'Dess - Uma História Interessante'

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AMO ESCREVER

CAPÍTULO 34 - IMPERFEITO

 


De volta ao quarto, encontro Antoine dormindo no sofá. Vincenzo, sonolento, avisa que nossa filha não quis ir embora com Cassie e Liam. "Por quê?", pergunto. "Disse que seria perigoso ou algo parecido. Não entendi nada.", responde-me ele. Penso em discutir com Vincenzo por não ter obrigado a filha a cumprir minha ordem, mas, desisto. Cubro Antoine com o edredom que trouxera de casa, decidida a retirá-la desse ambiente tóxico no dia seguinte. Exausta, deito-me ao lado de Vincenzo. Beijo sua boca e desisto de lhe contar sobre o encontro com o faxineiro na capela. Bocejando, ele diz que amanhã eu serei obrigada a contar tudo o que tenho escondido dele.
- Se eu sobreviver até lá. - Acrescenta ele.
- Não brinca com isso, amor. - Resmungo. - Nós vamos sair dessa, juntos. Eu prometo.
- Eu duvido. - Lamenta ele. Forçando-me a olhar em seus olhos úmidos, ele diz, num tom de despedida. - Eu nunca vou me arrepender de ter 'caído', amor. Nunca. Vc foi a melhor escolha da minha vida. Se eu pudesse voltar...- Empurrando-o para o lado, eu retruco.
- Para de falar merda, Vincenzo. Vincenzo!?
Um olhar apavorado ao painel do monitor de sinais vitais acima de sua cabeça e, horrorizada, vejo as linhas, antes oscilantes, agora, absolutamente retas. Antes mesmo de ouvir o alerta estridente do aparelho, uno minhas mãos e, num desespero, atinjo o peito do homem que eu amo. Aos gritos, espalmo minhas mãos sobre seu tórax e o pressiono com violência. Antoine, atordoada, chama pelo nome do pai enquanto retiro o lençol que cobre seu corpo e, como louca, monto em suas pernas, repetindo o ritual que só funciona em filmes. O corpo de Vincenzo, inerte, recebe as pancadas misturadas às pressões, sem reagir. 
- ACORDA, PAI! - Ordena Antoine com suas mãos na cabeça. Ainda percebo o medo em seus olhinhos quando ela alerta. - A PORTA! EU TENHO QUE ABRIR A PORTA!
Sem compreender o que ela deseja, exausta, deito-me sobre seu corpo e tento escutar seu coração. O barulho irritante do alarme me impede de ouvir. Um chute e o derrubo contra o chão, arrancando o acesso do antebraço de Vincenzo. Seu precioso sangue esguicha, manchando a parede de vermelho. À beira da loucura, enrolo seu braço com o lençol e peço que ele abra os olhos. Fico repetindo seu nome como se, fazendo isso, eu tivesse o poder de trazê-lo de volta. 
- Feche a porta. - Ordena a voz grave atrás de mim. Antoine o obedece, trancando-a à chave. Como em um pesadelo, custo a entender o que o faxineiro faz em nosso quarto enquanto meu marido morto perde sangue pela veia. Erguendo meu corpo com sua mão, como se eu fosse um pedaço de papel, ele me arremessa contra a parede. Reativa e assustada, ameaço voltar à cama. Rafael me lança um olhar frio e incisivo ao ordenar. - Não se mova. Fique em silêncio. - Furiosa, penso em desobedecê-lo quando Antoine me segura pela mão e, num tom de voz bem abaixo do seu, assevera. 
- Senta! - Jogando-me contra o sofá, ela me mantem distante de Vincenzo. Ouço murros contra a porta. Gritos. Olho para o teto e vejo vultos. Das paredes, luzes escapam em direção ao faxineiro que se inclina sobre Vincenzo e o beija nos lábios. Ainda no chão, o monitor de sinais vitais cisma em emitir o som estridente. Rafael estala os ossos do pescoço e, sem se importar com meu desespero, vai ao banheiro. Ele retorna de lá, com um copo descartável. Despejando água da garrafa no copo, ele fecha os olhos por segundos. Ele impõe sua mão direita sobre o copo. De suas mãos, escapam luzes coloridas. Em minha mente insana, eu as comparo às luzes do "California" incidindo sobre mim enquanto dançava. Volto à realidade assim que ouço sua voz melodiosa, dirigindo-se a Antoine. De joelhos, ele recomenda. 
- Assim que seu pai acordar, dê a ele essa água. Ok? - Dando-me as costas, ele alerta, antes de abrir a porta e deixar a turba entrar. - Lembre-se, Antoine. Sua escolha já foi feita. Não há como voltar atrás. - Com o copo na mão, ela chora ao concordar.
- Eu sei, tio. Eu sei. - Abrindo a boca de Vincenzo, Antoine deixa o líquido molhar seus lábios pálidos. De onde estou, sem acreditar, percebo um leve  movimento de seu Pomo-de-Adão ao engolir a água. Sem ter certeza de que estou dormindo ou acordada, observo a porta ser arrombada.
O que se passou dali por diante eu não saberia explicar por um bom tempo. Em choque, permaneço sentada no sofá enquanto médicos, enfermeiros invadem o quarto aos gritos. Meus olhos ainda fixos no pescoço de Vincenzo não enxergam Antoine sentada ao meu lado. Pousando suas mãos sobre as minhas, ela tenta me acalmar ao afirmar.
- Ele vai viver, mamãe. Uma vida pela outra.
- Uma vida pela outra. - Repito, incrédula diante dos olhos azuis e vívidos de Vincenzo, de volta ao seu corpo.


Ouço, calada, as repreensões do médico e enfermeiras a cada vez que entram no quarto do hospital. Deitada ao lado do homem que amo, eu me contenho. Estou tão feliz por tê-lo de volta que posso ouvir as reclamações e ainda sorrir.
- Ele poderia ter morrido! - Alega uma das enfermeiras que acessa, com facilidade, a veia cefálica no antebraço de Vincenzo. Poderia??? Ele morreu, vaca!!! - Da próxima vez, deixe a porta aberta e, por favor, tenta se controlar! Esses aparelhos custam caro!
- Não me diga! - Zombo. - Vcs cobram uma fortuna por cada gota desse soro! 
- Isso não lhe dá o direito de danificar nosso hospital. - Vincenzo me puxa pelo braço, impedindo-me de saltar sobre a enfermeira impertinente e arrancar, fio por fio, de seu cabelo com apliques. - Tente descansar. - Diz ela, abrindo um sorriso sedutor para Vincenzo. - Volto logo. - Outro aperto de sua mão em meu braço e eu conto até dez a fim de não me levantar da cama e 'encher' a cara dela de porrada. 
- É sério que tu retornou do mundo dos mortos pra ficar flertando com as enfermeiras??? - Outro sorriso encantador e ele refuta.
- Nada a ver, Dess. Elas estão sendo atenciosas. Só isso.
- Maliciosas, meu bem. Elas querem o que é meu! - Beliscando a ponta de sua orelha, pergunto. - Entendeu? Só meu! - Rindo, ele assente com a cabeça. Antoine, abatida, se enrosca nos braços de Vincenzo com pavor de retirar o acesso.
- Cansei de ver sangue...- Comenta ela, cuidadosa. Um beijo na bochecha do pai e ela exulta. - Agora eu tô feliz! Meu pai voltou! Pra sempre!
- Filha, o que vc quis dizer com 'uma vida pela outra'? - De olhos fechados, ela se recusa a responder.
- Eu tenho o direito de permanecer calada. 
- Tem. - Concorda Vincenzo aos risos. Não insisto. Estamos tão felizes e unidos que não quero estragar esse momento com respostas que, certamente, irão me abalar. - Acho melhor, Dess. Fica quietinha porque vc já ultrapassou sua cota mensal de 'barracos' e 'ataques'.
- Se não fosse pelo meu ataque de pânico, vc não estaria vivo!
- E não teria duas costelas quebradas. - Rindo, Antoine comenta.
- Mamãe é muito forte, pai! Ela dava cada soco no seu peito que eu cheguei a ouvir seus ossinhos quebrando! - Rindo, aliviada, concordo.
- É. Acho que exagerei. Mas foi por uma boa causa.
- Uma ótima causa. - Corrige-me Vincenzo beijando meus lábios. - Se não fosse por vc, eu já teria morrido, Dess. De todas as formas.
- Começou a safadeza...- Resmunga Antoine deslizando da cama, caminhando até a porta do quarto. Antes de abri-la, ela recomenda. - É melhor parar com isso porque ele não gosta disso não!
- Ele quem???
- Rafael!? - Suspira Vincenzo curvando, levemente, sua cabeça para frente. - Não sei o que dizer.
- Não diga. - Sugere Rafael, o Arcanjo, disfarçado de faxineiro. - O que fiz não foi por vc, Vincenzo. Tampouco por ela. - Seus olhos frios se fixam nos meus. Paralisada por sua presença repleta de magnetismo, penso que Miguel é extremamente mais dócil do que ele. Por que tanta frieza em um anjo que traz a cura aos mortais? - O que fiz foi pela pequena.
- Antoine??? - Enfim, consigo falar. - Vc salvou a vida de Vincenzo por Antoine??? Vcs se conhecem???
- Creio que não preciso responder a essa pergunta.
- Nossa. Precisa ser grosseiro?
- Dess. Fique calada. - Ordena Vincenzo, contido. Nunca o vira assim antes. Ele tem medo desse anjo? Ou é respeito? - E não pense. Por favor.
- Vc 'caiu' sem pedir permissão, Vincenzo. Deveria sofrer as consequências. Porém, Nosso Pai é conhecido por Sua Misericórdia, logo, Ele te concedeu um novo recomeço. 
- Gratidão. - Diz Vincenzo, de maneira formal. De cabeça baixa, ele replica. - Darei maior valor à minha vida. 
- Assim espero. - Dirigindo seu olhar metálico a mim, ele assevera. - Toma conta do teu filho. 
- Nosso! - Refuto. - Matteo é meu e de Vincenzo!
- Dess...- Rosna Vincenzo ainda de cabeça baixa. - Cala a boca.
- Cuida de Matteo. A criança tem sangue impuro nas veias. Cuida para que ele ande pelo 'Caminho Estreito'
- Não entendi! - Ergo-me, assustada. - Que 'caminho' é esse!?
- É o caminho que nos leva ao Pai. - Esclarece Antoine de mãos dadas a Rafael. - Ele disse pra gente cuidar do maninho, mãe. Fica tranquila. Vai dar tudo certo. - Reativa, dou um passo adiante. Vincenzo, receoso, me puxa pela barra do vestido. - Não se aproxima, mãe. Ele não pode ser tocado.
- Eu não quero tocar nele. - Defendo-me, desorientada. - Eu só quero que me esclareça essa coisa com meu filho! Ele corre perigo!?
- Ainda não. Vc sabe do que eu falo. Toma conta dele antes que o Mal se instale.
- Volta!
- Dess! Fica!
Dando-me as costas, Rafael beija a testa de Antoine e, ignorando-me solenemente, ele desaparece assim que cruza o batente da porta. Caminho até o corredor. Não o vejo ao redor. De volta ao quarto, ainda atormentada, reclamo.
- Que anjo frio é esse, gente!? - Ainda mais abatida, Antoine volta à cama de Vincenzo que, agora, relaxado, resmunga.
- Vc ainda não conheceu o Gabriel.

