'Dess - Uma História Interessante'

'Dess - Uma História Interessante'
AMO ESCREVER

CAPÍTULO 36 - SOZINHA

 


Dessa vez, não vou culpá-lo pelo abandono. A culpa é minha. Eu o provoquei. Eu acordei o monstro que ainda habita nele. Vincenzo não é tão forte quanto eu. Tão canalha a ponto de errar, pedir perdão e se reconciliar. Não quando o erro é grande demais. Pesado demais. Eu me apaixonei por um anjo fraco demais. Bom demais para me aceitar com todos os transtornos que tenho. 

O que eu faço agora sem ele ao meu lado? Já me acostumei com a sua presença, seu toque, nossas brigas. Ouço o ruído da chave na maçaneta sempre no mesmo horário. Era ele quem chegava do ringue e, antes mesmo de beijar as crianças, era a mim que ele procurava. A mim...

Dói. Como sempre, dói. Vou seguir adiante. Sinto que não é o fim. Não. Não mesmo. Nosso amor é forte demais para acabar assim. Enquanto sangro por dentro, sorrio e prossigo porque meus filhos estão comigo e meus amigos também. 

Há uma canção que ouço em minha mente o tempo todo. Daquelas que nos fazem rever nossas vidas e chorar por erros e acertos. Daquelas que tocam em filmes onde os anos passam em fração de segundos, tela por tela. Onde as dores são curadas. Os entes queridos, partem. Onde casais se reconciliam após anos de separação. 

Em segredo, eu a ouço e me lembro de Vincenzo, meu primeiro pensamento ao acordar. O último, antes de dormir.





Espero que ele possa ler meus pensamentos e, algum dia, volte aos meus braços, porque, seus pensamentos, eu desconheço.




Cassie e Liam, quase sempre, nos visitam. Agora, sou eu quem não gargalha à mesa farta. Sorrio por ver Cassie de volta à sua vida, lutando contra um câncer que insiste em tomá-la de Liam. Liam, um anjo forte e tímido, sempre ao lado de Cassie nas sessões de quimioterapia. Ele me confessou, como uma criança esperançosa, que doará sua vida pela dela. Ela me confidenciou que quer viver mais do que nunca porque, dentro de seu corpo, em suas trompas, a semente do amor entre ambos, cresce, milagrosamente. Comemoramos juntas e choramos juntas também. Ela compreende minha dor. Eu a abraço por sua felicidade. Vincenzo deveria estar aqui e vivenciar esse milagre, mas não está. 

- Ele não é louco, filha. Ele precisa se ausentar pelo erro que cometeu. 

- Eu fui a culpada, Enrico. Não faz sentido seu sumiço. O que eu digo a Antoine? Matteo chama pelo pai e eu ainda o espero entrar pela porta da sala, suado, sorrindo porque eu reclamava de sua maneira displicente em jogar suas meias e camisas sobre o tapete. Ele gostava disso em mim. Ele gostava de nossas discussões. Ele me conhecia profundamente. Ele disse que 'caiu' por mim e me deixou novamente. - Arfando, eu me calo. - Sinto falta dele, Enrico. Tanta que não sei se vou conseguir levantar da cama pela manhã.

- Vai sim, filha. Vai sim. Estaremos juntos até ele voltar. Minha missão nessa casa ainda não terminou e...

- Que missão é essa, Enrico? O que vc quis dizer com aquele papo de que Antoine consumiu muita força na noite da reconciliação entre Cassie e Liam? Não tivemos tempo de conversar sobre isso. - Sentados no sofá da varanda, sob a luz da lua, eu peço.

- Conta tudo, Enrico. Ela é minha filha. Eu tenho o direito de saber.

- Vc já sabe, mas não quer admitir que ela é especial. - Jogando-me sobre o sofá 'chaise', eu me encolho e me calo. Não quero admitir que ela é mais do que uma criança normal com poderes que crianças normais não têm. - É bom aceitar isso, meu anjo. - Aconselha-me Enrico. - Eu não estou aqui à toa. 

- Não me assusta, Enrico. Agora, eu tô sozinha. Seu filho...- Cubro o rosto com as mãos e choro. Enxugo meu rosto com a manga do meu pijama e continuo. - Vincenzo não tá aqui pra nos proteger sei lá do quê.

- Não tenha medo. Nada vai acontecer. - Promete-me ele fixando seus lindos e tristes olhos azuis nos meus. - Escuta o que vou te contar e, por favor, fique calma.

- Não me peça pra ficar calma antes de falar alguma coisa porque isso não funciona! Eu fico ainda mais nervosa!

- Ok...- Diz ele, recostando a cabeça na parede, cruzando as mãos na nuca. - Podemos mudar de assunto. A lua está tão perfeita hoje... 

- Diz. Por favor. Eu vou te ouvir.

- Antoine é mais do que um anjo. Mais do que um arcanjo. É um querubim que prometera ao Seu Criador encontrar alguém com um coração altruísta a ponto de se doar a ela. Ela o fez porque o destino da Humanidade estava selado. Maldade, cobiça, ganância, lascívia corromperam as criaturas desde que foram criadas. 

- Deus queria acabar com os habitantes da Terra? Não faz sentido. Ele não é misericordioso? Não nos conhecia antes mesmo de cometermos nossos erros?

- Sim. Eu não mencionei o Criador como o capataz. Ele deu ao ser humano o  livre arbítrio exatamente para ver até onde são capazes de chegar. Há outras forças interessadas no extermínio da Humanidade.

- Lúcifer. - Bufo ao revirar os olhos. - Aquele paspalho.

- Não o subestime. Ele é muito mais forte do que aparenta. Muito mais influente do que vc pensa, Adessa. Ele tem nas mãos, os líderes que governam países inteiros. Países poderosos com forças bélicas capazes de destruir a Terra com um só dedo.

- E o que Antoine tem a ver com isso?

- Se ela encontrasse alguém puro o bastante para aceitá-la do jeito que ela se moldou aqui na Terra, provaria ao Criador que vcs, humanos, merecem uma segunda chance.

- E ela encontrou? - Lançando-me um olhar compassivo, ele assente com a cabeça. - Nossa. Fala sério. Eu?

- Sim. Por que não?

- Eu já fui 'put...'- Inspiro e continuo. - Desde jovem, eu vendia meu corpo por grana e fama. Acrescente ao meu currículo, as funções de atriz pornô e stripper e dona de uma conta em um site pornográfico com mais de quatrocentos mil seguidores. Eis a pergunta: Em que eu posso ter contribuído para o bem da Humanidade, Enrico!? Ah! Não se esqueça do fato de ter vivido com um demônio devasso que, talvez, eu tenha invocado e que, com certeza, eu criei porque Aiden já foi humano antes de me conhecer! Logo, eu ferrei com a vida dele também! Eu ferro com a vida de todos que se aproximam de mim, Enrico! Seu filho 'caiu' pela pessoa errada e Antoine não vai sofrer por minha causa porque eu não sou digna de seu sacrifício! - Exausta, encolho-me dando as costas a Enrico. Meu mundo está desmoronando novamente e, dessa vez, eu corro o risco de perder a filha que tanto amo por minha culpa. Não é por um simples papel de adoção. É por ela ter apostado em algo que eu não sou! - Isso não tá acontecendo. Não tá. Não tá. - Repito contra as almofadas. - Não é justo com ela! Como deixaram uma criança escolher isso!?

- Ela não é uma criança, filha. Vc ficaria deslumbrada ao vê-la como ela realmente é. Aliás, nenhum humano chegou a ver um querubim sem ficar cego, logo em seguida.

- Poxa. Agora eu tô bem  melhor. Obrigada. - Rindo, ele comenta.

- Vc não tem jeito. - Um profundo suspiro e divago antes de voltar a chorar.

- Vincenzo disse a mesma frase no dia em que...

- Vc acolheu em sua casa uma criança suja, moradora de rua, desconhecida, pobre e negra. Que ser humano faria isso, filha? Vc conhece muitos deles? Porque, pelo pouco que vivo na Terra, não vi quase nada parecido.

