto onde Cassie, de braços abertos em formato de cruz, deitada sobre o tapete, inconsciente,  mantem Sean sobre seu tronco.

Um forte arrepio faz nossos corpos tremerem ao mesmo tempo. 

- Ainda não estamos seguros. - Avisa Vincenzo carregando Cassie em seu colo. - Eles estão voltando! Corre!

Com o pequeno Sean em meus braços, sigo Vincenzo até a escadaria da varanda. Uma olhadela para trás e vejo um bando de morcegos gigantescos a nos perseguir. Cruzamos o portão e, abrindo a porta do carro, Vincenzo joga Cassie desacordada no banco traseiro enquanto sento no banco do carona, protegendo o corpinho de Sean com o meu. Grito ao ver a nuvem escura dos seres alados investirem contra o carro. - Vai, Vincenzo! Acelera!

- Tô tentando! - Grita ele, desesperado, enquanto os morcegos se jogam contra o vidro dianteiro que chega a trincar. Como nos filmes de terror, o carro demora a dar a partida. Na terceira tentativa, o carro alcança a velocidade de duzentos quilômetros por hora em poucos minutos. Chorando por Cassie, por Sean e por tudo o que passamos, ainda vejo, pelo retrovisor externo, a nuvem sombria sobrevoar a mansão. Beijando o 'Crucificado' no rosário de Enrico, agradeço. - Obrigada por nos salvar.

Mais calmo, ao volante, distante do Mal, Vincenzo indaga.

- O que faremos agora, Dess?

- Cuidar deles, ué!

- E se ela não quiser ficar longe de Liam, Dess? - De olhos fixos na estrada, rosno.

- Se isso acontecer, eu meto a porrada nela.


- Conseguimos reverter a 'overdose', mas, provavelmente, haverá sequelas.

- Sequelas!? - Pergunto ao médico de plantão. - Que tipo de sequelas!?

- O cérebro da paciente foi lesionado pra sempre. Poderão ocorrer episódios de distúrbio de atenção ou de memória, alterações motoras como dificuldade em andar, além de epilepsia.

- Epilepsia!? Ela era perfeita! Não foi ela quem se drogou!? Não é justo!

- Dess...

- Não é justo, Vincenzo! - Chorando de raiva, repito. - Não é justo! - Abraçado a mim, Vincenzo pergunta sobre o estado de Sean. Um ligeiro sinal e o médico o afasta de mim. - Eu quero ouvir!

- Melhor cuidar dos seus ferimentos. Precisamos examinar esse olho. - Aconselha o jovem de jaleco branco, acenando para uma das enfermeiras do 'Pronto-Socorro'. - Com calma, seu marido te explica tudo depois. - Um sorriso mecânico e ele se afasta com Vincenzo,  deixando-me sob os cuidados de uma enfermeira experiente e extremamente atenciosa. Ela escuta minhas lamúrias enquanto cuida, com receio, de minhas feridas e do olho inchado e roxo. - Não liga não. Pode mexer. Já levei muita porrada nessa vida. - Arregalando os olhos acinzentados, a enfermeira me encara em silêncio. Sentada em um leito, solto um riso curto e esclareço. - Não! Calma! Meu marido nunca me bateu. - Minto. Já e eu gostei. Eu peço que ele repita a experiência, mas ele se recusa. - Ele é professor de boxe e eu já tive aulas com ele. 

- Vc me assustou. - Avisa ela, sorrindo. - Sua amiga vai precisar de sua ajuda. Seja forte. Por que ela fez aquilo ao próprio filho?

- Não foi ela! - Protesto. - Foi o monstro do marido dela! Aquele demônio! 

- O pobrezinho vai precisar ficar internado. - Sufoco um soluço e, prendendo o choro, imploro.

- Vc poderia me deixar ver o filhinho dela? - Revirando os olhos, ela meneia a cabeça enquanto insisto. - Só um pouquinho. De longe. Por favor. Ela não vai aguentar se alguma coisa acontecer ao Sean. - Hesitante, ela responde.

- Ok. Melhor que vc lhe dê a notícia. Venha. - Enquanto caminho ao seu lado em direção ao C.T.I. Pediátrico, eu a observo. Seus cabelos lisos e curtos têm uma mecha larga e branca do lado esquerdo. Entre suas sobrancelhas, um sinal interessante: uma pequena estrela. Chamando-me pelo nome, ela aconselha. - Seja forte e não se assuste com o que vai ver.

- Já estou com medo. O que ele tem? - Higienizando-me na antessala, ela me observa com tristeza no semblante. - É grave? Fala alguma coisa. Por favor.

