Dessa vez, não vou culpá-lo pelo abandono. A culpa é minha. Eu o provoquei. Eu acordei o monstro que ainda habita nele. Vincenzo não é tão forte quanto eu. Tão canalha a ponto de errar, pedir perdão e se reconciliar. Não quando o erro é grande demais. Pesado demais. Eu me apaixonei por um anjo fraco demais. Bom demais para me aceitar com todos os transtornos que tenho.
O que eu faço agora sem ele ao meu lado? Já me acostumei com a sua presença, seu toque, nossas brigas. Ouço o ruído da chave na maçaneta sempre no mesmo horário. Era ele quem chegava do ringue e, antes mesmo de beijar as crianças, era a mim que ele procurava. A mim...
Dói. Como sempre, dói. Vou seguir adiante. Sinto que não é o fim. Não. Não mesmo. Nosso amor é forte demais para acabar assim. Enquanto sangro por dentro, sorrio e prossigo porque meus filhos estão comigo e meus amigos também.
Há uma canção que ouço em minha mente o tempo todo. Daquelas que nos fazem rever nossas vidas e chorar por erros e acertos. Daquelas que tocam em filmes onde os anos passam em fração de segundos, tela por tela. Onde as dores são curadas. Os entes queridos, partem. Onde casais se reconciliam após anos de separação.
Em segredo, eu a ouço e me lembro de Vincenzo, meu primeiro pensamento ao acordar. O último, antes de dormir.
Espero que ele possa ler meus pensamentos e, algum dia, volte aos meus braços, porque, seus pensamentos, eu desconheço.
Cassie e Liam, quase sempre, nos visitam. Agora, sou eu quem não gargalha à mesa farta. Sorrio por ver Cassie de volta à sua vida, lutando contra um câncer que insiste em tomá-la de Liam. Liam, um anjo forte e tímido, sempre ao lado de Cassie nas sessões de quimioterapia. Ele me confessou, como uma criança esperançosa, que doará sua vida pela dela. Ela me confidenciou que quer viver mais do que nunca porque, dentro de seu corpo, em suas trompas, a semente do amor entre ambos, cresce, milagrosamente. Comemoramos juntas e choramos juntas também. Ela compreende minha dor. Eu a abraço por sua felicidade. Vincenzo deveria estar aqui e vivenciar esse milagre, mas não está.
- Ele não é louco, filha. Ele precisa se ausentar pelo erro que cometeu.
- Eu fui a culpada, Enrico. Não faz sentido seu sumiço. O que eu digo a Antoine? Matteo chama pelo pai e eu ainda o espero entrar pela porta da sala, suado, sorrindo porque eu reclamava de sua maneira displicente em jogar suas meias e camisas sobre o tapete. Ele gostava disso em mim. Ele gostava de nossas discussões. Ele me conhecia profundamente. Ele disse que 'caiu' por mim e me deixou novamente. - Arfando, eu me calo. - Sinto falta dele, Enrico. Tanta que não sei se vou conseguir levantar da cama pela manhã.
- Vai sim, filha. Vai sim. Estaremos juntos até ele voltar. Minha missão nessa casa ainda não terminou e...
- Que missão é essa, Enrico? O que vc quis dizer com aquele papo de que Antoine consumiu muita força na noite da reconciliação entre Cassie e Liam? Não tivemos tempo de conversar sobre isso. - Sentados no sofá da varanda, sob a luz da lua, eu peço.
- Conta tudo, Enrico. Ela é minha filha. Eu tenho o direito de saber.
- Vc já sabe, mas não quer admitir que ela é especial. - Jogando-me sobre o sofá 'chaise', eu me encolho e me calo. Não quero admitir que ela é mais do que uma criança normal com poderes que crianças normais não têm. - É bom aceitar isso, meu anjo. - Aconselha-me Enrico. - Eu não estou aqui à toa.