- Ela me encontrou, Enrico. Ela me salvou. Não fui eu quem a salvei. Ela me salvou. 

- Eu sei, filha. Me ouça.  Sua força se esvai a cada grande gesto de amor. Na noite em que Liam e Cassie se uniram novamente, ela se doou muito por amar Cassie. No dia seguinte, ela adoeceu. 

- Meu Deus...- Levo a mão ao peito. - Continua.

- Ela se recupera com facilidade. - Estalando os dedos, ele prossegue. -  Assim...'do nada'. Mas, tudo tem limite, filha. Até mesmo para os querubins.

- Para, Enrico. Por favor. Eu vou trancar minha filha dentro de casa e jogar a chave fora.

- Não vai adiantar, Adessa. Ela é muito mais do que vc imagina.

- Eu sei. Eu sinto. O que eu posso fazer pra que ela não adoeça?

- Sinceramente?

- Sim.

- Nada. Como eu disse, ela é muito mais poderosa do que vc imagina e, até cumprir sua missão aqui na Terra, não vai desistir. - Em desespero, indago.

- Que missão é essa, Enrico!? 

- Não faço ideia. Juro. - Um grito parte o silêncio ao meio. Abro um sorriso assim que vejo Matteo com suas perninhas fofas correndo, ainda inseguro, em minha direção e, logo atrás, Antoine anunciando sua chegada com um grito.

- Seguuuuura, peão! - Saltando sobre mim, meu filho abre sua boquinha. Seus primeiros dentes de leite já estão formados. Seu hálito infantil me acalma. Sentando-se ao meu lado, Antoine me abraça e cochicha. - Vai dar tudo certo. Confia.

As mesmas palavras de Vincenzo...


- Com todo o respeito, diretor, foda-se o que os outros pais pensam sobre os meus hematomas. Não foi o meu marido. Ele é um bom homem e jamais me machucaria. 'Ai' de quem denunciá-lo à polícia. Lei 'Maria da Penha' é o  caralho! Eu vim pegar minha filha e pronto! Ponto final! 
- Perdão, Adessa.

- Perdão digo eu...- Desculpo-me, arrependida. - Vc não tem culpa de nada. Só faz o seu trabalho. Eu te agradeço por querer o meu bem. Eu entendo que existem mulheres que apanham de seus companheiros e temem denunciá-los, mas, esse, definitivamente, não é o meu caso e, sinceramente, se eu fosse contar o que aconteceu, vc não acreditaria em mim. Logo, posso levar Antoine pra casa? Meu filho me espera. Meu sogro também. Somos uma família feliz e unida. Meu marido está viajando a negócios. Em breve, ele vai retornar. - Minto. - E não vai gostar dos rumores que essa gente desocupada fica espalhando por aí.

- Compreendo. - Conduzindo-me até o corredor do colégio com sua mão em minhas costas, ele sugere. - Vamos ao encontro de Antoine?

- Perfeito. Super apoio. Total.


Levo Cassie a uma de minhas aulas na 'Just Dance'. Extremamente bem recebida pela turma, ela tenta acompanhar a coreografia sempre aos risos. Errando, ela pouco se importa com a opinião dos outros alunos. Feliz. Ela está feliz e isso me faz feliz. 

- Vc tem jeito pra dança, Cassie!

- Tia! Para agora mesmo! - Rindo, ela me faz rir. - Eu sou uma catástrofe! Mas não me importo! Meu bebê tá chegando e meu Liam...- Levando a mão à boca, ela me lança um olhar de espanto e corre até o banheiro da academia. Vomita antes de sair da sala de aula. Um, dois jatos de um líquido vermelho sobre o piso em madeira e os alunos se afastam. Eu a socorro, segurando seus cabelos e sua cintura, pedindo que ela confie em mim. - Tudo bem. Acabou, tia.

- Vc tá sangrando, Cassie!?

- Não. - Responde-me ela, ainda curvada para frente,  envergonhada diante da turma. - A cor vermelha é por conta dos medicamentos da 'quimio'. Fica tranquila, tia. - Erguendo o tronco, ela olha ao redor e indaga. - Onde eu pego um pano úmido pra limpar essa bagunça?

- Na sua casa, bobona. Acha que eu vou deixar vc limpar isso aqui??? Principalmente, diante desses idiotas que estão longe de entender o seu sofrimento??? Nunca!!!

- 'De boas', tia...

- Eu limpo. - Afirma Sebastian surgindo do nada com um rodo e um pano úmido em suas mãos. Na outra, um balde com água limpa. - Estou acostumado. Vc não é a primeira,  tampouco a última bailarina a vomitar em nossas aulas, Cassie.

- Vc sabe meu nome?

- Ouvi por aí...

- Para de limpar isso, Sebastian. Eu devo limpar. E, desde quando alunas vomitam em sua aula!? Isso é patético! Danço. Logo, vomito! É isso!?

Rindo, ele me conquista ao limpar, sem nojo, aquilo que Cassie vomitou. Num esforço conjunto, Cassie, ele e eu, deixamos a sala limpa e vazia. Os alunos se foram. - Obrigada. - Agradeço tocando em sua mão limpa após lavarmos tudo. - Isso foi muito importante pra Cassie. Ela tem passado por maus momentos.

- Eu entendo. Isso foi um prazer para mim, Adessa. Conte sempre com a minha ajuda. - Confusa, fixo meus olhos nos de Sebastian. Por segundos, posso jurar que Aiden está diante de mim, novamente. Dirigindo-se a Cassie, Sebastian comenta. - Fique à vontade para vir quando quiser. Se vc é amiga de Adessa é minha amiga também.

- 'Thanks'. - Diz Cassie, mordendo os lábios, encarando-me com sua  peculiar expressão de quem vê algo onde não existe. - Até breve, Sebastian.

- See you soon...- Despede-se Sebastian carregando no sotaque irlandês. Sério??? Desde quando??? Ele, até hoje, fala nosso idioma com naturalidade!!! - Te vejo amanhã, Adessa?

- Talvez...- Sorrio, sem jeito. - Eu aviso se precisar faltar. Ok?

- Ok. - Carregando o pano de chão dentro do balde e a vassoura, ele caminha até a porta. Antes de partir, ele alerta. - Em breve, nos veremos novamente, baby.


- Corre! - Puxo Cassie até a porta de saída da 'Just Dance'. - Rindo e desconfiada, ela pergunta.

- O que houve, tia!?

- Não sei e nem quero saber. Só quero ir embora daqui. Vc tá bem?

- Sim. Vc pode me levar pra casa?

- Claro, querida. Vc deve estar exausta.

- Estou. Mas, em breve, curada desse câncer, vou recuperar minhas forças pra cuidar do nosso filho, tia.

- Como engravidou, Cassie? - Indago ao volante. - Sem útero? Já ouvi falar sobre essa tal de gravidez ectópica, mas, pra mim, era raríssimo.

- E é, tia! - Confirma ela, acariciando sua barriga ainda inexistente. - Depois daquela noite em que dançamos em sua casa, senti uma dor absurda. Pensei que morreria por conta do câncer. Fomos à emergência e, após vários exames, o próprio médico declarou: "É um milagre!"

- É mesmo...- Penso em Antoine e em como ela se sentiu no dia seguinte àquela noite. - Bendito o médico que  optou por não retirar as trompas e ovários junto ao útero, né? 

- Abençoado seja. Liam decidiu por mim. Até parece que ele estava adivinhando que nosso bebê fofinho estava a caminho.

- Certamente, ele adivinhou.

- Do que tá falando, tia? - Um olhar de esguelha e sorrio.

- Bobagem. Eu adoro esse clima de mistério no ar.

- Falando nisso, o tal de Sebastian tá afim de vc. Percebeu?

- Não seja ridícula, Cassie. Eu tenho idade pra ser a mãe dele.

- Ok. Eu não disse pra vc ficar com ele, mas, se 'der mole', ele te 'pega'. - Sorrio de sua gargalhada infantil. De súbito, ela para de rir e, arregalando os olhos,  comenta. - Ele é muito parecido com o Aiden. Já notou isso?