- Uma olhadinha e volte. Não estamos em horário de visita. - Um empurrão em minhas costas e estou dentro do C.T.I.. Dentre outros bebês nas incubadoras, eu o reconheço, com dificuldade. Suas narinas intubadas me causam angústia. Um curativo imenso cobre sua boquinha parecendo sufocá-lo. De seu nariz sai um cateter  que se conecta a uma espécie de seringa conectando-se a enormes tubos sanfonados ligados a monitores de sinais vitais. É perturbadora a visão dos tubos acima de sua cabecinha. Seu pequeno pulso está preso a outro cateter, impedindo-o de mover a mãozinha. De onde estou, não consigo ver seu rosto. Cassie surtaria se estivesse aqui. Jamais aceitaria que meu Matteo fosse mantido sob essas condições. Seu corpinho invadido por agulhas...eu o arrancaria desse casulo de horror ainda que tivesse que lutar contra todos esses profissionais, mais frios do que o inverno lá fora. Choro ao perceber um acesso venoso em sua jugular. Em seu abdômen, outro acesso por onde o sangue passa, coberto por um curativo transparente. Seu tórax se move lentamente. Meu pobre Sean está recebendo o sangue que lhe roubaram. - O que ele tem? - Pergunto à enfermeira, aos prantos. - Me diz alguma coisa. Eu imploro.

- Lá fora. - Diz ela num tom baixo. Afasto-me de Sean pedindo ao Criador que o cure. No corredor da ala pediátrica, ela revela. - Sean tem 'Anemia Severa'. Seu caso é grave. - Minhas pernas enfraquecem. Caio sobre uma das cadeiras enfileiradas enquanto ela, com doçura, prossegue. - Os pais não sabiam que ele tinha anemia!? Isso deveria ter sido tratado há mais tempo!

- Ele sempre foi saudável. - Respondo ainda sentada, sem forças para me erguer. De cabeça baixa, ratifico. - Ele sempre foi saudável. Cassie sempre cuidou dele. Ela o levava ao pediatra com frequência. Isso não é normal. - Insinuo. Não posso revelar a verdade imunda. Sentada ao meu lado, a enfermeira acaricia meus cabelos e, com doçura, pergunta.

- Vc sabe rezar?

- Sim! - Apavorada, indago. - Por quê!?

- Comece agora. O bebê pode morrer se não reagir ao tratamento em vinte quatro horas. 

Ela se vai enquanto choro, sozinha, no corredor frio e sombrio do hospital, jurando me vingar de Liam, assim que Sean for curado...

Ou não.



Cassie não é a mesma. Nem poderia. Sean ainda luta por sua vida na incubadora, após sua alta hospitalar. Cassie, desorientada, ainda me pergunta como seu filho foi parar dentro daquela 'caixa' fria. Da noite em que a resgatamos, ela não se recorda de muita coisa. Lembra-se dos 'amigos' de Liam rindo alto e do choro estridente de Sean. O som das risadas a incomodava. Decidida a partir com Sean, ela arruma suas malas e, no minuto seguinte, enxerga, nas imagens distorcidas captadas por sua visão embaçada, rostos  medonhos ao seu redor. 

- Foi um pesadelo, tia. 

- Não foi, Cassie. Vc foi drogada.

- Por quem??? Liam estava comigo!!!

- Por Liam! - Acuso, insensível à sua dor. - Ele já não é o homem com quem vc se casou! - Confusa, ela tenta sorrir e afirma.

- Ele não faria isso. Não faz sentido me drogar. Pra quê?

- Olhe seu braço, Cassie! - Observando o imenso hematoma em seu antebraço, ela refuta, alterada.

- Isso não prova nada! Eu precisei fazer um exame de sangue na semana passada! Ficou a marca! Por que meu filho precisa ficar aqui dentro!? Alguém tira ele daqui! - Descontrolada, ela grita. - Tirem meu filho daqui! Eu quero ir pra casa com ele!

- Se ela continuar assim, vamos ter de sedá-la. - Avisa a enfermeira de plantão. Um olhar indiferente a Cassie e ela pergunta. - Quer que ele morra? Então se controla!

- Meu Deus! - Reage Cassie, horrorizada. Abraçada a ela, eu peço por mais humanidade à enfermeira.

- Ela tá sofrendo! Não dá pra ser menos fria!?

- Não posso. Se eu for chorar por todas as crianças que sofrem aqui dentro, eu não teria forças para ajudá-las a sobreviver. - Tentando conter Cassie em meus braços, compreendo a obrigação do controle emocional da enfermeira.

- Tira meu filho dali! As agulhas! Estão machucando ele! Tira!

- Cassie...- Sussurro. - Ele tá dormindo. Não quer que ele volte a chorar. Quer?

- Não...- Geme ela, de dor,  com os olhos fixos em Sean. - Tira ele daqui, tia. Me leva pra sua casa.

- Preciso pedir que saiam. Estão incomodando os outros pacientes.

- São crianças! - Protesto antes de ser arrastada por um segurança para fora do C.T.I. - Vcs têm filhos!? Sabe o quanto ela está sofrendo!? - Um lampejo de tristeza no olhar da jovem trajando um pijama cirúrgico azul e ela responde num tom baixo. - Já tive. Morreu em meus braços porque eu não tinha plano de saúde ou  condições de interná-lo em um hospital como esse. 

