Na sala de espera do mesmo hospital onde Vincenzo voltara à vida, aguardo, ao lado de Liam e Enrico, ao desenlace da tragédia. Vincenzo, distante, nos observa como se já conhecesse a verdade. O corredor me parece mais frio do que nunca. Mais vazio e sombrio. Liam não me dirige a palavra. Ele me culpa por não ter trazido Cassie assim que ela fora empurrada da cadeira.
Era o que eu deveria ter feito se outra de minhas personalidades não tivesse me tomado por inteiro. Se não houvesse uma enorme confusão sobre trocas de vidas e a intervenção de um arcanjo tão frio quanto poderoso que mantivera vivas, mãe e filha, enquanto o socorro chegava à nossa casa.
Como dizer isso a um anjo que aguardava, ansioso e feliz, pela vinda de sua primeira filha e que, agora, com as mãos unidas em prece, ora para que ambas saiam da sala de parto, vivas?
Como nos filmes, um homem, trajando um pijama cirúrgico azul, caminha em nossa direção. De cabeça baixa, ele retira a touca. Diante de Liam, ele revela a dolorosa verdade. Amparado por Vincenzo, Liam não grita. Não se desespera. Apenas chora abraçado ao amigo. O cirurgião nos dá as costas e o meu martírio tem início.
Não compareci ao enterro. Não conseguiria assistir o caixão descer à cova sem me culpar ainda mais. Não suportaria o olhar acusador de Liam incidindo sobre mim. Não suportaria ouvir suas palavras de ódio ao declarar que os monstros que perseguiam a mim, voltaram-se contra seu grande amor.Não fui ao enterro por aceitar a culpa.
Ele tem razão. Uma vida se foi graças ao mal que Celeste e Sweet trouxeram de volta às nossas vidas. Graças ao ódio que ambas ainda sentem por mim. Por mim, uma vida fora ceifada.
Antoine, sempre ao meu lado, com os olhinhos inchados de tanto chorar, me conforta.
- Vc fez o que podia, mãe. Se o tio Liam quisesse, poderia ter mudado tudo. Ele ficou lá, parado, vendo tudo acontecer. Não é justo te culpar.
Sentadas na cadeira suspensa, em madeira, na varanda de nossa casa, eu a encaro. Um sorriso triste e me pergunto.
- Como eu não percebi que vc havia crescido tanto, filha? Vc é tão inteligente e generosa. Eu não mereço uma filha assim.
- Merece sim. - Afirma ela beijando a bochecha de Matteo, sentado entre nós duas. Parecendo sentir minha dor, ele se agarra em meu braço e balbucia 'Mamã'.
Emocionada, sem ter Vincenzo ao meu lado para compartilhar esse momento, choro de alegria. Meus dois filhos me amam, ainda que outros me odeiem.
De onde estou, vejo Vincenzo abrir o portão da garagem e estacionar seu carro novo com as janelas tão escuras que mal consigo enxergar seu rosto. Preferia a velha Kombi com todos os momentos que passamos dentro dela. Cassie amava a decoração luminosa de seu interior e as flores em sua lataria. Ainda me recordo do dia em que, fugindo do juiz diabólico, encontramos Liam na cidadezinha próxima à casa na praia.
Por que tudo muda a todo instante? Por que não temos tempo de respirar antes de outra onda nos afundar?
- Vc está melhor, meu anjo?
- Enrico? Não te vi chegar. - Sentado em outro banco em madeira à minha frente, segurando Matteo em seu colo, ele comenta.
- Vc precisa se alimentar. Parece-me fraca.
- Triste, Enrico. Estou triste. Profundamente triste. Como Liam está?
- Devastado. - Lamenta Enrico enquanto Vincenzo, recostado à viga em madeira que sustenta o telhado colonial, me observa, calado. Não nos falamos desde a aparição de Sweet. Percebendo o clima tenso entre mim e seu filho, ele conclui. - Mas ele é jovem. Vai superar.
- E ela? - Indago, angustiada. - Ela estava lá?
- Sim. Apática. Pálida. - Descreve Enrico num tom sombrio. - Sem derramar uma lágrima sequer. Jogou flores sobre o caixão de sua filha e nos deixou antes do funeral terminar. Liam a levou até o carro e ambos sumiram.
- Ela me odeia.
- Vai passar, Dess. - Sem encarar Vincenzo, refuto, friamente.
- Não acredito. Eles me culpam pela escolha.
- Vc não tem poder de escolha, Dess. Deus é quem define isso. - Erguendo-me da cadeira, lançando a ele um olhar magoado, aviso.
- Diga isso ao seu amigo que, agora, me odeia. Com licença.
- Dess! - Grita ele seguindo meus passos. Corro até o quarto de Antoine e, antes de trancar a porta por dentro, ele a empurra e, num tom alto, ordena. - Fala comigo agora, porra! Eu tenho direito à defesa!
- Não há o que ser dito, Vincenzo! - Desisto de impedir sua entrada. - Infelizmente, sua amante voltou do inferno e acabou com nossas vidas. Minto. Sweet acabou com a alegria de minha melhor amiga. Cassie é como uma filha pra mim! Como acha que estou me sentindo sendo odiada por ela!?
- Ela não te odeia!
- Como pode saber disso!? - Revirando os olhos, ele responde.
- Eu estava lá, Dess! Eu a vi! Eu a ouvi! Nada havia em sua cabeça além de um vazio assustador! Não havia palavras, pensamentos! Nada! Ela precisa de vc mais do que nunca!
- Não tenho coragem de me aproximar.
- Eu te ajudo. - Atrevendo-se a tocar em meu rosto, eu o ameaço.
- Não toca em mim, verme falso.
- Dess... - Recuo, enojada.
- Entendo que não tenha controle sobre sua mãe. Celeste já está perdida. Mas não te perdoo por ter me enganado por tanto tempo.
- Do que tá falando, Dess?
- O meu mal é sempre acreditar em seu sorriso convenientemente inocente e em seu rosto angelical. Por trás disso, há um homem cruel que mentiu pra mim quando eu dei todas as chances de se abrir comigo.
- Eu nada tive com ela! Sweet nunca foi minha amante! - Um passo adiante e ele se exalta. - O que quer que eu fale!?
- A verdade, porra! Por que ela cobra um filho seu!? Por que diabos ela atormentou Cassie atrás de um filho seu!? Se não tiveram nada nessa vida, tiveram em outra! - Urro de raiva ao comentar. - Que diabos eu tô falando!? Eu nem acredito nisso! Fica bem longe de mim, Vincenzo! - Dentro do quarto, sigo até a banheira da nossa suíte. Abro a torneira. Aos poucos, água límpida vai tomando conta dos espaços vazios. Procuro pelos sais de banho. Esbarro em Vincenzo, completamente desorientado. Empurrando-o com a lateral de meu corpo, grito. - SAI! EU QUERO FICAR SOZINHA!
- Depois fala comigo? - Pergunta-me ele pela brecha entre a porta e o batente. - Não vou ficar mais um dia sem falar com vc. Não é justo.
- Não é justo que me culpem por algo que não fiz! Eu não quis enfiar minhas mãos na vagina de Cassie e causar dor a ela! Eu não sei quem foi! Eu não tenho controle sobre isso, merda! Além, disso, foi seu pai quem não quis levá-la ao hospital!
- Vc precisa voltar a tomar seus remédios.
- Eu preciso morrer! Só assim essas personalidades vão sumir da face da Terra!
- Não fala isso. A gente vai dar um jeito nisso.
- Eu tenho que dar um jeito nisso, Vincenzo! Eu!
- Eu sei, amor. Deixa eu falar com vc. - Chorando, imploro.
- Eu preciso tomar um banho demorado. Ficar longe de tudo e de todos. Me deixa...