"Um milagre!", dissera a enfermeira-chefe assim que a 'alta hospitalar' fora concedida a Vincenzo. Após exaustivos exames, a junta médica concluíra que a anemia severa havia sido curada. Como? Não souberam responder. 
- Seu exame de sangue está perfeito. - Informa o médico com os olhos fixos no 'tablet' em suas mãos. - Hematócritos e Hemoglobinas em níveis normais. - Parecendo discordar do que lê, ele meneia a cabeça enquanto pergunto.
- Podemos ir, doutor?
- Sim. Podem. 
- Vc não vai olhar o paciente nos olhos?
- Dess! - Rosna Vincenzo livre de agulhas e tubos, sentado na cadeira de rodas. - Não começa!
- Ué...- Dando de ombros, defendo-me. - Não fiz nada. Ele precisa olhar pra vc antes de sairmos porque, depois, vai ser tarde. - Lançando-me um olhar soberbo, o jovem de jaleco de quem roubei o estetoscópio, retruca.
- Vc é um homem forte. Muito forte. Nunca vi uma recuperação como essa. Naturalmente, os medicamentos intravenosos surtiram um efeito tardio.
- Pode ser. - Diz Vincenzo, sorridente. - Os remédios e Deus. Eles me curaram.
- E o tio Rafael!
- Rafael!? - Indaga o médico, desconfiado. - Quem é ele!?
- O faxineiro. - Empurrando a cadeira, respondo. - Foi o faxineiro quem curou meu marido que está prestes a sair. Dá licença!? - Eu quero sair daqui e nunca mais ver a sua cara, cretino! - Pode abrir a porta, por favor?
- Claro. - Um passo para o lado e ele, irônico, complementa. - Com imenso prazer.
No saguão do hospital, felicíssima, empurro a cadeira de rodas onde Vincenzo leva Antoine, eufórica, em seu colo. As portas automáticas se abrem. Do lado de fora, Liam e Cassie comemoram a liberdade de Vincenzo e sua cura milagrosa. Beijando a cabeça de Vincenzo e de Antoine, afoita, peço.
- Me esperem um pouquinho! Vou ali e já volto!
Corro até a capela. Deparo-me com sua imagem ao lado do 'Crucificado'. 

- Vc voltou. - Constato, ajoelhando-me diante do Arcanjo Rafael. Tocando em suas asas, considero. - É por isso que é tão frio. Vc é uma estátua. - Sorrio. - Frio ou não, eu vim te agradecer. Muito muito muito obrigada por ter salvo a vida do homem que amo. Não me leve a mal, mas, eu espero não ter que te ver mais. Vc me entende. Né? - Ergo-me. Fazendo o sinal da cruz, beijo os pés do 'Crucificado' a Quem Vincenzo me ensinara a amar e, numa prece, eu imploro. - Cuida do meu filho. Por favor. Me ajuda a guia-lo pelo caminho do bem.

Meus pelos da nuca se eriçam assim que ouço seu sussurro em meu ouvido.

"Vai ser difícil, meu bem. Ele tem o meu sangue".

Corro.


Doc e Adele nos esperam em nossa casa. Assim que o vejo, eu corro em sua direção. Sentindo seu cheirinho gostoso, eu o beijo ouvindo sua gargalhada, seus quatro dentinhos apontando. 
- Que saudades, meu amor. - Chega a doer o amor que sinto por nosso filho. Contendo o choro e temendo por seu futuro, eu o levo até Vincenzo que o abraça forte, de olhos fechados. Eu nunca revelarei a verdade a ele. Não. Nunca. Ele não vai nos amar como antes. Ele pode rejeitar nosso filho...- Tá de sacanagem!? Ele te chamou de quê!?
- 'Papá'! - Exulta Vincenzo, aos risos. - Ganhei, bobona! A primeira palavra foi 'papá'! - Engolindo o ciúme, ouvindo as palmas e urros de alegria dos que nos cercam, confesso.
- Perdi. Mas, vc merece.
Ao lado dos amigos, sinto-me abençoada. Quem me ligaria àquela mulher que se entregava a qualquer um por dinheiro? Ou à atriz pornô que topava tudo por mais fama e grana? Meu passado está finalmente enterrado e eu estou diante do homem que me salvou daquela vida obscura e triste. Sou capaz de qualquer coisa por ele. 
- Dess? 
- Oi. 
- Para de pensar e come. Vai esfriar. 
- Vc me ouviu?
- Não. - Diz ele enquanto pede, pela enésima vez, para que Matteo volte a balbuciar 'papá'. - Tem música no ambiente. Lembra?
- Lembro...
- Vc cozinha muito bem, Cassie! - Elogia Adele. - Essa carne está fantástica! - Sentada à mesa em nossa minúscula sala, ela toma um gole de vinho e avisa. - Vou querer a receita.
- Não cozinho não, tia. Foi o 'Coelhinho' quem fez. Ele cozinha muito bem. Aliás, ele faz tudo muiiiito bem! - Uma risada de Cassandra e meu mundo se alegra. Liam, ruborizando, se engasga. Antoine ri de Liam enquanto Doc move sua cabeça e, envergonhado, abre um lindo sorriso. 
- 'Coelhinho'!? É assim que vc o chama!? Que fofo! - Apoiando os cotovelos sobre a mesa, eu os observo. Há tanto amor ao meu redor que me dá vontade de chorar, mas engulo o choro ao ouvir Adele confessar que, intimamente, chama Doc de 'parrudinho'. Outra gargalhada sonora de Cassie e Adele retruca. - Vc tem seu 'coelhinho' e eu, o meu 'parrudinho'.
- Doc! - Seus olhos inocentes me encaram enquanto todos à mesa, riem. Matteo mostra seus dentinhos a Vincenzo. - Vc nunca me contou sobre isso! Como pôde!?
- Não liga pra ela, meu anjo. - Retruca Doc, enrubescido, ainda engolindo um pedaço da carne assada preparada por Liam. - Adele bebeu demais. - Censura ele. - Tá na hora de parar, não é?
- Só se me chamar de 'meu bebê'...- Choraminga Adele, 'no grau'. Rindo de tudo e de todos, choro.
- É emoção. - Explico diante dos olhares curiosos. Enxugando minhas lágrimas com o guardanapo de papel, declaro. - Vcs são os melhores amigos que eu poderia ter.
- Tia! Não chora porque eu não quero chorar! 
- Parei! - Aviso. - Vc tá muito linda, Cassie! Eu nunca vi uma grávida tão linda como vc!