- Sinto muito...- São minhas últimas palavras antes de sair daquele local onde a Morte aguarda por mais uma criança. Contenho o desespero de Cassie enquanto a empurro para fora do C.T.I.. No corredor, conto com a ajuda de Vincenzo que, ao tocar em sua testa, sussurra algo em seu ouvido e a acalma. Alheia a tudo, após sairmos do elevador, ela caminha ao lado de Vincenzo até o hall de entrada do hospital quando, de súbito, Cassie volta a mudar de expressão e, com ódio em seus olhos, corre até o balcão de informações e salta sobre Liam. Como que possuída por demônios, ela monta em suas costas e, com o auxílio de uma caneta roubada da recepcionista, quase a enfia na jugular de Liam.

Salvo por seguranças do hospital, ele sai ileso enquanto protegemos Cassie que, aos berros, o acusa de assassino. Vincenzo a contem em seus braços enquanto ela luta, movendo as pernas aleatoriamente, dando chutes no ar. 

- EU ME LEMBRO! VC ME DROGOU! EU ME LEMBRO!

Liam se aproxima, vagarosamente. Eu me posiciono entre ele e Cassie ainda contida por Vincenzo. Um olhar sinistro e ele pergunta num tom sombrio.

- Quer perder a guarda de nosso filho, 'Little Princess'

- Maldito. - Rosno antes de cerrar meus punhos e atingir seu queixo com um 'uppercut'. Inconsciente, ele tomba contra o chão. Um riso histérico e, antes de partir, em meio ao tumulto, grito. - Sem visitas por hoje, monstro!


- Vc é a única pessoa que já sai machucada de um hospital, Dess.

- Eu não pensei direito...

- Como sempre, impulsiva. - Resmunga Vincenzo enquanto massageia minha mão direita com uma  pomada específica para dor e, logo em seguida, enfaixa meu pulso dolorido. Uma risada inesperada e ele comenta. - Não era o momento, mas foi 'foda', Dess. Um golpe perfeito. - Ruborizo sob seu olhar penetrante. Sua voz doce me diz. - Te amo, doida.

- Eu também te amo. - Um beijo e, preocupada, indago sentada no sofá da varanda enquanto Cassie dorme no quarto de hóspedes sob efeito de ansiolíticos. - O que faremos agora? Liam pode tirar Sean do hospital a qualquer momento. Ele é o pai.

- Não se o tirarmos antes...

- Vc tá louco!? Ele precisa de cuidados! - Cochicho, angustiada. - A enfermeira me disse que ele pode morrer em menos de vinte e quatro horas!

- Naquele lugar, mãe! Aqui, ele tem mais chances de sobreviver!

- Antoine! - Grito. - De onde vc surgiu!? Quer me matar de susto!? - Sentando-se diante de mim, na cadeira de balanço suspensa, ela ri e, resoluta,  prossegue. 

- Papai tem razão. Precisamos tirar o Sean de lá. O Liam vai dar um jeito de levá-lo de volta à casa deles e terminar o ritual.

- Ritual!? Do que tá falando!?

- A ideia era matar Cassie e oferecer Sean ao líder da 'Legião'. Assim, Liam teria mais força, poder e influência sobre os demais.

- De onde tirou isso, filha? - Pergunto, assombrada. - Que coisa horrível.

- Como diria meu avô, tenho meus informantes.

- Todos na porra dessa casa têm informantes, exceto eu! Mas, quando o 'bagulho fica doido', sou eu que me lasco!

- Dessa vez não, mãe. - Deixando de se balançar, ela me olha com tristeza e repete. - Dessa vez, não.

- Antoine Rossi! - Erguendo-me do sofá, eu a puxo para mim e, aflita, eu a abraço. - No que tá pensando!? - Em segundos, descubro. - Nem pensar! Vc não pode! Não deve se meter nessa história!

- Sean vai morrer, mamãe.

- Não diga isso. - Peço, apavorada. - Ele ainda tá sendo cuidado. Há esperanças.

- Ela tá certa, Dess. - De volta ao sofá, pergunto.

- Como pode ter certeza disso!? Seus informantes!?

- Não. Vc não a viu quando o visitou?

- Viu quem, Vincenzo???

- A Morte. Ela o sondava enquanto estive lá dentro. - Uma risada histérica e ironizo.

- Fala sério!? Desde quando a morte pode ser vista!? Ela é algum tipo de ser palpável!?

- Sim. Muito. - Responde-me Vincenzo num tom sombrio. - Eu já a vi por diversas vezes durante minhas vidas. - Agarrando-me a ele, com medo, aviso.

- Não se atreva a vê-la agora que vc já não é imortal! 

- Dess, uma hora isso vai acontecer.

- MAS NÃO VAI SER AGORA! 

Assustado com minha reação, ele me abraça e, calado, ele me deixa chorar até exalar. Enxugando minhas lágrimas com o dorso de sua mão, ele beija minha bochecha salgada e mente ao me prometer.

- Eu nunca vou morrer, Dess. Eu juro. - Voltando a chorar, soluçando, deixo escapar um 'ok' e evito pensar no inevitável. - Precisamos ajudar o pequeno Sean, Dess.

