segunda-feira, 8 de julho de 2024

EPÍLOGO

 





Abro os olhos. Encaro o teto do quarto, tentando não me recordar do sonho. Um sonho ruim. Chove lá fora. Dentro do quarto, faz frio. Meu coração ainda bate. Devo comemorar? Creio que sim. Pela segunda vez, ele quase para de bater. Seu calor me aquece assim que o vejo correr em minha direção e saltar em minha cama. Após encher meu rosto de beijinhos, ele ordena.
- Levanta, mãe. Não quero me atrasar. 
- Ah...tá. - De pé, em uma reverência dramática, aviso. - Em dez minutos sua escrava estará à sua disposição, 'Sir'!
- Matteo, mãe. Matteo Rossi. O Rossi é do meu pai.
- Desde quando vc aprendeu a falar tão bem assim? Preferia o seu clássico: 'Mamãe dodói'. - Rindo, ele me abraça enquanto resmungo. - Um filho prodígio. Era tudo o que me faltava. A quem vc puxou?
- Ao meu pai e à maninha. - Indignada, pergunto enquanto faço-lhe cócegas na barriga. 
- E eu??? Eu não sou inteligente???
- É sim! - Grita ele, aos risos. - Mas eu sou mais do que vc! - Escapando de mim, ele corre até a cozinha onde se joga em seu colo.
- Esse aqui vai dar trabalho. - Comento diante de seus lindos olhos claros e tristes. Orgulhoso, à mesa, ele dramatiza.
- Isso porque vc não imagina o que vem por aí!
- Não me assusta. - Sentado à mesa do café, aprecio suas bochechas rosadas. Beijo o dorso de sua mão e, pela enésima vez, agradeço. - Não sei o que seria de mim sem vc, Enrico.
- Não seria. - Intromete-se Matteo. - Vc estaria morta na areia da praia.
- Filho! Vc só tem três anos! Como pode se expressar tão bem assim!? E ainda toca violão!?
- Crianças prodígios, filha. Além de uma pitadinha de Magia. Digamos que ele tenha um sangue raro.
- Infelizmente. - Resmungo sentando-me ao lado de Matteo. - Se eu pudesse, faria transfusão de sangue total nele. Nada sobraria do tatatatatataravô.
- Sobraria a parte do pai, filha. - Insinua Enrico.
- Desconheço.
- Quando vai tocar no assunto? - Ao seu ouvido, sussurro.
- Nunca.
- Compreendo. - Sorrindo, ele me passa o bule de café e o adoçante. Matteo, de boca cheia, comenta.
- Mamãe não fala o nome dele. Acho que ela tem medo.
- Não tenho. Ele foi 'pro' céu, filho. Vc sabe disso. Eu já te expliquei.
- 'Pro' céu? Tá bom...- Zomba ele abrindo um dos sorrisos que mais me encanta: o inocente. - Onde fica isso?
- Bem bem longe daqui! Ok? Coma o pão e vamos embora, Matteo!
- Por que eu não posso falar dele? Eu quero saber como ele era. - Olhe-se no espelho, meu amor. - Ele era engraçado?
- Não! - Minto. - Nunca foi! Come isso!
- Eu me lembro de ter rido dele, vovô.
- Quando? - Indaga Enrico, entusiasmado. - Me conta. - Gargalhando, Matteo revela.
- Ele estava pelado e me disse que tinha um 'pintão'! - Apoio meu cotovelo na mesa e escondo minha testa com a mão. Engulo minha vontade de rir e arranco de minha mente, essa imagem. Uma das últimas. - Não se lembra, mãe!?
- Não. - Minto novamente. Enrico me encara com os olhos marejados enquanto volto a mentir. - Vc deve ter imaginado isso.
- Não mesmo. Eu vi. O 'pinto' dele era grande. - Partindo, ao meio, a gargalhada de Enrico, ordeno.
- Para! Chega de falar nisso! Ok!?
- Ok...ok. - Controlando-me, sugiro.
- Toma seu café e vamos embora. 
- Vovô quer ouvir uma música, mãe.
- Depois, filho! Seu avô pode esperar! Não pode!?
- Claro. - Concorda Enrico, apreciando o neto. Não imagino nossas vidas sem Enrico. Ele voltou no momento exato sem que eu saiba o porquê. Ainda não conversamos. Quase dois anos se passaram e seu retorno, para mim, ainda é um enigma. Uma piscadela para mim e ele orienta. - Obedeça sua mãe, meu neto amado.
- Peraí, vovô. - Saltando da banqueta, reclamo do violão no colo de Matteo. - Eu sei que é maior do que eu, mãe. Mas eu consigo tocar. - Alega ele enquanto tiro a louça da bancada e a levo até a pia. Uma olhadela pela janela da cozinha e revejo a casa na árvore onde, um dia, o filho de Enrico dormiu. Arquejo, abrindo a torneira. A água escoa pelo ralo enquanto obrigo-me a pensar em minhas tarefas do dia, evitando as lembranças dos sonhos. Os sonhos borrados de vermelho sangue. De costas, ouço os primeiros acordes do violão de Matteo. Sorrio. Meu filho tem talento. Putz. Eu conheço essa música. Sim! Eu conheço essa música! 
- Filho!?
- O que, mãe!? Não me assusta! - Ajoelhando-me diante dele, ainda com as mãos molhadas, impedindo-o de prosseguir, indago. 
- De onde tirou essa música?
- Da tia. Ela pediu. 
- O que tem essa música, filha? 
- 'Stuck on you' foi a canção que os uniu, Enrico. 
- Eles quem, filha? Por que está tremendo?
- Eles dançaram juntos! Foi Antoine quem os reconciliou! No meu antigo quarto de dança!
- O vovô quer me ouvir, mãe. Para de falar. - Tomando o violão de suas mãos, eu o encaro e, apavorada, volto a perguntar.
- Que tia pediu pra vc tocar essa canção, filho!? Da escola!? - Abocanhando a maçã sobre a fruteira, ele responde, tranquilamente.
- A que chora.
- Quem chora?
- Calma, filha. - Pede-me Enrico, segurando-        me com suas mãos em meus ombros. - Ele vai ficar com medo.
- Eu estou com medo, Enrico! - Protesto de costas para ele. - Que tia é essa!? Por que ela chora!? - Uma outra mordida e ele esclarece, de boca cheia.
- Ela chora pelo filho. Ele tá perdido. - Dando de ombros, Matteo esclarece. - Eu já falei pra ela que não sei de nada, mas ela continua chorando. Acho que a barriga dela deve pesar.
- Que barriga!? - Cochichando, ele responde.
- Ela tá grávida, mamãe. - Tonta, caio de bunda no chão. Matteo ri de mim sem compreender os riscos à minha frágil saúde. Recostando-me no fogão, com a voz trêmula, peço.
- O nome dela, filho.
- Sei não, mãe. Ela chora muito. Deve ser por causa do tombo.
- Tombo?
- Da janela. - Cobrindo meu rosto com as mãos, sussurro.
- Não pode ser, Jesus.
- Não, mãe. Ela não tá com Jesus não. 
- Por que diz isso? 
- Porque ela tá suja e triste. Meu avô disse que Jesus é bom. Então, se Ele é bom, não vai deixar a tia suja e fedida. Né?
- Não. - Concorda Enrico lançando-me um olhar preocupado. - Tem razão, meu anjo. Vamos orar por ela. - De súbito, ergo-me do chão. Cambaleando, abro as gavetas dos armários à procura de meus remédios. Meu coração ribomba em minha garganta quando Enrico, gentilmente, me faz sentar de volta à mesa. Tomando de sua mão as pílulas, eu as engulo com água. Respirando fundo, lamento.
- Outra vez, Enrico!? Mais problemas!? Eu juro que não vou suportar!
- Vai dar tudo certo, filha. Confia em Deus.
- Não. - Rosno. - N'Ele eu não confio. Vc sabe disso. Desde que...
- A tia também não gosta de Deus. - Sem conter meu desespero, bato com a mão espalmada sobre a bancada, chuto seu violão e ordeno, aos gritos.
- CHEGA! ESQUEÇA ESSA TIA! AQUI, ELA NÃO ENTRA MAIS! ENTENDEU!?
Chorando como a criança que ainda é, ele esconde o rostinho entre os braços sobre a mesa. Soluçando, ele se defende. 
- Eu não fiz nada...- Arrependida, eu o abraço forte e peço desculpas.
- Olha pra mamãe, filho. Olha.
- Eu não fiz nada, mãe.
- Eu sei. Eu sei. - Seus olhos são idênticos ao do pai. Azuis e plácidos. - Vc não tem culpa.
- Foi ela. Ela fica batendo na janela pra entrar. - Ainda mais aflita, chorando em seu ombro, imploro.
- Não abra a janela, filho. Vc me entendeu?
- 'Uh huh'.
- Quando ela vier, use seu anel de proteção. Ok?
- O da maninha? - Enxugando seu rostinho, sorrio.
- Isso. - Orgulhoso, ele me mostra o anel pendurado em sua corrente de ouro, sob a blusa. - Ele mesmo. Mostre o anel da maninha a essa moça e peça pra ela ir embora...pra sempre. Entendeu?
- Beijando seu rostinho, eu o aperto em meus braços e, atordoada, aviso, olhando ao redor. - Ninguém mais vai se meter em nossa família! Ninguém! Deixa a gente em paz!
- E o vovô?
- Só o vovô. - Confirmo, insegura. - O vovô, vc e eu. Pra sempre. Juntos.
- Vovô! Esse anel é mágico!
- Eu sei, filho. Eu sei. 
Observando o sorriso triste de Enrico, percebo que ele não acreditou em uma só palavra que acabo de dizer.
E nem eu.