- Ok. - Enfim, tranco a porta do banheiro. Antes de tirar minhas roupas, solto um grito de pavor. A água da banheira transborda quando abro a porta, buscando por ajuda.
- O que houve, Dess!? - Horrorizada, aponto para a banheira coberta por lodo e, com a voz trêmula, sussurro.
- Ela...de novo.
Nua, envolta em algas, Sweet, lembrando-me a velha sinistra do 'Overlook Hotel' em "O Iluminado", ergue-se lentamente, elevando seus braços e, como uma vadia ruiva dos infernos, clama por Vincenzo.
- Nosso filho está perdido. Tu me deixastes lá, no frio, com o nosso filho em meu ventre. - Puxando-me para trás, ele me protege com seu corpo. Sinto sua raiva ao tocar em seu braço. Sinto a repulsa em suas palavras assim que ele as pronuncia.
-'Sancte Michael Archangele, defende nos in praelio. Exsúrgat Deus e dissipentur inimici ejus'
Encolhendo-se na banheira, Sweet emite um grito de dor e desaparece. Ainda ouço o eco de seu choro pairar no ar. Mudos por segundos, nos entreolhamos, assustados. Sou a primeira a romper o silêncio ao indagar.
- Vai me explicar tudo agora ou se calar pra sempre?
- Conto tudo, Dess. Eu sou o culpado.
- Por que eu tenho que estar sempre ligada aos seus B.O's??? Eu não entendo!!!
- Escuta, Dess! Se não calar a boca, eu não vou continuar!
- Se vc não continuar, eu volto a não falar com vc, cretino!
- Vou repetir! - Arregalando seus lindos olhos azuis, ele me encara. - Vê se entende dessa vez!
- Fala!
- Aconteceu no castelo, na Itália. Vc e eu nos reencontramos. - Irritada, resmungo.
- Odeio esse papinho de vidas passadas...
- Posso continuar?
- Sim. - Permito recostando minhas costas na cabeceira de nossa cama. Abraço meus joelhos e, enquanto ele fala, finjo desinteresse. Ele me repreende. - Continua, porra!
- Vc já se esqueceu. Já se lembrou. Se esqueceu novamente, mas, enfim, vou contar de novo. Antes de me casar com vc, eu a tinha como amante.
- SWEET!?
- Isabella. - Esclarece ele, voltando a me repreender. - Se não se controlar...
- Continua. - Rosno.
- Assim que soube que eu te amava, ela surtou. Ela não queria desistir de mim. Eu não sabia que ela carregava um filho meu.
- Ela trabalhava no castelo?
- Sim. Era uma das serviçais de minha mãe. E vc tomou o lugar dela. Minha mãe se encantou por Antoine.
- Puta que pariu! - Reclamo. - Eu sabia! Por sua causa, eu tenho que lidar com dois 'encostos'! Definitivamente, isso não é justo!
- Não me faça rir. O assunto é sério.
- Sério que é sério??? Não me diga!!! - Ajoelhando-se diante de mim, expressando amargura, ele me pede ao segurar minhas mãos unidas.
- Ouça tudo com atenção e depois me julgue. - Compadecida, calada, eu o escuto. - Eu me comportei da pior maneira àquela época. Eu te seduzi sabendo que era casada com o Aiden. Eu te ofereci um bom trabalho em nossa mansão com o propósito ter vc por perto e, com o tempo, possuir o seu corpo, mas, com o passar dos dias, eu me apaixonei por vc. Não queria mais nada com Isabella. Eu tentei explicar a ela o quanto eu te amava. Ela passou a nos cercar em todos os lugares. Ela era calada, sombria. Eu não sabia da gravidez. Houve uma festa em nosso palácio. Vc e eu dançamos juntos. Foi quando eu te conquistei. Quando senti que seria minha, porém, vc ainda era uma mulher casada e vc nunca traiu seu marido, apesar de minhas tentativas. Aiden já estava sendo influenciado por Asmodeus. Eu não o culpo. Eu a tirei dele. Vcs eram felizes, Dess, e eu a tirei dele...- Com lágrimas nos olhos, peço num tom baixo.
- Continua...
- Estávamos na varanda quando Isabella nos viu bem próximos, movida pelo ciúme, ela atentou contra sua vida. Impulsiva, vc a empurrou com força. Ela caiu sobre o gramado e bateu a cabeça contra uma pedra. Morreu subitamente. - Sufoco um soluço ao indagar.
- Eu matei Sweet!?
- Eu causei sua morte. Vc se defendeu. Só isso. Na ânsia em esconder seu corpo, eu a arrastei até um lago próximo ao castelo e o joguei lá dentro. A correnteza a levou, mas, carrego esse peso comigo desde então. Eu não a matei, mas provoquei tudo. Isso nunca ficou claro em minha vida. Eu nunca tive a oportunidade de pedir perdão a ela. Como Sweet, nós nunca conversamos.
- Ela tentou te conquistar. Eu sei.
- Sim. E não vou mentir pra vc. Ela me instigava a ser brutal. Vc se lembra do meu transtorno. Foi uma época confusa, amor. Eu me perdi. Já dei umas porradas nela, mas, nunca transamos ou fomos amigos. - Socando o travesseiro, confesso.
- Eu odeio ouvir isso! Sabia!?
- Eu imagino. Perdão. Se ajudar em algo, eu mudei. Eu me curei. Graças a vc, eu me curei. Isso faz tempo. Quando ela adoeceu e foi internada na clínica, eu já não tinha nada com ela. Nenhum tipo de impulso destrutivo.
- Não ajuda! - Grito contra o travesseiro. Soltando o ar dos pulmões pela boca, observo. - Mas, tudo bem. Eu também te fiz sofrer com o Aiden.
- Muito. Vc não faz ideia das noites em que fiquei do outro lado da rua onde moravam, dentro do carro, tentando te ver na janela ou no jardim. E, quando eu o via te abraçando ou te beijando, eu me deixava dominar pelo ódio e dirigia até algum bar bem distante dali e bebia até cair.
- Vincenzo!? - Lamento. - Vc nunca me disse isso!
- Preferi esquecer. Enfim, estamos juntos como deveria ter sido desde o início. É tudo o que desejo, Dess. Ficar com vc até o fim. Foi sempre por vc e sempre será. Eu sinto muito por todo o mal que eu causei.
- Para. Não fala assim.
- Eu sou o culpado por tudo. Isabella não encontrou a paz por minha culpa. Isso se refletiu na vida de Sweet e, agora, em nossas vidas.
- Não. - Refuto afagando seu rosto. - Não há culpados. Foi uma fatalidade.
- Parece-me que ela não pensa assim.
- Por que somente agora ela se lembra de tudo?
- Porque o véu do esquecimento de outras vidas foi rasgado. Agora, ela se vê como Isabella e, talvez, deseje vingança. - Num tom sinistro, divago.
- Ou queira seu filho de volta...
- De uma forma ou de outra, ela não tem direito à vingança alguma. Não contra vc. - Enciumada e assustada, aviso.
- Ela que não se atreva a tocar em um fio de seu cabelo.
- Não temo por mim, Dess...
- Não me olha assim! - Ergo-me da cama. Pisando no tapete felpudo, protesto. - Não! Mais uma de olho em nossos filhos!? Não! Isso não! - Caminhando até mim, ele pousa suas mãos em meu rosto e me força a olhar em seus olhos aflitos.
- Eu vou proteger nossos filhos, Dess. Prometo. Por favor, fica comigo. Sem vc, eu não tenho forças. - Abraçando-o com paixão, sussurro.
- Eu fico. Não me deixa. Nunca.
- Nunca, Dess.