- É felicidade, tia! - Diz ela. - Eu nunca pensei que poderia ser tão feliz na vida! - Num repente, Antoine larga os talheres e corre até o banheiro. - O que deu nela, tia?
- Não sei...- Minto. Erguendo-me da cadeira, aviso. - Vou dar uma olhadinha.
- Quer ajuda?
- Não, amor. Fica com Matteo. - Distanciando-me dele, brinco. - Eu cuido disso, 'tigrão'
- Já fui. - Lamenta Vincenzo me olhando com devassidão. - Agora, sou um gatinho e olhe lá. - Sem desviar os meus olhos dele, caminhando até o corredor, ameaço. 
- Vamos conferir mais tarde.
- Wooohooo!!! - Celebram Cassie e Adele, totalmente embriagada. Guardo a imagem de Vincenzo e Matteo, em seu colo, na memória, como em uma foto na Polaroid
Ainda ouço os risos e comentários sacanas à mesa quando bato à porta do banheiro e a chamo pelo nome.
- Tô ocupada. Já vou, mamãe.
- Abra a porta. Eu não estou pedindo, filha. 
- Não posso. 
- Antoine Rossi, eu não vou repetir. Abra a porta!
- Repetiu! - Ainda rindo, ela abre a porta. Em seu rostinho, traços da criança que já foi se misturam à adolescente que quer surgir. Lágrimas ainda escorrem de seus olhos arredondados quando pergunto.
- Vai me contar aquele papo bizarro de 'Uma vida pela outra'?


- Agora?
- Já. Vc não precisa carregar isso sozinha, filha. Além de sua mãe, sou sua melhor amiga. Lembra? - Um abraço apertado e ela me revela algo assustador. Lavando meu rosto na pia do banheiro, alerto. - Isso fica entre nós duas. Ok? 
- E o papai?
- Nunca deverá saber.
- Nunca?
- Nunca. - Tristonha, ela concorda.
- Ok. Enxuga o rosto porque tem novidade por aí. - Avisa ela, renovada. A campainha toca. Ela debocha. - Não te falei?
- Vc é bem esquisita, filha. Dá até medo...
- O homem do Pix! - Anuncia Cassie ao abrir a porta. Tão feliz. Tão jovem. Tão...- Entra, tio! 
- Enrico! 
- Trouxe ótimas notícias! Vão 'viralizar'!
- Certamente. - Sorrio diante de seus lindos olhos sorridentes e de sua frase sem sentido. - Seu filho não parava de perguntar por vc. - Vincenzo se ergue da cadeira e o abraça por muito tempo. Emocionados, eles se sentam à mesa. De volta da cozinha, deixo o prato com o  pudim cair de minhas mãos trêmulas assim que Enrico traz a segunda revelação do dia. Essa é positiva.
Super!


- Fiz o tal do pix pra vcs!
- Conseguiu!?
- Sim, Cassandra! - Diz Enrico, exultante. - Consegui! O dinheiro da venda do castelo está na conta corrente de Vincenzo! - Arregalando os olhos, Vincenzo emudece. - Ele era seu, filho! Nada mais justo do que voltar a ser!
- Uau...- Suspiro. Cassie se apressa em me ajudar a limpar o chão com folhas de papel-toalha, lamentando a perda do pudim, sua sobremesa predileta. Um gemido de dor e eu volto minha atenção a ela, ainda pensando no fato de sermos os mais novos milionários da rua. - Eu faço outro, Cassie. Cassie!? O que é isso no chão!? - Agachada ao seu lado, observo pavor em seu olhar ao responder, num cochicho.
- Sangue, tia. Não diz nada pro 'Coelhinho'. Ele vai ficar triste.
- Não direi...- Prometo, ajudando-a a se reerguer, limpando os resquícios de suas entranhas sobre o piso. Liam nos observa ainda sentado à mesa. Temendo que ele ouça meus pensamentos, peço.
- Aumenta o som, filha! - Retornando do banheiro, Cassie esconde seus sentimentos e exclama ao arrastar Liam pelos braços até o centro da sala.
- A nossa música, 'Coelhinho'! - Em seu colo, ela comenta, esfuziante. - Nada pode nos parar agora! Nada!



Lavando a louça na pia da cozinha, ainda choro. Enrico fora o único a permanecer até agora. Todos se foram. Inclusive, Cassie levando consigo, o nosso segredo sem conhecer o meu. Vincenzo e Enrico conversam, animadamente, na sala. É a segunda garrafa de vinho que ele 'detona'. Sua voz entusiasmada pode ser ouvida na esquina de tão alta. Nunca o vira tão animado assim. Ainda não tive tempo de absorver a ideia de que Vincenzo recebera de volta tudo o que tinha antes de ser punido por me amar. 

- Eu não fui punido por isso, Dess!

- Cacete! De novo!? - Com o dorso da mão molhada, enxugo meu rosto. Deixando mais dois pratos sujos sobre a pia, ele beija minha bochecha. - Odeio esse seu dom!

- Mentira. Vc sentiu a minha falta. - Ronrona ele abraçando-me por trás. - Confessa.

- Confesso. - Sorrio de olhos fechados. - Eu senti tanta falta que chega doía meu peito.

- Vão doer outras partes do seu corpo daqui a pouco...

- Devasso! - Gargalho. Sentindo seu pau roçando minha bunda, eu o empurro com a lateral do meu corpo. Rindo, ordeno. - Vá conversar com seu pai! Ele tá 'doidão'!

- 'Doidão' estou eu, Dess. - Diz ele puxando o ar entre os dentes. - Sabe há quanto tempo a gente não transa?

- Sei. E sei que hoje, como diria 'Pitty': "Essa abstinência, uma hora, vai passar".

- E, depois, vc vai me contar tudo o que tá escondendo nessa cabecinha de melão. Ok?

- Ok. - Minto. - Vai e me deixa terminar tudo aqui.

- Não mente, porra.

- Para de ler a porra dos meus pensamentos, cacete! - Carregando na mão outra garrafa de vinho barato, da sala, ele me repreende.

- São baratos, mas são bons! Vc bebeu deles até agora!

- Cala a boca, idiota...- Sussurro rindo de mim mesma enquanto limpo a pia, imaginando como irei esconder tanta coisa dele. 

- NÃO VAI! - Grita ele. Irritada, caminho até a TV e aumento seu volume. - Não adianta. - Zomba Vincenzo cruzando as mãos na nuca, ainda sentado à mesa. - Sabe que não pode me esconder nada por muito tempo, né?

- Sei! - Piso em seu pé. Ele reclama. - Bem feito! Deveria ser no peito, mas...

- Vc já quebrou o que tinha que quebrar, né?

- É!

- O que a Cassie tem, Adessa?

- Não entendi, Enrico! - Engulo em seco antes de me sentar à mesa e secar as mãos na barra da toalha que a cobre. - Ela tá grávida e feliz. Só isso. - Minto. - Por que essa pergunta!?

- Nada...- Há tristeza em seu semblante ao concluir. - Bebi demais. Velhos não podem beber demais. Falam bobagens. Veem demais...

- O que viu, pai!?

- Nada! - Grito fixando meus olhos em Enrico. Há tantas informações em seu olhar que me perco.

- Dess!

- Ele já falou que bebeu demais, amor. Acho melhor vc dormir aqui, Enrico. Não pode sair por aí, desse jeito.

- Não posso. - Concorda ele. - Talvez seja uma boa ideia dormir aqui. Um pouco de calor humano não faz mal a ninguém. Não é mesmo?

- Por que ficou triste de repente, pai?

- Vc não me chamava de 'pai' há tantos anos...- Diz Enrico, nostálgico. - Eu estive ausente por muito tempo, filho. Agora, não vou deixar que nada de mau aconteça a vcs.

- Tá me escondendo algo. - Cisma Vincenzo tomando um gole de vinho no gargalo. - Sabe que não consigo ler seus pensamentos. Isso não é justo.

- Sério??? - Deixo escapar um riso histérico enquanto Enrico parece escanear meus pensamentos com seu olhar penetrante. - Vc não pode ler a mente de outro anjo!? 

- Não...- Resmunga Vincenzo, jogando seu tronco contra a mesa. Sua voz entaramelada reclama. - Não tem graça.

- Tem muita! - Outro riso nervoso e pergunto. - Por que tá me olhando desse jeito, Enrico!? Fiz alguma coisa errada!?

- Vc não. Eles fizeram. Não é justo. Uma vida pela outra? Não faz sentido.

- Concordo. 

- Que porra é essa? Uma vida pela...- Um tapa em seu rosto e o repreendo. 

- Para de beber! Vc não é bom nisso!

- E vc é perfeita. - Boceja Vincenzo.

- Acho que o seu 'tigrão' não vai rugir hoje...- Lamenta Enrico ajudando-me a erguer Vincenzo da cadeira. Rindo, retruco.

- Não me importo. - Arrastando Vincenzo, pelas axilas, até o nosso quarto com a ajuda de Enrico, concluo. - Ter seu filho aqui em casa e saudável é um verdadeiro milagre. É muito mais do que mereço. - Deitando-o em nossa cama, comento. - Ele é pesado pra cacete.

- Pesado é o fardo que vc tem carregado. Quer aliviar seu coração compartilhando seu segredo comigo?

- Eu ouvi! - Resmunga Vincenzo, sonolento. - Conta pra mim, Dess...

- Vou contar. - Minto. - Durma com Jesus, amor. - Inclino-me sobre seu corpo estendido no colchão e o beijo na testa. Mal posso acreditar que tudo passou. Não quero pensar no preço que fora cobrado por esse milagre. - Mais tarde, eu volto. Não pense que escapou de mim, 'tigrão'

- Caraca, mãe! Mais safadeza!? - Engatinhando na cama, Antoine beija o rosto de seu pai adormecido. Reparo em suas feições ainda mais abatidas. - Deixa meu pai descansar.