Antes de trabalhar, levo Matteo ao seu colégio,  especializado em crianças prodígios. Impressiona-me a quantidade de crianças que, como ele, não se encaixam em outras escolas regulares. Impressiona-me, igualmente, o alto valor da mensalidade paga por Enrico. De onde vem seu dinheiro? Não faço ideia. Eu posso pagar com o que ganho, mas ele insiste...
- Falando sozinha de novo, mãe?
- Tô tentando me lembrar do que tá faltando lá em casa. Preciso fazer compras.
- Vc disse que é feio mentir.
- Não estou mentindo. - Minto, olhando-o pelo retrovisor. Curiosa, indago. - Vc não lê pensamentos! Lê!?
- Não. Meu pai lia, mãe?
- Não me lembro. - Sentado em sua cadeira, ele reclama, revirando os olhos.
- Por que eu não posso falar do meu pai? Isso é um saco. - Retirando seu cinto de segurança, resmungo.
- Se continuar revirando esses olhos pra mim, vou tirar seu violão. Ouviu?
- Claro. Eu não sou surdo. -
- Rapazinho. - Rosno. - Tá passando dos limites.


- Eu sei. - Saltando do carro, com sua mochila nas costas, ele ri enquanto fecho a porta e, de mãos dadas, eu o levo até o portão onde um homem nos aguarda com um sorriso incômodo no rosto. Eu o cumprimento friamente. Agachada, deixo-me beijar por Matteo que corre em direção aos amiguinhos na grande sala colorida, repleta de ferramentas que estimulam a criatividade. Inclusive, notebooks. Não seria exagero?


- Seu filho é extremamente inteligente. 
- Eu sei. - Admito, erguendo uma de minhas sobrancelhas. Reativa, encarando o olhar enigmático do homem, prossigo. - E sensível também. Ele reconhece o Mal à distância.
- Somos dois. 
- Somos três. - Advirto-o enquanto observo um dos alunos, distante do grupo liderado por Matteo. - O que faz aqui?
- Sou o diretor.
- Mentira. Eu conheço a diretora.
- Ela precisa de ajuda.
- Em quê!?
- Não é da sua conta. - Inflando minhas narinas, refuto.
- É sim! Meu filho estuda aqui! Por que dois diretores em um colégio!?
- Porque eu cuido dos problemas dos meninos. Ela cuida das meninas. Está bom pra vc?
- Não. - Rosno, afastando-me dele. Ele se posiciona ao meu lado enquanto observo os alunos da sala de Matteo. Sem perceber, comento. - Aquele ali me parece mais novo do que os outros.
- E é. Tem quase dois anos. Inteligente, mas, extremamente recluso. Quase não se ouve a voz dele. - Sem tirar os olhos do menininho franzino com cabelos castanhos, pergunto.
- Como ele se chama? 
- Não me lembro. São tantos...- Um sorriso no canto de sua boca e meu ranço pelo novo diretor se estabelece. - Só um minuto. - Ouço o 'ringtone' de seu celular berrar uma das canções do 'The Rolling Stones' enquanto ele se afasta de mim e, num tom baixo, parece conversar com alguém. 
Sem querer me afastar de Matteo e do menininho solitário, fico de pé, sob o batente da porta. Distraio-me. A voz melodiosa invade meus ouvidos, relaxando meus nervos.
'Vc me parece sofrer'.
'E sofro'. 
'Ainda pensa nele?'
'O tempo todo. Eu queria tanto me esquecer, mas não consigo. Toda vez que olho Matteo, eu me lembro dele. Dói tanto'.
'Talvez, eu possa te ajudar'.
- Quem!? - Desperto encarando-o ostensivamente. - O que faz aqui!?
- Sou o diretor. Pensei em me despedir, querida.
- Vc falou comigo!?
- Estou falando.
- ANTES!?
- Mantenha a calma, senhora. Está assustando as crianças.
- Vc me assusta! O que sussurrou em meus ouvidos!?
- Acabei de chegar. Eu já disse. - Com meu indicador em seu peito, aviso.
- Vou embora. Se algo acontecer ao meu filho, eu te mato.
- Nossa Senhora. - Diz ele revirando os olhos. - Quanto drama. Seu filho está em ótimas mãos.
- Assim espero! - Recuo sem desviar meus olhos dos dele até alcançar Matteo que, sorrindo, me abraça. Em seu ouvido, cochicho. - Fica longe dele. Ok?
- Ele é mau, mãe?
- Não sei. Acho que não. Mamãe tá doida. - Rindo, ele concorda.
- Vc sempre foi doidinha, mas eu te amo.
- Eu te amo mais. - Beijo sua bochecha e aconselho. - Seja amigo daquele menininho ali. Ele precisa de um bom amigo. Vc não acha?
- Acho. Já tentei, mas ele não fala. Será que ele não tem língua? - Rindo, respondo.
- Tem, filho. Ele é tímido. Fala com ele. Ok?
- Tá bom. - Resmunga ele. - Vou tentar...
- Ok. Até daqui a pouco.

Ainda cismada, procuro pelo diretor no corredor. Não o encontro. Dou de ombros e sigo até o carro. Ligo o som. Coincidência ou não, ouço a mesma canção do celular do diretor. Ouço a letra que jamais tive vontade de traduzir. Existem músicas que canto há séculos e que, até hoje, desconheço a letra. Gosto da forma desleixada como Mike Jagger a canta. Tem algo de bizarro, mas...tudo bem. Afinal, preciso me descontrair para o que vou fazer daqui a alguns minutos.