- Sim. E não gosto nada disso. Quero distância dele. - Desbloqueando o celular, ela se encanta ao ler uma mensagem. 

- Meu Liam tá dizendo que sente a minha falta, tia. Ele não é fofo? Ele tá me esperando em casa. Liam vai ser um pai maravilhoso.

- Não tenho dúvidas. - Uma pontada de ressentimento e comento. - Ele nunca vai te abandonar.


Uma das partes mais difíceis do dia é me deitar em nossa cama à noite. Ela me parece ainda maior sem ele. Leio um livro sem a menor atenção. Assusto-me com 'ringtone' do meu celular. "Número Confidencial". Com o coração acelerado, atendo.

- Vincenzo?

Ninguém responde. Sinto que há alguém do outro lado da linha. Ouço sua respiração ofegante.

- Vincenzo! - Insisto. - Fala comigo, amor. Eu não tô com raiva de vc. Volta pra casa. Por favor. Antoine vai dançar na próxima semana. Matteo não se cansa de chamar por vc, amor. - Um arquejo e o silêncio continua. - Por que faz isso? Pra que ligar se não quer voltar? Isso é tortura. Eu sei que é vc. Se esqueceu do meu super poder? - Ouço o que talvez seja um riso abafado por sua mão. Rolo no colchão, esperançosa. - Cassie tá grávida, amor. Mas, é lógico que vc já sabe disso. Vc e sua estúpida mania de ler pensamentos. Consegue ler os meus, idiota? Consegue sentir a dor que sinto? Se não retornar em uma semana, eu juro que ponho outro homem nessa cama e, só pra te avisar, a 'fila vai andar'. Vincenzo. Vincenzo!? Não! Não desliga! - Custo a acreditar que ele desligou. Cheirando seu travesseiro com seu perfume, choro até pegar no sono. Desperto ainda mais deprimida.

- Eu tenho certeza de que era ele, Enrico. Por que ligar se não fala nada?

- Só pra ouvir sua voz? - Sugere ele.

- Vcs têm se comunicado?

- Eu nunca te esconderia algo assim, filha. Sei que está sofrendo muito. 

- Mais do que muito. Não tenho vontade de sair, Enrico. De ver gente e sou obrigada a ir ao tal ensaio de Antoine. Ver aquele bando de gente nojenta que me olha com desprezo.

- Já parou para pensar que talvez seja impressão sua? Talvez, eles te olhem com admiração?

- Duvido...- Tomando meu último gole de café, confesso. - Tive um pesadelo com Sweet hoje, Enrico. Sweet ou Isabella! Sei lá o nome dela! Ela quer o filho de volta! O que eu faço!?

- Tenho uma ideia...

- Qual!?

- Eu já decidi com que fantasia eu vou ao baile! - Anuncia Antoine, eufórica invadindo a sala de jantar.  Enrico sorri para mim e comenta. 

- Depois falamos sobre o assunto.

- Que assunto!?

- Sobre essa tal fantasia e sobre o celular ligado até tarde ontem á noite! Com quem falava, mocinha!? E, de quem era o celular se vc não tem um!? - Enrico baixa a cabeça enquanto Antoine ri e apontando em sua direção, o delata.

- Era dele!

- Foi para uma emergência, Adessa. - Desculpa-se Enrico, envergonhado. - Ela me disse que teria prova hoje e sua amiga a ajudaria a estudar.

- E vc acreditou, Enrico!? Vincenzo e vc são dois bobões nas mãos dela! - Um beijo em sua testa e digo. - Sem problemas. Não caia mais nessa. Ok? Tá rindo de que, Antoine!? Tem graça mentir para o seu avô!?

- Não, mãe. - Arrependida, ela o beija na testa e lhe pede perdão. - Não vai acontecer de novo, vovô. Eu juro.

- Não mesmo! O que disse ao tal de Thor!?

- É particular, mãe. Eu tenho direito à minha privacidade. - Indignada, com as mãos na cintura, argumento.

- Tu tem direito a ficar presa no seu quarto por dois dias inteiros sem TV ou Tablet! Que tal esses  direitos!? - Em desespero, ela argumenta.

- Não posso. Ainda não conseguimos ensaiar, mãe! Tá tudo uma bagunça e o baile é na próxima semana! Gabriel precisa de mim!

- Pra quê!? Vc vai ser a coreógrafa!? Seus professores não têm domínio de turma, filha! Sinto muito em te informar que o tal baile será um fracasso se alguém capacitado não assumir o controle!

- Não sei o que fazer...- Diz ela, desanimada. - Eu queria tanto que desse certo.

- Tenho uma ideia.

- Qual, vovô!?

- Sua mãe!

- O que eu tenho a ver com isso, Enrico!? - Tomo Matteo de seus braços e o faço comer as últimas duas colheradas de banana amassada com aveia. Limpando sua boquinha, eu a beijo. Enquanto isso, Enrico cochicha no ouvido de Antoine que volta a vibrar. Aos pulos, ela comemora.

- Perfeito, vovô!!! Vc é um gênio!!!

- Oi??? O que tá rolando aqui???

Antes de me deixar perplexa, ela beija minha bochecha ao declarar.

- Vc será a nossa nova coreógrafa! Vai salvar o nosso baile, mamãe! O nosso baile!

- Eu???

Um olhar a Enrico e ele ruboriza. 

- Eu só quis ajudar...



Estranhamente, tanto o corpo docente do colégio como os pais dos alunos aceitaram minha indicação como coreógrafa do baile à fantasia. Pergunto-me o que há de tão especial nesse baile. Não é Natal, Carnaval, Halloween ou Dia das Mães. Não é um baile de formatura. Enfim, dando de ombros, caminho, insegura até o pátio onde Antoine e Gabriel, de mãos dadas, me aguardam, ansiosos, juntos aos demais alunos. Vencendo a vergonha e a tristeza, pergunto.

- Qual é a intenção desse baile? Ainda não entendi.

- A gente quer se divertir, mãe. E, de quebra, mostrar que sabemos dançar. E isso, vc faz muito bem. 

- Entendi. - Resmungo afastando Antoine e Gabriel. - Meninos de um lado e meninas de outro, por favor. - Gabriel sorri para Antoine enquanto a professora de Artes Cênicas, com um ar de soberba, me explica o sentido de tudo. 

- Gostaria de que cada um demonstrasse suas habilidades e se desapegasse de preconceitos arraigados. - Então vcs chamaram uma stripper para tratar de preconceito!? Uma puta de quem vc quer distância!? Perfeito! - Vc compreende?

- Claro. - Minto. Na verdade, com o valor que pagamos pela mensalidade desse colégio, o que vcs querem é um motivo para gastar ainda mais. - Sem problemas. Tenho uma coreografia montadinha em minha cabeça. - Empurrando-a para longe do grupo, peço. - Deixa comigo. No que depender de mim, o baile será um sucesso.

- Não quer ajuda? - Sua??? Fala sério!!! - Procurando, intencionalmente, agir de maneira oposta às suas atitudes, refuto num tom displicente.

- Não. Valeu. Assim que terminar, eu te chamo. Ok? - Observando-me, ofendida, pergunto. - Entendeu ou quer que eu desenhe?

Antoine gargalha e, ao sair da formação, vai até Gabriel e cochicha.

- Essa é a minha mãe. 

- Hilária. - Diz ele.

- Em suas posições! - Ordeno, incomodada com o 'grude' entre ambos. - Já ouviram falar em 'Back Street Boys'!?

- Aquilo que vc fumou, mãe!? - Inspiro fundo e, envergonhada, minto.

- Eu não fumo, filha! 

- Mas naquela noite lá em casa, a Cassie disse que 'beck' era um grupo antigo. Lembra? E vc estava fumando. Um cigarro pequeninho que vc escondia.

- Antoine...- Rosno. - Podemos começar o ensaio ou vc pretende tomar mais do meu tempo?

- Foi mal. 

- Ela é brava. - Comenta sua amiguinha. 