- E vc também precisa descansar, filha. 

- Ela está bem fraca. - Considera Enrico. - Mais um pouco e ela...

- O quê!? Fala, Enrico!

- Melhor fazer do que falar, meu anjo. Venham.

Retirando-nos do quarto onde deixo Vincenzo dormindo em paz, Enrico nos leva até o quarto de Antoine onde Matteo se exercita em seu bercinho, flexionando as pernas agarrado às barras em madeira. Atento aos nossos passos, ele sorri para o avô. Enrico o beija no topo de sua cabeça e o abençoa com o sinal da cruz.

Esquisito. Coisa de avô.

- Não quero me deitar. - Reclama Antoine. - Vamos brincar, vovô!

- Depois, meu anjo. Depois.

- Depois de quê? - Indago, aflita. - O que vai fazer com ela!? Por que precisa fazer algo com ela!?

- Fique calma ou nos espere do lado de fora do quarto, querida. Precisamos de muita paz nesse momento. - Escondendo  minha impulsividade, peço desculpas.

- Eu vou ficar calma. Me deixa ficar aqui. Por favor.

- Claro. Vou precisar de ajuda. Felizmente, posso fazer algo por Antoine. Já por Cassie, infelizmente...- Eu o abraço com força e, aos prantos, suplico.

- Não fala nada. Por favor.


Antoine, revitalizada, retorna ao colégio. Vincenzo, saudável, enfim, volta ao ringue como instrutor. Finalmente, ele desistira de lutar como pugilista profissional. Enrico se hospeda em nossa nova casa, muito maior e mais aconchegante do que o sobrado da academia de boxe. Bem próxima ao colégio de Antoine e ao trabalho de Vincenzo, nossa nova casa não mudara em nada nossa rotina. 

Quase nada.

Levamos alguns meses decorando a casa de nossos sonhos com o conforto e a  praticidade de que precisamos para, enfim, vivermos em paz. Cassie, com sua barriga arredondada me auxilia a escolher os melhores móveis e tintas para as paredes dos quartos das crianças. 

- Cada um tem o seu quarto! Não é fantástico, Cassie!?

- Como diria Antoine: é simplesmente esplêndido que vcs possam viver com mais tranquilidade agora. O dinheiro, quando usado de maneira correta, é uma energia divina. - Estranhando meu olhar, ela confessa, aos risos. - Foi o Liam que disse isso! Eu amo o dinheiro, com ou sem sabedoria! 

- E se Liam perdesse tudo o que tem?

- Eu me grudaria nele e me enfiaria em qualquer lugar desse mundo, tia. Liam é muito mais do que eu poderia imaginar. Ele é...é...- Jogando a cabeça para trás, ela ri e movimenta a mão, num desleixo. - Ah! Deixa pra lá! Vc não vai acreditar!

- Vou sim! - Incentivo Cassie. - Fala! O que Liam é!?

- Alguém mais do que especial! Às vezes, acho que ele é alguma espécie de anjo ou coisa parecida!

- Por quê!? - Divirto-me com sua inocência sentada à mesa de uma cafeteria no shopping. - Me conta!

- Ele sabe de tudo o que gosto e faz tudo o que quero antes mesmo de eu falar com ele. Ele se desculpa por coisas que eu sequer cheguei a falar. Ele é....- Arfando, ela toma um gole de seu Cappuccino e declara. - Ele é perfeito, tia. Eu nem acredito que o mereça.

- Merece, meu anjo. Vc o merece e eu não vou deixar que nada os afaste. Prometo.

- Do que tá falando, tia? Por que tá chorando!?

- Porque eu sou uma besta. - Choramingo. - Uma besta quadrada que continua a chorar à toa mesmo depois de ter um filho com um ano de idade!

- Pelos deuses do Olimpo! Temos que comemorar o níver de um aninho de Matteo, tia!

- Já passou. 



- E daí!? - Amo sua alegria contagiante e seus dentes perfeitamente tortos assim como os de Vincenzo quando sorriem. - É super 'cool' comemorar um níver após a data! Vamos organizar essa festa! 

- Não! Vc está quase parindo!

- E daí!? Nós ainda não fizemos o 'Chá de Revelação'! Vai ser fantástico unir o níver de Matteo à festinha de nossa filha! 

- Que chá é esse se vc já sabe o sexo do bebê!? Melhor fazer a 'ultra' antes. - Aconselho. - Vai que...

- Confio em vc, tia! Vc não erra uma!

- Melhor confirmar...- Ratifico, incomodada.

- Ok! Mas precisamos organizar a festa de Matteo! Lembra de como foi tumultuada a sua gravidez com todas aquelas coisas acontecendo!?

- Sim...- Respondo num tom de lamento. - Foi uma época sombria. Graças a vcs dois, meu filho nasceu bem longe daqui. Na Itália.

- Tá combinado! - Exclama ela batendo com a palma da mão sobre a mesa. - Daqui a uma semana, teremos uma festa pra curtir, 'Niamh'! - Afirma Cassie, acariciando sua barriga. - Seu primo Matteo já tem um aninho. Não é lindo, filha? E seu pai vai saber que vc é uma linda menininha!

Levo as mãos à boca e ao estômago ao me lembrar do que Antoine me confidenciara no banheiro naquela noite. Contendo minha vontade de chorar, mordo o canto de minha boca e esvazio, em um só gole, a garrafa de água mineral sobre a mesa. Penso no quanto minha filha sofrera até seu avô fazê-la se esquecer de tudo. No entanto, Enrico e eu ainda nos lembramos de tudo, inclusive, da minha escolha que se sobrepõe à escolha de uma doce e inocente criança de nove anos. É, no mínimo, cruel o que fizeram a ela. Cassie, Cassie. O que eu fiz foi por vc e por Liam. Perdão.

- Chorando de novo, tia? Algum problema sério? Conta pra mim.

- Nenhum além da cor do quarto de Antoine. Lilás ou violeta!? Isso me deixa maluca!

- Púrpura! - Exulta ela. - Com borboletinhas por todos os lados! É a cara de Antoine!

- É sim. - Suspiro.




Empolgada com a festa de Matteo e com a noite passada onde Vincenzo e eu transamos por horas seguidas após séculos 'de seca', aguardo Antoine sair do colégio. Matteo, dentro da Kombi, ri de minhas caretas. Cercada por seus amigos que a aceitaram e, agora, a reverenciam, ela me acena do outro lado da rua. Antes de ir buscá-la, acomodo Matteo na cadeirinha presa ao banco traseiro. A fivela emperra. Com a metade do meu corpo dentro do carro, xingo. Matteo chora assim que arquejo de pavor ao ouvir a voz de Antoine gritar por mim. Um grito de medo. O ruído de pneus deslizando no asfalto me faz sair do carro. Imobilizada, assisto à cena. Seus dedos longos e delicados chegam a tocar no vidro dianteiro da 'Range Rover' fazendo-a parar imediatamente. Entusiasmada, Antoine atravessa a rua enquanto o encaro, assustada. 

- Vc viu, mamãe!? O tio parou o carro na hora certa!

- Entra...- Ordeno secamente. Meu coração quer sair pela boca, mas eu me controlo sem desviar os olhos dele. Antoine me obedece e, instintivamente, protege seu irmão sentando-se ao seu lado.

- Não vai me agradecer?

- Nunca. Vc pode ter provocado tudo, verme. Eu te conheço melhor do que vc imagina. - Olhando pelo vidro da janela, ele acena para Matteo ao me provocar.

- Então aquele ali é o meu tatatatatatatatataraneto!? Que coisa fofa! Tem os meus olhos! - Empurrando-o com minhas mãos em seu tórax, eu o afasto e aviso num rosnado.

- Fica longe de mim e de minha família. Nada temos a ver com vc.

- O tempo dirá. - Diz ele abrindo um sorriso macabro. - Dê lembranças àquele que quase morreu. Uma pena a intervenção de Rafael. - Calada, recostada à porta fechada da Kombi, ouço algo intrigante. - Cuidado com ele, meu bem. Ele tem fama de ser impiedoso. Já fizeram a escolha? Por quem eu devo esperar? Pela mãe? Pela filha? Antoine talvez? Não. - Sufoco um soluço demonstrando meu espanto. - Ainda não. Ela precisa terminar sua tarefa antes de se reencontrar com o 'Todo Poderoso'. 

- Para de falar, tio. Eu tô cansada e minha mãe não gosta de vc. - Reclama Antoine da janela. 

- Não deveria. - Ironiza Lúcifer. - Eu acabo de salvar a sua vida, garotinha impertinente. - Enojada, travando as portas, dou a volta na Kombi e, abrindo a porta do motorista, sento-me no banco e  giro a chave na ignição. Antes de acelerar, ouço sua voz sibilante perguntar. - Não vai me convidar para a festa!? Afinal, somos da mesma família! 

Piso no acelerador procurando-o através do retrovisor externo. Ele me acena antes de desaparecer entre a fumaça densa. Ainda nervosa, observo Matteo e Antoine no banco traseiro. Freio abruptamente assim que ouço meu filho balbuciar algo amedrontador. Estacionando na calçada, assustada, indago.