Dirijo até o galpão de boxe. Estaciono. A imagem do pai de meu filho surge diante de mim. Suado, sorrindo...
- João!?
- Que bom que veio, Adessa. - Abraçando-me com força, ele me transmite a paz que preciso a fim de me reequilibrar e ouvir o que ele tem a me dizer. - Sente-se porque, eu preciso te contar a verdade, amiga.
- Que verdade?
- Vc tá abatida.
- Não tenho tido tempo pra tomar sol.
- Eu te conheço, Adessa. Vc é a madrinha da minha filha. Sei quando está triste.
- Como estão as crianças? - Desconverso. Ele sorri e responde.
- Bem. Graças a vc e ao Vincenzo.
- Não entendi.
- Então, sente-se. Eu vou te contar tudo.
- João, se for algo sobre ele, eu não quero ouvir. - Forçando-me a me sentar em uma das cadeiras do escritório, ele me pede com carinho.
- Por favor. Foi o último pedido do meu irmão antes de morrer. 
- Não chora.
- Não consigo. Eu sequer pude ver seu corpo. Isso não é justo. 
- A vida não é justa, João. Eu não quero chorar. Para.
- Ainda dói muito, né?
- Já doeu mais. - Minto. Dói, a cada dia, um pouco mais. - Me conta logo. Tenho que trabalhar. Afinal, preciso sustentar meu filho. O pobre do Enrico tem gasto mais do que deveria comigo e com seu neto. - Atordoada, enfatizo. - Isso não é justo! - Evito olhar a foto sobre a mesa. Ele, ao lado de João, ambos sorrindo. O pai de meu filho ostenta, orgulhoso, o cinturão de ouro. Eu estava lá. Eu estava lá! - Enrico não trabalha, João. - Um tapa no porta-retratos e já não o vejo mais. - Foi mal. Não gosto de nada que me faça lembrar dele. 
- Eu entendo. Ele te amava tanto...- Uma risada histérica e assusto João. Amava tanto que me largou por um bando de vermes saídos do inferno. - Vc tá bem?
- Não. Perdão. Ainda tô processando tudo.
- Ele me pediu pra te entregar isso.
- Um envelope? O que tem aqui?
- Não vi. Ele me pediu pra te entregar após um ano de sua partida. Àquela época, imaginei que ele viajaria. Morrer!? Nunca! - Pobre João. Ainda sofre por ele. Eu o abraço enquanto tento não chorar. Uma avalanche de memórias de João junto a ele invade minha mente. Chego a ouvir sua gargalhada espontânea ressoar no ambiente. Desorientada, empurro João e lhe peço perdão...novamente. - Preciso sair daqui. - Aviso,  inspirando e expirando num desespero. A claustrofobia se aproxima. João toca em minhas costas e, como 'o outro', me orienta.
- Inspira em quatro tempos. Segura o ar nos pulmões em quatro tempos e expira em quatro tempos. - De olhos fechados, eu o vejo diante de mim, ajoelhado, preocupado, atencioso. Seus olhos azuis...- Melhorando?
- Sim. - Minto ao abrir os olhos. - Só quero sair daqui. O que mais ele disse antes de...partir? - Enxugando suas lágrimas, João revela.
- Ele me doou metade da academia e depositou em minha conta bancária, um valor mais do que suficiente para pagar os estudos de meus filhos até se formarem. Era o sonho dele ver os filhos de vcs se formando. 
- Para de chorar, João! - Ordeno, resfolegante. Era o meu sonho também! Merda! Por que vc me abandonou, covarde!? - Por favor. Para de chorar. Eu não quero falar dele. - Puxando uma cadeira, ele se senta diante de mim e, recomposto, afirma. 
- Eu nunca conheci ninguém como ele, Adessa. Antes do fim, ele me alertou. Parece que ele enxergava o futuro. Ele sabia que vc iria ter raiva dele. Ele escreveu tudo em uma carta. A mesma dentro desse envelope. Seja lá o que tenha acontecido, leia. Por favor. Agora, percebo que ele sofria e escondia seu sofrimento de mim. Vc não percebeu os sintomas da doença?
- Doença? - Egocentrismo era sua doença. - Não sei. Talvez. Do que tá falando? - Jogo, displicentemente, o envelope em minha mochila e, abraçando João, sussurro.- Vc foi seu único amigo  na Terra, João. Obrigada. 
- Adessa. - Observando-me atentamente, ele pergunta. - Vc não sabia. Sabia?
- Do que, João? - Abro a porta e, antes de sair do escritório, ouço João revelar.
- A doença, Adessa. A síndrome retornou. Com força. - Puxando o ar pela boca, cambaleio. João me ampara. De volta à cadeira, eu o escuto, incrédula. - Ele me disse que havia se curado. Ele mentiu. A doença avançou, Adessa. Ele me mostrou os exames e me pediu segredo. Ele sofreu em silêncio porque não queria te ver sofrer.
- Impossível. Ele foi curado. Eu me lembro.
- Não há cura, Adessa. Nós sabemos disso. Não sei como ele viveu bem durante tanto tempo, mas, o fato é que a doença, por algum tempo, latente, retornou. Ele já não conseguia lutar e sabia...
- Para. Não faz sentido.
- Os exames estão no envelope. Eu imaginei que ele viajaria a fim de procurar ajuda médica, mas ele não aguentou. Eu via meu amigo urrar de dor sem poder fazer nada.
- Urrar de dor?
- Perdão, Adessa. Ele me implorou pra não te contar nada. Ele te amava muito.
- Não...- Refuto movendo a cabeça. - Ele foi curado. Eu vi.
- A 'Síndrome do Pugilista' não tem cura, Adessa! Como ele conseguiu viver tanto tempo sem dores ou paralisia nos membros ou mudança de humor!?
- Ele...ele...foi...curado. Eu vi. Algo fora do comum aconteceu e...- Segurando-me pelos braços, ele me encara com um olhar compassivo antes de me desorientar por completo. 
- Ele sofria muito e escondia de vc. Como? Eu não sei. Ele foi forte até o fim, minha amiga. Foi por isso que ele se afastou. Vcs viajaram no momento em que ele mais sofria. E eu não pude fazer nada. Ele queria desistir de tudo, mas não desistiu...por vc.
- Chega.
- Meu irmão lutou até o fim, Adessa. Pela família. Por vc. Aonde vai? Vc não está bem!

- PARA COM ISSO! NÃO FAZ SENTIDO! - Grito antes de correr até o carro. João, atormentado, me segue enquanto manobro o carro e fujo dele. Sua expressão era de dor. A mesma dor que me comprime o peito e me faz parar no acostamento de alguma estrada onde, trancada dentro do carro, enfim, choro compulsivamente, de raiva, exaustão e saudade. Recostando a testa ao volante, concluo.
- Rafael não o curou. Por vingança, o arcanjo não o curou. Maldito seja.


- Mãe, vc sabe o que essa música significa, né?
- Que música, filho? - Pergunto ao volante após sua saída do colégio. Ainda abalada, olho para minha mochila, no banco do carona, como quem olha para uma serpente prestes a atacar. - Não entendi.
- A que vc está ouvindo, mãe...- Resmunga ele, voltando a revirar seus lindos olhos. - Vc tá sempre aérea.
- 'Aérea'? De onde vc tirou essa palavra? Essa é nova. 
- O diretor do colégio me ensinou. Ele disse que meu novo amiguinho é 'aéreo'. Igual a vc.
- Eu te pedi pra ficar longe dele, filho!
- Do meu amiguinho!?
- Do diretor! - Pelo retrovisor, eu o observo enquanto ele se defende.
- Eu fiquei, mãe. Foi ele quem me procurou ao final da aula e me perguntou sobre vc.
- Sobre mim??? - De súbito, sem sinalizar, movo o volante para a direita e estaciono em uma calçada. Ouço os xingamentos de outros motoristas. Em outra época, eu os xingaria de volta. Agora, eu os deixo ir. Tudo perdeu a graça. Ele, o pai do meu filho, não está aqui para rir de meus impulsos destrutivos, de minha insuportável impulsividade. A impulsividade que matou Antoine. Que o tirou de mim. Movendo meu tronco para trás, encaro Matteo no banco traseiro e, inflando as narinas, indago. - O que ele te perguntou exatamente, filho??? 
- Se vc continua a dar aulas na academia de dança. Achei esquisita a pergunta. Como ele sabe que vc trabalha lá? Não sei porque ele me perguntou isso. Daí, eu não respondi.
- E o que esse diretor tem a ver com isso??? - Dando de ombros, ele responde.
- Sei lá! Ah! Ele me perguntou se vc chora à noite! Vc chora à noite, mãe!?
- Não. - Minto. Todas as noites até pegar no sono. - Filho da puta! Quem ele pensa que é!?
- Mãe! Vc disse um palavrão! A maninha não gosta!
- Não gostava! - Corrijo-o, confusa. 
- Não gosta. - Refuta ele, num sussurro. Atordoada, eu o confronto. 
- Por que disse 'gosta' no presente!? Vc tem falado com ela!? Filho! - Exalto-me. - Fala pra mãe! Não me esconda nada! - Suas mãozinhas em meu rosto me fazem olhar diretamente em seus olhos quando ele, com ternura, elucida.
- Mãe, ela não gostava quando estava entre nós. Eu ria muito quando ela brigava com vc. De onde ela estiver, ela deve continuar não gostando. Né?
- Como pode saber disso? Como pode falar tão bem!? Como pode ser tão perspicaz!? Vc só tem...
- Três anos...- Resmunga ele. - Eu sei. Não sei como eu sei. Só sei que eu sei. 
- Ele falava isso!
- Quem? - Seu pai. Meu Deus. Seu pai falava assim! - Mãe!? Quem falava assim!?
- Ninguém...- Minto. Puxando-o contra mim, eu o abraço com medo e força. Ele beija minha bochecha e promete. 
- Vai dar tudo certo, mãe. Fica calma. Já prestou atenção à letra dessa música? - De volta ao meu banco, murmuro.
- Que diabos de música é essa!? Tanta coisa importante acontecendo e vc se preocupando com letra de música!? Nem eu era nascida quando os 'Rolling Stones' lançaram essa canção! - Alcançando meu celular no banco do carona, ele manuseia o teclado, com extrema habilidade e rapidez e, dramatizando, ele aponta a letra da canção traduzida em um site. - O que é!?
- Ela não é tão inocente quanto vc pensa, mãe. - Irritada, confusa, desorientada, reclamo.
- Tô sem meus óculos, bosta! - Expressando absoluto autocontrole, ele faz a música tocar novamente e a traduz, simultaneamente. 
- 'Prazer em te conhecer. Espero que adivinhe meu nome'
- E daí? - Giro a chave na ignição enquanto ele cantarola a canção até eu sentir um jato de adrenalina percorrer meu corpo e, enfim, lhe dar atenção. - Repete.
- Que ele esteve presente à  crucificação de Jesus?
- Não! Seu nome! Fala o nome dele!
- Lúcifer. O cara da letra diz que se chama Lúcifer. Meu avô disse que ele é mau, mãe. Vc não deveria ouvir essa música. Ouvir e prestar atenção à letra. - Um suspiro e murmuro diante do semáforo.
- É o 'ringtone' do celular do diretor.