Sem saber o que pensar, jogo-me sobre o colchão de olhos fixos no teto. Deitando-se sobre meu corpo, ele beija minha boca com ardor. Correspondo ao seu beijo. Enciumada, excitada e desnorteada, rasgo, violentamente, sua blusa, da gola até o último botão. Enfurno meus dedos em seus cabelos revoltos. Suas mãos passeiam por minhas coxas, abrindo minhas pernas. Ele tenta respirar. Eu não permito, beijando-o com voracidade. Rasgando meu vestido ao meio, ele se espanta. Rimos juntos.
- Foi mal. - Diz ele, timidamente.
- Me fode. - Ordeno. - E se esqueça dessa tal de Isabella! Vc é meu! Só meu! Deu pra entender!?
- Vagabunda...- Ronrona ele segundos antes de se afastar de mim como um gato assustado. - Caralho.
Antoine, esmurrando a porta, alerta.
- Parem de safadeza! Meu maninho quer falar uma coisa séria!
Cubro-me com meu roupão de banho e, com o coração acelerado, caminho até a porta.
- O que mais pode acontecer, meu Deus!?
- Calma, Dess. - Diz Vincenzo coberto com um roupão idêntico ao meu. Abrindo a porta, sorrio. Matteo caminha, cambaleando, de braços abertos, até Vincenzo e, como se tivesse ensaiado, balbucia 'Mamã'.
- Dess! Ele falou! - Celebra Vincenzo erguendo nosso filho que gargalha em seus braços. Antoine, orgulhosa, declara.
- Eu que ensinei. Acho que posso ser uma boa professora quando crescer. - Um aperto no peito e concordo.
- Pode ser, filha. Vc leva jeito.
Volto no Tempo. No exato momento em que ela dissera que não chegaria a completar seus quinzes anos. Prendendo o choro, aceito o conselho de Vincenzo.
- Para de pensar besteira e deita com a gente!
Salto sobre o colchão 'king size' e quico.
- Acho que estou atrapalhando. - Diz Enrico, ruborizando, debaixo do batente da porta. Há felicidade em seus olhos quando comenta. - Vou dar um passeio. Depois, eu volto.
- Vai nada! - Protesta Antoine saltando da cama. Puxando-o pela mão, ela o faz se sentar na poltrona próxima à cama e, rindo, avisa. - O senhor vai contar a história de quando era novo e trabalhava na rádio durante a guerra!
- Antoine! - Exclama ele, cruzando as pernas. Levando a mão ao rosto, ele retruca. - Isso tem um milhão de anos!
- Mas é uma história legal e o meu maninho adora quando o senhor dá aquele grito!
- Que grito, Enrico? - Pergunto abraçada a Vincenzo, esquecendo-me completamente dos momentos sombrios pelos quais passamos há poucos minutos. Enrico tem o dom de aliviar, amenizar, clarear o ambiente. - Essa história eu quero ouvir!
- Vincenzo conhece...- Avisa ele absolutamente rosado.
- Conheço e quero ouvir de novo.
- Filho!
- Pai...- Amo o sorriso compassivo de Vincenzo. - Cadê o grito?
- Ok. Eu preciso de concentração. - Matteo gargalha pulando sobre o colchão assim que Enrico me surpreende com sua voz vibrante ao bradar. - "Bom dia, Vietnam!"
Após os risos, ele esclarece, coberto pela vergonha.
- Era assim que eu costumava iniciar os trabalhos na rádio. Foram tempos difíceis aqueles. Homens lutando por nada. Por nenhum ideal. Não há ideal algum em uma guerra. Todos perdem. Inclusive, aquele que se julga vencedor. Vi muitos amigos morrendo por nada. E, infelizmente, haverá outras guerras pela frente.
- Enrico! - Estalo meus dedos entre seus olhos perdidos. - Acorda! É passado! Vamos viver o presente, meu querido sogro!
- Pai. Vc poderia me considerar um pai?
Engulo em seco e, emocionada, assinto com a cabeça. Vincenzo me salva ao me abraçar e responder por mim.
- Claro que ela aceita, pai. Que homem seria capaz de nos unir e nos proteger além de vc?
Aos prantos, ele cobre o rosto com as mãos trêmulas. Matteo se agarra à cama até alcançar a poltrona e, apoiando-se nos joelhos de Enrico, balbucia, alegremente.
- Bo bô!
Entre lágrimas e risos, terminamos nossa noite saboreando pizza, pipoca e refrigerante, assistindo aos filmes antigos em nossa sala de vídeos.
Nunca me senti tão feliz e acolhida como nessa noite.
Pensava que havia nascido para ser puta e, descobrira, enfim, que nasci para ser mãe, esposa e filha de um homem mais do que especial. Sou parte de uma família feliz.
Absolutamente feliz...
Ouvindo suas histórias, imagino o quanto ele deve sofrer sem seu grande amor ao seu lado. Celeste o deixara sozinho ao retornar à Legião. Despeço-me de Enrico e, enquanto tomo uma ducha, penso no quanto Cassie deve estar sofrendo, sozinha, sem sua filha, presa em seu silencioso mundo sinistro. Secando meus cabelos diante do espelho, reflito sobre o que devo fazer.
Encarando meus medos, decido fazer o que ela sempre fez por mim:
Ajudar.
Coincidências não existem.
Após dar aula na 'Just Dance', levo Matteo ao Supermercado. Sentado no carrinho de compras, ele brinca com os sacos de biscoitos que fazem barulho. Gosto de poder comprar o que não podia antes. Guloseimas para as crianças e bons vinhos para Vincenzo, seu pai e eu conversarmos à noite sobre assuntos aleatórios. Pensando em qual marca de iogurte devo levar para Antoine que, de um momento para o outro, passara a se importar com gordurinhas inexistentes em seu corpo, distraio-me. Encontro um com 'zero caloria' e, contrariada, eu o jogo contra o carrinho. Matteo ri de mim enquanto resmungo.
- Sua irmã tá aprontando alguma, filho. Pode ter certeza disso. Deixa ela comigo. - Assusto-me ao chocar meu carrinho com outro. Minha primeira preocupação é com a segurança de meu filho. A segunda é protestar contra o 'motorista' que me encara com os olhos profundamente tristes. Confusa e insegura, digo seu nome.
- Liam.
- Adessa. - Observando Matteo, ele abre um sorriso triste e comenta. - Como ele cresceu. Está lindo.
- Obrigada. - Emudeço. Afinal, ele se afastou de mim. Ele me odeia por ter acabado com sua vida. Com a vida de minha amada Cassie. - Eu...eu preciso ir.
- Não vá. - Pede-me ele, segurando meu carrinho com uma das mãos. - Preciso de vc. Precisamos.
- Co como assim?
- Eu não te odeio. Como eu poderia? Vc optou pela vida de Cassie. Vc se ofereceu para morrer em seu lugar.
- Co como sabe disso!? - Incomodado por estarmos entre outras pessoas, ele me convida.
- Vamos sair daqui e tomar um café? Eu te explico tudo.
Antoine está com Vincenzo e Enrico, logo, não preciso me preocupar com mais nada além de tentar ser útil ao homem que, por diversas vezes, ajudou a minha família. É o mínimo a ser feito.
- Adessa!
- Ok. Vamos sair daqui.
Ajeito Matteo na cadeira para bebês da cafeteria enquanto Liam se mantem calado, observando meu filho com lágrimas nos olhos. Estou me contendo para não chorar quando ele, enfim, inicia a conversa.
- Não vai tomar seu 'Expresso'?
- Prefiro ouvir o que tem pra me falar, Liam. Como soube de tudo aquilo? Ninguém sabia.
- Não há segredos entre os anjos, Adessa. Principalmente, quando uma humana se atreve a discutir com um arcanjo. - Um sorriso no canto de sua boca e me animo. - Só vc mesmo. Cassie daria uma boa gargalhada se...
- Por que ficou triste novamente? Ela não melhorou?