- Vc não viu nada. - Cochicha Antoine.

- Vamos ao ensaio!? Se é demonstração de habilidades o que a versão feminina de 'Severo Snape' do 'Harry Potter' deseja, é o que ela vai ter, meu bem. 

Apesar de antiga, a turma adorou a música.



"Everybody" fez até os mais tímidos moverem os quadris. Levei muito tempo até que todos aprendessem a coreografia difícil até mesmo para um adulto. Mas, ao final do dia, exaustos, todos estavam saltitantes e confiantes. Mais relaxada e entrosada, alerto.

- Esse é só o primeiro ensaio! Não faltem aos outros ensaios e treinem em casa!

- Woohoo! - Alguns gritam enquanto correm até o portão da saída. Um aperto no peito e, sentindo falta de Vincenzo e,  um ranço cada vez maior por ele não estar aqui, levo Antoine até o carro. No vidro embaçado pelo frio, um coração desenhado. Olho ao redor e, estupidamente esperançosa, ainda procuro por ele. Frustrada, entro no carro e ainda arrisco um olhada no retrovisor externo. Nada.

- Covarde...

- Quem, mãe? - Pergunta-me Antoine no banco traseiro. - O papai?

- Não. - Minto. - Alguém da academia. Vc não o conhece. Tem falado com seu pai por telepatia?

- Não...- Um profundo suspiro e ela desabafa. - Tô com saudades. Ele vai voltar logo da viagem, mãe? Falta pouco tempo para o baile. - Tentando não chorar, volto a mentir.

- Não se preocupa. Ele vai estar presente no dia de seu grande baile.


Não posso negar que os ensaios no colégio e o meu trabalho na academia têm tomado tanto do meu tempo que quase não penso nele. Quase. Vincenzo tem pago todas as contas em dia e deposita em minha conta muito mais do que eu gastaria em um ano. Talvez, ele pense que seu dinheiro compre a minha paz. 

- Que pense.
- No que, tia?
- Em nada, querida. Como posso te ajudar? Eu não aguento ver vc pôr pra fora tudo o que come. Quando a 'quimio' vai acabar?
- Mais duas sessões e devo esperar pelo milagre. - Pálida, ela sorri ao afirmar. - Eu sei que ele virá. Eu vou me curar, tia.
- Tenho certeza, amor. - Confirma Liam sempre ao seu lado, em uma das mesas do restaurante onde almoçamos. Ele não trabalha? Estranho. Anjos ricos que não trabalham. Será que tem mais deles por aí? - Tenho gente tomando conta dos negócios, Adessa. Não se preocupe. - Escondendo meu rosto entre as mãos, murmuro um pedido de desculpa. - Bobagem. - Diz ele, sorrindo. - Tem razão. É estranho mesmo.
- Do que estão falando? - Pergunta Cassie, inocentemente. - Às vezes, eu acho que vc me esconde algo, 'coelhinho'.
- Escondo. 
- O quê!? - Ao lado da mesa, uma caixa retangular fechada. Cassie vibra ao indagar. - É o que eu tô pensando!?
- Abra.
- Aqui??? 
- O que deve ser? - Pergunto, curiosa.
- Só pode ser o bercinho, tia! - Exulta ela.
- Melhor abrir em casa. - Sugere ele após sairmos de sua antepenúltima sessão de quimioterapia. Como dizer a ela o que senti ao tocá-la? O bebê está perdendo a batalha contra o veneno que injetam no corpo franzino de Cassie. - Eu acredito em milagres, Adessa. Vc não?
- Sim. - Meio que minto. - Com certeza. Vou deixar vcs em paz. Preciso trabalhar. - Um forte abraço e Cassie me agradece.
- Sem vc ao meu lado, eu não suportaria, tia. Nós vamos vencer. Não vamos? - Um ligeiro olhar a Liam e respondo.
- Sem dúvida.

Alongo-me na barra diante do espelho após a aula. Pela primeira vez, sinto-me orgulhosa de mim mesma. Estou dando aulas de dança! Eu que sempre sonhei em ser uma aluna, agora, sou professora!
- Vc merece.
- Sebastian!? 
- Te assustei?
- O que acha!? Não faça mais isso!
- Perdão. - Caminhando até a torre de som, ele escolhe uma canção. Triste, comovente. Mais antiga do que as que eu costumo ouvir. Uma sensação de medo e tristeza toma conta do meu coração assim que ele me reverencia e convida. - Concede-me uma dança?
- Por que eu dançaria com vc, Sebastian? Aqui é o nosso local de trabalho. Não faz sentido algum.
- Faz sim. Eu preciso me libertar. Ainda não me adaptei ao meu novo mundo porque há assuntos pendentes.
- Do que tá falando!? - Recuo, aflita. - Não quero ficar aqui! - Segurando-me pelo braço, ele me pede com ternura. 
- Uma única dança. Aquela que Vincenzo roubou de mim. Era eu quem deveria estar naquele baile ao seu lado. Eu deveria ter renunciado ao ódio e...


- Vc não é parecido com o Aiden! - Constato, horrorizada. - Vc é o Aiden!!! Como vc fugiu??? Voltou pra ferrar com a minha vida novamente???
- Nunca. Estou aprendendo a me comportar, baby. Fique tranquila. Eles estão aqui.
- Quem??? - Olho ao redor e já não estou na sala de aula na 'Just Dance'. Lustres acima de minha cabeça, tochas presas às paredes, um imenso salão onde casais com roupas do século XVII bailam enlevados pela valsa melancólica. - Não quero ficar...


- Dance comigo e me liberte, baby. Eu preciso voltar àquela noite e dançar com a minha esposa pela última vez e, assim, quebrar a maldição. - Amargurada e confusa, permito que sua mão toque minha cintura. A outra, sustenta meu braço acima de minha cabeça. Ele ergue sua cabeça, elegantemente. Eu o imito.
Passos tímidos e, observo-me no espelho. Trajando um vestido belíssimo, de época, encanto-me. 
- Vc está linda, esposa.
- Isso é um sonho?
- É o meu sonho. Eu estraguei tudo por um ciúme doentio. Cometi crimes por te ver ao lado dele e tudo o que eu sempre quis, era estar naquele baile, dançando com vc, como estamos dançando agora. Se vc não tivesse fugido de mim, tudo teria sido diferente.
- Se vc não tivesse me ferido e matado o nosso filho...- Rodopiamos com maior intensidade no vasto salão. Tudo ao meu redor desaparece. Somente Aiden e eu bailamos sozinhos. As tochas ardem e giram, deixando-me tonta. Arrependido, ele me pede perdão por tudo. Emocionada, sussurro. - Já perdoei. Já passou. Sinto pelo mal que te fiz. Vc perdeu sua vida por minha causa. Perdeu sua humanidade por meus erros. Me perdoa? - Com lágrimas em seus lindos olhos claros, ele sorri timidamente e murmura. 
- Agora estou finalmente livre, esposa. - Recostando meu pescoço em seu ombro, choro pela dor que causamos um ao outro em uma época em que éramos inocentes, incautos. Onde morri de forma trágica e dolorosa. A canção finda. Nossos olhos se encontram. Nunca o vira tão leve e tranquilo como agora. Recuando, ele curva o tronco para frente e, rindo de alegria, ele diz. - Eu sempre vou te amar, Morgana. Obrigada por me libertar, amor. Adeus.
- Adeus...
De súbito, as luzes se acendem. Parada, diante do espelho, observo os alunos de um lado ao outro fora da sala de aula. Perplexa, toco em meu rosto, corpo. Ainda ouvindo a belíssima canção, pergunto a Aninha, a recepcionista, antes de deixar a academia.
- Vc viu Sebastian passar por aqui? - Assustada, levando a mão à boca, ela pergunta.
- Vc não soube?
- Do quê?
- Foi em um acidente de moto. Sebastian morreu, Adessa. - Entre lágrimas, ela repete. - Sebastian morreu ontem, à noite.