Jogo o envelope sobre a cama. Desorientada e curiosa, caminho pelo quarto como uma leoa enjaulada, sem tirar os olhos do papel pardo. Corro até o quarto de Matteo. Ele dorme tranquilo em sua cama. Ele desistiu do berço desde que tudo aconteceu. Ele parece ter se transformado em outra criança desde que tudo aconteceu. Mais forte, inteligente, independente. Chego a ter medo de tanta independência.
- Bobagem, filha.
- Quer me matar de susto, Enrico?
- Mais uma taça de vinho e, talvez, vc se mate.
- Me deixa. O dia foi difícil. Eu preciso aliviar a tensão. - Enchendo outra taça, eu a empurro sobre o balcão e ordeno. - Beba! Faz bem ao coração! - Rindo, ele a aceita.
- Tem razão. O que temos a perder?
- Nada. - Lamento. - Fala.
- O quê?
- O que veio fazer aqui? Qual a sua nova missão, Enrico? Vc surgiu no exato momento em que ele partiu. Não me faça de boba por mais tempo. Fala. Fala tudo. - Sob o lustre da cozinha mergulhada na penumbra, ele me encara com seus olhos que sorriem e, enfim, revela.
- Ainda não acabou, filha.
- Oi??? O que não acabou???
- Minha missão. - Um gole no gargalo da garrafa de vinho e, com a voz entaramelada, pergunto.
- E qual seria a sua missão, Enrico!?
- Proteger a minha família.
- Nós!?
- E eu tenho outra?
- Vc é um arcanjo, Enrico! - Num tom de deboche, prossigo. - Um arcanjo que, segundo 'aquele lá', é da classe dos 'missionários'. Sua missão é ajudar a todos os seres humanos desse planeta. Não especifi...expe...especi...!
- Especificamente. - Ajuda-me ele, retirando a garrafa de minha mão, contra minha vontade. - Creio que já chegou ao seu limite, filha.
- Porque não consigo falar 'especificamente'!? Bobagem! - Erguendo-me da banqueta, num repente, cambaleio. Num gesto de mão, proíbo Enrico de se levantar e me ajudar e agarrando-me à pia, protesto. - Estou muito bem pra quem passou pelo que passei, Enrico! Só eu sei o que eu vi...o que senti...- Engolindo em seco, prendo o choro ao olhar para a casa da árvore, iluminada pela lua. - Vc sabe. Graças a vc, eu não morri naquele dia. Meu filho não ficou órfão de mãe. Pai, ele não tem mais. Covarde...
- Tem. - Refuta Enrico, sereno, sentado ao balcão. Adoraria arremessar uma das taças sobre ele, mas, Enrico me desarma com seu sorriso triste e sincero. Porra de arcanjo missionário. - Ele tem um pai vivo, filha. Em um outro universo, mas tem.
- OI???
- Não somos os únicos, filha. Existem outros planetas em outros universos.
- E o seu filho escolheu abandonar a família pra conhecer um deles???
- Filha...
- FODA-SE!!! NÃO ACREDITO EM UNIVERSOS PARALELOS!!!
- Deveria. - Sugere ele conduzindo-me até a sala enquanto choro, completamente bêbada e devastada. Seguindo em direção ao meu quarto, ele prossegue. - Sei que para vc, é difícil acreditar. Por outro lado, para quem já lidou com anjos, arcanjos, demônios, espíritos, bonecas amaldiçoadas e educou um encantador querubim, talvez não seja tão difícil assim. 
- Ele voltou, Enrico. - Confesso, amedrontada. - Ele tocou em meu filho.
- Quem? 
- Lúcifer. Eu o vi. Eu senti que havia algo de errado no diretor do colégio assim que o vi. Então...veio a música...e a tradução...e os "Rolling Stones"
- Filha, se acalme.
- 'Pleased to meet you. Hope you guess my name', Enrico!!! - Um sorriso no canto de seus lábios e ele declara.
- Lembro-me dessa canção. Era uma das preferidas de Celeste.
- Claro! A vaca reverenciava Lúcifer! - Exalto-me debaixo do chuveiro, com roupa e tudo. Enrico ri de mim enquanto concluo minha teoria. - Durante o período em que o tal diretor, com um olhar sinistro, falava comigo, tocou essa música. Era o 'ringtone' de seu celular! Absurdo! Depois, eu a ouvi em meu carro! Depois, Matteo a ouviu dentro do mesmo carro! Isso não é coincidência! É o Universo mandando uma mensagem clara e objetiva de que Lúcifer é o diretor do colégio de Matteo! ELE TOCOU EM MEU FILHO, ENRICO! 
- Calma, Adessa. Isso não significa nada.
- CACETE! VC É EXATAMENTE IGUAL AO SEU FILHO! NÃO ENXERGA MALDADE EM NADA!
- Meu filho, seu marido? O pai do seu filho? Por que não diz seu nome?
- Nunca! Ele não é real! Se eu disser seu nome...ele...
- Volta a ser real em sua vida.
- É...- Enrico fecha o registro da torneira enquanto escorrego, recostada à parede, até o chão do box. Ensopada e com frio, sussurro. - Melhor não falar o nome dele.
- Compreendo. - Estendendo-me os braços, ele sugere. - Que tal sairmos daqui? Vc se seca, veste uma roupa quentinha e, depois, se quiser, conversaremos sobre o mistério dos 'Rolling Stones'?
- Eu queria te odiar, Enrico...- Rosno antes de me deixar cobrir pela toalha. - Mas não consigo. Igualzinho ao filho. Que nojo.


Abro a gaveta do criado-mudo e revejo o envelope ainda lacrado. Tento, pela enésima vez, abri-lo, mas não consigo. Não tenho coragem. Fecho a gaveta. Levanto-me da cama, tomo um rápido banho e me visto. Penteando os cabelos, penso no que farei ao reencontrar o diretor e desmascará-lo diante de todos. Matteo me aguarda na cozinha, ao lado do avô. Determinado a ir comigo, ele inicia uma discussão.
- Não vai! 
- Por que não, mãe!?
- Porque não e pronto! 
- Isso não é resposta!
- Pra mim, é! 
- Não tem fundamento, mãe!
- E quem disse que resposta de mãe tem que ter fundamento!? Não vai e pronto!
- Vc é engraçada, mãe...- Diz ele, rindo, complacente como o pai. - Vc é hilária.

- Se o que estiver pensando for real, vai precisar de ajuda, filha.
- Enrico, por favor, fique com Matteo. Eu prefiro ir sozinha. - Sob os protestos de Matteo, sussurro ao ouvido de Enrico. - Só eu posso parar aquele verme. 
- Compreendo. - Um beijo na bochecha de meu filho e, antes de partir, confesso, arrependida. 
- Eu permiti que ele estragasse nossas vidas no passado. Não cometerei esse erro novamente.
- Boa sorte. Estarei rezando por vc. - Incrédula, revirando os olhos, agradeço enquanto desço os degraus da varanda. Dentro do carro na garagem, aceno ao meu filho e prometo a mim mesma. 
- Ninguém vai tirar vc de mim.


- Ele estava aqui ontem! Falou comigo! Onde está o aluno mais novo dessa sala!?
- Senhora, eu não a compreendo. - Refuta a professora de Matteo, confusa e assustada com meu nervosismo. - Não gostaria de conversar com a diretora?
- Eu já falei com ela quando matriculei meu filho aqui! Eu quero falar com o novo diretor!