- Não. Eu nunca mais ouvi a voz da minha esposa, Adessa. Sua amiga criou um mundo só dela onde ninguém entra. Ela não fala comigo, Adessa. - Confessa Liam enxugando suas lágrimas discretas. - Eu morreria por ela. Por um sorriso dela. Uma só palavra...- Enxugando minhas lágrimas com o guardanapo, pergunto, devastada.
- Já foram ao médico? Psiquiatras? Psicólogos?
- 'Depressão Grave'. Esse foi o diagnóstico final. Ela não aceita tratamento. Ela sequer olha para mim. Mal se alimenta. Eu preciso forçá-la a comer e, nesses momentos, ela parece me odiar.
- Ela não te odeia, querido. - Afirmo pousando minha mão sobre a dele. - Ela o ama tanto que tem vergonha de vc.
- DE MIM??? - Olhando para os lados, ele me pede perdão e continua, num tom baixo. - Por que ela teria vergonha de mim se eu vivo por ela? Se eu morreria por ela?
- Porque ela pensa que te decepcionou.
- Como!? - Com a voz embargando, respondo.
- Quando Niamh morreu.
- Me ajuda...- Implora Liam baixando a cabeça. Curvando o tronco para frente, ele recosta a testa sobre a mesa e murmura. - Eu não vou suportar perder a mulher que eu amo. - Comprimindo sua mão entre as minhas, chorando de soluçar, afirmo.
- Não vai. Eu juro.
Liam me leva ao seu quarto. Assim que cruzo o umbral da porta, percebo o peso sobre nossas cabeças. Todas as lembranças do parto e a dor da perda se repetem constantemente refletidas em uma das paredes. Seus pensamentos projetam essas imagens sem que Liam os veja. Transtornado, ele a retira do chão frio e, em seus braços, a deita sobre a cama em desalinho. Tento não demonstrar o quão chocada estou com o que vejo. Seu rosto cadavérico, os olhos sem vida encarando o teto. De súbito, abro as janelas e puxo o ar pela boca, permitindo que os raios de sol invadam o quarto escuro. Visivelmente contrariada, ela se vira para a parede, dando-me as costas. Um olhar para Liam e peço que ele nos dê licença.
- Tem certeza? - Pergunta-me ele, receoso.
- Sim. - Forço um sorriso. Próxima a ele, sussurro. - Vai dar tudo certo. Prometo. Pode ir.
Liam nos deixa a sós. Mentalmente, peço que os raios do sol atinjam o quarto e dissipem a psicosfera nociva que não me deixa respirar. Da janela, invoco os elementais das árvores no jardim. Imaginação ou não, vejo pequenas criaturas aladas se espalhando pelo grande cômodo, tornando o ar mais leve. Uma antiga canção me vem à mente enquanto arrasto a poltrona em couro e me posiciono diante da cama de Cassie ainda de costas para mim. Seguindo minha intuição, cantarolo num tom baixo.
Com extremo receio, estendo meu braço até a cabeça de Cassie. Toco meus dedos em seu cabelo fino e oleoso. Ainda cantarolando, sentindo uma força crescer dentro de mim, acaricio seu couro cabeludo. Seu corpo se encolhe ainda mais. Em silêncio, eu me deito em sua cama e, de conchinha, eu a abraço imaginando uma forte luz branca a nos envolver. A princípio, ela reage ao meu abraço. Não desisto. Insisto em mantê-la junto a mim. Ouço seu coração encostando meu ouvido em suas costas. Seus ossos sob a pele fina me fazem chorar.
- Não me importo se me odeia. Eu te amo, Cassie. Me perdoa. - Sussurro. - Sinta o meu amor...
De olhos fechados, relembro todos os bons momentos que vivemos juntas em nosso miniapartamento e das brigas bobas com Antoine. Nossas festinhas improvisadas por ela enquanto minha barriga crescia. Seus abraços enquanto chorava por Vincenzo. Nossa 'despedida de solteira' regada a suco de uva e flashbacks. Meu casamento com Vincenzo. A viagem à Itália. Seu casamento com Liam. Sua alegria contagiante enquanto dançavam juntos. Nossos passeios. Nossas corridas na praia onde nos escondemos do 'juiz diabólico'. Nosso encontro com Liam. Suas gargalhadas ao me contar sobre o primeiro beijo entre os dois...a primeira vez em que fizeram amor. Choro assim que percebo as batidas de seu coração mais fortes. Enchendo-me de esperança, peço contra suas costas. - Volta pra gente, Cassie. Precisamos de vc.
- Não consigo...- Diz ela num fio de voz. Gentilmente, eu a faço se voltar em minha direção. De olhos fechados, ela enrijece seu corpo esquálido assim que a toco em seu rosto. - Me deixa.
- Não. - Protesto com suavidade. - Vc nunca me deixou quando mais precisei de ajuda. Vc cuidou de minha filha quando eu não tinha ninguém. Vc conquistou o meu amor. O amor de Antoine e de Matteo. Sei que sua dor é imensa e vc sabe que já senti essa dor por duas vezes. - Seu jeito peculiar de franzir o cenho me faz perceber que a incomodo. Não me importo. Preciso tirá-la de seu inferno particular. Decidida e insegura, prossigo. - Vc pode me odiar agora. Eu mereço. Não consegui salvar sua filha. Eu tentei, mas falhei. Cassie, me perdoa. Mas, se não puder me perdoar, volte a falar com Liam. Ele tá desesperado. Ele te ama tanto...- Duas lágrimas escapam de seus olhos ainda fechados. - Vcs podem recomeçar. São jovens e saudáveis. Ainda podem tentar...- Abrindo seus olhos, ela me encara e, com mágoa em sua voz, ela refuta.
- Não somos.
- O quê?
- Não sou saudável, tia. Por que não fez o que te pedi? Por que não me matou e salvou nossa filha? Eu vou morrer e o meu pobre Liam vai ficar sozinho.
Impactada com sua resposta, recuo e caio contra o piso frio. Horrorizada, eu a vejo erguer o tronco com dificuldade. Mantendo-se sentada sobre o colchão, ela confessa num tom baixo algo que me abalaria profundamente.
- Assim que mataram minha filhinha, descobriram um câncer em meu útero, tia. Como uma mulher sem útero pode ser mãe novamente?
- Eu não sabia, Cassie! Não me disseram nada! - Pondo seus pés delicados no chão, ela rosna.
- Fala baixo. Eu não permiti. - Seus olhos insanos procuram por Liam. Certa de que ele não está por perto, ela continua num tom amargo. - Ele vai me deixar, tia. Por que não deixou minha filha viver? Eu morreria de um jeito ou de outro. Eles retiraram tudo de mim. Estou vazia, oca por dentro, mas eu sei que o mal ainda está aqui. - Afirma ela com as mãos em sua barriga. - Eu ainda estou doente, tia. Meu Liam não merece sofrer mais do que tem sofrido. Por que não me matou quando teve a chance? Por quê? Ele deveria ficar com uma parte minha e vc estragou tudo...
- Queria que eu te matasse, Cassie!?
- Não grita. - Pede-me ela num desespero. - Ele não pode saber.
- Ele já sabe, Cassie. - Sem controlar minhas emoções, choro compulsivamente recostada à janela. Inspiro e expiro, temendo uma crise de claustrofobia. Um olhar ao céu e imploro ao 'Crucificado'. - Me ajuda.
- Não adianta, tia. Ele Me abandonou assim como abandonou meus pais. - Lentamente, caminho até Cassie. Ajoelhada diante dela, assustada, pergunto.
- O que sabe sobre eles?
- Foram mortos, tia. Meus pais jamais se drogaram na vida. Por que foram encontrados mortos por overdose, deitados na cama? Não faz o menor sentido. Deus abandonou meus pais e, agora, depois de me fazer sentir a felicidade extrema, ele vai me matar, aos poucos.