- Como? - Abraçando-me com mais força, ele me pede.

- Se controla, amor. Por favor. Se controla. - Chorando compulsivamente, lamento.

- Não consigo. Não quero perder vc ou Antoine ou meu pequeno Matteo. 

- Não vai, mãe. - Afirma Antoine ajoelhada à minha frente. - Vcs dois vão ficar velhinhos, juntos. Tenta ficar calma. Cassie precisa de vc, mãe. - Inspirando e expirando, vou me acalmando, aos poucos. Ainda pensando na morte, indago.

- Como ela é, Vincenzo? Assustadora como aquela coisa com manto preto, capuz e uma foice na mão?

- Não. - Diz ele, sorrindo de minha inocência. - Ela toma a forma que quiser. Às vezes, um homem maduro com trajes simples e cabelos grisalhos ou um  jovem sorridente e falante.  Outras, como uma senhora simpática, doce, com uma mecha branca num dos lados dos cabelos. Seus olhos são acinzentados e, em seu rosto, há um sinal bastante interessante. - Assustada e desconfiada, pergunto.

- Uma pequena estrela entre as sobrancelhas!?

- Como sabe? Vc já a viu antes? - Erguendo-me, repentinamente, minto. 

- Não! Como pretendem tirar Sean do hospital!? Tem que ser rápido! Ela o aguarda!

- Quem!?

- A Morte, filha! A Morte lhe deu menos de vinte e quatro horas!


Celeste cuida de Cassie enquanto Enrico e Leo se juntam ao nosso trio cheio de boas intenções e sem qualquer plano. 

Mais uma vez...

- O plano é entrar, pegar o Sean e levá-lo até a nossa casa!

- Claro! Perfeito, Dess! - Ironiza Vincenzo ao volante. - Ele quase não tem nada preso ao seu corpo! Parece até estar em seu bercinho, dormindo como o nosso Matteo! Porra! Por que nunca temos um plano!?

- Dirija! Esse é o plano, Vincenzo!

- Calma, gente. - Apazigua Leo no banco traseiro, entre Enrico e Antoine que se mostra empolgada. - Vai dar tudo certo.

- COMO??? - Descontrola-se Vincenzo. - Não é hora de visita! E, mesmo que fosse, somos mais de três pessoas! O limite são três pessoas por dia! A porra do C.T.I. é extremamente vigiado! Por que eu me deixei levar por vc, Dess!? - Indignada, refuto.

- Por mim??? Foi vc quem me disse que deveríamos salvar o Sean ainda hoje!!! Eu estava tranquila!!! Vc me fez surtar!!!

- Vc disse que viu a Morte, Dess!!!

- Foda-se!!! E daí??? Isso é motivo pra sairmos de casa feito um bando de loucos???

- Vc me deixou nervoso, porra!!!

- Isso é problema seu!!! Não meu!!!

- Vcs poderiam parar de discutir? Pode ser um tanto perigoso enquanto se está ao volante a oitenta quilômetros por hora, filho. - Sugere Enrico, mantendo-se calmo. Seus olhos sorriem para mim quando observa. - Precisamos ter fé. Em momentos como esse, é preciso ter fé. 

- Como??? Não há saída!!!

- Ter fé é exatamente isso, filha. - Elucida ele sorrindo para mim. - É acreditar no que não se pode ver. A solução já está lá, mas nós não a conseguimos enxergar. - Revirando meus olhos, volto meu olhar ao limpador de para-brisas e deixo escapar um 'ah tá'. Antoine o abraça e exultante, comenta.

- Essa foi boa, vovô! - Contrariada, indago.

- Filha. Vc entende a seriedade dessa missão?

- Mais do que vc pode conceber, mamãe. Muito mais...- Responde-me ela, num tom de lamento. Infelizmente, compreendo o que ela insinuou.  Destruída por dentro, caminho até a recepção do hospital ao lado de Enrico que parece hipnotizar a recepcionista assim que se debruça sobre o balcão e a cumprimenta com um suave 'boa noite'. Um ligeiro aceno e entendo que devo aproveitar o momento e subir até o C.T.I. onde Sean ainda vive. Vincenzo, Antoine e Leo me seguem, subindo os degraus da escadaria até o terceiro andar. Seríamos descobertos, com facilidade, se optássemos pelo elevador. Arfando, paro diante da porta que deveria atravessar e encontrar Sean. Ela me olha entre triunfante e compassiva. 

- Fiquem aqui. - Imploro a Vincenzo, Leo e Antoine. - Eu preciso falar com aquela senhora. 

- Mãe, Sean não tem tempo...

- Deixem-me falar com ela, pelo amor de Deus...- Peço, sentindo-me derrotada. - Se eu não conseguir, darei um sinal.

- Com quem, Dess!? Não há ninguém aqui!

- Agora vc não a vê!? - Rosno. - Sério!? Fiquem aqui! Parados! Aqui! - Ordeno traçando, com a ponta do pé, uma linha imaginária no piso fosco. Recuando em direção à Morte, aviso olhando-os nos olhos. - Se tudo der certo, eu sinalizo. - Voltando-me em direção a ela, ouço sua voz fria avisar.