- Não me assusta, Enrico. Agora, eu tô sozinha. Seu filho...- Cubro o rosto com as mãos e choro. Enxugo meu rosto com a manga do meu pijama e continuo. - Vincenzo não tá aqui pra nos proteger sei lá do quê.
- Não tenha medo. Nada vai acontecer. - Promete-me ele fixando seus lindos e tristes olhos azuis nos meus. - Escuta o que vou te contar e, por favor, fique calma.
- Não me peça pra ficar calma antes de falar alguma coisa porque isso não funciona! Eu fico ainda mais nervosa!
- Ok...- Diz ele, recostando a cabeça na parede, cruzando as mãos na nuca. - Podemos mudar de assunto. A lua está tão perfeita hoje...
- Diz. Por favor. Eu vou te ouvir.
- Antoine é mais do que um anjo. Mais do que um arcanjo. É um querubim que prometera ao Seu Criador encontrar alguém com um coração altruísta a ponto de se doar a ela. Ela o fez porque o destino da Humanidade estava selado. Maldade, cobiça, ganância, lascívia corromperam as criaturas desde que foram criadas.
- Deus queria acabar com os habitantes da Terra? Não faz sentido. Ele não é misericordioso? Não nos conhecia antes mesmo de cometermos nossos erros?
- Sim. Eu não mencionei o Criador como o capataz. Ele deu ao ser humano o livre arbítrio exatamente para ver até onde são capazes de chegar. Há outras forças interessadas no extermínio da Humanidade.
- Lúcifer. - Bufo ao revirar os olhos. - Aquele paspalho.
- Não o subestime. Ele é muito mais forte do que aparenta. Muito mais influente do que vc pensa, Adessa. Ele tem nas mãos, os líderes que governam países inteiros. Países poderosos com forças bélicas capazes de destruir a Terra com um só dedo.
- E o que Antoine tem a ver com isso?
- Se ela encontrasse alguém puro o bastante para aceitá-la do jeito que ela se moldou aqui na Terra, provaria ao Criador que vcs, humanos, merecem uma segunda chance.
- E ela encontrou? - Lançando-me um olhar compassivo, ele assente com a cabeça. - Nossa. Fala sério. Eu?
- Sim. Por que não?
- Eu já fui 'put...'- Inspiro e continuo. - Desde jovem, eu vendia meu corpo por grana e fama. Acrescente ao meu currículo, as funções de atriz pornô e stripper e dona de uma conta em um site pornográfico com mais de quatrocentos mil seguidores. Eis a pergunta: Em que eu posso ter contribuído para o bem da Humanidade, Enrico!? Ah! Não se esqueça do fato de ter vivido com um demônio devasso que, talvez, eu tenha invocado e que, com certeza, eu criei porque Aiden já foi humano antes de me conhecer! Logo, eu ferrei com a vida dele também! Eu ferro com a vida de todos que se aproximam de mim, Enrico! Seu filho 'caiu' pela pessoa errada e Antoine não vai sofrer por minha causa porque eu não sou digna de seu sacrifício! - Exausta, encolho-me dando as costas a Enrico. Meu mundo está desmoronando novamente e, dessa vez, eu corro o risco de perder a filha que tanto amo por minha culpa. Não é por um simples papel de adoção. É por ela ter apostado em algo que eu não sou! - Isso não tá acontecendo. Não tá. Não tá. - Repito contra as almofadas. - Não é justo com ela! Como deixaram uma criança escolher isso!?
- Ela não é uma criança, filha. Vc ficaria deslumbrada ao vê-la como ela realmente é. Aliás, nenhum humano chegou a ver um querubim sem ficar cego, logo em seguida.
- Poxa. Agora eu tô bem melhor. Obrigada. - Rindo, ele comenta.
- Vc não tem jeito. - Um profundo suspiro e divago antes de voltar a chorar.
- Vincenzo disse a mesma frase no dia em que...