- NÃO! - Grita Liam ao invadir o quarto. Envergonhada, aterrorizada e amedrontada, Cassie se cobre com seu lençol. Recuo sem conseguir parar de chorar enquanto Liam se joga aos seus pés e a refuta. - Deus não faria isso, amor. Nunca. Mesmo que vc não possa me dar um filho, eu vou te amar como sempre. Vou te amar ainda mais. Ainda que vc esteja doente, eu vou continuar a te amar e a lutar com vc, amor. Lembra de nossa canção!? Lembra, 'little princess'!? 'Nada vai nos parar. Nada.'
Tocada em seu íntimo, ela, enfim, desaba. Chorando juntos, eles se abraçam enquanto fujo do quarto movida pelo remorso. Perco-me em meio a tantas portas até chegar ao portal da sala de onde enxergo as árvores. Minha visão embaçada pelas lágrimas percebe seu vulto. Destroçada pela culpa, deixo-me contaminar por suas palavras repletas de veneno.
- Mais um pecado em sua lista, meu bem. Deveria ter ficado quieta e deixado a criança viver. Melhor para mim. Posso ouvir o choro do bebê todas as noites procurando pela mãe.
- Maldito. - De joelhos, baixo a cabeça apoiando minhas mãos no gramado. Puxando o ar pela boca, penso em Matteo e em Antoine. Sem oxigenação em meu cérebro, tombo para o lado. Um baque surdo de minha cabeça contra uma pedra decorativa e, antes de fechar os olhos, eu a reconheço.
- Isabella?
- Vc não vai!- Vc não manda em mim!
- Eu sou o teu homem! Me respeita! Vc não vai sair desse jeito e pronto!
- Vamos ver se eu vou ou não, Vincenzo!
Agarrando-me pela cintura, ele me impede de chegar até a porta da sala. Movendo meus braços e pernas, aleatoriamente, eu berro.
- ME SOLTA, PORRA! EU PRECISO SAIR DE CASA! EU QUERO...PRECISO TRABALHAR!
- Não precisa. - Refuta Vincenzo apoiado por Antoine ao seu lado. - Pela primeira vez em nossas vidas, vc não precisa trabalhar. Eu posso pagar por tudo.
- Não quero teu dinheiro!
- Quer sim, mamãe! Vc comprou seu carro com o dinheiro dele e ainda não terminou de pagar!
- ANTOINE ROSSI! O QUE EU JÁ LHE FALEI SOBRE...!? - Revirando os olhos, ela resmunga.
- Sobre se meter em conversa de adultos. Já sei. Mas a senhora não pode ir pra academia com essa cabeça enrolada com ataduras! Tá parecendo uma mãe-de-santo!
- Qual o problema!? - Dando de ombros, ela responde enquanto Vincenzo gargalha. - Nenhum. Pode ir. Se te zoarem lá, não chora.
- Mãe-de-Santo. - Repete Vincenzo, aos risos. - Essa foi boa, filha. Bate aqui.
O barulho do encontro de suas mãos me irrita. Observo-me no espelho. Estou medonha. Só não me arrependo de ter ido à casa de Cassie naquele dia fatídico porque Liam me contou que sua amada esposa voltara a se alimentar e a interagir com ele, embora ainda não tenha sorrido. Ao menos, Liam voltou a falar comigo e, por uma intervenção divina, eu não sofri lesão alguma em minha cabeça além de um corte superficial. ENTÃO, POR QUE A PORRA DESSA FAIXA AO REDOR DA MINHA CABEÇA???
- Ordens médicas, Dess! Respeita! Doze pontos não é um corte superficial!
- Respeita vc a minha intimidade e para de ler a porra dos meus pensamentos!
- Mãe! Olha o palavrão!
- Não me repreenda! Vc está visivelmente do lado de seu pai! Castigo! Agora mesmo! E amanhã também!
- MAMÃE!
- Não é justo, Dess! Deixa ela! - Agarrada à cintura do pai, Antoine choraminga.
- Amanhã é dia do ensaio na escola, mãe.
- Que ensaio!?
- Eu te falei!
- Ela não se lembra, filha. Mas a pancada não foi forte. - Zomba Vincenzo. - E ela ainda quer sair pra dançar.
- Errou! Não é para dançar! É para ensinar a dançar, idiota! E vc, mocinha, esqueça o ensaio!
- Não posso! - Dramatiza Antoine jogando-se sobre o sofá. - Meu amigo vai me esperar!
- Amigo???
- Dess, fica fria!
- Vincenzo! - Avanço até ele e explodo. - Vá pra puta que o pariu! A filha é minha! Deixa que eu me entendo com ela! Ok!?
- É nossa. - Instiga-me ele, piscando. Ele sabe como me fazer perder o equilíbrio. Outra risada e ele pergunta. - Que equilíbrio, Dess!? Desde quando vc foi equilibrada nessa vida!? Impulsividade é o seu sobrenome, amor.
- Amor é o cacete! - Confusa, levo a mão à cabeça. Dói. - Já nem sei porque eu tô brigando!
- Viu!? Não vai sair! Fica em casa!
- Que amigo é esse, mocinha???
- Da escola. - Responde-me ela evitando meu olhar. Cruzando as pernas, ela comenta. - Eu te contei sobre o baile à fantasia e sobre os ensaios. Eu não posso faltar, mãe.
- Vc não pode faltar à porcaria de um ensaio de um suposto baile à fantasia no seu colégio e eu posso faltar ao meu trabalho!? Isso é justo!?
- Eu não tô com a cabeça enfaixada, mãe. Vc precisa descansar.
- Não. Eu vou trabalhar.
- Não vai.
- Jesus. Vcs parecem crianças brigando. - Comenta Enrico enquanto brinca com Matteo. - Se ela colocar um gorro na cabeça, o problema se resolve.
- PAI!!! - Repreende-o Vincenzo. Beijando a bochecha de Enrico, agradeço.
- Vc é demais! Te amo! - Corro até o quarto. Vincenzo me segue. Irritado, ele me observa revirar todas as gavetas de gorros, bandanas e bonés até encontrar uma que me agrade. Sorrio. - Sai. - Rosno enquanto ele se mantem em frente ao espelho do 'closet'. - Eu vou te empurrar. - Aviso.
- Tenta. - Desafia-me ele abrindo um de seus sorrisos cafajestes. Cerro os punhos, prendendo o riso. Segundos antes de socar seu abdômen 'trincado', a campainha toca. - Salvo pelo gongo. - Brinca ele ao roubar um beijo meu. - Fica em casa. Ponto final.
Trancando-me no quarto, ele grita do corredor.
- SE FICAR QUIETINHA, EU TE LIBERO!
- VOLTA AQUI, VINCENZO! - Berro, chutando a porta trancada por fora. Uivo de dor ao machucar meu dedinho. Tropeço em meus tênis espalhados pelo chão. Caio sobre o colchão. Xingo ainda sentindo os pontos acima de minha nuca. Inspirando, tento conter meu impulso em retirar esse turbante patético de minha cabeça, ainda que o médico tenha pedido que eu esperasse por mais dois dias.
Dois dias além dos treze que já fui obrigada a permanecer em repouso.
- Repouso! - Repito ainda deitada. Falando comigo mesma, prossigo. - Aquele tipo de repouso em que vc cuida de um filho que acaba de aprender a correr sem ainda saber andar. Repouso onde vc cozinha porque sua família diz amar sua comida, mas, na verdade, querem te fazer de escrava. Repouso onde eu ajudei minha filha a realizar as tarefas do colégio. Filha que, agora, está contra mim! - Grito contra o travesseiro. Enraivecida, eu me levanto e caminho até a porta. Prestes a arrebentar a maçaneta com um halter de ferro fundido pesando dois quilos, ouço sua voz ordenar.
- Não se atreva, Dess. Eu vou abrir.
- Arrependido, canalha? - Indago assim que ele abre a porta. Seus braços enlaçam minha cintura. Ele me beija na boca e responde.