- Sempre tivemos somente uma diretora, senhora. 
- Impossível! Eu falei com ele ontem! Vc estava em sala de aula! Vc nos viu juntos!
- Eu a vi observando meus alunos. Só isso. 
- Ninguém mais!? Um homem bonito, de terno, olhos castanhos!?
- Não. Gostaria de conversar com a diretora?
- E quanto à criança!? - Invado a sala de aula e, com o indicador, aponto o local onde o menino franzino estava ontem. - Ele tem quase dois anos. Cabelos castanhos. É introvertido, mas inteligente. Onde ele está!?
- Senhora. Todos os meus alunos estão aqui, hoje. Exceto seu filho. 
- Eu o vi! Aqui! - Contrariada, ela me dá as costas e comenta num tom altivo.
- Eu preciso continuar as atividades. Se me der licença...- Avançando em sua direção, eu a puxo pela gola de sua camisa e, aflita, pergunto.
- Tem certeza de que nunca houve um aluno franzino com menos de dois anos aqui!?
- Se não me soltar, vou chamar o segurança. 
- Me responde! Só isso! - Imploro antes de ser conduzida até a saída por um brutamontes de terno preto. - A criança! Eu preciso saber o nome dela! Me solta, seu covarde!
- Tenha um bom dia. - Diz o segurança deixando-me na calçada.
- Que o seu seja péssimo! - Grito, agarrada às barras de ferro do portão fechado. Ele riria de mais um 'barraco' meu, se ainda estivesse aqui. Eu te odeio, covarde. - Inferno...- Engulo o choro ao ouvir a mesma canção de ontem, voltando-me em direção à rua. Um arquejo de horror e o vejo novamente, dentro de um carro preto com 'insulfim' nas janelas que, lentamente, vão se abrindo. Ao volante, o falso diretor me acena enquanto cantarola o refrão da canção.
- MALDITO! - Berro antes de correr até o carro. Reativa, tomada pela raiva, tento abrir a porta do carona. - Por que voltou!? Já não levou o que queria!? Já não acabou com a minha vida!?
- Ainda é pouco, meu bem. Pensei em algo mais divertido. - Esticando meus braços na tentativa de alcançá-lo, pergunto, enfurecida.
- Por que mudou de corpo!?
- Me cansei de parecer efeminado. Agora, tenho cara de homem. Eu preciso. 
- Abra a porra dessa porta, Lúcifer!
- Para quê? - Mostrando-me seus olhos incandescentes debaixo dos óculos escuros, ele me provoca. - Vai me sujar com seu sangue nojento  novamente? Não vai adiantar. Vc está fraca, querida. Ademais, preciso partir. Agora, tenho novas tarefas como pai.
- Pai??? - Arquejo, afastando-me do carro. - Do que tá falando??? - Um olhar para o banco traseiro e ele dramatiza. 
- Ele sofria tanto. Órfão de mãe e de pai, precisava de ajuda. Alguém com um bom coração como o meu. Um coração que o conduzisse a um caminho de glória e poder. - Um passo adiante e, arfando, enfio minha cabeça pela janela e, então, eu o vejo. O menino franzino com cabelos castanhos se mantem sentado no banco traseiro, sem expressar alegria ou tristeza. 
Nada há em seu belo rosto além de um olhar distante. Afasto-me, de súbito, levando a mão ao meu peito. Meu coração dói. Meus pensamentos fluem enquanto ouço seu riso debochado. 
- Não vá deixar esse velho coração parar de bater novamente, mocinha. Da próxima, vc morre.
- Maldito. - Apoiando-me no exterior do carro, temo ao perguntar.
- Qual o nome dele?
- Pergunte vc mesma. Uma dica: perdeu a mãe bem cedo. A louca pulou da janela, grávida do segundo filho. E, o pai, foi morto ao final de uma festinha de quinze anos. Eles ainda se amavam. - Um forte aperto no coração e, puxando o ar pela boca, sussurro.
- Não pode ser ele. Eu não sabia...
- Claro que não, estúpida. Egoísta como é, vc o largou sozinho no mundo. Tentou viver feliz com sua família patética por duas vezes e, em nenhum momento, pensou na criança sem pai, nem mãe. - Alongando seu tronco até a janela do carona, ele me deixa ver seus olhos cheios de rancor e me fere, mortalmente, ao cuspir a verdade. - "Vamos viver nossas vidas". Não foi isso o que disse!? 
- Eu...
- Vc simplesmente o esqueceu, desgraçada! Vc e seu anjo de merda esqueceram que havia uma vida necessitando de cuidados e viveram em paz até que a paz lhes fora negada! 
- Vc não tem moral pra falar de mim. - Refuto, amparando-me na janela. - Vc é maligno. Vc entrou em nossas vidas e a destruiu.
- Vc deu brechas, meu bem.
- Deixa ele ficar comigo. Eu sou a tia dele.
- Agora vc se lembrou disso, 'macaca'!? Nunca! Ele fica comigo!
- Sean...- A porta se abre. Ajoelhada no pequeno espaço entre suas pernas e o banco dianteiro, sorrio ao menininho de olhos escuros. Lembro-me de Cassie e de sua alegria contagiante antes de ele nascer. Como pude me esquecer de vc? Coberta por culpa e arrependimento, toco em seu rosto e pergunto quase sem voz. - Quer conhecer minha casa? Lá tem brinquedos e um amiguinho com quem vc pode brincar. É seu primo. - Seus olhos inexpressivos me fitam antes de responder, friamente.
- Não. Meu tio me dá brinquedos. Obrigado. 
Uma gargalhada diabólica e as garras de Lúcifer me arremessam para fora do carro. Um poste me impede de cair contra o asfalto. Agarro-me a ele enquanto Lúcifer me humilha.
- Perdeu, sua puta burra! Perdeu a filha, o marido, a saúde e, agora, seu pobre Sean. Em breve, perderá o filho. Quem sabe? - Fechando a porta do carona, ele liga o som do carro. Uma piscadela sinistra e ele canta, exultante, o refrão da canção 'Sympathy to the Devil'. Desesperançada, eu os vejo partir. O sol incide sobre o carro. Pelo pouco que ainda consigo ver, o pequeno Sean me observa, com as mãos espalmadas no vidro traseiro. Mortalmente triste, penso comigo mesma. 
"Eu vou te buscar, filho. Perdão. Vou salvar sua mãe e te trazer de volta. Eu juro". Uma repentina rajada de vento em minhas costas me arrepia. Sinto sua mão fria tocar meu ombro antes de rosnar. 
- Vc me deve isso, tia. - Sem olhar para trás, adivinho.
- Cassie? - Eu a procuro ao redor. Tonta, lamento. - Não. De novo não...- Uma fraqueza intensa nas pernas se junta à arritmia e à baixa pressão arterial. Prestes a cair contra a calçada, ele me ampara com seus braços fortes e, beijando o topo de minha cabeça, afirma. 
- De novo não, baby. Eu te empresto minha força.
Em seu colo, sentindo-me melhor, reconhecendo seu sorriso tímido, murmuro.
- Aiden...
- Sou eu, baby. Seu guardião.