- O que ele disse, filha!? - Com os olhos arregalados, ela responde.

- 'Bo bô'!


Atormentada, aceito o convite de Cassie e deixo as crianças em sua casa. Desejo retornar ao 'Just Dance' e, agora, com dinheiro, iniciar as minhas tão ansiadas aulas de Dança. Aninha me recebe com carinho e, dessa vez, eu a trato com doçura e tento parecer normal. Menos anormal do que da última vez em que aqui estivera.

- Há aulas de hora em hora. Qual seria seu nível?

- Nível!? 

- Iniciante, Intermediário ou Avançado? - Indaga Aninha, sorridente. - Seu marido já havia dito que vc dança muito bem. Quer experimentar o 'Intermediário'?

- Calma aí! Eu...eu...- Insegura, deixo-me levar por ela até a sala onde alunos aguardam o professor. Apavorada, cochicho. - Eu nem tenho roupa, Aninha! Olha como eu vim!?

- Perfeita! - Diz ela ao me olhar de cima a baixo. - Basta tirar os tênis e enrolar essa camisa abaixo dos seios e mostrar o que sabe! Essa calça com cordão e cintura elástica está super 'top'! Vai lá e arrasa! - Sob o olhar desconfiado da turma, faço o que Aninha me aconselhara antes de voltar à recepção. Sentada em um dos cantos do amplo salão, sob o piso em madeira corrida, cruzo as pernas, alongando as costas, de cabeça baixa. Engulo em seco assim que ouço sua voz. Por segundos, nossos olhares se cruzam. Juro ter visto Aiden diante de mim. Aiden e seu sorriso tímido como no dia em que nos conhecemos no teatro 'fantasma'. Ergo-me, abruptamente. Ele vem em minha direção. Recuo, tropeçando em um dos alunos. Caio de bunda no chão. Peço desculpas ao rapaz. Ele, rindo, me ajuda a me levantar.

- Relaxa. Isso acontece. - Levando a mão ao peito, eu encaro o professor.





Não é o Aiden. É bem parecido, mas não é o Aiden. Muito mais novo do que Aiden. Não há nada de irlandês em seu sotaque e, ademais, não o deixariam retornar à Terra depois de tudo. Creio que não. Sei lá. Já não sei em quem confiar. Quando um arcanjo obriga uma criança a escolher entre a vida de duas pessoas, posso esperar de tudo vindo 'lá de cima'.  - Oi???

- Sou Sebastian. - Tremendo dos pés à cabeça, gaguejo meu nome. - Não entendi.

- Adessa. Adessa Rossi. Rossi por parte do meu marido. Vincenzo. Vincenzo Rossi é o meu marido.

- Te conheço de algum lugar? - Pergunta-me ele como se já soubesse da resposta. - Eu acho que sim.

- Impossível. Eu nunca dancei...- Fora de um puteiro, eu nunca dancei. Cara! Ele tem o mesmo jeito de sorrir de Aiden! - Então! Eu nunca dancei em um lugar como esse. Nunca tive aulas na vida.

- Quer me mostrar o que sabe fazer?

- Aqui!?

- Parece que sim...- Retorno no Tempo e não gosto do que sinto. Tudo o que vivi ao lado de Aiden até encontrar a paz nos braços de Vincenzo...- Adessa? - Catando meus tênis e a mochila, peço desculpas e me despeço como no dia em que nos conhecemos...

- Foi um erro pensar que eu poderia recomeçar com a idade que tenho.

- Vc ainda é nova. - Diz ele, tomando de mim, meus tênis. - E talento não tem idade. Agora, eu fiquei curioso. Dance, por favor.

- Meus filhos estão me esperando.

- E nós também. - Resmunga uma das alunas. - Pode ser ainda hoje? - Uma piscadela de Sebastian e arquejo. Assustada e irritada, aceito o convite. - Por que ela precisa de uma audição especial? Nós não tivemos isso. - Retruca a aluna dez anos mais nova do que eu e, certamente, com mais experiência. Apoiando-se na barra, a ponta de seu pé está acima de sua cabeça enquanto ela conversa, tranquilamente. O que eu vim fazer aqui!? Eu só queria assistir a uma aula e não causar confusão! - Acorda! - Grita ela diante do meu rosto. - Não ouviu o professor!? Qual a música!?

- Bianca seja mais gentil ou, se preferir, pode voltar outro dia. - Sugere Sebastian enquanto escolho em seu celular uma de minhas músicas prediletas - Quando estiver pronta, é só me dizer.

- Ok. 

- Música antiga? - Observa ele de olho em minha playlist. - Gostei. 

- Gente velha gosta de música velha. - De cabeça baixa, sigo até o centro da sala de onde sou observada por todos. Em frente ao largo espelho, posiciono-me antes de avisar a Sebastian. - Estou pronta.

Os primeiros acordes da canção me parecem assustadores como os dias que tenho vivido. Assustador como estar diante de um homem que me remete a um mundo que custei a deixar. Entre saltos, piruetas e movimentos de braços e pernas onde tento demonstrar desespero, percorro todo o espaço da sala. Vivo a agonia da cantora ao recordar o amor que sinto pelo homem que quase perdi. Incorporando a bailarina que perdera sua chance de brilhar assim que engravidei, ensaio um giro dos mais difíceis e desisto. Incentivada por Sebastian, lembrando-me de Lúcifer e do meu pequeno Matteo chamando-o de 'vovô', deixo a raiva me levar e, num 'fuoettè', giro por oito vezes seguidas, arrancando palmas dos alunos enquanto sorrio por ter conseguido o que nunca tentara antes. Encorajada pela letra e acordes da música triste e sombria, revejo o sorriso encantador e inocente de Cassie e o quanto vai sofrer por minha culpa. Corro, aos saltos, ao redor da sala. Paro para respirar, preparando-me para um grande e arriscado salto num 'demi pliê'. Impulsiono meu corpo em uma breve corrida e, num 'grand jetè', onde minhas pernas se abrem, ao máximo, flutuo. Pouso sobre o chão e, aflita por todos os pensamentos que me veem à mente, choro, compulsivamente. Curvando meu tronco para frente, meus cabelos soltos cobrem meu rosto. Não quero encarar a turma porque sinto que acabo de ferrar com tudo...


- Por que o choro? - Pergunta-me Sebastian agachado à minha frente. Dando-me um tempo para respirar, ele comenta. - A música mexe com a gente. Vc emocionou alguns alunos. Sua apresentação foi perfeita. Tem certeza de que nunca dançou profissionalmente? - Enxugando meu rosto com as mãos, assinto com a cabeça. Ajeitando meus cabelos em um rabo-de-cavalo, ele os prende com um elástico retirado de seu punho. Uma olhadela ao redor e, de fato, há duas ou três alunas secando o rosto com lenços de papel. Sentindo-me um pouco menos insegura, respondo.

- Nunca. Mas esse sempre foi o meu sonho.

- Gostaria de se juntar à nossa turma?

- Adoraria. - Erguendo-se, ele estende-me seu braço e me levanta do chão. Sorrindo, ele diz.

- Seja bem-vinda, Adessa esposa de Vincenzo. - Dirigindo-se à turma, ele pergunta. - Ainda se lembram da coreografia da semana passada?

Explodindo de alegria, deixo a 'Just Dance' e corro, debaixo da chuva, até a casa de Cassie. Por muito pouco, canto 'Singin' in the Rain' assim que passo por um poste. Sebastian me ofereceu uma vaga de professora na classe de 'Iniciantes' no turno da tarde. Se tiver sorte, deixo Matteo na creche da academia enquanto Antoine ainda não saiu do colégio. Entusiasmada, sigo fazendo planos até chegar ao apartamento de Cassie onde Vincenzo me aguarda. Cassie logo trás uma toalha e, como sempre, preocupada comigo, ordena.

- Seca esse cabelo, tia! Quer pegar outra pneumonia!?

- O que faz aqui, amor? - Pergunto, curiosa, enquanto enrolo a toalha em minha cabeça. - Onde tá Matteo!? Ele chorou!?

- Tá 'de boas', tia. - Rindo, ela esclarece. -  Tá na sala de vídeo com Antoine que tenta assistir ao seu filme enquanto ele corre pra lá e pra cá sem dar sossego a ela. Já retirei tudo o que quebra de cima dos móveis. 

- Ele tá impossível. - Comento estranhando o olhar de Vincenzo fixo em mim. - Minhas costas doem de tanto que corro atrás dele. Essa é a pior fase, mas é fofa. Depois que ele começar a andar sem cambalear, vai ser mais fácil. - Desconfiada, insisto. - O que tá fazendo aqui, Vincenzo!? A gente não combinou de se encontrar em casa e jantar fora!?

- Fiquei preocupado com minha família. Não posso?

- Pode. 

- O clima 'pesou' ou é impressão minha, tia?

- 'Pesou'. - Beijando sua testa, evitando tocar em sua barriga, aviso. - Vou pegar as crianças, Cassie. Obrigada por ter ficado com elas.

- Como foi na 'Just Dance', tia!? Me conta tudo!