- Claro que não, idiota. Temos visitas.
- Quem?
- Seja boazinha, Dess. Se controla. Meu amigo precisa de vc.
- Liam??? - Escapo de seu abraço e, correndo até a sala, empaco. - Não...acredito...
- Dess...- Sussurra Vincenzo em meu ouvido. - Vai com calma. É a primeira vez que ela sai de casa em meses. Ok?
- Ok. - Concordo com os olhos marejados. Caminhando, cuidadosamente, em sua direção, abro um sorriso inseguro. - Oi...
- Tia. Relaxa. Eu não sou um bicho. Não vou te morder.
Uma crise de riso me faz curvar o tronco para frente. Por mais que eu tente, não consigo parar de rir. Procurando por Vincenzo, choro. Ele me abraça com força ao avisar.
- Temos visitas para o jantar, Dess. Não é incrível?
- Sim. - Enxugando meu rosto com o dorso das mãos, toco nas ataduras. Um susto e explico. - Foi um um um... acidente.
- Em nossa casa. Eu sei. Liam me contou. Foi minha culpa. - Um passo adiante e a abraço demoradamente. Num sussurro, imploro.
- Não vamos mais falar de culpa. Ok?
- Ok. Posso respirar agora?
Voltando a rir, eu me afasto. Estou sem jeito diante de minha melhor amiga, minha filha. Não sei o que falar. O que fazer. Tenho medo de feri-la novamente.
- Seja vc mesma. - Aconselha-me Enrico ao servir taças de vinho a Liam e Cassie. Receosa, ela exala. - Um pouco de álcool vai te fazer bem, meu anjo. Vai te relaxar. Pegue. - Uma piscadela e ela, enfim, sorri. Liam, fascinado, comenta.
- Vc sorriu, amor. Vc sorriu.
- Senta comigo? - Pergunta Antoine segurando sua mão. - Tenho muitas coisas pra te contar.
- Tem???
- Dess!!!
- Contar a ela o que não contou a mim???
- Mãe! - Um gole do vinho e Cassie volta a sorrir ao comentar.
- Nada mudou, tia. A pirralha vai começar a dar trabalho.
Arrastada por Antoine até seu quarto, Cassie desaparece. Liam me surpreende e me emociona ao me abraçar, aos prantos.
- Obrigada, Adessa. Por vc, ela voltou. Eu te devo a minha vida.
Meu corpo todo treme de emoção e alegria assim que me tranco no banheiro e choro copiosamente por algum tempo. Secando meu rosto com a toalha, cubro as ataduras com um 'gorro caído' e, confiante, encaro meu reflexo embaçado.
- Porra! De novo não!
Abro, repentinamente, a porta antes de ver outra de minhas personalidades surgir e estragar a noite.
- Tudo bem, Dess?
- Sim. - Aflita, suplico apoiada na pia da cozinha. - Não deixe que ninguém tome meu corpo hoje, amor. Por favor. Nada pode estragar esse encontro. Nada. - Um beijo em minha testa e ele declara.
- Deixa comigo.
Após o jantar e incontáveis taças de vinho, percebo Liam e Cassie muito mais relaxados do que antes. Incomodada por não ter ouvido sua gargalhada, provoco Vincenzo ao responder Cassie.
- Amanhã. Amanhã eu retiro esse turbante ridículo e volto às minhas atividades.
- Daqui a dois dias. - Refuta Vincenzo, sorrindo. - Não me desobedeça. Eu sou o teu marido.
- Marido...- Um gole de vinho e o advirto. - Melhor parar por aqui se não quiser ter problemas.
- Esposa. - Diz ele, encarando-me. - E se eu quiser ter 'problemas'?
Rindo, respondo.
- Acho que alguém aqui, nessa mesa, vai apanhar e não será a Cassie, o Liam, Enrico, Matteo ou Antoine.
- Papai! - Exclama Antoine. - Só pode ser o papai, mãe!
- Garota esperta...- Comento beijando sua bochecha. - Como descobriu?
- Essa foi fácil! - Comemora ela. - Manda outra!
- Qual o nome do seu amigo do baile???
- Dess!!!
- Não se atreva a me repreender, Vincenzo!!! Eu estou cuidando da...- Outro gole de vinho no gargalo da garrafa e concluo. - Da inte...intregui...in...
- Integridade, idiota. - Corrige-me Vincenzo. - Para de beber, Dess.
- Eu já te mandei tomar no...- Tapando minha boca com sua mão, ele responde.
- Sim. Já me mandou pra todos os lugares hoje e é por isso que eu te amo. - Arfando, confesso.
- Também te amo, imbecil.
- Vcs continuam os mesmos. - Murmura Cassie. Liam a abraça timidamente e a beija na bochecha. Gosto disso. - Quanto mais se xingam, mais se amam...
- Mais vinho pra Cassie, Enrico! - Ordeno, esperançosa. - In Vino Veritas!
- O que é isso, mãe?
- Não faço ideia! - Rimos juntas até que Vincenzo esclareça apoiando seus cotovelos sobre a mesa repleta de pratos que, mais tarde, eu terei de lavar.
- 'No vinho, a verdade', filha. É um provérbio antigo. Sugere que, sob o efeito do álcool, as pessoas tendem a revelar seus verdadeiros sentimentos.
- Eu não preciso disso. - Discordo com a voz entaramelada. - Sou o que sou com ou sem vinho.
- Isso é verdade. - Atesta Vincenzo.
- Pronto pra apanhar? - Indago aos risos.
- Sempre. - Responde-me ele, sedutor. Porra. Após anos, eu ainda arquejo diante de seu olhar devasso. Dando de ombros, ele comenta. - O que eu posso fazer se sou gostoso?
Arremessando meu guardanapo em seu rosto por falta de algo mais pesado, aviso.
- Melhor ficar quieto. Tá passando dos meus limites. - Rindo, Cassie comenta.
- Tia. Vc não tem limites. Nunca teve.
- Concordo. - Diz Vincenzo enquanto Antoine cochicha aos ouvidos de Cassie.
- Eles sempre brigam, Cassie. Todas as noites eu ouço minha mãe xingando meu pai no quarto deles. Mas eles sempre estão juntos e felizes. Então, eu acho que, talvez, eles não briguem de verdade. Talvez, eles brinquem dentro do quarto. Brincam e fazem safadeza. Eles são muito safados. Vivem se beijando.
Pela primeira vez, em meses, ouvimos a gargalhada sonora de Cassie. Extasiados, Liam, Enrico, Vincenzo e eu nos entreolhamos. Calados, aguardamos por suas palavras.
- É isso aí, pirralha! Eles brincam de brigar! Isso é bem legal!
- Vc já fez isso com o tio Liam?
Arquejo diante do silêncio incômodo à mesa até que Cassie, lançando um olhar apaixonado a Liam, confessa.
- Já, pirralha. Faz tempo, mas eu já brinquei de brigar com ele.
- Talvez, deva começar a brincar de brigar de novo. - Sugiro.
- Talvez. - Diz Liam, ruborizando. Quebrando o clima tenso, Antoine dramatiza.
- Vc precisa ver uma coisa Cassie!
- Filha! Estamos conversando! - Relaxada no sofá 'chaise' na varanda, agarrada a Vincenzo, peço. - Deixa ela aqui...
- Mamãe! Cassie precisa ver sua sala de dança! Confia em mim! - Arrastando-a pelo braço, Cassie, levemente embriagada, se deixa levar. Curiosa, eu as sigo. Vincenzo e Liam fazem o mesmo. Enrico e Matteo dormem, juntinhos, no sofá da sala. - Olha que lindo, Cassie! - Diz Antoine acendendo as luzes coloridas, desligando a luz central. Acima de nossas cabeça, uma 'bola de espelhos' reflete as luzes nas paredes e em nossos rostos. Cassie olha para mim e, incrédula, pergunta.