Desnorteada e comovida, recosto a cabeça ao volante do meu carro. Secando as lágrimas de meu rosto, revejo sua foto em meu celular. Uma das que escondia de Vincenzo. Antes de apagá-la para sempre, sussurro.
- Enfim, estamos livres, Aiden. Descanse em paz.



- Isso não vai dar certo, Enrico.
- Não custa nada tentar. Já estamos aqui. 
- Ela não foi enterrada. Esse túmulo é falso. Não há corpo. - Explico a Enrico no cemitério onde há uma lápide em homenagem a Sweet. Perplexo, ele me pergunta entre um túmulo e outro.
- O que fizeram com o corpo???
- Não me pergunte. Isso é coisa do seu filho idiota. - Revirando os olhos, sob os primeiros pingos da chuva, explico. - Foi um dia terrível. Cheio de cenas bizarras. Arcanjo Miguel levou sua alma. Seu corpo, desapareceu antes de eu chegar à sala. Vincenzo preferiu não me contar sobre o que havia feito. Eu preferi aceitar sua proposta. Logo, temos um túmulo sem corpo e uma morta atrás de um filho que não sai dos meus sonhos. Fim da história. Mais um conto de horror em minha pacata vida. - Debaixo de seu guarda-chuva, ele ri de minha expressão de desânimo e me abraça. - Bem-vindo ao meu mundo, Enrico. 
- Ele é bem movimentado. - Comenta ele ainda sorrindo. - De uma coisa vc não pode se queixar. 
- Não diga 'monotonia'.
- Monotonia. - Ruborizando, ele me pede desculpas. - Vamos dar um jeito nisso hoje, filha. 
- Como? Daqui a pouco, o coveiro vai pensar que somos ladrões de corpos pra fazermos macumba. - Outro riso e ele tenta me proteger da chuva forte. - Vai rindo...
- Vc é hilária, filha. Hilária. - Concentrando-se, ele inspira profundamente antes de invocar o nome de Isabella. Não deveria ser o de Sweet? Sei lá! O que eu estou fazendo com meus tênis limpos na porra dessa terra úmida e infestada de bactérias? - Ela já está aqui.
- Diz ele num tom sombrio. 
- Onde???
- Atrás de vc.
- Porra! - De súbito, eu me viro e a vejo, como sempre, molhada e coberta por algas. - Tem que aparecer assim!? Não dá pra avisar antes!?
- Meu filho...- Murmura ela. Avançando em sua direção, eu a confronto. - Sweet, tu não tem filho! Eu vi Arcanjo Miguel te levar! Como vcs fogem assim!? Que falta de organização! - Segurando-me pelo braço, Enrico me pede. 
- Deixe que eu resolvo. - Recuo, irritada. Ela me observa como se eu fosse a morta! Há raiva em seus olhos verdes ao ouvir palavras de poder recitadas por Enrico. Ao terminar, ele meio que a exorciza. - Com o poder a mim concedido pelo Criador, eu te devolvo ao lugar de onde saiu. Deixe meus filhos em paz. Fique em paz. - Um sorriso de escárnio e ela zomba antes de ser sugada pela terra escura.
- Não deu certo, Enrico. Giovanni é o único que poderá me devolver a paz e o nosso filho.
- Vincenzo sumiu, sua vaca!
- Acho que ela não ouviu, filha.
- Puta que pariu...- Resmungo. - Tudo isso pra nada.
- Ainda não acabou. - Refuta ele, retirando seu casaco molhado antes de se sentar ao meu lado no carro. - Cabe a Vincenzo consertar seus erros.
- Super concordo. - Rosno. - Mas ele sempre some quando a coisa fica feia, Enrico. Desculpa. É seu filho, mas não vale nada. - Uma careta e ele se cala. Parecendo refletir, ele divaga fixando os olhos nos carros à frente.
- O dia ainda não terminou.
- Mas, a minha paciência já. - Resmungo ao volante. - Amanhã é o último ensaio antes do baile! Antoine tá aflita pela ausência do pai! Aonde aquele imbecil foi parar!? - Uma freada súbita diante do semáforo e vejo seus olhos esbugalhados de medo. - Liga não, Enrico. Anjos não morrem. A menos que vc tenha um filho com alguma humana por aí. - Sorrindo com os olhos, ele lamenta.
- Não tenho. Adoraria ter, mas não tenho.
- Celeste, além de vaca, é muito burra. Sabia!? Perder um homem como vc...
- Concordo. Obrigada, filha.
- Vc sente falta dela, né? - Olhando-o de esguelha, percebo o momento em ele  enxuga uma lágrima discreta. Enraivecida, eu a xingo. Ele ri de minha raiva. - É outra que tá minha 'lista de ranço', Enrico. 
- 'Fila de ranço'!? Que diabos é isso!?
- Nome das pessoas em quem eu vou meter a porrada. - Gargalhando, ele pergunta.
- Eu estou nessa lista?
- Nunca. Mas seu filho é o primeiro dela. Deixa ele comigo.
- Vc sente falta dele. Não sente? - Contendo as lágrimas, estaciono meu carro na garagem e, olhando para a vaga vazia do carro de Vincenzo, respondo.
- Sim. Muita. Mais do que eu imaginava.
Abraçados, choramos juntos. - Somos dois idiotas. - Concluo aos prantos. Da varanda, Antoine, aos pulos, com o celular do avô na mão, grita uma pergunta.
- Meu amigo pode jantar com a gente, mãe!? Diz que sim! A mãe dele deixou! Diz que sim!
- Cacete!
- Mantenha a calma.
- Não posso manter algo que não tenho Enrico! - Afirmo subindo os degraus até a varanda. - Antoine!
- Fala baixo. - Cochicha ela. - Ele tá ouvindo.
- Que ouça! 
- Mamãe...
- 'Mamãe' é o cacete! Vc roubou o celular do seu avô pra falar com o Thor!?
- Não roubei. - Refuta ela, dramaticamente. - O vovô saiu sem ele. Daí, eu pensei que...
- Pensou errado, Antoine Rossi! - Tomando o celular de sua mão, livrando-me dos tênis contaminados, eu os chuto para bem longe antes de falar com o tal do Thor. - Alô!
- Tia!? - Porra. Isso me parte ao meio. 'Tia' é sacanagem. Sinto carinho em suas palavras. - Vc é hilária! Queria tanto te conhecer melhor! - Encostando o celular no peito, pisco por diversas vezes olhando para cima na tentativa ridícula de não deixar a porra de uma lágrima escorrer por meu rosto. - Tia!?
- Pode sim, querido. - Respondo de costas a Antoine que se move como uma 'Cheerleader' em dia de final do campeonato do 'Super Bowl'. - Ok. Te espero ás nove. - Desligo. Sem me dirigir a Antoine, repreendo Enrico. - Vc não tem um PIN ou 'tela de bloqueio' nesse celular!?
- Pin é o mesmo que Pix!? - Antoine gargalha diante do olhar confuso de seu avô. - Não sei como fazer um PIN. Por que eu faria isso?
- Enrico! - Reviro os olhos, exausta. - Depois te explico antes que Antoine tome conta do teu celular! Ok!? - Corro até Antoine que pretendia se esconder em seu quarto e, descontrolada, eu a belisco no braço antes de protestar. - Desde quanto eu te ensinei a ser assim, filha!? Por que tá fazendo tudo errado ultimamente!? O que esse menino tem de tão especial que te faz mentir pra sua mãe e enganar o seu avô!? - Choramingando, ela passa a mão sobre a pele marcada e, arrependida, responde.
- Não sei, mãe. Eu nunca senti isso antes. É estranho, mas é legal. - Um olhar a Enrico e me sento no chão. Recostando-me à parede, acabo de perceber que minha filha cresceu. Anjo, arcanjo ou querubim, ela cresceu. - Me perdoa, mãe. Eu não queria...- Abraçando-a com força, peço desculpas pelo beliscão.
- Eu tô nervosa e descontei em vc. Não faz mais isso. Ok? Somos amigas. Não somos? Amigas contam tudo uma pra outra. Tudo mesmo. Entendeu?
- Entendi. Posso me arrumar?
- Pra quê??? Vc já tá vestida!!!
- Não para uma ocasião especial como essa. - Conclui ela, triunfante, erguendo-se do chão. - Todo mundo aqui já recebeu amigos para jantar. Menos eu. Agora é a minha vez.
- Eu mereço...- Resmungo, de pé. - Vai logo, Antoine. O poderoso Thor vai chegar daqui a pouco...- Passando por Enrico, cochicho. - Espero que sem seu  martelo.
Gosto de ouvir a gargalhada sempre vibrante de Enrico. Debaixo do chuveiro, pergunto a mim mesma.