- Vc acolheu em sua casa uma criança suja, moradora de rua, desconhecida, pobre e negra. Que ser humano faria isso, filha? Vc conhece muitos deles? Porque, pelo pouco que vivo na Terra, não vi quase nada parecido.
- Ela me encontrou, Enrico. Ela me salvou. Não fui eu quem a salvei. Ela me salvou.
- Eu sei, filha. Me ouça. Sua força se esvai a cada grande gesto de amor. Na noite em que Liam e Cassie se uniram novamente, ela se doou muito por amar Cassie. No dia seguinte, ela adoeceu.
- Meu Deus...- Levo a mão ao peito. - Continua.
- Ela se recupera com facilidade. - Estalando os dedos, ele prossegue. - Assim...'do nada'. Mas, tudo tem limite, filha. Até mesmo para os querubins.
- Para, Enrico. Por favor. Eu vou trancar minha filha dentro de casa e jogar a chave fora.
- Não vai adiantar, Adessa. Ela é muito mais do que vc imagina.
- Eu sei. Eu sinto. O que eu posso fazer pra que ela não adoeça?
- Sinceramente?
- Sim.
- Nada. Como eu disse, ela é muito mais poderosa do que vc imagina e, até cumprir sua missão aqui na Terra, não vai desistir. - Em desespero, indago.
- Que missão é essa, Enrico!?
- Não faço ideia. Juro. - Um grito parte o silêncio ao meio. Abro um sorriso assim que vejo Matteo com suas perninhas fofas correndo, ainda inseguro, em minha direção e, logo atrás, Antoine anunciando sua chegada com um grito.
- Seguuuuura, peão! - Saltando sobre mim, meu filho abre sua boquinha. Seus primeiros dentes de leite já estão formados. Seu hálito infantil me acalma. Sentando-se ao meu lado, Antoine me abraça e cochicha. - Vai dar tudo certo. Confia.
As mesmas palavras de Vincenzo...
- Com todo o respeito, diretor, foda-se o que os outros pais pensam sobre os meus hematomas. Não foi o meu marido. Ele é um bom homem e jamais me machucaria. 'Ai' de quem denunciá-lo à polícia. Lei 'Maria da Penha' é o caralho! Eu vim pegar minha filha e pronto! Ponto final!
- Perdão digo eu...- Desculpo-me, arrependida. - Vc não tem culpa de nada. Só faz o seu trabalho. Eu te agradeço por querer o meu bem. Eu entendo que existem mulheres que apanham de seus companheiros e temem denunciá-los, mas, esse, definitivamente, não é o meu caso e, sinceramente, se eu fosse contar o que aconteceu, vc não acreditaria em mim. Logo, posso levar Antoine pra casa? Meu filho me espera. Meu sogro também. Somos uma família feliz e unida. Meu marido está viajando a negócios. Em breve, ele vai retornar. - Minto. - E não vai gostar dos rumores que essa gente desocupada fica espalhando por aí.
- Compreendo. - Conduzindo-me até o corredor do colégio com sua mão em minhas costas, ele sugere. - Vamos ao encontro de Antoine?
- Perfeito. Super apoio. Total.
Levo Cassie a uma de minhas aulas na 'Just Dance'. Extremamente bem recebida pela turma, ela tenta acompanhar a coreografia sempre aos risos. Errando, ela pouco se importa com a opinião dos outros alunos. Feliz. Ela está feliz e isso me faz feliz.
- Vc tem jeito pra dança, Cassie!
- Tia! Para agora mesmo! - Rindo, ela me faz rir. - Eu sou uma catástrofe! Mas não me importo! Meu bebê tá chegando e meu Liam...- Levando a mão à boca, ela me lança um olhar de espanto e corre até o banheiro da academia. Vomita antes de sair da sala de aula. Um, dois jatos de um líquido vermelho sobre o piso em madeira e os alunos se afastam. Eu a socorro, segurando seus cabelos e sua cintura, pedindo que ela confie em mim. - Tudo bem. Acabou, tia.