- Depois, querida. Depois. - Desanimada, caminho até a sala de cinema. Vincenzo me segue em silêncio. Girando em sua direção, indago. - Algum problema!? Por que tá me olhando como se eu tivesse feito algo de errado!?

- Impressão sua.

- Não faz essa cara de idiota pra mim! - Rosno. - Eu sei quando vc tá puto comigo e eu não fiz nada pra merecer isso! Aliás, eu estava super feliz antes de chegar aqui, sabia!?

- Sim. E até sei o porquê.

- Sabe!?

- Eu estava lá, Dess. Nunca te vi dançar com tanta paixão.

- Sério??? - Sorrio. - Por que não me disse nada???

- Preferi sair antes do professor te beijar depois de prender seu cabelo com um elástico. Foi uma cena fofa. - Inspiro profundamente, inflando as narinas. - Isso é patético! - Apontando o indicador para o seu rosto, alerto. - Vc não vai tirar de mim um dos pouquíssimos momentos de felicidade que tive em muitos dias! Não mesmo, Vincenzo Rossi! - Dando-lhe as costas, abro os braços e, ajoelhada, recebo um abraço apertado de meu filhinho sempre sorridente. Antoine retira a toalha de minha cabeça e seca meus cabelos. - Sentiram minha falta!?

- Senti! - Afirma Antoine aplicando  movimentos bruscos em minha cabeça. Aborrecida, ela argumenta. - Eu amo meu maninho, mãe, mas, tá cada vez mais difícil de ficar com ele! Ele não para! Eu não consegui assistir ao filme!

- A gente assiste em casa, filha. Eu cuido dele. Pode parar de secar meu cabelo.

- Tá doendo?

- Só um pouquinho...- Minto. - Vamos pra casa?

- Vamos! - Exulta Antoine correndo atrás de Matteo que escapa de meus braços e corre pelo corredor. Aos gritos, atrás dele, ela afirma. - Assim eu vou ficar louca!

- Não vai falar comigo?

- O que quer que eu fale, Vincenzo? Que eu e o professor temos um caso?

- Quem sabe? Por que não começa com o que ouvi de Antoine hoje? - Sufocando um soluço, levo a mão ao peito. - Por que me escondeu algo tão importante, Dess? Não somos um casal? Não somos amigos?

- Aqui não é a hora, nem o lugar pra isso. - Retruco num tom baixo. - Em casa, a gente conversa.

- Vai me contar tudo? Desde seu encontro com Celeste na capela até a bizarra escolha de Antoine?

- Vou. Vamos embora. - Chegando até a sala, Cassie nos surpreende com a mesa posta. 

- Ninguém sai da minha casa sem fazer as pazes. Não é, 'Coelhinho'!? 

- O que ela diz é uma ordem. - Afirma Liam beijando a barriga de sua esposa. Um riso feliz e ele confessa. - Se com uma mulher eu já não tinha moral pra nada, imaginem com duas!? Eu serei um capacho!

- Um capacho feliz. - Diz Cassie olhando-o com ternura. - Nosso 'capachinho' fofinho.

Um forte arrepio sacode meu corpo. Meu coração dói enquanto Cassie me traz uma muda de roupa limpa e me aconselha.

- Vai se vestir, tia. Chega de tristeza e  doença por aqui. De agora em diante, ninguém morre. De acordo, Liam?

- Totalmente, amor...

Um beijo apaixonado e Vincenzo me encara enquanto Antoine resmunga.

- Que nojo. Começou...



- Vincenzo, me deixa em paz! Eu já amamentei seu filho até os nove meses sem tomar os meus remédios ou qualquer coisa que me fizesse esquecer dos problemas! Será que eu não tenho o direito de fumar em paz!?

- Não aqui! Em nossa casa! 

- Não seja por isso! - Uma tragada em meu 'beck' e solto a fumaça, em círculos, pela boca, antes de informar. - Posso fumar lá fora sem problemas! - Caminhando até a grande porta da sala em madeira, ferro e vidro, eu a abro e piso, com os pés descalços, na grama molhada do imenso quintal. Debaixo de uma bougainville esplendorosa, segurando o cigarro de maconha com os dedos da mão direita, olho para o lado oposto de onde Vincenzo surge, visivelmente irritado. Ainda assim, ele é um pedaço de mau caminho. Por que não se esquece de tudo e me fode aqui, nessa grama, agora mesmo!?

- Porque temos que conversar, imbecil! - Tomando o cigarro de minhas mãos, ele o joga no gramado e o apaga, pisando em cima dele. - Olha pra mim, Dess! Não foge do assunto!

- Não tô! Eu só queria me desligar um pouco desse mundo...

- Por quê!? Tá infeliz!?

- Idiota! - Ergo-me, furiosa. - É vc quem tá procurando problema comigo! Eu quero paz! É tudo o que eu mais quero! - Segurando-me pelos punhos, ele me impede de socar suas costelas recém curadas. - Não adianta ler a porra dos meus pensamentos. Eu não vou admitir nada.

- Por que deixou que Antoine escolhesse entre a minha vida e a de Cassie, Dess? O que vc fez?

- O que o seu amigo arcanjo fez!? - Exalto-me. - Essa é a pergunta! Como um ser celestial faz barganhas com Humanos, Vincenzo!? Que tipo de seres são esses!? 

- Dess...

- Não manda eu ficar calma! Eu estava calma! Agora aguenta!

- Vai acordar a vizinhança!

- Foda-se! É bom que eles conheçam seus novos vizinhos! O marido bonzinho e a esposa louca que fez a escolha errada! Eu deveria ter deixado vc morrer no lugar dela! Ela não merece!? Me solta!

- Calma!

- Calma é o caralho! Ela não merece e é por isso que fiz outra escolha no lugar de Antoine! Foda-se tudo! 

- Do que tá falando, Dess!?

- Não especificaram qual vida! Eu não escolhi entre vc e Antoine! Eu nem sabia disso antes de vc ser salvo por aquele arcanjo frio da porra! Eu escolhi poupar a Cassie e...- Tentando me conter, desabo. Caio de joelhos e, aos prantos, admito. - Eu pedi...implorei que Antoine escolhesse Cassie. Ela é jovem, saudável. Ainda poderá ter muitos filhos! Se ela morrer, Liam morre. O bebê morre. Antoine vai sofrer muito e eu também!

- Quem te pediu isso, Dess!? Eu não estou sabendo de nada!

- Seu grande amigo arcanjo Rafael não pediu a mim. Impôs essa condição a uma criança de nove anos, Vincenzo! Isso é cruel! Arcanjos são cruéis!? Anjos são cruéis, Vincenzo!? Vc pretende me machucar em algum momento!? Que seja agora!

Um relâmpago reluz no céu escuro. O som do trovão vem em seguida anunciando a chuva.

- Nossa filha chorou, sofreu por ter de escolher entre sua melhor amiga e seu filho pra te salvar, Vincenzo!? Por quê!? Por que diabos os dois não podem existir no mesmo universo!? Que porra é essa de escolha!?

- Escuta, Dess. - Ordena-me Vincenzo, confuso. - Seja lá o que aconteceu, não faz sentido. Rafael jamais faria algo assim. Ele segue as ordens de nosso Pai e Ele, O Criador, jamais destruiria a vida de um casal como Liam e Cassie por um simples capricho. Tem certeza de que foi Rafael quem disse isso!?

- Sim! - Respondo, enraivecida, sob os pingos da chuva forte. - Eu o vi se dirigir a Antoine enquanto vc voltava do mundo dos mortos graças a ele. "Vc fez sua escolha, Antoine. Lembre-se disso", foi o que ele lhe disse antes de partir. 

- Que escolha!? Nós não sabemos!

- Antoine sabe, Vincenzo! Não seja inocente! Tem algo de errado com Rafael! Ele é frio, calculista! Nada tem a ver com Miguel, absolutamente dócil e compreensivo! Tem certeza de que ele joga no mesmo time de seu Deus!?

- NOSSO DEUS, DESS! - Grita ele, confuso. - Não deixe de acreditar que o Nosso Deus está longe de tudo o que não faz sentido. De tudo o que foge à razão. Antoine é um querubim! Tem mais poder do que todos nós juntos! Poderia salvar o bebê e Cassie se assim o quisesse! Tem algo de muito estranho em tudo isso!

- Tem! Sua negação diante do fato de que seu arcanjo Rafael pode fazer parte da 'Legião'!!! - Um tapa em meu rosto e ele recua, arrependido. 

- Perdão, Dess.

- Fica longe. - Aviso ainda sentindo o peso de sua mão em minha pele ardida. - Saiba que, enquanto vc se recuperava em seu quarto, seu pai e eu lutamos para que Antoine se livrasse do peso dessas decisões. Ela estava se exaurindo. Apática, sem forças. Com a ajuda de Enrico, tomei para mim a responsabilidade, a culpa e o castigo da decisão que tomei. Nunca se atreva a falar com nossa filha sobre isso novamente. Seu pai a fez se esquecer do trato. Ela pode ser o que vc diz que ela é, mas, para mim, ela é apenas uma criança de nove anos cheia de vida pela frente. Se alguém tiver de ser punido, serei eu.

- Dess, eu tô confuso...