- Perda de tempo.

- Eu sei. Não custa tentar. O 'não' eu já tenho. Sabe o que vim fazer aqui?

- Imagino. - Murmura a senhora com a grande mecha branca em seu cabelo. - O menino já é meu. Seu nome consta na lista.

- Eu te imploro. Dê mais tempo a ele. Cassie vai morrer sem seu filho. 

- Não vai não. Não ainda. O nome dela não consta na lista.

- Foda-se essa lista! Me deixa passar e ver o pequeno Sean! Talvez haja uma chance!

- Vc não me conhece. Não sabe com quem está lidando. - Diz ela sem expressão alguma em seu rosto pálido. - Cumpro ordens e nunca...nunca volto atrás em minhas decisões. Desista.

- Não posso! Vc nunca foi humana! Foi!? Não sabe o que amor de mãe!?

- Faço uma ideia, mesmo assim, isso não me abala. Não tenho sentimentos. Isso atrapalharia meu trabalho.

- Me deixa passar! - Imploro, impaciente. - Vc quer que eu fique aqui, conversando enquanto o tempo dele passa!

- Não ouse me tocar!

- Vc me abraçou ainda hoje! Vc falou comigo com doçura! Há algo de bom em vc! Me deixa passar!

- Shhh. - Seus olhos acinzentados se arregalam ao alertar. - Fale baixo ou deixo que todos saibam que estão aqui. Então, serão todos expulsos. Só não o fiz ainda por conhecer aquela mocinha ali. - Apontando para Antoine, ela sorri. Horrorizada, vejo Antoine lhe acenar de volta. - Quer saber de um segredo?

- Não!

- O nome dela consta na lista. 

- Não! - Rosno. - Não toque em minha filha! Ela ainda vai viver muito! 

- Se vc diz...- Apavorada, eu a empurro com a lateral de meu corpo, decidida a invadir o C.T.I.. Um forte  choque elétrico me faz cair contra o chão. Ainda sentindo seus efeitos, tremendo, do chão, em posição fetal, suplico. 

- Não leva o Sean. Não hoje. Adie.

- 'Tic tac'. O tempo está se esgotando. - Avisa a Morte antes de desaparecer. Vincenzo me ergue do chão e me leva para o corredor. Sob protestos, peço que ele me solte. Próximos à rampa de acesso ao terceiro andar, ele argumenta num tom triste.

- Ela não vai desistir, Dess. Eu a conheço. A ordem foi dada. Ela está aqui para cumpri-la. 

- Foda-se! Deve haver algo que se possa fazer!

- E tem. - Afirma Antoine antes de sumir diante de nossos olhos. Desorientada, cochicho.

- Filha! Cadê vc!? - Sua mão direita se faz visível enquanto ouço sua voz me pedir.

- Venha, mãe. Não temos tempo. Sean precisa de nossa energia. - Prestes a surtar, pergunto uma segunda vez, ao olhar ao meu redor.

- Onde vc está!?

- Putz, mãe! Colabora! Lembra da 'capa de invisibilidade'!? - Antes de continuar a perder tempo com perguntas, Leo me empurra assim que seguro a mão estendida de Antoine e a vejo me abraçar. - Oi, mãe!

- Isso aqui funciona mesmo!? Eu estou vendo seu pai e me parece que ele está me vendo também! 

- E está. Ele consegue nos ver. Os outros não. 

- O Leo também!?

- Ele não. Não precisa se agachar, mãe. - Resmunga ela, com sua mão esquerda em minha cintura, cobrindo-me com seu manto que, segundo ela, me deixa invisível. Sempre quis ter uma dessas na vida. Teria me poupado muito sofrimento. Teria causado muitos estragos na vida de quem me feriu. - Mãe! Anda direito e não pensa muito! Ela vai perceber que estamos por perto!

- Ok. - Cochicho, corrigindo minha postura. 

- O segredo é se manter calada e tentar não pensar em nada. Ok?

- Puta que pariu! Não existe não pensar em nada! Só de tentar não pensar em nada, vc já está pensando em algo! - Revirando os olhos, ela sugere.

- Pensa no maninho dançando 'Pretty Little Baby', ok? A Morte costuma ser insensível à alegria. - A um passo da mulher com a mecha branca em seus cabelos curtos e me concentro nos dias em que danço com meu filhinho fofinho. Seu sorriso me encanta. Seu...

- Shhh! Mãe, não pensa tanto! Não agora! - Passamos pela Morte que, farejando algo, faz a estrela entre suas espessas sobrancelhas se mover. Encolho-me de medo, agarrada a Antoine que me guia até o interior do 'Centro de Tratamento Intensivo', deixando a velha para trás. 

- Uau! Isso funciona mesmo! Fantástico! - Exulto seguindo em direção à incubadora de Sean. Um sinal estridente vindo de um dos aparelhos aos quais Sean está ligado  alerta a equipe de plantão que corre em nossa direção e nos ultrapassa. - É o Sean!!!