- Vc tá sangrando, Cassie!?
- Não. - Responde-me ela, ainda curvada para frente, envergonhada diante da turma. - A cor vermelha é por conta dos medicamentos da 'quimio'. Fica tranquila, tia. - Erguendo o tronco, ela olha ao redor e indaga. - Onde eu pego um pano úmido pra limpar essa bagunça?
- Na sua casa, bobona. Acha que eu vou deixar vc limpar isso aqui??? Principalmente, diante desses idiotas que estão longe de entender o seu sofrimento??? Nunca!!!
- 'De boas', tia...
- Eu limpo. - Afirma Sebastian surgindo do nada com um rodo e um pano úmido em suas mãos. Na outra, um balde com água limpa. - Estou acostumado. Vc não é a primeira, tampouco a última bailarina a vomitar em nossas aulas, Cassie.
- Vc sabe meu nome?
- Ouvi por aí...
- Para de limpar isso, Sebastian. Eu devo limpar. E, desde quando alunas vomitam em sua aula!? Isso é patético! Danço. Logo, vomito! É isso!?
Rindo, ele me conquista ao limpar, sem nojo, aquilo que Cassie vomitou. Num esforço conjunto, Cassie, ele e eu, deixamos a sala limpa e vazia. Os alunos se foram. - Obrigada. - Agradeço tocando em sua mão limpa após lavarmos tudo. - Isso foi muito importante pra Cassie. Ela tem passado por maus momentos.
- Eu entendo. Isso foi um prazer para mim, Adessa. Conte sempre com a minha ajuda. - Confusa, fixo meus olhos nos de Sebastian. Por segundos, posso jurar que Aiden está diante de mim, novamente. Dirigindo-se a Cassie, Sebastian comenta. - Fique à vontade para vir quando quiser. Se vc é amiga de Adessa é minha amiga também.
- 'Thanks'. - Diz Cassie, mordendo os lábios, encarando-me com sua peculiar expressão de quem vê algo onde não existe. - Até breve, Sebastian.
- See you soon...- Despede-se Sebastian carregando no sotaque irlandês. Sério??? Desde quando??? Ele, até hoje, fala nosso idioma com naturalidade!!! - Te vejo amanhã, Adessa?
- Talvez...- Sorrio, sem jeito. - Eu aviso se precisar faltar. Ok?
- Ok. - Carregando o pano de chão dentro do balde e a vassoura, ele caminha até a porta. Antes de partir, ele alerta. - Em breve, nos veremos novamente, baby.
- Corre! - Puxo Cassie até a porta de saída da 'Just Dance'. - Rindo e desconfiada, ela pergunta.
- O que houve, tia!?
- Não sei e nem quero saber. Só quero ir embora daqui. Vc tá bem?
- Sim. Vc pode me levar pra casa?
- Claro, querida. Vc deve estar exausta.
- Estou. Mas, em breve, curada desse câncer, vou recuperar minhas forças pra cuidar do nosso filho, tia.
- Como engravidou, Cassie? - Indago ao volante. - Sem útero? Já ouvi falar sobre essa tal de gravidez ectópica, mas, pra mim, era raríssimo.
- E é, tia! - Confirma ela, acariciando sua barriga ainda inexistente. - Depois daquela noite em que dançamos em sua casa, senti uma dor absurda. Pensei que morreria por conta do câncer. Fomos à emergência e, após vários exames, o próprio médico declarou: "É um milagre!"
- É mesmo...- Penso em Antoine e em como ela se sentiu no dia seguinte àquela noite. - Bendito o médico que optou por não retirar as trompas e ovários junto ao útero, né?
- Abençoado seja. Liam decidiu por mim. Até parece que ele estava adivinhando que nosso bebê fofinho estava a caminho.
- Certamente, ele adivinhou.
- Do que tá falando, tia? - Um olhar de esguelha e sorrio.
- Bobagem. Eu adoro esse clima de mistério no ar.