- Sério que vc tem uma bola de discoteca em sua casa!? - Rindo, respondo.
- Ok. Eu sei que é um pouco de exagero...
- Um pouco!? - Reclama Vincenzo. - Isso me custou o olho do...- Um beijo em sua boca e o impeço de xingar. Tonto, ele confessa. - É assim que ela gasta meu dinheiro, Cassie.
- Foi num lugar como esse que tudo começou, amor. - Sob os protestos de Antoine, eu abraço meu marido. - Eu queria recriar o clima.
- Conseguiu, Dess...
- Vai começar a safadeza, Cassie. - Revoltada, ela caminha até a torre de som super potente e a liga. Tomando o celular do bolso de Vincenzo, ela o manuseia com a velocidade da luz. Sorrindo para Vincenzo, sussurro.
- Ela tá aprontando alguma.
- Com certeza...
- Eu me amarro nessa música, Cassie. Eu te contei, né?
- Contou o quê!?
- Dess! Cala a boca e dança comigo! - Enciumada, eu o obedeço e me deixo guiar por ele. Sorrindo, ele admite. - Estou me sentindo na casa de praia quando a gente fez amor pela primeira vez.
- Exatamente...
- Safada.
- Cachorro.
Emocionada, observo, abraçada a Vincenzo, Antoine unir Liam a Cassie e ordenar.
- Dancem. Isso faz bem pra alma. - Como dois adolescentes tímidos, ele se olham confusos. Cruzando os braços, Antoine pergunta. - Dá pra começar ou vou ter que ensinar?
De súbito, Liam toma Cassie em seus braços e, sorrindo, dá os primeiros passos. A música lenta e romântica me faz arfar. Ver os dois juntos e dançando como nos velhos tempos, me faz chorar.
- Eles vão ficar bem, Dess.
- Eu sei...
Sutilmente, Antoine nos empurra para fora da sala mergulhada na penumbra onde os dois pombinhos, enfim, se beijam. No corredor, Antoine resmunga.
- É safadeza, mas, eles precisavam disso. - Beijando-nos no rosto, ela se despede, bocejando. - Boa noite, papai. Boa noite, mamãe. Amo vcs...
Abraçando-me, Vincenzo sussurra enquanto ela se distancia.
- Nossa filha é mais do que especial, Dess. - A voz embargando responde.
- Sim. Muito. - Voltando a chorar, imploro. - Não deixa que nada de ruim aconteça a ela, amor. Nunca.
- Nunca.
No dia seguinte à reconciliação de Liam e Cassie, acordo tarde. Fico na cama lembrando-me de como os dois saíram daqui de casa, alegres e apaixonados. Aposto que já 'brincaram de brigar'. - Rindo comigo mesma, recordo-me de Antoine, nosso anjo. Tudo aconteceu por causa dela.
- Preciso ligar pra Cassie. - Penso alto caminhando descalça até o quarto de Matteo. Beijo seu rostinho. Ele ainda dorme em seu berço, escoltado por seu avô, que ronca. - Te amo. - Sussurro ao meu filho antes de sair de seu quarto. Sigo até a cozinha. Resmungo. Há pratos dentro da pia. - Depois do meu café, eu lavo. - Abro a geladeira e me espanto ao ver a merenda de Antoine intocada. Um aperto no peito e corro até seu quarto. Abro a porta e, levando a mão ao peito, indago. - O que faz aqui???
- Calma, Dess. - Pede-me Vincenzo ao lado da cama onde Antoine ainda se mantem deitada. - Ela...
- Por que não a levou ao colégio???
- Dess...- Ajoelho, abruptamente, ao lado de Vincenzo. Ele recua. Encosto o dorso de minha mão na testa de Antoine. Arquejo, apavorada. Sentado no chão, Vincenzo argumenta. - Se vc perder o equilíbrio, vai ser pior. É só uma febre.
- Oi, mamãe. - Diz sua voz fraca. Debaixo do edredom, Antoine sorri, de olhos fechados ao tentar me acalmar. - Eu tô bem. O tio Liam e a Cassie já foram?
- Sim, filha. - Murmura Vincenzo, com os olhos fixos em mim. - Vc foi bem esperta ontem.
- Vc ficou com ela a noite toda!? - Pergunto angustiada. Aparentando tranquilidade, ele responde.
- Ela me chamou de madrugada.
- Como??? Eu não a vi no nosso quarto!!! - Um olhar significativo e compreendo. Telepatia! - Vamos ao médico! Agora!
- Eu preciso ir ao ensaio, mãe...- Abrindo seus olhinhos avermelhados, ela suspira. - Meu amiguinho...
- Eu te levo, filha. Depois. Agora vc precisa ficar bem.
- Eu não consigo levantar, mãe. Meu corpo dói. - Num desespero, eu a abraço. Seu corpinho quente me apavora quando ela sussurra. - O ensaio é hoje. Eu vou perder.
- Não vai não, meu amor. Eu vou ao colégio e falo com a diretora. Vai ter outro ensaio. Eu juro.
- Vc não, mãe. Papai vai. - Disfarçando um sorriso, Vincenzo se mantem calado.
- Por que seu pai, filha? - Pergunto enquanto retiro o edredrom e elevo seu tronco. Lançando a Vincenzo um olhar de raiva, eu a visto com seu casaco de moletom sobre o pijama. Chuto a perna de Vincenzo que me observa, curioso. Um gemido de dor e, tentando manter a calma, retiro o termômetro de sua axila. Trinta e nove graus. Entrego o termômetro a Vincenzo. De imediato, ele procura pelos tênis de Antoine enquanto ela responde, exausta.
- Vc faz barraco, mãe. Papai é mais calmo. Mas eu te amo. Tá?
- Não vou fazer. Prometo. Vc vai ao ensaio, filha. Vc vai.
- Dess, larga ela. Precisamos ir.
- Aonde???
- Ao médico.
- Claro. - Desperto, afastando-me dela. - Ao médico. - Repito. De súbito, corro até o banheiro. Escovo meus dentes. Enfio o gorro em minha cabeça enquanto fixo meus olhos no crucifixo acima da porta do quarto de Matteo e imploro. - Cura minha filha. - De volta ao quarto, encontro Vincenzo com Antoine em seus braços. Olhando fixamente, ele informa modulando o tom de voz.
- Mantenha a calma, Dess. Ela desmaiou.
Desorientada, corro pela casa sem saber o que fazer. Aos gritos, acordo Enrico. Aos prantos, peço que cuide de Matteo. Seus olhos azuis e arregalados me observam, assustados. Com Matteo em seu colo, ele nos segue até a porta.
- O que ela tem!?
- Não sei, pai. Fica calmo. Ok? Voltamos logo.
- Que Jesus a cure. - Abençoa Enrico, de pé, diante da garagem. Mais tarde, entenderia suas palavras soltas no ar. - Ela se exauriu muito ontem...
De pijama, descalça, sento-me no banco traseiro e, agarrada a Antoine, choro e volto a rezar.
- Dess, é só uma febre. - Diz ele ao volante. - Fica calma, amor.
- Eu sei. - Minto. É mais do que isso. Eu sinto. - Mais rápido, amor! Mais rápido! - Conferindo, pela terceira vez, o termômetro, alerto. - Ela tá com quarenta graus!
Os olhos de Vincenzo me encaram pelo retrovisor interno. Há medo em seu semblante ao comentar.
- Ela vai ficar bem, Dess. Confia.
Assim que chegamos ao pediatra, Antoine, acordada, tagarela enquanto é meticulosamente examinada. Sorrindo, ele a escuta atentamente. Vincenzo e eu, incrédulos, permanecemos sentados no sofá, de mãos dadas, aguardando o diagnóstico final.
- Nada.
- Nada??? Como assim??? Ela estava ardendo em febre e desmaiou!!! Como 'nada'???