- O que ele disse era verdade, Aiden. Eu abandonei o pobre Sean. Tentei viver feliz com minha família e me esqueci de que ele não tinha uma.
- Vai se deixar levar pelas palavras do 'Pai das Mentiras'?
- Ele não mentiu! - Refuto, aos prantos diante do volante. Ao meu lado, Aiden acaricia meus cabelos. Gosto de receber seu carinho, sua atenção. Gosto de seu sorriso tímido. - Por que tá me olhando assim!?
- Porque vc está me encarando. 
- Vc mudou tanto...
- Eu precisei, baby. 
- O que é um 'guardião'?
- Difícil de explicar.
- Tenta.
- Certamente, vc não ouviu falar nesse povo.
- Povo? 
- É. Um povo que lida diretamente com os humanos e seus problemas, aqui, na Terra.
- Não me diga que vc é um anjo!? - Zombo. - Por favor!
- Longe disso. Existe o Arcanjo Miguel...
- Esse eu conheço. - Um sorriso atraente no canto da boca e ele prossegue.
- E existe seu exército que defende a Humanidade do Mal. 
- Vc faz parte dele!?
- Não. Estou um pouco abaixo. Bem ligado a vcs. - Seus olhos brilham ao esclarecer. - A vc, principalmente. Caminhamos entre vcs e os defendemos de perigos imediatos. Quando vc pede ao seu amigo arcanjo que proteja seu filho de algum acidente, ele ordena que um de nós faça isso. Quando vc corre o risco de ser molestada por algum cara escroto na rua, somos nós que te protegemos.
- Uau. Então, vc conhece Miguel, o Arcanjo?
- Depois da reabilitação, sim.
- Reabilitação?
- Passei por muita coisa até chegar aqui, baby. Evoluir dói.
- Por que quis mudar? Poderia ter continuado naquela vida e ainda estaria rico e feliz.
- Rico, talvez. Feliz, nunca. - Com o dorso de sua mão quente, ele alisa minha bochecha. Ruborizo. Ele ri de mim. - Quem diria. Adessa Love ruborizando com um simples carinho.
- Não brinca. Faz tempo que ninguém me toca assim. Sinto falta de...
- Dele?
- Não sei do que tá falando. - Resmungo, enxugando minhas lágrimas com as mãos. - Isso é passado.
- Não é, baby. É presente. Ele ainda vive.
- Cala a boca, Aiden. Não fala desse cara.
- Vou me odiar por dizer isso, mas...ele precisa de ajuda.
- Foda-se...- Arquejo olhando o céu nublado pela janela. Mordendo o canto da boca, eu o encaro antes de mentir. - Não me importo. Que sofra. A escolha foi dele.
- Não foi.
- Como sabe disso!?
- Não posso dizer.
- Então por que disse!? Merda! - Um tapa em sua cabeça e ele se defende, cobrindo o rosto com os braços. Rindo, ele comenta. 
- Vc continua a mesma.
- Engano seu. Mudei muito. A propósito, por que vc continua com o mesmo corpo do morto que usou enquanto estava comigo? - Uma gargalhada gostosa e ele simplesmente diz.
- Sei lá. Não me pediram para trocar. Creio que esse aqui tá bom. Ou não? - Uma piscadela e volto a ruborizar. - Vc mudou mesmo.
- Estou morta por dentro, idiota. Alguém me matou. Alguém que morreu.
- Está na carta.
- O quê???
- A resposta.
- Qual???
- À sua pergunta. 
- Aiden!!! - Antes de receber outro tapa, ele segura meu pulso com força e me surpreende ao revelar.
- Suas respostas estão na carta que ele deixou. - Abrindo a porta do carro, ele me observa da calçada. Há uma pitada de desejo em seu olhar. Antes de desaparecer envolto em uma densa neblina, ele me faz arfar ao declarar.
- Por vc, eu faço tudo, baby. Até mesmo ir atrás daquele babaca. Infelizmente, vc ainda o ama e, infelizmente, vc vai precisar ir atrás dele.
- Aiden!
Fora do carro, olho ao redor e sou envolvida por um acolhedor aroma de rosas misturado ao de charuto.
- De onde ele tirou aquele chapéu?


 

Já não danço mais. Assim que retornei ao 'Just Dance', as lembranças de Antoine lutando enquanto eu a observava, em segredo, me deixaram ainda mais fraca, triste, sem inspiração para criar coreografias, sem a capacidade de me dedicar às alunas como fazia antes do fim. Hoje, eu supervisiono as aulas de Dança e Kickboxing, a pedido do dono da academia que se recusou a me demitir.
Aninha está grávida, novamente. Felizmente, o menino carrancudo sumiu. Quem sabe esteja em seu ventre, novamente? Diante do grande espelho retangular, eu me alongo pensando no que pode estar contido no bendito envelope, até agora, fechado.
Por que Aiden se importaria em ajudar 'aquele outro'? Eles se odiavam. O que ele quis dizer com 'infelizmente vc vai precisar ir atrás dele'
Meu celular toca em minha mochila. Corro até ele. Sentando-me no chão da sala de aula, atendo a ligação. Arquejo ao ouvir a voz modulada de Enrico pedindo-me que retorne ao nosso lar.
- Ele piorou!? Enrico! Fala!
'Conversamos aqui, meu anjo. Está tudo sob controle. Venha com Deus'.
- INFERNO!



- Terra, Enrico? - Devastada, incrédula, abraçada ao meu filho, repito. - Ele quis comer terra? Não faz sentido.


- Seja forte, filha. Nosso Matteo vai precisar de sua força. - Pressionando seu corpinho febril contra o meu, rosno, desesperada. 
- Para de falar assim. Eu já te disse que ninguém vai tirar meu filho de mim. Nem mesmo o seu Deus.
- Não fale assim, meu anjo. Matteo é forte. Vai sobreviver.
- A que, Enrico!? O que vc sabe que eu não sei!? Por que ele mudou, de repente!? Ele estava tão bem!
- Eu tô cansado, mãe. Vamos dormir? - Pede-me Matteo com a pele pálida, os olhinhos tristes. Em meu colo, ele implora. - Não deixa a enfermeira me furar mais, mãe. Dói.
- Nunca! - Choro abraçada a ele. Enrico, ao meu lado, beija o topo de minha cabeça e, com extrema ternura na voz, sugere. 
- Que tal adormecer agora, filha. Amanhã, teremos um dia difícil.

Antes de protestar, eu durmo.


- Anemia Severa. - Constata um dos pediatras. - Ela costuma se desenvolver lentamente, mas, infelizmente, no caso de seu filho, tem progredido com extrema rapidez. Precisamos de outro doador do mesmo sangue. O pai de Matteo ainda vive?
- Não.
- Sim. - Corrige-me Enrico diante da equipe médica. - Ele precisou viajar por um tempo. Uma longa viagem.
- Pois então, tratem de encontrá-lo. Seu filho precisa do sangue do pai, senhora. 
- Eu tenho o mesmo sangue! - Protesto mostrando meu antebraço com as veias em relevo. - Tirem o sangue que quiserem! Salvem meu filho!
- Senhora, nós já explicamos. Seu sangue não é compatível. Ele o rejeitou. 
- Impossível! O pai dele e eu somos 'Rh Nulo'! O 'sangue dourado'! Eu sempre me tranquilizei quanto a isso porque, se um não pudesse doar, o outro poderia! Tentem novamente!
- E deixar que seu filho sofra os efeitos da rejeição outra vez? Por um milagre, nós o trouxemos de volta, senhora.
- Não. Deixem ele descansar. - Suplico num gemido. Enrico me ampara enquanto sussurro. - Curem meu filho. Por favor.
- Encontrem o pai dele. - Orienta o pediatra mais velho enquanto os outros saem do quarto do hospital. - E, por favor, não demorem. A vida de nosso querido Matteo depende disso.


Matteo tem se mantido forte graças à suplementação de ferro administrada em remédios e alimentação. 
Larguei tudo por ele. Trabalho, metas, desejos. Dedico-me inteiramente ao meu filho que já não frequenta às aulas em seu colégio, embora não se canse de estudar em seu novo notebook. Presente de Enrico. Autodidata, ele estuda por horas sem pensar em sua doença. A sinistra vontade em comer terra é um dos sintomas da anemia severa. A irritabilidade, também. Tento me manter forte e emocionalmente estável diante de suas crises de raiva pela ausência de seu pai. Enrico reforça minha falsa história de que ele morreu, mas Matteo se nega a acreditar.
- Ele pode me salvar, mãe!
- Não se estiver morto, filho. - Lamento. - Eu daria a minha vida por vc. 
- Eu sei, mãe. - Pousando sua cabecinha em meu colo, ele me surpreende ao revelar. - Eu sei onde ele está. Ele apareceu em meu sonho.
- Quando!? - Seus lindos olhos azuis se arregalam ao narrar seu sonho.
- Hoje. Ele me olhou de longe. Depois, ele estava se afogando em um rio vermelho. Parecia sangue. Tinha um cheiro esquisito no ar. - Horrorizada, lembro-me dos meus sonhos. Pesadelos onde vejo o mesmo. A correnteza os leva para longe de mim enquanto grito por socorro em uma imensa e sombria caverna. - Vc tá com medo, mãe? Não precisa. Ele sabe nadar. Mas, ele tá triste. Acho que sente saudades da gente. - Curvando meu tronco para frente, eu o abraço com força. Choro em seus cabelos cheirando à maçã verde e me pergunto o que devo fazer. Não posso...não quero...não vou perder meu filho como perdi seu pai. - Não fica triste, mãe. - Sussurra-me ele. - Vai dar tudo certo. 
Subitamente, levanto-me de sua cama e corro até meu quarto. Emocionado, do corredor, Enrico me observa. Antes de fechar a porta, eu ouço seu conselho.
- É hora de abrir o envelope, filha. Seja forte.
Corro até ele e, num rompante de desespero, enlaçando seu pescoço, suplico.
- Me ajuda. Não sei o que fazer.
- Abra seu coração e leia a carta. Abra seu coração, filha. 
 