- Falando nisso, o tal de Sebastian tá afim de vc. Percebeu?
- Não seja ridícula, Cassie. Eu tenho idade pra ser a mãe dele.
- Ok. Eu não disse pra vc ficar com ele, mas, se 'der mole', ele te 'pega'. - Sorrio de sua gargalhada infantil. De súbito, ela para de rir e, arregalando os olhos, comenta. - Ele é muito parecido com o Aiden. Já notou isso?
- Sim. E não gosto nada disso. Quero distância dele. - Desbloqueando o celular, ela se encanta ao ler uma mensagem.
- Meu Liam tá dizendo que sente a minha falta, tia. Ele não é fofo? Ele tá me esperando em casa. Liam vai ser um pai maravilhoso.
- Não tenho dúvidas. - Uma pontada de ressentimento e comento. - Ele nunca vai te abandonar.
Uma das partes mais difíceis do dia é me deitar em nossa cama à noite. Ela me parece ainda maior sem ele. Leio um livro sem a menor atenção. Assusto-me com 'ringtone' do meu celular. "Número Confidencial". Com o coração acelerado, atendo.
- Vincenzo?
Ninguém responde. Sinto que há alguém do outro lado da linha. Ouço sua respiração ofegante.
- Vincenzo! - Insisto. - Fala comigo, amor. Eu não tô com raiva de vc. Volta pra casa. Por favor. Antoine vai dançar na próxima semana. Matteo não se cansa de chamar por vc, amor. - Um arquejo e o silêncio continua. - Por que faz isso? Pra que ligar se não quer voltar? Isso é tortura. Eu sei que é vc. Se esqueceu do meu super poder? - Ouço o que talvez seja um riso abafado por sua mão. Rolo no colchão, esperançosa. - Cassie tá grávida, amor. Mas, é lógico que vc já sabe disso. Vc e sua estúpida mania de ler pensamentos. Consegue ler os meus, idiota? Consegue sentir a dor que sinto? Se não retornar em uma semana, eu juro que ponho outro homem nessa cama e, só pra te avisar, a 'fila vai andar'. Vincenzo. Vincenzo!? Não! Não desliga! - Custo a acreditar que ele desligou. Cheirando seu travesseiro com seu perfume, choro até pegar no sono. Desperto ainda mais deprimida.
- Eu tenho certeza de que era ele, Enrico. Por que ligar se não fala nada?
- Só pra ouvir sua voz? - Sugere ele.
- Vcs têm se comunicado?
- Eu nunca te esconderia algo assim, filha. Sei que está sofrendo muito.
- Mais do que muito. Não tenho vontade de sair, Enrico. De ver gente e sou obrigada a ir ao tal ensaio de Antoine. Ver aquele bando de gente nojenta que me olha com desprezo.
- Já parou para pensar que talvez seja impressão sua? Talvez, eles te olhem com admiração?
- Duvido...- Tomando meu último gole de café, confesso. - Tive um pesadelo com Sweet hoje, Enrico. Sweet ou Isabella! Sei lá o nome dela! Ela quer o filho de volta! O que eu faço!?
- Tenho uma ideia...
- Qual!?
- Eu já decidi com que fantasia eu vou ao baile! - Anuncia Antoine, eufórica invadindo a sala de jantar. Enrico sorri para mim e comenta.
- Depois falamos sobre o assunto.
- Que assunto!?
- Sobre essa tal fantasia e sobre o celular ligado até tarde ontem á noite! Com quem falava, mocinha!? E, de quem era o celular se vc não tem um!? - Enrico baixa a cabeça enquanto Antoine ri e apontando em sua direção, o delata.
- Era dele!
- Foi para uma emergência, Adessa. - Desculpa-se Enrico, envergonhado. - Ela me disse que teria prova hoje e sua amiga a ajudaria a estudar.