- Vou prescrever alguns exames por precaução, mas Antoine está perfeita. Pronta para o ensaio.
Aliviada, eu a vejo saltar da maca, consultar o relógio no pulso do pediatra e comemorar.
- Woohoo! Ainda dá tempo!
Olhando-nos, ainda grudados ao sofá, ela reclama.
- Vão ficar aí!? Eu tenho um compromisso!
De volta à nossa casa, Antoine corre até seu quarto, cantarolando. Ao passar por Enrico, ela o beija na bochecha e avisa num tom de cumplicidade.
- Voltei.
- Eu sabia. - Diz Enrico, sorrindo com seus olhos. Algo em mim começa a me irritar. Sinto-me um peixe fora d'água. 'A excluída'. Arrancando-me de meus pensamentos intrusivos, Enrico exulta. - Ela é extremamente forte.
- Sim. - Rosno. Segurando-o pelo pulso, pergunto. - O que quis dizer com 'ela se exauriu muito ontem'? - Prestes a me responder, Antoine e Vincenzo, de mãos dadas, caminham em direção à porta da sala. Meu olhar inseguro os acompanha. - Aonde pensam que vão!?
- Ao ensaio! - Responde-me ela, naturalmente. - Papai vai filmar tudo pra vc ver depois, mamãe! - Vincenzo coça a cabeça baixa e abrindo um sorriso amarelo, comenta.
- Ela me pediu, Dess.
- Ela te pediu??? Não me diga!!! - Num impulso de raiva, empurro Enrico e avanço sobre Vincenzo que parece prever minha reação ao se manter em posição de defesa, como em um ringue, após o início de uma luta. Diante dele, indago. - E vc aceitou sem pestanejar???
- Dess...- Cerro meus punhos e, após acertar vários golpes em seus braços, descarregando minha fúria, arfando, aviso.
- Ninguém sai daqui sem a minha pessoa!
- Mãe! - Dramatiza Antoine. - Estamos atrasados!
- Antoine Rossi! Há meia hora, vc estava desmaiada! Agora está atrasada pra um ensaio da porra de um baile!?
- Mãe...- Resmunga ela revirando os olhos. - Palavrão...
- Palavrão é o cacete! - Tranco a porta da sala e, ao segurar o molho com todas as chaves da casa em minha mão, alerto. - Daqui ninguém sai sem mim, mocinha! Deu pra entender ou quer que eu desenhe!?
- Mas mãe...
- 'Mas mãe', nada! Me espera! - Engulo o choro e a decepção ao perguntar. - Agora vc tem vergonha de mim!? Desde quando!?
- Dess, não é vergonha.
- Vincenzo!!! - Inflando as narinas aviso. - Depois a gente conversa!!! Não saiam dessa sala sem mim!!!
- Nem daria...- Resmunga Antoine, de braços cruzados, sentada no sofá. - Vc tá com as chaves. - Um passo em sua direção e Vincenzo me segura pelo punho. Sua voz doce me pede.
- Agora não, Dess. Depois. Vai se vestir. Eu te espero. - Meus lábios tremulam ao concordar e me afastar. Ela gosta mais do pai do que de mim. Puxando-me pelo braço, ele sussurra. - Não pensa assim. Ela te ama. Só tem medo de vc não gostar do amigo dela. - Um beijo em minha bochecha e ele me solta. - Vai. E não demora. - Ainda chateada, de braços cruzados, ela me pede.
- Não vai de botas.
De costas para ela, caminho até meu quarto, com lágrimas nos olhos. Pela primeira vez, eu me sinto distante de minha filha.
A sensação é terrível.
Em frente ao espelho, enxugo meu rosto e capricho na maquiagem. Meus olhos se destacam sob a ação do lápis e sombra escuros e rímel daqueles que curvam meus cílios ao máximo. Cílios grossos que quase alcançam as sobrancelhas. Opto por um batom mais suave. Não quero chocar seu amigo com meu look 'puta vencida'. A puta que já foi amada antes de um pai angelical surgir e tomar o meu lugar.
- Que ódio. - Resmungo calçando minhas botas texanas, cano longo. Poderia calçar as que cobrem meus joelhos, mas a intenção não é retornar aos velhos tempos do 'job'. Logo, procuro por um vestido largo, em viscose, florido, com cadarços abaixo de meus seios. - Perfeito. - Digo ao meu reflexo. A raiva cresce dentro de mim quando rasgo as ataduras e as retiro de minha cabeça. - Que horror. Meu cabelo tá uma merda. - Improvisando uma trança, sinto dor nos pontos e a raiva crescer. Minha visão embaça. Tonta, fecho os olhos. Ao abri-los novamente, eu a vejo sorrir para mim. De volta ao controle, puxo o lençol de nossa cama e o arremesso sobre o espelho, cobrindo-o por completo. Num tom sarcástico, alerto. - No. Nay. Never. Hoje quem manda sou eu, Eileen!
Retornando à sala, anuncio.
- Estou pronta. - Vincenzo deixa escapar um 'wow' antes de se levantar do sofá e me elogiar. - Obrigada. Vamos. - Digo friamente. - Não devemos atrasar o ensaio.
- Vc tá linda, mamãe. - Sorrio ainda temendo que 'a outra' tome o meu corpo. Dentro do carro, concluo que a raiva alimenta Eileen. Emoção alimenta Anahita. Se descobrir quais são os sentimentos que atraem 'as outras', talvez eu consiga total controle sobre as personalidades. Talvez, seja o início da cura. Vincenzo, ao volante, pousa sua mão sobre a minha coxa e murmura.
- Essa é uma grande descoberta, Dess.
- Não me diga. - Zombo. - Conhece o significado da palavra 'privacidade'?
- Vc tá linda.
- Vá pro inferno. - Rosno antes de sair do carro e encarar pais e alunos no estacionamento do colégio do tão aguardado ensaio do baile à fantasia de crianças irritantemente alegres. Vincenzo, ao meu lado, entrelaça os dedos de sua mão aos meus. - Não vou fazer escândalo. - Aviso, magoada. - Fique tranquilo.
- Dess. Eu te amo de qualquer jeito. Seja vc mesma. - Engulo em seco e deixo escapar um riso bobo assim que ele me pede. - Não chora. Vai borrar sua esplêndida maquiagem.
- Ok. - Antoine corre até seus amigos. Eles se abraçam enquanto me apoio em Vincenzo. Temo tropeçar ou saltar sobre os pais que me olham com estranheza. Vincenzo caminha ao meu lado e, num ato solidário, encaixa sua mão em minha cintura, puxando-me para si. Confiante, sussurro. - Obrigada.
- Ainda quer me bater?
- Muito. - Afirmo ao me sentar na arquibancada do pátio esportivo do colégio. A algazarra entre alunos e professores abafam minhas palavras. - Vc não sabe o quanto. Em casa, a gente conversa. - Roçando os dedos em minha nuca, ele confessa.
- Estou ansioso.
O ensaio foi um desastre. Não havia controle dos professores sobre os alunos reunidos em bandos. Da arquibancada, avisto Antoine cercada por meninos e meninas que lutam por sua atenção. Graças ao 'meu barraco', agora, eles a adoram. Isso é bom. Se precisasse, faria outro escândalo. Tudo o que desejo é ver minha filha feliz.
- Ainda com raiva de mim?
- Raiva??? Eu???
- Dess, conversa comigo.
- Estou tomando banho. Esse cabelo tá um nojo de sujo. Me deixa em paz.
- Quer que eu te ajude a lavar? - Do box, com os olhos fechados, ameaço.
- Não se atreva. É melhor ficar distante de mim hoje.
- Não consigo. - Diz ele antes de sair do banheiro. Sorrio assim que ouço uma de minhas canções prediletas vinda do quarto. - Essa é nova, Dess. Tipo. Uma canção velha, mas é nova pra mim.
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