Rasgo o envelope. Jogo-me na cama, ao seu lado. Levo uns cinco minutos até ter coragem de observar a ressonância magnética, a tomografia computadorizada, o laudo médico atestando o diagnóstico da 'Encefalopatia Traumática Crônica', com a ressalva de que, somente, após sua morte, através da autopsia, a doença seria, de fato, confirmada. Jogo todos os exames no chão do quarto enquanto toco o envelope e me concentro. Ouço seu choro, seus gemidos de dor. Eu o vejo deitado no ringue, olhos fixos no teto, por horas. Sento-me no colchão. Cruzo as pernas. Digo a mim mesma: 
- Chegou a hora. Leia a porra dessa carta e siga em frente. 

O papel dobrado em quatro partes treme em minhas mãos. Puxando o ar pela boca, eu o abro, lentamente. Movida pela raiva e pela curiosidade, inicio a leitura. Perplexa com a mudança de sua caligrafia, antes, 'cursiva clássica', agora, tento compreender seus 'garranchos'.

"Dess,
Sei que vai estar me odiando enquanto lê essa carta e, não a culpo por isso. O que fiz não tem perdão. Perdão pela letra. Não consigo enxergar. A dor me impede de abrir os olhos por completo. A dor. Eu não te contei sobre a dor, meu grande amor. Vc sofreu muito por mim e, por isso, merece conhecer a verdade. A única. A que nunca te contei. Não sou o anjo que 'caiu' por vc, por descuido. Eu era um anjo. Um anjo caído. Um dos que 'caíram' com aquele miserável por ter sido excluído do convívio dos anjos e arcanjos criados por Deus. Eu me deixei contaminar pela inveja, pela ira e por Lúcifer. Eu estive ao lado dele até te conhecer, Dess. Foi quando Lúcifer se virou contra mim. Foi quando ele jurou se vingar. Ele me queria ao seu lado. Eu queria estar ao seu lado, Dess. Queria aprender a ser humano, como vc. Após séculos e séculos na Escuridão, o seu amor quase me redimiu. Mas, eu ainda não havia pago minha dívida com o 'Meu Deus' a quem traí, covardemente. Espalhei o caos entre os Humanos da aldeia onde te encontrei pela primeira vez. A aldeia dizimada pelo dilúvio, onde toquei em nosso filho pela primeira vez. Eu protegi nosso filho de todo o Mal. Inclusive, de seu verdadeiro pai. O maldito que tentou tirá-lo de mim. Eu me afeiçoei a ele, Dess. Eu o amei. Eu o vi crescer e se multiplicar. Eu o vi morrer de velhice. Ele foi feliz, Dess. Jamais foi tocado por Lúcifer. Eu te asseguro. Eu te aguardei, Dess. Vida após vida, eu te aguardei. Ainda que fosse para te humilhar, te machucar, eu esperei por vc. Eu precisava de vc sem entender o porquê. Foi Enrico quem me explicou o sentido do amor entre homens e mulheres. A partir de então, eu compreendi que te amava. Mas não o suficiente para deixar de te fazer sofrer. Ainda era mau. Eu assisti ao teu suplício durante aquela noite onde muitos te machucaram. Eu não te retirei daquela mansão onde usaram seu corpo, mesmo tendo o poder de te salvar. Eu falhei em todas as vezes, Dess. Eu falhei com vc e comigo mesmo. Eu me confundi diante do teu amor sempre presente. Vc exigia Luz de um ser mergulhado nas Trevas e eu, fingia ser o que vc acreditava que eu fosse. Ao final, vc me transformou, Dess. Ao final, eu me tornei um ser humano com sentimentos. Vc foi a minha salvação. Nosso filho me redimiu diante de Deus. Ele me libertou, mas eu havia errado com outros seres de luz. Eu me comprometi, Dess. Eu iniciei uma guerra pessoal contra Rafael, o Arcanjo. O arcanjo da Cura não me perdoou. Ele não estava errado. Eu mesmo não me perdoaria. Por Antoine, ele me concedeu anos de saúde e paz. Ele me deixou ser o pai de nossos filhos, Dess. Ele me deixou ser o seu marido. O homem que lutou, literalmente, por nossa felicidade. Deus sabe o quão grato sou por isso. Mas, tudo tem um fim. O meu chegou. A doença voltou. A dor triplicou. O fim se aproximou. Antoine se sacrificou por mim. Eu sou o culpado por sua morte. Pela ausência dela em sua vida, Dess. Pode me odiar por isso também. Eu mereço. Perto do fim, eu já não me lembrava do que Lúcifer seria capaz de fazer para alcançar seus objetivos. Ele me queria de volta ao seu lado. Ele ameaçou levar nosso filho. Ele o quer, Dess. Ele vai mover céus e terras para ter o nosso filho ao seu lado e governar o mundo. Estou doente. Muito doente. Meu corpo já não me obedece. Estou fraco para lutar contra ele. Lúcifer quer nosso filho. A 'Legião' quer vc. Vc tem mais poderes do que imagina, Dess. Seria útil à luta da 'Legião' contra o 'Anjo Caído'. Mas, isso custaria muito a vc. Jamais permitiria que separassem vcs dois. Mãe e filho. De um jeito ou de outro, eu deveria escolher um lado para proteger minha família. Optei por te salvar porque sei o quão forte vc é. Sei que jamais vai deixar que algo de ruim aconteça ao nosso filho. Eu preciso partir. Preciso ir. Já não consigo viver nesse corpo. A dor é intensa. Meu amor por vc é eterno. Mesmo que eu me esqueça de mim, jamais me esquecerei de vc, Dess.
Lembra de quando dançamos no parque de diversão?
É a melhor lembrança que vou levar até me esquecer dela e de quem eu sou. 
Eu conheço o inferno, Dess. O inferno é o esquecimento de quem fomos. Do que fizemos de bom em nossas vidas na Terra. É a repetição contínua de nossos erros. Estou indo pra lá. Um outro inferno longe do inferno de Lúcifer. 
Prometo lutar contra ele enquanto me lembrar disso.
Dói muito, Dess. Não se esqueça de mim. Lá no fundo, lembre-se do dia em que nos casamos. Do dia em que Matteo nasceu. Do dia em que fizemos amor pela primeira vez, na casa da praia, quando eu ainda era jovem e estúpido. Eu estava lá. Era eu, Dess.
Agora, já não sei quem eu sou.
Te amo pra sempre, Dess.
Me perdoa por ter entrado em sua vida. Vc teria sido feliz com o Aiden. Padre Pietro sabia de tudo. Ele me aceitou assim mesmo. Enrico e ele me ajudaram a compreender o amor que existe entre vcs, Humanos.
Diga ao nosso filho que eu o amo, apesar de não parecer. 
Já ouviu falar no 'Abismo'?
É lá que estarei, meu grande e eterno amor. De lá, vou tentar não te esquecer.
Não se preocupe com sua vida financeira. Pergunte ao meu pai sobre a herança que deixei. Há mais do que o suficiente para que vivam tranquilos pelo resto de suas vidas.
Dess, tente ser feliz e, se puder, tente me perdoar. 
Amanhã, eu vou me entregar aos que viriam te sequestrar.
Eu os odeio. Eu me odeio ainda mais.
Vou sentir a falta de seus beijos, de seus abraços quentes.

Adeus, minha amada Cathy. No morro dos ventos que uivam, estarei pensando em vc. 

De seu Heathcliff."

Sem compreender o que sinto, caminho, vagarosamente, até a lareira acesa. Beijo suas letras  com sofreguidão. Engulo em seco. Ajoelhada sobre o tapete felpudo, observo o fogo consumir o papel, manchado por minhas lágrimas. As chamas parecem desenhar seu rosto. Os olhos tristes, escuros. Afasto-me. Lavo meu rosto na pia do banheiro. A toalha enxuga minha pele úmida. Procuro, em meu celular, a foto de nossa primeira noite juntos. Eu o fotografei minutos antes de nosso primeiro beijo.