- E vc acreditou, Enrico!? Vincenzo e vc são dois bobões nas mãos dela! - Um beijo em sua testa e digo. - Sem problemas. Não caia mais nessa. Ok? Tá rindo de que, Antoine!? Tem graça mentir para o seu avô!?
- Não, mãe. - Arrependida, ela o beija na testa e lhe pede perdão. - Não vai acontecer de novo, vovô. Eu juro.
- Não mesmo! O que disse ao tal de Thor!?
- É particular, mãe. Eu tenho direito à minha privacidade. - Indignada, com as mãos na cintura, argumento.
- Tu tem direito a ficar presa no seu quarto por dois dias inteiros sem TV ou Tablet! Que tal esses direitos!? - Em desespero, ela argumenta.
- Não posso. Ainda não conseguimos ensaiar, mãe! Tá tudo uma bagunça e o baile é na próxima semana! Gabriel precisa de mim!
- Pra quê!? Vc vai ser a coreógrafa!? Seus professores não têm domínio de turma, filha! Sinto muito em te informar que o tal baile será um fracasso se alguém capacitado não assumir o controle!
- Não sei o que fazer...- Diz ela, desanimada. - Eu queria tanto que desse certo.
- Tenho uma ideia.
- Qual, vovô!?
- Sua mãe!
- O que eu tenho a ver com isso, Enrico!? - Tomo Matteo de seus braços e o faço comer as últimas duas colheradas de banana amassada com aveia. Limpando sua boquinha, eu a beijo. Enquanto isso, Enrico cochicha no ouvido de Antoine que volta a vibrar. Aos pulos, ela comemora.
- Perfeito, vovô!!! Vc é um gênio!!!
- Oi??? O que tá rolando aqui???
Antes de me deixar perplexa, ela beija minha bochecha ao declarar.
- Vc será a nossa nova coreógrafa! Vai salvar o nosso baile, mamãe! O nosso baile!
- Eu???
Um olhar a Enrico e ele ruboriza.
- Eu só quis ajudar...
Estranhamente, tanto o corpo docente do colégio como os pais dos alunos aceitaram minha indicação como coreógrafa do baile à fantasia. Pergunto-me o que há de tão especial nesse baile. Não é Natal, Carnaval, Halloween ou Dia das Mães. Não é um baile de formatura. Enfim, dando de ombros, caminho, insegura até o pátio onde Antoine e Gabriel, de mãos dadas, me aguardam, ansiosos, juntos aos demais alunos. Vencendo a vergonha e a tristeza, pergunto.
- Qual é a intenção desse baile? Ainda não entendi.
- A gente quer se divertir, mãe. E, de quebra, mostrar que sabemos dançar. E isso, vc faz muito bem.
- Entendi. - Resmungo afastando Antoine e Gabriel. - Meninos de um lado e meninas de outro, por favor. - Gabriel sorri para Antoine enquanto a professora de Artes Cênicas, com um ar de soberba, me explica o sentido de tudo.
- Gostaria de que cada um demonstrasse suas habilidades e se desapegasse de preconceitos arraigados. - Então vcs chamaram uma stripper para tratar de preconceito!? Uma puta de quem vc quer distância!? Perfeito! - Vc compreende?
- Claro. - Minto. Na verdade, com o valor que pagamos pela mensalidade desse colégio, o que vcs querem é um motivo para gastar ainda mais. - Sem problemas. Tenho uma coreografia montadinha em minha cabeça. - Empurrando-a para longe do grupo, peço. - Deixa comigo. No que depender de mim, o baile será um sucesso.
- Não quer ajuda? - Sua??? Fala sério!!! - Procurando, intencionalmente, agir de maneira oposta às suas atitudes, refuto num tom displicente.
- Não. Valeu. Assim que terminar, eu te chamo. Ok? - Observando-me, ofendida, pergunto. - Entendeu ou quer que eu desenhe?
Antoine gargalha e, ao sair da formação, vai até Gabriel e cochicha.
- Essa é a minha mãe.