- Eu também estive, Vincenzo e, enquanto vc transitava entre o mundo dos vivos e dos mortos, eu, sozinha, tive que fazer escolhas que irão pesar sobre os meus ombros pelo resto de minhas vidas, logo, me deixa em paz aqui no meu canto e vai embora.

- Não quero. - Sentando-se ao meu lado, ele confessa. - Não sei viver sem a tua força que me guia. Me perdoa. - Pede-me ele, acendendo outro cigarro de maconha que tira do bolso de seu moletom. Uma tragada e ele, tossindo, admite. - Eu sou um bosta. Te deixei sozinha...

- Vc não teve culpa...- Roubo o cigarro de suas mãos e tragando-o, fecho os olhos e relaxo. - Estamos no meio de uma guerra onde vilões e mocinhos se misturam entre si sem deixar vestígios. Eu não vou deixar Cassie morrer, Vincenzo. Não mesmo.

- Somos dois, amor. E quanto ao fato de nosso Matteo ter o sangue sujo de Lúcifer? O que iremos fazer quanto a isso!?

- Deixa comigo. Já tenho tudo planejado. - Solto o ar esfumaçado pelas narinas. - Vou dar um jeito em tudo, 'bro'. - Tossindo, afirmo. - Tenho tudo sob controle.

Jogado contra a grama, desconfiado, ele indaga.

- Tem mesmo?

- Claro, porra. - Minto.

Jogando-me sobre ele, estapeio seu rosto antes de beijar cada parte dele. Chapada, volto a mentir.

- Eu vou acabar com aquele 'viado' filho de uma puta que, do nada, se acha parente do nosso Matteo.

- É por isso que gosto de vc, safada. - Ronrona Vincenzo. - Mesmo mentindo, vc me convence de que tudo vai dar certo. Obrigado por ter me escolhido.

- Estúpido. Eu te amo. Como eu poderia te deixar partir?

Com os olhos mansos, ele diz.

- Vc existe mesmo ou é uma alucinação?

Retirando a calça de seu pijama, arremessando-o contra a grama, abocanho seu pau e, entre um intervalo e outro, indago.

- Alucinações fazem vc gozar?

Num gemido, sob as gotas da chuva, ele geme.

- Não. Continua... 


- Não quero festa, Cassie. Uma reunião entre nossos amigos seria melhor.
- Prefiro festa! - Exclama Cassie, mais eufórica do que o normal. Algo em seu olhar me incomoda. - Precisamos aproveitar cada minuto de nossas vidas, tia! Essa cortina com borboletinhas coloridas é simplesmente esplêndida! Uma pena que eu não alcance o varão!
- Para, Cassie! - Peço, angustiada. - Se acalme! O que tem hoje!? 
- Nada...- Diz ela forçando um sorriso. Olhando para o teto, ela divaga. - Liam alcançaria...- Diante dela, com a cortina nos braços, ameaço.
- Quer que eu toque em vc e descubra ou vai me contar por vontade própria?
- Sentando-se sobre o tapete felpudo próximo à cama de Antoine, ela confessa.
- Estou sangrando, tia. Quase todas as noites.
- E vc não me falou nada!? Vamos ao seu obstetra agora!
- Calma, tia. Eu já fui...- Esclarece ela, de cabeça baixa. - Meu obstetra disse ser comum em vinte por cento das gestantes.
- ''Comum'' não é normal, Cassie! - Refuto, nervosa. - Já falou com Liam!?
- Ainda não. São os hormônios. Vai passar. - Sentada diante dela, pergunto. 
- O que mais te assusta? Eu sinto que não é só isso.
- Tenho sonhado com Sweet, tia. Ela não tá bem. Aparece toda molhada procurando por seu filho.
- Sweet nunca teve filho. Só filhas. Meninas.
- Tenho medo, tia. - Confessa ela, cobrindo o rosto com as mãos. - Não quero chorar. Não quero que Liam saiba de nada. Ele não merece sofrer.
- Ele é seu marido e, acredite, ele já sabe de tudo e não quer te contar pra não te fazer sofrer.
- Como ele saberia, tia? - TELEPATIA??? - Nunca conversamos sobre isso.
- Mas ele sabe. Pode acreditar. Ele não é como Vincenzo que não esconde seus sentimentos. Ele guarda tudo para si e sofre calado. Fale com ele. Ele vai te ajudar. Eu tenho certeza. Por favor. Cuide-se.
- Vou contar. - Diz ela, aliviada. Pousando suas mãos sobre as minhas, ela comenta. - Vc sempre me ajudando, tia. Não sei como te agradecer por tudo o que fez por mim. - Engulo em seco e tento não pensar na troca bizarra. Apertando suas mãos com as minhas, prometo. - Farei tudo pra que vc e Liam sejam felizes pra sempre. Ok?
- Ok. - Matteo chora em seu quarto. Ergo-me jogando a cortina sobre sua cabeça. O pano branco e fino cobre seu corpo por inteiro. Ela gargalha e, num tom brincalhão, diz.
- Sou um fantasma. Vim do mundo dos mortos. Cuidado comigo. - Rindo de sua voz sinistra, ordeno.
- Fica aí quietinha! Já volto!
Encontro Matteo chorando de soluçar. Retirando-o de seu 'cercadinho', eu o abraço com força, beijando seu rostinho molhado. Secando suas lágrimas, pergunto sentindo os pelos de minha nuca eriçados.
- O que foi, meu amor? Fala pra mamãe. Eu tô aqui. Eu tô aqui. - Repito olhando em seus olhinhos assustados. Apontando para a parede, ele balbucia.
- 'Dodói'.
- Dodói!? - Repito, intrigada. Olhando ao redor, lembro-me de Antoine ao seu lado, assistindo "Monstros S.A." onde ela explicava a ele que monstros fazem 'dodói'. Num repente, entendo a mensagem. Assustada, afirmo. - Não tem monstro aqui não, meu amor. - Desconfiada, repito. - Não tem...
Com ele em meu colo, deixo o quarto e, antes de chegar ao quarto de Antoine, ouço seu grito de pavor.
- CASSIE! - Corro. Matteo assustado com o meu grito, chora em meu colo. Assim que entro no quarto, grito, novamente, ainda que eu saiba que estamos sozinhas em minha casa. - ALGUÉM ME AJUDA!
Sento Matteo ao lado do corpo de Cassie, caído no chão, em posição fetal. Logo adiante, vejo um banquinho em madeira onde ela, provavelmente, subiu a fim de colocar a cortina no varão acima da janela. Chorando de dor e medo, ela acusa.
- Foi ela! Eu vi, tia! Foi ela quem me empurrou!
- Quem!? - Pergunto ao mesmo tempo em que tento erguê-la do chão com meus braços. Desisto assim que revejo a cena em minha mente. - Impossível...
- Foi Celeste, tia! Ela apareceu do nada e me empurrou! Me empurrou! - Abraçando-a com cuidado, choro em silêncio, pedindo ajuda dos céus. Aterrorizada, percebo sangue no chão assim que arrasto seu corpo. Matteo volta a chorar e a balbuciar 'Dodói'. Antes de largar Cassie e engatinhar até meu filho e salvá-lo do toque maligno de Celeste, Enrico surge, repentinamente, e o toma em seu colo. Tremendamente magoado, ele fixa seus olhos úmidos em sua esposa e a faz sumir com palavras cabalísticas que desconheço. Lançando um olhar compassivo a mim, ele afirma.
- Precisamos ser rápidos.
- Sim. - Concordo enquanto Cassie urra de dor. Levando-a em seu colo até a porta da sala, Enrico avisa. 
- Não temos tempo.
- Como assim!?
- O bebê quer nascer agora!
- Como sabe!? - Pergunto, desnorteada. Um de seus olhares profundos e desisto de ouvir a resposta. - Ok! O que faremos!?
- Liam! Eu quero o Liam! - Urra Cassie encolhida sobre o tapete da sala banhado de vermelho. - Chama o Liam! Ele precisa salvar o bebê! 
A campainha toca. Entre Cassie, Matteo e a porta, eu a abro sem olhar quem chegou. 
- Não era pra ser assim. - Choraminga Antoine invadindo a sala, largando sua mochila e lancheira por onde passa. - Ainda não tá na hora. Meu tio falou.
- O mesmo tio de 'Uma vida pela outra!?' - Revolto-me. - Melhor que fique bem longe daqui! - Ajoelhada diante de Cassie, temo perder o pouco de meu equilíbrio. - Calma, meu bem. Vai dar tudo certo.
- Não vai! Salva o meu bebê! - Não posso! Eu escolhi salvar vc, Cassie! Perdão! Não posso te perder! - Cadê meu Liam! Dói!!! 
- Pegue toalhas limpas, álcool e uma tesoura, Antoine!
- De novo!? Aimeudeus! Cadê ele que não aparece! - Grita Antoine, desnorteada, entrando e saindo dos  quartos. - Calma, Cassie! Sua filha vai nascer igual ao meu maninho! Lembra do castelo!? - Apoiando a cabeça de Cassie em seus joelhos flexionados, ela sussurra. - Vai dar tudo certo. Confia. - Cassie arregala os olhos ao fixar um ponto acima de minha cabeça. Entrando em choque, ela berra.
- VÁ PRO INFERNO, SWEET! 
- Sweet??? Que diabos faz aqui??? - Pergunto ao seu espectro molhado, coberto por algas. - Vc não é bem-vinda!
 