- Ele tá morrendo, mãe! Faça o que eu fizer. Ok? Entendeu!? O que eu fizer!

- Entendi! - Afirmo, aflita, assistindo aos enfermeiros lutando para salvar a vida de Sean que, extremamente debilitado, ainda luta por permanecer vivo. Antoine se concentra enquanto espalma suas mãos sobre a incubadora. Eu a imito. De suas mãos escapam pequenos raios que chegam até o corpo de Sean e ao meu. De olhos fechados, intensifico os raios com o amor que sinto por Sean e por Cassie, sentindo escapar de mim uma imensa energia. Preocupada com Antoine que, ao meu lado se esgota, retiro as mãos da incubadora e as mantenho sobre a cabeça de minha filha. A conexão funciona. Ela se recupera. Eu enfraqueço. Ouço a médica da equipe de plantão informar, aliviada, que o quadro do paciente se estabilizou.

- Não foi dessa vez, meninão. - Sussurra, com ternura, uma das enfermeiras antes de se afastar de Liam. Quase sem forças, pergunto.

- E agora, filha? O que faremos?

- Nada...- Responde-me ela, abatida. - Ele vai se curar, mãe. 

- Como sabe disso? - Tocando com sua mão o coraçãozinho de Sean através das aberturas laterais, ela responde, com os olhos lacrimejando.

- O Mestre o curou. Ele vai ter mais tempo entre nós. Vamos embora, mãe. - Confusa e fraca, eu a procuro ao passar pela antessala do C.T.I.. 

- Cadê aquela vaca do cabelo listrado!?

- Foi buscar o próximo de sua lista. - Esclarece Antoine antes de desmaiar em meus braços.

- VINCENZO! - Grito sem saber se estou visível ou não. Já não importa. Minha filha perdeu muita energia ao doar muito do seu amor ao Sean. Leo a carrega em seus braços enquanto Vincenzo me ampara com sua mão em minha cintura. Apoio meu braço em suas costas até chegarmos ao carro onde, entre preocupado e confiante, Enrico nos espera. - Ela vai ficar bem!?

- Sim, tia. Ela vai. - Exaurida, no banco do carona, indago.

- Como pode saber?

- Não sei. Eu sinto. Meu amigo me disse.

- AMIGO??? - Com os olhos estatelados, girando meu tronco para trás, pergunto. - Que amigo!? - Astaroth!? Fala sério! - Vc conhece esse amigo!? Vc o vê!?

- Não, tia. Relaxa. - Reticente, ele comenta. -  Ela só está dormindo.

- 'Deixa quieto', Dess. 'Um leão por dia'. Ok? - Ao volante, ele sussurra. - Depois a gente descobre o nome desse amigo. 

- E quanto a Liam!? Ele ainda pode visitar o Sean até ele ter alta!

- Não pode mais. - Afirma Enrico, sorridente e um tanto convencido. - A jovem recepcionista me foi bastante útil ao aceitar minhas ordens mentais e emitir um alerta de que Liam é um foragido da Justiça, proibindo sua entrada no hospital. Nesse momento, todos já receberam esse aviso através dos computadores, inclusive, os seguranças. 

- Uau. Isso foi simplesmente esplêndido, Enrico. Como conseguiu convencer tanta gente?

- Hipnose coletiva. - Boceja ele ao responder. - Isso é tão cansativo.

Em segundos, ele adormece, encolhendo-se no banco traseiro. Antoine vai se recuperando, aos poucos, abraçada por Leo cujo olhar fez os pelos de minha nuca eriçar. - Algum problema, Leo?

- Nada, tia. É que eu não gosto muito de ouvir essa voz.

- A mesma voz que disse que Antoine vai ficar bem?

- É.

- E o que a voz te disse agora? - Sem rodeios, ele responde.

- Que o único jeito de salvar a Cassie e o Sean é matar o Liam. - Um suspiro e, recostando minha cabeça na cadeira, sussurro um 'Aaah tá. Simples assim?'.



Cassie ainda se nega a aceitar o fato de que Liam é um monstro. Vivendo em seu mundinho, ela cuida de Sean com muito carinho e pouca atenção. Por duas vezes, eu o impedi de cair de seu bercinho enquanto Cassie cantarolava a canção que a reconciliou com Liam. Quando Antoine, ainda acreditando na bondade daquele verme, os fez dançar juntos sob o globo espelhado. Sinto arrepios quando a pego distraída e sorrindo ao repetir o refrão da música 'Stuck on You'. Ela parece reviver aquele momento, rodopiando pela sala ampla e fria do meu estúdio de dança enquanto cuido de Sean, cada dia mais forte e fofo, seis meses mais novo do que nosso filho. Matteo e ele são extremos opostos. Sean mostra-se calado, contido e, raramente gargalha enquanto Matteo é a versão, em miniatura de seu avô, sempre sorridente e disposto a tudo. Desde brincar, dançar até destruir seus bonecos com seus novos dentinhos, arrancando-lhes a cabeça. Matteo e Sean, um ao lado do outro, me causa uma certa aflição. Sean sucumbe à alegria espontânea do meu filho que ainda insiste em ensiná-lo a dançar ou mover o bumbum enquanto flexiona as pernas e bate palmas ao som de sua música predileta. Sean carrega consigo uma tristeza inata como se reconhecesse seu destino.