- Hilária. - Diz ele.
- Em suas posições! - Ordeno, incomodada com o 'grude' entre ambos. - Já ouviram falar em 'Back Street Boys'!?
- Aquilo que vc fumou, mãe!? - Inspiro fundo e, envergonhada, minto.
- Eu não fumo, filha!
- Mas naquela noite lá em casa, a Cassie disse que 'beck' era um grupo antigo. Lembra? E vc estava fumando. Um cigarro pequeninho que vc escondia.
- Antoine...- Rosno. - Podemos começar o ensaio ou vc pretende tomar mais do meu tempo?
- Foi mal.
- Ela é brava. - Comenta sua amiguinha.
- Vc não viu nada. - Cochicha Antoine.
- Vamos ao ensaio!? Se é demonstração de habilidades o que a versão feminina de 'Severo Snape' do 'Harry Potter' deseja, é o que ela vai ter, meu bem.
Apesar de antiga, a turma adorou a música.
"Everybody" fez até os mais tímidos moverem os quadris. Levei muito tempo até que todos aprendessem a coreografia difícil até mesmo para um adulto. Mas, ao final do dia, exaustos, todos estavam saltitantes e confiantes. Mais relaxada e entrosada, alerto.
- Esse é só o primeiro ensaio! Não faltem aos outros ensaios e treinem em casa!
- Woohoo! - Alguns gritam enquanto correm até o portão da saída. Um aperto no peito e, sentindo falta de Vincenzo e, um ranço cada vez maior por ele não estar aqui, levo Antoine até o carro. No vidro embaçado pelo frio, um coração desenhado. Olho ao redor e, estupidamente esperançosa, ainda procuro por ele. Frustrada, entro no carro e ainda arrisco um olhada no retrovisor externo. Nada.
- Covarde...
- Quem, mãe? - Pergunta-me Antoine no banco traseiro. - O papai?
- Não. - Minto. - Alguém da academia. Vc não o conhece. Tem falado com seu pai por telepatia?
- Não...- Um profundo suspiro e ela desabafa. - Tô com saudades. Ele vai voltar logo da viagem, mãe? Falta pouco tempo para o baile. - Tentando não chorar, volto a mentir.
- Não se preocupa. Ele vai estar presente no dia de seu grande baile.
Não posso negar que os ensaios no colégio e o meu trabalho na academia têm tomado tanto do meu tempo que quase não penso nele. Quase. Vincenzo tem pago todas as contas em dia e deposita em minha conta muito mais do que eu gastaria em um ano. Talvez, ele pense que seu dinheiro compre a minha paz.
Alongo-me na barra diante do espelho após a aula. Pela primeira vez, sinto-me orgulhosa de mim mesma. Estou dando aulas de dança! Eu que sempre sonhei em ser uma aluna, agora, sou professora!
Enrico me acompanha ao baile. Liam e Cassie fazem questão de ocuparem os melhores lugares nas arquibancadas. Matteo no colo de Cassie, a faz rir como nunca. Evito tocar em seu corpo. Não quero...não posso acreditar que ela esteja perdendo mais uma vida dentro de si. Graças ao tumulto entre pais, professores e alunos agitados, Liam não ouve meus pensamentos intrusivos.
- Me deixa voltar pra casa?
Comemoramos o sucesso do baile em uma cantina aconchegante. Em nossa vasta mesa, a alegria é contagiante. Ao lado de Vincenzo, grudada em seu braço, observo a inocente conversa entre Gabriel e Antoine. Ambos comentam sobre os passos da coreografia. Liam e Cassie riem das piadas de Enrico, um tanto embriagado pelo vinho tinto. Matteo, seguro, em sua cadeirinha com bandeja, baba em seu mordedor de silicone. Plenamente feliz, cochicho no ouvido de Vincenzo.
De magrugada, aos prantos, Cassie me liga. Ergo-me da cama e, sentada à beira do colchão, desesperada, pergunto.
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