- Cadê vc, Vincenzo, em uma noite especial como essa!? Filho da puta! - Enrolada em minha toalha, sorrio diante do coração desenhado no espelho embaçado. - Idiota. Volta pra casa. Eu não suporto mais a tua ausência.

Enquanto me visto, volto ao banheiro. O coração desapareceu. Intrigada, pergunto a mim mesma.
- Como ele fez isso???


- Sua lasanha é simplesmente esplêndida, tia!
- Engraçado. Antoine costuma falar exatamente assim. - Ironizo sem tirar meus olhos do menino bonito, branco e loiro diante de mim. - Obrigada. - Outro gole de vinho e pigarreio antes de perguntar. - Então, Thor. Quais são seus planos para o futuro? - Todos riem de minha pergunta, inclusive Matteo em sua cadeirinha de alimentação. - Qual a graça? - Indago encarando todos à mesa de jantar. - Ele precisa pensar em seu futuro.
- Ele só tem dez anos, filha.
- Enrico, quanto mais cedo traçarmos metas para o futuro, melhor. - Menos chances de ter a vida fracassada que eu tive. De guardar traumas e dores em um coração estraçalhado pela falta do homem que ama. - E, por favor, não fale como o seu filho. Obrigada. De nada. - Como se estivessem diante de um humorista em seu 'Stand up Comedy', continuam a rir, o que, de fato, me irrita. Mantenha a calma. Ele só tem dez anos. Mantenha a calma, Adessa. Ok. - Perdão, Enrico. Detesto me lembrar dele...
- Do pai, mãe? Por quê? Ele não vem pra assistir à nossa coreografia?
- Claro que vem! - Minto. - Ele chega exatamente no dia do seu baile!
- Quero ser astronauta, tia. - Surpreende-me Gabriel com o olhar distante. - Eu sempre quis conhecer outros planetas, outras pessoas diferentes das que habitam a Terra.
- Uau. Isso foi profundo. - Comento. - Por que não gosta dos humanos?
- São falsos, maus, mesquinhos, egoístas. - Antoine arqueja ao seu lado quando ele ressalta, descansando os talheres sobre o prato. - Exceto Antoine. Nunca conheci alguém como ela.
- E nunca vai conhecer! - Gargalho, histericamente. - Ela é mais do que especial, Thor!
- Gabriel, tia. Meu nome é Gabriel.
- Desculpa...Gabriel. Por que escolheu ser o Thor?
- Por que ele luta contra o mal sem ser chato. É engraçado. E, quando erra, reconhece seus erros e segue adiante. - Surpresa, indago.
- Quantos anos vc disse que tem mesmo??? 
- Dez, tia. Mas, minha mãe diz que sou precoce. Ela não gosta disso.
- Sua mãe é uma vaca...
- Mamãe!!!
- Perdão, Gabriel. Digo...Thor! Ah! Sei lá! Come mais lasanha! - Atordoada, sento-me ao seu lado e, após lhe pedir desculpas, confesso. - Gostei de vc e da forma como dança. Vc leva jeito.
- Sério, tia???
- Super sério!!!
- Woohoo! Minha mãe gostou de vc!
- Menos Antoine...- Rosno. - Vc ainda não se livrou do castigo.
- O que ela fez, tia?
- Nada não, Biel.
- Biel??? Desde quando vc o chama de 'Biel'???
- Adessa, vamos retirar os pratos?
- Ainda não acabei, Enrico! - Descansando sua mão sobre meu ombro, ele afirma.
- Acabou sim, meu anjo. Acabou sim.


Ainda enciumada, levo Gabriel de volta à sua casa, embora sua mãe tenha ordenado que ele retornasse de 'Uber'. 

- Não me custa nada. Além do mais, vc é um pouquinho novo demais pra ficar circulando pela cidade de 'Uber'. A gente nunca sabe quem está ao volante.
- Eu amei a noite, tia. Principalmente, o filme que assistimos. 
- 'Mufasa. O Rei Leão!' - Arqueja Antoine. - Simplesmente esplêndido. 
- Sim. Glorioso. - Afirma ele, animado, diante do prédio onde mora. Um apartamento por andar. O aluguel deve ser mais caro do que o meu carro e o de Vincenzo, juntos. Entusiasmado, ele considera. - Acho que Mufasa deveria ter sido menos rude com seu irmão.
- Concordo. Afinal, todos cometem erros e o irmão do Mufasa teve seus motivos. - Agachando-me diante dele, argumento. - Todos cometem erros, Gabriel. Porém, nem todos são capazes de expor esses erros e pedir perdão por eles. Vc vai ser um mega astronauta. 
- Será, tia???
- Vai sim! - Vibra Antoine, aos pulos, no saguão do prédio luxuoso. - Minha mãe vê coisas quando toca na gente! Se ela disse que vc vai ser um astronauta, podes crer que vai!
- Uau. A senhora tem super poderes? - Antes que eu possa refutar, Antoine confirma.
- Sim! E meu pai também! Ele pode ler a sua mente! Não é simplesmente esplêndido!? - Discordo. É um saco. - Meus pais são super heróis!
- Menos, Antoine. Menos. - Recuo enquanto ambos se abraçam com força. Há ingenuidade no abraço. 

Sorrio diante do volante. Gabriel é um bom garoto, com pais nocivos. Repentinamente, a imagem de Luka me vem à mente. Antoine ri de mim enquanto movo minha cabeça de um lado ao outro tentando dissipar a imagem perturbadora. 
- Vamos pra casa, filha?
- Vamos! Amanhã será um longo e lindo dia!
- Com certeza. - Sussurro ajeitando o retrovisor externo. Posso jurar ter visto a figura de um homem com as mãos nos bolsos do casaco, parado, no meio da rua. - Bobagem. Bebi demais.
- Nem deveria estar dirigindo, mamãe.
- E deixar seu grande amigo nas mãos de estranhos? - Um beijo em minha bochecha e ela comemora.
- Vc é demais, mãe!!!



Enrico me acompanha ao baile. Liam e Cassie fazem questão de ocuparem os melhores lugares nas arquibancadas. Matteo no colo de Cassie, a faz rir como nunca. Evito tocar em seu corpo. Não quero...não posso acreditar que ela esteja perdendo mais uma vida dentro de si. Graças ao tumulto entre pais, professores e alunos agitados, Liam não ouve meus pensamentos intrusivos. 
No camarim, desejo sorte aos meus pupilos. Um beijo em Antoine, fantasiada de princesa Shuri, e em Gabriel provoca furor entre os demais. Tudo o que eu não queria, eu consegui: criar um clima de romance entre crianças tolas que me surpreenderam durante a apresentação da coreografia. Pouquíssimos erros e uma explosão de palmas e urros ao final do espetáculo. Comovida, levo as mãos ao peito e penso: 

"Sirvo pra alguma coisa".