- Cacete!

- O que foi!?

- Acabo de me lembrar que não comemoramos o níver do nosso filho! Que mãe que eu sou!?

- Nós tivemos um bolo, Dess. Ele soprou as velinhas. Ganhou presentes...

- Ele merecia uma festa, Vincenzo...- Choramingo. - Mas tudo acontece nessa família! Nós deveríamos ser normais, mas não somos! Será que ele vai ficar traumatizado!? 

- Claro que não. Milhares de crianças nem tem dinheiro para um bolo e continuam suas vidas, felizes. Matteo tem uma família que o ama. É isso o que importa. Mas, se vc quiser, na próxima semana, ou no próximo mês, faremos uma festa pra ele. Que tal?

- Perfeito. - Sussurro ao beijar sua bochecha. - Obrigada por nos amar tanto.

- Nem tanto assim...- Graceja ele.

- Ridículo.

- O Leo está com problemas.

- Ele disse porque não tem ido trabalhar?

- Pediu uma licença de uma semana pra tentar cuidar da mãe, Dess. Tem algo muito errado aí. - Comenta Vincenzo enxugando a louça do jantar enquanto eu as lavo. - Ele tem estado alheio durante o trabalho. Sempre pensando em sua mãe, em coisas ruins...

- Que coisas ruins? - Indago, tentando esconder de Vincenzo a dor aguda e esporádica em meu coração, desde que Antoine e eu realizamos aquele ritual no C.T.I. pediátrico. Graças a Deus, ela se recuperou. Eu, não. -  Por que não o convida pra jantar aqui em casa? Talvez, eu consiga descobrir algo e, daí, a gente pode tentar ajudá-lo. - Uma pausa e eu ruborizo ao perguntar. - O que foi? Que cara é essa? Que olhar é esse? - Ajeitando o último prato no escorredor de louças, ele seca as mãos com um pano de prato seco e, lançando-me um daqueles sorrisos que me deixam tonta,  confessa.

- Como eu fui tão burro em não ter casado com vc há mais tempo? Minha insegurança me impediu de ter vivido por mais tempo ao seu lado e ter aprendido a ser melhor por sua causa. Nem em meio aos anjos eu poderia ter crescido tanto quanto eu cresci ao seu lado, Dess. Vc, apesar de sua rebeldia e impulsividade, quer sempre ajudar ao seu próximo. Isso não tem preço. Tem valor. - Deixando o último copo cair de minhas mãos trêmulas, sobre a pia, refuto com a voz embargada.

- De onde tirou essa bobagem? Eu continuo sendo a porcaria de pessoa que eu sempre fui.

- Não faz isso...- Pede-me ele, roçando o dorso de sua mão gelada em meu rosto. Seus olhos lacrimejam ao me perguntar. - Vc tem algo pra me dizer? Tá me escondendo alguma coisa? Dess, eu não vivo sem vc. Não pense em morrer e me deixar aqui. Ouviu? - Agradecida por Matteo que, pela centésima vez, ouve sua música predileta, no volume máximo, na TV da sala, desconverso.

- Para! O papo era sobre a mãe do Leo! Por que veio parar na minha suposta morte!?

- Eu te conheço, Dess. Tá me escondendo algo. Mas...tudo bem. Em algum momento, vc vai estar distraída e eu vou ouvir seus pensamentos e, se houver algo de ruim acontecendo com vc, eu vou saber como te salvar.

- Vc nunca mais me tocou...- Deixo escapar. - Desculpa. Sei que estamos passando por tempestades. Uma atrás da outra...

- Perdão. Isso não é desculpa. Eu te amo. Eu te desejo ainda mais do que em nossa primeira noite na casa de praia. - Reviro os olhos e, nostálgica, comento.

- Nossa. Aquela casa é mágica. Conseguiu unir o padre idiota à prostituta promíscua.

- Sim. Aquela casa é mágica, mas não por esses motivos. Ela é abençoada por me fazer enxergar na garota de programa perdida, a mulher da minha vida. Em minha defesa, eu afirmo que já tentei tocar em vc e vc me evitou.

- Eu sei. Eu não tenho sido a mulher que vc conheceu. Por quem vc se apaixonou.

- Não mesmo. Tem sido mais do que aquela jovem imatura. Vc se transformou na mulher com quem eu sempre sonhei e procurei.

- Porra...- Choramingo. - Quer que eu chore?

- Quero que me diga o que tem, Dess. Algo em vc não está normal. - Sua mão toca meu peito, na altura do coração, quando, de súbito, Antoine decepa o clima romântico e sinistro com suas revelações bombásticas. 

- A mãe do Leo tá surtando! Ele precisa de mim! Alguém me leva até a casa dele ou eu pego um 'Uber'!? - Assustada, exalto-me.