- Eu quero meu filho de volta...- Diz ela com os olhos embaçados. Protegendo o corpo de Cassie com o meu, improviso. Jogo o álcool da garrafa sobre Sweet e, entre colérica, insegura e triste, ordeno.
- EM NOME DO CRISTO, SUMA!



Não funcionou. 
Definitivamente, álcool não expulsa espíritos.
- Dess!?
- Me ajuda, Vincenzo!
- O que ela...!? - Pergunta Vincenzo diante de Sweet que, erguendo os braços, lamenta.
- Nosso filho. Ele se perdeu...
Antes de me ver surtar, Vincenzo estala seus dedos diante de Sweet e ela, simplesmente, some. Mas, a minha desconfiança permaneceria até o final do dia. Encarando-me, Vincenzo permanece calado por segundos. De súbito, ele me afasta de Cassie e, de olhos fechados, ajoelhado, parece rezar.
- PRECISAMOS AGIR E NÃO REZAR! - Berro, irritada. 
- LIAM! - Clama Cassie antes de desmaiar de dor. Liam corre em nossa direção. Alucinado, os olhos injetados, ele a abraça e, com o tronco de Cassie em seus braços, implora.
- Fica comigo, amor. Fica comigo. 
- Faça algo ou me deixe fazer. - Rosno empurrando Vincenzo para o lado. Empurro as pernas flexionadas de Cassie após rasgar suas roupas com a tesoura. Um forte tremor e, então, ela assume. - Já fiz isso antes. Fique tranquilo.
- Dess?
- Não. Mas vc me conhece. - Sorrio. - Enrico, tire-o daqui e, depois, me auxilie. O bebê não está na posição correta. - Aviso assim que retiro minhas mãos das entranhas de Cassie. Vincenzo insiste em saber quem eu sou. - Sou sua versão mais antiga, querido. Vá embora e leve Matteo consigo. 
- Salva nossa filha! - Implora-me Liam, devastado. - Ela não vai suportar se o nosso bebê...- Chorando como criança, ele beija a testa suada de Cassie ainda desacordada. Assim que tento mover o feto dentro de seu útero, ela acorda. A dor excruciante a faz gritar. Agarrando-se ao pescoço de seu marido, ela pede.
- Salva nossa filha, amor. Esse foi o combinado. - Outro movimento de minhas mãos numa tentativa em girar o bebê dentro do útero até que sua cabeça se encaixe na saída do canal vaginal e Cassie perde o fôlego e tomba a cabeça para trás. Compadecida, paro o que estou tentando fazer.
- Ela é muito jovem e frágil. Não vai conseguir. - Revelo, num tom baixo, a Enrico que me auxilia com toalhas úmidas e mornas. Vincenzo traz água limpa em um grande balde esterilizado. Sem me olhar nos olhos, ele comenta.
- É pra limpar tudo. 
Coberta de sangue das mãos até os cabelos, abro um sorriso triste ao constatar.
- Vc não se lembra de mim. - Ajoelhando-se ao meu lado, ele sussurra.
- Lembro-me. Mas prefiro que a 'minha Dess' retorne.
- Ela vai retornar. - As mãos geladas de Cassie tocam meu rosto, despertando-me do transe. Enlouquecida pela dor, ela pede.
- Tira ela da minha barriga, com vida. Não me importo com nada. Tira ela com vida.
- Como??? - Indaga Enrico, horrorizado. - O bebê não vai sair a menos que...
- Abra a minha barriga, tia! Eu escolho a minha filha! - De onde estou, ouço tudo apavorada. Minha voz plácida responde.
- Nem nos tempos selvagens em que vivi eu fiz algo parecido, meu anjo. Daqui por diante, deixo nas mãos do Criador. Adeus, Vincenzo. 
Seu olhar triste é a última imagem que ela capta. De volta ao meu corpo, controlo-me para não gritar diante do que vejo. 
- O que eu fiz!? 
- Vc tentou virar o bebê da Cassie, mamãe. Mas não conseguiu.
- Ela tá perdendo muito sangue. Não vai conseguir chegar ao hospital. - Agarrando-me pelos braços, Liam surta ao rosnar.
- Faz alguma coisa. Não deixa minha Cassie morrer.
- Ele chegou! - Brada Antoine. Passando pelo batente da porta, com seu jeito frio de ser, ele reclama enquanto o Tempo para. Vincenzo, Liam, Cassie, Enrico e Matteo assemelham-se à estátuas. Incrédula, pergunto.
- O que faz aqui!?

- Vcs, Humanos, estragam tudo. Ela vai morrer a qualquer momento. 
- Culpa sua! 
- Mamãe! - Repreende-me Antoine ao sue lado. - Ele veio ajudar!
- A matar a nossa Cassie!? Não precisa! Mais um pouco e vc tem a sua troca! - Sua mão forte pressiona meu pescoço enquanto vocifera.
- Eu jamais faria esse tipo de coisa, humana imbecil! A troca se tratava de Antoine e Vincenzo! Ela precisa retornar ao nosso mundo antes que sucumba no seu! De onde tirou essa ideia absurda de que o Meu Pai trocaria a vida de uma criança pela vida de sua mãe!? Ele não barganha! - Arremessando-me contra o sofá, com a voz rouca, respondo.
- Foi Antoine...
- Perdão, tio. Eu me enganei. - Diz ela, de cabeça baixa. Erguendo o queixo de minha filha com seu indicador, ele a perdoa. 
- Vc ocupa o corpo de uma criança, portanto, pensa como uma. 
Lançando um olhar enigmático a Cassie, ele parece pensar. Antoine se agarra a mim enquanto tento respirar. 


- O que pretende fazer, Rafael?
- Arcanjo, por favor. - Reviro os olhos e, num tom sarcástico, repito.
- O que pretende fazer, grande e magnânimo Arcanjo Rafael? Ela vai morrer se demorar. 
- Ela deve morrer para que a criança viva. - Anuncia ele, de costas para mim. Erguendo-me do sofá, com o sangue de Cassie das mãos até os antebraços, refuto.
- Não é justo. Cassie é uma menina exemplar. Pode ter outros filhos. Poupe a vida dela e leve a criança.
- Cassie já viveu o que tinha para viver. A criança pode e deve ser feliz ao lado do pai.
- O pai não vai viver sem a Cassie!
- Por que não viveria? - Pergunta-me ele, com frieza. - Ele não 'caiu' por ela. Pode encontrar outra humana e recomeçar.
- Não é assim que funciona aqui na Terra, Arcanjo! O amor que o Seu Pai nos ensinou nos une uns aos outros! Vc pode não saber o que é isso, mas é isso que nos mantém vivos! O amor! Tire Cassie de Liam e ele vai vagar pela Terra, eternamente. Tire Cassie de mim e, parte de mim, vai morrer com ela. Antoine ama Cassie como se ama uma irmã. - Chorando, suplico. - Deixe Cassie viver. Se precisar levar alguém, leve a mim.
- MAMÃE!!! - Protesta minha filha.
- Antoine e Matteo tem um ótimo pai. Irão sobreviver. 
- NÃO FAZ ISSO! - Ordena-me Antoine, aos prantos. - VC É MINHA MÃE! EU NÃO VOU FICAR SEM VC!
- Filha! É por Cassie!
- Então eu irei, tio!
- NUNCA!
Abraçada a Antoine, choramos juntas enquanto Rafael nos observa, movendo a cabeça de um lado ao outro num gesto de reprovação. 
- Vcs humanos são complicados. Eu não sou a Morte. Não me confundam. Não vim buscar ninguém. Miguel me pediu um favor e, somente por ele, estou aqui. Por Deus, eu promovo a Cura!
- Por favor...
- Cale-se. Estou ouvindo o 'Meu Pai'.
O pavor toma conta de mim. Imobilizada, presa a Antoine, aguardo por sua decisão. Não consigo falar. Não quero. Não vou conseguir ouvir a resposta. Acabo de vislumbrar um pouco de compaixão em seu olhar quando, enfim, ele declara.
- Cassie fica. - Com a voz trêmula, ouvindo o choro de Antoine, pergunto.
- E quem vai partir no lugar dela?
- Vc é extremamente irritante.
- Por favor! Quem fica!?
Um sorriso frio e ele desaparece deixando um rastro de pontinhos luminosos no ar. Antoine não quer se separar de mim. Eu a arrasto até a cozinha. Bebo da água da torneira. Ela faz o mesmo. Nunca a vi com tanto medo. Reunindo minhas forças, prestes a ter um colapso nervoso, modulo a voz, ao explicar o que não tem explicação.
- Filha, vai dar tudo certo. Eu vou partir agora, mas, um dia, a gente vai se encontrar e...
Nossos olhos estatelados se encontram assim que ouvimos Liam, da sala, urrar de dor.

- TRAGAM ELA DE VOLTA!

Há tanta dor em sua voz que levo um tempo até ter coragem de regressar à sala.



Continua...




CAPÍTULO 34 - IMPERFEITO

  De volta ao quarto, encontro Antoine dormindo no sofá. Vincenzo, sonolento, avisa que nossa filha não quis ir embora com Cassie e Liam. ...