Antoine e Gabriel me abraçam efusivamente após o show. Gargalho diante da euforia de ambos, lembrando-me do tempo em que eu daria tudo para estar em um palco. Um tempo que ficou para trás.
Hoje, tenho tudo o que desejo, exceto, um marido macho o suficiente para enfrentar seus demônios e me encarar. Ainda olho ao meu redor à sua procura quando ouço a voz de Antoine causar microfonia em cima do palco.
- Desce daí! - Ordeno enquanto ela testa o som do microfone, causando aflição em todos. - Antoine Rossi!
- É ela! - Estaco diante dos olhares incidindo sobre mim. Nem mesmo no 'California', eu me senti tão despida quanto agora. - Ela é minha mãe. Ela me tirou da rua. Ela me deu amor e carinho. Ela me ensinou a dançar. É por isso que danço bem assim. - Modesta minha filha. - Ela que ensaiou a gente e, por causa dela, nós arrasamos na pista! - Mais palmas e urros de seus amiguinhos que, entusiasmados, sobem no palco e, juntos a ela, me aplaudem assim que Antoine termina seu improvisado discurso onde amor e confiança se misturam em seu lindo sorriso. - Te amo, mãe. Vc é a melhor mãe do mundo. Mesmo quando me dá bronca. Por isso, eu te escolhi. - 
Sem me mover, cubro o rosto. Enrico me guia até a saída do palco onde Antoine me abraça. - Gostou, mãe? Eu ensaiei a semana inteira.
- Muito, filha. Te amo. - Um abraço forte e recuo. Corro até o estacionamento. Dentro do carro, choro compulsivamente. Quando eu poderia imaginar que receberia uma homenagem como essa vinda de pessoas que jamais frequentaram os becos de onde eu vim!? - Por que seu pai não tá aqui pra assistir esse momento que jamais vai se repetir? No retrovisor interno, seco minhas lágrimas com os lenços umedecidos de Matteo. Retoco meu batom e improviso um coque no topo da cabeça. Não vim vestida para matar. Trajando um camiseta justa e jeans rasgado com cadarços na cintura, calçando meus tênis prediletos, saio do carro. Bato a porta com força. Afinal, não quero roubar a cena dos bailarinos. Sou somente a coreógrafa e mãe de um querubim que me ama, seja lá o que isso signifique.  Encarando o céu nublado, proclamo, sozinha, no estacionamento do colégio. - Ela é minha filha e me ama! Não pensem que será fácil tirá-la de mim! Entenderam???
- Acho que sim. - Imóvel, reconheço a voz logo atrás de mim. - De onde eu venho, não tem música. Nunca dancei antes de vc. Vc me acusou de usar a música pra te enganar e isso doeu. Todas as vezes em que eu te pedi pra dançar comigo, em todas as vidas, foi pra te acalmar ou pra me acalmar. Nunca foi pra te manipular. Não sou normal, Dess. Tenho medo de ser humano. Não sei lidar com vc. Ainda não sei. - Comprimo minhas mãos geladas. Meu coração bate acelerado. Meus olhos se enchem d'água enquanto ele prossegue. - Vc não faz ideia de como e do quanto eu penso em vc e em te fazer feliz e, todas as vezes que consigo, eu vibro por dentro e, quando eu falho, eu me odeio. Eu fujo de mim mesmo e, consequentemente, de vcs. A vergonha em ter te machucado naquela noite foi tão grande que, apesar de ter tentado por várias vezes, não consegui me aproximar. Hoje, por Antoine, eu tentei. Espero que me perdoe porque, se não me perdoar, eu prefiro a morte do que seu desprezo. - Apoiando-me no carro, curvo meu tronco para frente e choro em silêncio. Sinto sua presença próxima a mim. Sua voz mansa pergunta. - Me perdoa, novamente? Eu só te faço sofrer...
Viro-me lentamente em sua direção. Penso em dar um tapa em seu lindo rosto, mas seu olhar sofrido me faz desistir.
- Cachorro. - Rosno. - Eu te odeio por me fazer sofrer.
Um salto e me agarro em seu pescoço, procurando, sedenta, por sua boca. Arfando, ele me sustenta com seus braços fortes e me pressiona contra a lataria do carro. Esqueço-me dos dias de solidão e sofrimento sentindo o gosto de seu beijo apaixonado. Sua barba mal feita arranha meu rosto. Gosto disso. Sorrindo, ele murmura.
- Não tive vontade de me cuidar, Dess...
- Cala a boca, idiota. Vc tá de volta. - Outro beijo afoito e o sufoco. - Preciso respirar.
- Depois.
Mato um pouco de minha saudade e, num recuo, dou um tapa em seu rosto. Voltando a enxergar o homem por quem me apaixonei, deixo-me abraçar por ele. Ao som de uma canção antiga vinda do ginásio, ele, inseguro, me convida.
- Dança comigo? - Com as mãos trêmulas, aceito.

- Me deixa voltar pra casa? 
- É sério que vc tá imitando o cantor?
- Dess...- Um sorriso tímido e me desmancho. - Posso?
- Vou pensar. - Brinco. - Preciso de mais uns dois beijos pra decidir.
- Ok. Ok. É um sacrifício, mas...- Prestes a receber um tapa no braço, ele pressiona suas mãos em meu rosto e me beija com tanta paixão que fico tonta. Rindo, ele me observa e volta a perguntar. - Me deixa voltar?
- Talvez. Quem sabe até o final do baile...
- O baile! - Diz ele arregalando os lindos olhos azuis. - Antoine vai dançar!
- Ela já dançou e vc perdeu! - Puxando-me pelo braço, ele me faz correr de volta ao ginásio ao refutar num grito. 
- Eu não perdi! Eu estava lá, imbecil! - Enchendo suas costas de socos, pergunto antes de chegarmos à arquibancada.
- Por que não falou comigo??? - Passando entre os convidados na terceira fileira, pisando em alguns pés, ele responde.
- Não deu. Vc estava tão linda sendo homenageada por nossa filha. Eu não quis estragar tudo.
- Vincenzo!? Vc voltou! 
- Pai! - Um abraço apertado e Enrico enxuga lágrimas discretas. - Cuidou deles por mim?
- Claro, filho! Claro!
Liam o abraça. Cassie o beija no rosto e entrega Matteo em seus braços. Sentado, ele chora com o filho no colo. 
- Te amo tanto, filhão...
- Tem espaço pra mais uma aí?
- Pra vc? Sempre, Dess. - Um beijo apaixonado e arrancamos palmas de Enrico e Cassie. Rindo, desvio meu olhar para o pátio. Ergo-me, subitamente. Vincenzo me impede de gritar por Antoine que dança uma música lenta com seu amigo Thor.
- Isso não estava no roteiro, Vincenzo!
- São crianças, Dess. Estão se divertindo.
- Ele poderia se afastar um pouquinho mais dela! Eu vou lá!
- Tia! Não faz isso! Eles parecem dois robozinhos! Se ficarem mais distantes um do outro, ela não toca no ombro dele!
- Seria perfeito! Distantes! Separados! Crianças não dançam música lenta! - De pé, na arquibancada, grito. - Antoine! Separa! - Uma de suas gargalhadas e Cassie comenta. - Tadinhos! Não sabem dançar! - Um grito e Cassie orienta. - As mãos são no pescoço, pirralha!
- Cassie! Cala a sua boca e deixa as mãos dela onde estão! Nos ombros do Thor! Bem distantes do seu martelo!
Vincenzo gargalha enquanto me abraça.
- Um dia, ela vai dançar de verdade, Dess. Vc precisa se preparar pra isso.
- Vai demorar, Vincenzo. Vai demorar.
- Não vai, Dess. Ela não tem tanto tempo assim. - Suas palavras impregnadas de tristeza me chocam a ponto de me fazerem descer os degraus com a habilidade de uma atleta em uma corrida de obstáculos. - AONDE VAI!? - Pergunta-me Vincenzo assim que piso no salão do ginásio. Um outro grito e respondo.
- Se for verdade o que disse, ela precisa  aproveitar cada minuto de sua vida! Tem que ser perfeito!
Corro até o DJ e lhe peço uma canção. Da cabine de som, ele coordena as luzes. Os holofotes com luzes frias dão lugar aos pequenos pontos coloridos que giram ao redor das poucas crianças que dançam ao lado de Antoine e Gabriel. Angustiada e emocionada, eu os separo.
- Mãe, o que eu fiz?
- Nada. Se tiver que dançar, dance direito. Thor, ponha sua mão na cintura de Antoine. Filha, cruze suas mãos na nuca do Thor. - Ambos sorriem enquanto recuo e choro atrás de uma das pilastras. Intuitivamente, eles seguem o ritmo da canção. 