- Peraí, porra! Não é assim que a 'banda toca'! O que tá acontecendo!?

- Ele tá nervoso! Ligou pra mim e não sabe o que fazer! Ela quer fugir de alguém, mas não diz de quem! - Desesperada, Antoine, decide. - Eu vou de 'Uber'! Vcs já têm muitos problemas e, além disso, mamãe não pode mais se meter em encrenca! O coração dela tá fraco! Fui!

- VOLTA! - Ordeno num g

rito que assusta Matteo e Sean. Matteo corre em minha direção. Sean começa a chorar sentado no colo de Celeste enquanto Cassie, fala ao celular. Minto. Ela sorri ao celular, o que me dá medo. Com Matteo em meu colo, volto minha atenção a Antoine que luta contra a maçaneta da porta que acabei de trancar. - Daqui vc não sai, mocinha. Desde quando vc vai pra onde quer sem o nosso consentimento!? 

- EU PRECISO, MÃE! UMA COISA RUIM VAI ACONTECER!

- NÃO GRITA! EU NÃO SOU SURDA!

- Se as duas não se calarem agora, eu juro que tranco vcs no nosso quarto e jogo a chave fora. - Alerta Vincenzo tomando Matteo de meus braços. - Vcs assustaram nosso filho. - Lamenta Vincenzo. - Vamos conversar com calma, porra.

- 'Porra'. - Repete Matteo, soluçando de tanto chorar. Agora são duas crianças chorando em nossa sala e Cassie não para de sorrir e sussurrar ao celular. Celeste, nervosa, tenta acalmar Sean. Enrico, altivo, ordena à 'Alexa' que pare de cantar. 'Alexa' responde: 'não tenho certeza do que vc quis dizer'. Prendo o riso quando Antoine, impaciente, avisa.

- Vovô, a música vem da TV e não da 'Alexa'!

- Não fale assim com seu avô, filha. Senta no sofá e me conta tudo.

- Mas...pai.

- A-go-ra. - Uau. Amei. Finalmente, meu homem é um pai com autoridade. - Posso contar de um a dez ou vai se sentar agora? - Antoine se joga contra o sofá e, de braços cruzados, resmunga.

- Estamos perdendo tempo.

- Liga pra ele, filha.

- Ele não atende, pai! Ele tá com problemas sérios!

- Mantenha a calma se quiser ajudar. - Aconselha Vincenzo. - O que ele chegou a falar com vc? - Sentando-me na poltrona favorita de Enrico, nervosa, eu a encaro. 

- Por que acha que ele corre perigo?

- Ele me disse que a mãe estava alucinando, chamando pelo pai de Liam. Liam, com medo, negou ser filho do ser por quem ela clamava. Ela surtou e confessou tudo a ele.

- O quê!?

- Não sei, mãe! É por isso que tenho que ir pra lá! Eu preciso saber! Eu tenho que ajudar o Leo! A voz dele estava estranha!


- Como!?

- Sei lá! Ele parecia estar com muito medo! Um pouco antes de desligar, ele gritou! Um grito de pavor! Me leva até lá, pai! - Implora Antoine enquanto observo Cassie desligar o celular e correr até o quarto de hóspedes com aquele seu jeito típico de menina travessa que está prestes a fazer algo de errado. - Me leva, pai! Ele tem pouco tempo!

- Eu vou com vcs. - Decido ao entregar Matteo a Enrico. - Pode ficar com ele por um tempo?

- Não querem a minha ajuda? Posso ser útil nessa caso. - Antes de eu recusar a oferta de Enrico, Celeste me antecede.

- Não, amor. Vc fica. Eu irei. - Acomodando Sean em seu carrinho. Erguendo-se do sofá, altiva, ela considera. - Eu sou a pessoa indicada para ir com eles. - Atraindo nossa atenção por sua postura de bravura, ela pergunta. - Quem poderia lidar com um demônio como Astaroth nessa família, além de mim? Os semelhantes se atraem, se conhecem, se enfrentam. Ele era o líder da minha legião. Eu sei lidar com ele. - Um beijo na testa de Enrico e ela pede. - Ore por mim, amor. Eu volto. - Visivelmente atormentado, ele promete.

- Estarei contigo, em pensamento. Mantenha-se forte, meu amor. - Abrindo a porta da sala, ela nos observa e, sorrindo, pergunta.

- Antoine! Acorda! Vamos agora ou não!?

- Preciso falar com Cassie. - Cochicho ao ouvido de Vincenzo. - Ela não tá bem.

- 'Um leão por dia', Dess.

- Vc não a viu!?

- Eu a ouvi. Sei com quem ela falava e do que falavam. - Num sussurro, ele me pede. - Te acalma. Por enquanto, Sean está em boas mãos. Nessa casa, Liam não pisa. Confie em  mim. Agora, Leo precisa de nossa ajuda. Vc vem com a gente? - Jogando meu avental sobre a bancada da cozinha, resmungo.

- Que pergunta idiota! Desde quando vcs se metem em encrenca sem mim!?


 
Continua...













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