Ainda não existiam Antoine, Matteo, Lúcifer, arcanjos vingativos ou 'Legião'. Havia somente uma tola garota de programa e um anjo mau à procura de perversão. Não sei o que sentir por ele. Compaixão, ódio, raiva, saudade. Ele sofria e eu não percebi. Como? Éramos tão unidos.
- Não. Não me faça sentir pena dele, Enrico.
- Vc leu tudo?
- Sim. Depois, queimei a carta. Assim como ela, seu filho foi consumido pelo fogo. Não existe mais.
- Não é tão simples quanto gostaria, meu anjo. - Refuta Enrico cruzando as mãos sobre as pernas, sentado no sofá da varanda. De olhos fixos no horizonte, ele comenta. - A história ainda não terminou.
- Pra mim, sim. - Afirmo, indecisa. Recostando minha cabeça em seu ombro, suspiro. - Preciso curar meu filho. É tudo o que desejo.
- Sem o sangue do meu filho? - Pergunta-me ele, rígido como uma estátua. - Vc compreende o que está acontecendo nessa casa, filha? Entende que sem Vincenzo o nosso Matteo pode morrer?
- Para! - Segurando-me pelo braço, ele me impede de fugir e, com a voz grave, ordena.
- Enfrente a realidade, filha! Por mais dura e estranha que pareça é a nossa realidade! - Desvencilhando-me de sua mão, exalto-me.
- Que realidade, Enrico!? A de que seu filho está na porra de um inferno!? O que meu filho e eu temos a ver com isso!? Ele escolheu!
- Por vcs! Ele se sacrificou por vcs! - Refuta ele, magoado. - Ele se redimiu diante de Deus! Ele não merecia esse fim!
- EU NÃO MERECIA ESSE FIM, ENRICO! - Berro, enfurecida, afastando-me dele. - EU NÃO MERECIA! NOSSO FILHO NÃO MERECIA! 
- Ele te ama...
- Que amor é esse, Enrico!? - Rosno, empurrando-o contra a parede. - Ele me observou ser violentada por vários homens, por duas vezes! Ele confessou, Enrico! Ele não me amava! Eu era a sua presa! 
- Ele se redimiu. Ao final, ele se redimiu, filha. Ele te amava. Ele amava os filhos. Ele, enfim, se regenerou. - Apiedo-me de seu choro sofrido. Escondendo seu rosto com as mãos trêmulas, ele repete. - Ele se regenerou, filha. Ele não merece se transformar em algo tão ruim.
- Do que tá falando? - Abraçada a ele, entre soluços, indago. - No que ele vai se transformar, pai? - Seus olhos tristes e úmidos me encaram ao comentar.
- Faz tanto tempo que não te ouço me chamar assim. Vincenzo me chamava de 'pai'. Sinto tanto a falta dele. - Assustada, repito a pergunta.
- No que ele vai se transformar, Enrico? - Expressando horror em seu rosto, ele responde.
- Em um demônio. Se demorarmos mais tempo para encontrá-lo, ele vai se esquecer de quem já foi e vai se tornar algo que jamais deveria ser.
- Um demônio?
- Não deixa, mãe! 
- Filho!? O que tá fazendo acordado!? - Atordoada, tomo Matteo em meus braços. Abatido, ele choraminga. - Meu pai precisa de ajuda. Não deixa ele se transformar num monstro, mãe. - Chorando em seu ombro, perdida, confusa, murmuro.
- Diabos. O que tá acontecendo? - Sentindo o coraçãozinho de Matteo pulsando junto ao meu, ouço a voz embargada de Enrico explicar o inimaginável.

- Só vc pode salvar meu filho, o pai do seu filho. Só o pai do seu filho poderá salvar o seu filho, Adessa. Vc entende isso?



- Aonde iremos?
- Ao 'Abismo', filha.
- Isso é loucura. Não faço ideia de onde isso fica.
- Eu sei. - Afirma Enrico, com as mãos espalmadas sobre a mesa de jantar. - Já estive lá. 
- Ah...tá. Agora, eu tô super tranquila. - Ironizo prestes a surtar. - Já comprou as passagens?
- Não estaremos sozinhos, filha. Teremos ajuda. - Esvaziando a terceira taça de vinho, rindo de nervoso, pergunto.
- De quem?
- Pode contar comigo, baby.
- Porra! Que merda! Vc não bate na porta, Aiden!? - Um sorriso cínico e, sentado ao meu lado, ele responde.
- Eu não. Mas, ele sim.
- Ele!? - Assusto-me com o ruído das duas batidas na porta de entrada. Encarando Enrico e Aiden, levo as mãos ao peito e, pergunto. - Quem tá lá fora, porra!?
- Abra e veja. - Diz Aiden, amparando-me, cuidadosamente, até chegar à sala. Abrindo a porta, ele assevera. - Ainda bem que chegou a tempo. - Incrédula, sussurro seu nome.
- Leo. 
- Tia. 
- O que faz aqui?
- Eu não vou te deixar sozinha. Nunca mais. 
- Do que tá falando?
- Da viagem.
- Viagem?
- Ao 'Abismo', tia. Antoine aprovaria nossa atitude se ainda estivesse entre nós. É por ela que eu vou.
- Por quem vc vai, baby. Diga seu nome. Ele precisa ouvir seu nome e entender que ainda vive.
- Aiden...não.
- Uma única vez. Por seu filho. - Pede-me Enrico. - O meu filho está se afundando. Dê a ele um sopro de esperança. Diga seu nome.
- Se eu disser, ele...
- Ele é real, baby. Fale logo antes que eu desista e vá embora.
- Não! Não me deixa! Sem vc, eu não irei a essa viagem absurda! - Suas mãos em minhas têmporas me obrigam a olhar em seus olhos escuros. Sua boca se move ao ordenar.
- Diga seu nome, baby. 
- Diz, mãe. 
Atordoada, fecho os olhos. 
Como quem está prestes a morrer, assisto ao filme de nossas vidas em minha tela mental. Sorrio diante de seus vários sorrisos que me cativaram durante os anos em que vivemos juntos. Bons e maus momentos. O primeiro, foi na lanchonete de Giulia onde me apaixonei por ele à primeira vista. O que me faz chorar de saudades é o mais simples e singelo. Em nossa cama, deitados entre nós dois, Antoine e Matteo, riem do avô contando suas histórias mirabolantes de uma época em que fora feliz. Eu fui feliz ao lado dele. Dele. Do homem da minha vida. Do homem que dançou comigo no concurso. Do homem que me amparou em seus braços e me deu força enquanto Matteo nascia. Do pai sempre presente. Do homem que lutou, mesmo doente, a fim de sustentar sua família. Do homem que sofreu com sua dor excruciante, calado, enquanto eu exigia sempre mais de seu amor. É isso o que ele foi. É isso o que ele sempre será. Meu homem. Meu Heathcliff. Enchendo-me de coragem, volto no Tempo quando dançamos juntos pela última vez: 'Aonde vc for, eu irei te encontrar'. Eu prometi. Ele me chamou de 'Cathy' na cartaEle quer que eu o encontre. Meu Vincenzo. 
- Vincenzo. Vincenzo. - Convicta, repito. - Vincenzo! 
- Ele existe, filha! - Exulta Enrico.
- Vc disse o nome do meu pai, mãe! - Comemora Matteo.
- Vincenzo, filho! - Sorrio, agachada. Acariciando seu rosto, confesso. - Vc tem os olhos de seu pai, seus sorrisos. Ele era engraçado, filho! Muito engraçado! Sempre me fazia rir mesmo quando brigávamos! Eu tinha medo de dizer o nome dele e voltar a sofrer porque eu ainda o amo! Muito! Isso dói, mas é real! Vincenzo é o seu pai e sempre será! - Choro entre risos. - Vincenzo Rossi! Esse é o seu nome!
- Vincenzo! - Grita Matteo erguido por Aiden. - Meu pai tem nome! 
- Meu Vincenzo. - Lamento. - Ele sofre. Eu sei. Eu sinto. - Um riso histérico e comento. - Ele detestava essa frase.

De súbito, corro até o gramado do quintal e, sob a chuva forte, elevo meus olhos ao céu. Com a visão embaçada, grito o mais alto que posso.
- VINCENZO! 
- Não precisava gritar. - Comenta Aiden, ao meu lado. - Bastava dizer o nome dele. Uma vez.
- Ciúmes agora!? Me deixa, idiota! Ele precisa me ouvir!
- Ok. - Empurrando-o com a lateral de meu corpo, afasto-me dele, ouvindo seu riso inocente. - Vc não muda nunca, baby. - Arremessando uma pedra contra o mar revolto, berro.
- VINCENZO, SEU FILHO DA PUTA! VC ME OUVE!? VC PRECISA ME OUVIR! ENTENDEU!? NÃO SE ESQUEÇA DE MIM! NÃO SE ATREVA A SE ESQUECER DE MIM, SEU VERME! EU VOU TE ENCONTRAR! NA PORRA DESSE 'ABISMO', EU VOU TE ENCONTRAR E TE METER A PORRADA! VINCENZO, EU AINDA TE AMO!
- Uau. Que romântico, baby.


Fim?



















EPÍLOGO

  Abro os olhos. Encaro o teto do quarto, tentando não me recordar do sonho. Um sonho ruim. Chove lá fora. Dentro do quarto, faz frio. Meu c...