Mesmo que enciumada e com medo de que ela sofra algum dia, estou feliz ao sussurrar.
- Viva intensamente, filha.


Comemoramos o sucesso do baile em uma cantina aconchegante. Em nossa vasta mesa, a alegria é contagiante. Ao lado de Vincenzo, grudada em seu braço, observo a inocente conversa entre Gabriel e Antoine. Ambos comentam sobre os passos da coreografia. Liam e Cassie riem das piadas de Enrico, um tanto embriagado pelo vinho tinto. Matteo, seguro, em sua cadeirinha com bandeja, baba em seu mordedor de silicone. Plenamente feliz, cochicho no ouvido de Vincenzo.
- Prepare-se para sofrer hoje, canalha. Meu ranço por vc triplicou.
- Meu desejo por vc é três vezes maior do que o seu ranço por mim. - Sorrio diante de seu olhar devasso. - Hoje, eu controlo tudo. Ok?
- Ok. - Ainda rindo de Vincenzo, ouço Cassie anunciar o término das sessões de quimioterapia. - Wow! Isso é...! 
- Simplesmente esplêndido! - Exulta Antoine. - Agora, o bebê vai voltar a crescer! 
- Por que 'voltar', pirralha!? Ele não estava crescendo!?
- Estava, mas não gostava daquele suco ruim.
- Que suco? - Indaga Gabriel, confuso. Antoine o responde.
- Um suco ruim que davam pra Cassie tomar no hospital pra matar as células do Mal. Agora, ela não precisa mais disso e nem o bebê. - Inspiro profundamente ao sentir um arrepio na nuca. Vejo o braço do garçom à minha direita, servir meu prato: um fumegante 'nhoque' ao molho branco. 
- Espero que aprecie. - Diz a voz grave do garçom. Sem olhar em seu rosto, agradeço. - Sempre às ordens. - Outro forte arrepio e Vincenzo me pergunta.
- Tudo bem?
- Sim. - Minto. Sem meus óculos, procuro enxergar os rostos dos clientes mergulhados na penumbra acolhedora do ambiente. - Ninguém...
- Quem, Dess? Quem vc procura? Me fala. - Puxando-me pela cintura, ele me aproxima ainda mais de seu corpo. Melhor. Sinto-me segura. - Nada vai acontecer.
- Espero que não. - Murmuro. Um garfada no 'nhoque' e exclamo. - 'Perfecto! Mangia che ti fa bene'! - Provoco risos enquanto meu coração se comprime. Todos à mesa comem e conversam ao mesmo tempo. Exceto Gabriel que, acidentalmente, se corta com a faca. Ao seu lado, o garçom se apressa em limpar o sangue em sua mão com um guardanapo de pano. Erguendo-me, ruidosamente, dou a volta à mesa e o afasto de minha filha e de Gabriel. - Me dá a porra do guardanapo. - Ordeno em voz baixa. - Agora.
- Eu tô bem, tia. - Diz Gabriel num tom conciliador. - Não se preocupa. Já parou de sangrar. 
- Viu? Não foi nada. -  Vincenzo, com Matteo em seu colo, tenta fazê-lo parar de chorar. Ele acaba de se ferir mordendo sua própria língua. Atordoada, volto meu olhar ao garçom que, abrindo um sorriso sinistro, ironiza. - Todo o cuidado com um bebê é pouco. - Próximo ao meu ouvido, ele sussurra, discretamente. - Alguém dessa mesa precisa morrer. Faça a sua escolha. 
Num ato desesperado, alcanço Cassie e a impeço de terminar de comer seu 'fettuccine', empurrando seu prato contra o chão. Surpresos e incrédulos, todos me observam enquanto sigo o garçom e, puxando-o pela gola engomada, pergunto.
- Por que fez isso!? O que quer dessa vez!?
- Dess!!! - Ouço seu grito, o ruído de sua cadeira contra o piso cerâmico. Aflita, repito a pergunta. Lúcifer responde.
- O de sempre, meu bem. Semear o caos, a dor e a discórdia e...- Uma breve pausa e ele prossegue. - Antoine. Óbvio.
- Me dá a porra do guardanapo! - Insisto
- Sumiu. - Ironiza ele mostrando-me sua mão vazia. - Que estranho...
- Não toque em Gabriel!
- Antoine seria melhor, mas, se ainda não a tenho, serve o Thor mesmo. - Uma olhadela sobre meu ombro e ele debocha. - Ih! O bonitão está vindo! Fui! - Antes de sumir diante dos meus olhos aterrorizados, Lúcifer comenta. - Boa escolha. Como diria Rafael: uma vida pela outra.
- O que ele queria!? - Pergunta-me Vincenzo, enfurecido. - Matteo não parava de chorar! Antoine está nervosa! Cassie está com cólicas! Com quem vc conversava, Dess!? O que ele queria!? - Um olhar distante e repito suas últimas palavras.
- Uma vida pela outra. 






Após aquela tarde, procuro estar sempre próxima a Cassie que, esfuziante, comemora a cura do câncer e a saúde perfeita do feto em seu ventre. Antoine, visivelmente abatida, acolhe Gabriel em nossa casa após a separação de seus pais. Quase sempre, ele passa as noites em nossa casa. Quase sempre. Hoje, não foi uma dessas noites. Apático, ele confessa ao celular.
'Estou mal, tia. Minha mãe está deprimida'. Do outro lado da linha, procuro incentivá-lo a continuar a sonhar com seu futuro.
'Vai passar. Pense que, um dia, vc nos verá lá de cima com seu capacete de astronauta'. Não gosto do que acabo de dizer. Pioro assim que Vincenzo me lança um olhar indecifrável, movendo, lentamente, a cabeça baixa ao passar por mim. Intrigada, desligo o celular seguindo Vincenzo.
- Por que me olhou daquele jeito!? Falei alguma coisa errada!?
- Não. Pelo contrário. - Lamenta ele lavando os pratos do jantar sobre a pia. - A verdade. Vc falou exatamente a verdade, Dess.



De magrugada, aos prantos, Cassie me liga. Ergo-me da cama e, sentada à beira do colchão, desesperada, pergunto.
- Vc tá bem???
- Sim!
- O bebê??? 
- Tá bem! - Vincenzo, sentado ao meu lado, me abraça pela cintura. Sua cabeça baixa volta a se mover enquanto prossigo. 
- Liam está bem???
- Estamos, tia. - Responde-me ela tentando se acalmar. Liam toma o celular de sua mão e, mantendo o tom de voz linear, avisa.
- Não deixem Antoine acessar o site do colégio. Por favor.
- O que o houve??? Me fala, Liam!!! - Em silêncio, ele me envia um link e se despede. - O que é isso??? Liam!!!
Com tronco curvado para frente, Vincenzo toma o celular de minha mão e toca no link do jornal do colégio. - Me deixa ver!!! - Impedindo-me de tomar meu celular, afastando-me com sua mão entre meus seios, ele alerta num tom de voz sombrio.
- Vc tem que se acalmar. Nossa filha vai precisar de nossa ajuda, Dess.

Não fora preciso ler a notícia estampada na primeira página do site. Não após a foto que, algum infeliz, sem sensibilidade alguma, postou. 

Nada sobrara do carro que colidiu contra o poste tombado. Nada além de dois corpos estendidos no asfalto molhado. Um deles, eu reconheço, imediatamente. Um grito de horror e choro pelo menino sonhador, pela mãe suicida e por minha filha.
- Não é justo...- Murmuro entre um soluço e outro. Um urro de dor e lamento. - Gabriel não merecia isso. - Abraçada a Vincenzo, ouço sua voz embargar ao prever.
- Ela vai sofrer muito, Dess. Muito.
 


Continua...






































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CAPÍTULO 41 - ATAQUES

  Vincenzo me disse que, se estivermos juntos, nada vai nos destruir. Ele precisa saber o que vi. Precisa conhecer a verdade. Precisa me aju...