'Dess - Uma História Interessante'

'Dess - Uma História Interessante'
AMO ESCREVER

CAPÍTULO 27 - RESET





Sweet some de nossas vidas, porém, ainda deixa sua sombra por todos os cantos da casa.

Sinto que o confronto final se aproxima, mas não posso lidar somente com o mundo dos Imortais. Afinal, as contas não param de chegar e Antoine se encontra abatida. Talvez, somente agora, ela tenha se dado conta de que perdera suas amiguinhas de maneira brutal. Cassandra se desdobra a fim de alegrar Antoine, mas percebo seu medo constante de que Sweet surja, do nada, e volte a surtar. Em meu único dia de folga, levo Antoine e Cassandra a uma pizzaria perto do prédio onde moramos. Aguardando pela pizza de muçarela, olho ao redor, tentando esconder meu recente pavor. Desde que Doc sofrera aquele atentado, sinto que nunca estou sozinha. Há olhos invisíveis que me observam. Tento não pensar em Aiden, no entanto, sua figura protetora me vem à mente. Ao seu lado, eu não sentia medo. Óbvio. Eu dormia com o inimigo. Ele era o Medo, o Mal. 

Por que diabos eu não aceitei Vincenzo de volta às nossas vidas!? Ele mesmo enfrentou Lúcifer diante de mim! Estamos livres e eu, sem entender o porquê, o afasto novamente! Burra! Muito burra! Eu me odeio! EU TAMBÉM. EU JAMAIS O AFASTARIA SE ELE ME AMASSE. Vc deveria estar dormindo! 'NO NAY NEVER!'. ESTAREI ATENTA A TUDO ATÉ O FIM, AGUARDANDO POR UMA BRECHA. Pois essa brecha não vai rolar, cretina! Dorme!

- Que cara é essa, tia?

- De arrependimento. - Respondo. - Preciso voltar a tomar meus remédios, mas não tenho grana pra pagar um psiquiatra e, sem psiquiatra, sem receita e, sem receita, sem remédios.

- Desde quando vc precisa de receita médica pra comprar remédios de 'tarja preta', tia!?

- Cassandra! O que está insinuando!? - Debruçando-se sobre a toalha quadriculada, ela cochicha. 

- Não tô insinuando, tia. Tô afirmando. Me dê os nomes de seus remédios e eu os consigo, 'de boas'. - Olhando-a com incredulidade, lamento.

- Ainda assim, não teria grana pra pagar por eles.

- Então luta. - Sugere Antoine recostada à parede próxima a imensa janela da fachada. - Por que tá me olhando assim, mamãe? Vc sabe que eu não gosto que me olhem assim. Eu não sou esquisita. - Modificando minha expressão de espanto, sorrindo questiono. 

- De que luta vc tá falando, filha?

- Putz...- Resmunga ela revirando os olhinhos. Cassandra sorri para mim enquanto aperto as bochechas de Antoine e a chamo de 'coisa fofa'. Rindo de seu apelido, ela continua. - Do campeonato de boxe, mãe. Se liga.

- Boxe!?

- É tia. Tá rolando um campeonato na...- Arrependida, ela se cala. Antoine toma sua vez e, exultante, comenta.

- Meu pai disse que vai ser o campeonato do ano, mãe! Vc precisa lutar! Tem vários prêmios!

- Calma, pirralha. - Diz Cassandra, num tom brincalhão. - Vai ter um ataque cardíaco. - Sem se importar com Cassandra, Antoine prossegue.

- A gente precisa de grana, né!? Então! Vc luta e ganha e pega o dinheiro!

- Fácil. - Ironizo. - Eu luto há tanto tempo...

- Papai te ensina, mãe!

- Aaah...- Chego a me imaginar no ringue com Vincenzo e seu corpo perfeito e suado e seus olhos incidindo sobre os meus. Em meus pensamentos, eu o agarro pelo pescoço e...- Vai ser muito fácil. - Arquejo. - Treinar com seu pai é tudo o que eu não quero, filha.

- Por quê!? Ele luta pra caramba! Vai, mãe! Aceita e eu falo com ele agora mesmo!

- A pizza chegou! - Celebra Cassandra, faminta. 

- Espera! - Grito, receosa. O garçom, intrigado, mantem a bandeja em sua mão enquanto toco em seu antebraço e, de olhos fechados, eu me concentro. Antoine protesta. Cassandra resmunga um "bizarro" enquanto capto memórias do rapaz à minha frente. 



Abraçado à sua filha, ele lê páginas de um livro enquanto ela boceja, tranquila, em sua cama. Sua esposa abre a porta do quarto, ostentando uma imensa barriga. Eles se beijam e traçam planos para o futuro. Sorrio, aliviada. Ele é um bom homem. Não nos faria mal. Abro os olhos e percebo o clima tenso que acabo de criar. - Desculpa. - Peço ao garçom, liberando seu braço. - Eu eu eu...

- Ela faz isso de vez em quando, amigo. Tem um probleminha na cabeça. Sabe como é, né? Deixa comigo. Pode ir. - O garçom recua, gargalhando. Vincenzo, sorrindo, senta-se ao lado de Cassandra e comemora. - Cheguei na hora certa!

- Papai! - Brada Antoine pulando em seu colo. - Eu sabia que vc 'vinha'.

- 'Viria'. - Corrijo Antoine devorando o primeiro pedaço da pizza e aguardando alguma reação em meu corpo. Doc tomara o café e o veneno fizera efeito horas mais tarde. Como saber se...? - O que foi!? 

- Relaxa, Dess. Isso já passou. Lembra? "Já deu, burro. Já deu". - Diante das gargalhadas de Antoine, retruco.

- Não entendi.

- Ele tá repetindo a frase de 'Shrek', mamãe! - Esclarece ela agarrada ao seu pescoço. Eufórica, Antoine avisa. - Mamãe vai lutar, pai! E vai ganhar a grana pra comprar remédios! - De olhos fechados, ordeno.

- Filha. Para de falar, por favor.

- Mas...

- Remédios? As vozes voltaram? - Assinto com a cabeça enquanto sirvo pedaços da pizza a Cassandra e Antoine. - Ela quer voltar?

- Ela quem!? - Pergunta Antoine de boca cheia. - Tia Sweet!? Essa não volta não!

- Como sabe disso? - Indaga Cassandra, assustada. - Tenho tido pesadelos com ela quase todas as noites.

- Ela já encontrou um lugar pra ficar.

- Antoine, como sabe disso!? - Aflita, eu encaro Vincenzo segundos antes de perguntar. - Filha, vc tem falado com ela!?

- Não. - Responde-me ela, inocentemente. - Foi aquele tio que vc não quer que eu fale o nome dele que falou comigo. - Exaltada, aumento o tom de voz ao repreendê-la.

- Eu já não te disse pra não falar com ele!? Ele continua a te visitar em nossa casa!? - Vincenzo sentando-se ao meu lado, me abraça enquanto sussurra.

- Fica calma. Assim, ela vai se assustar.

- EU TÔ ATERRORIZADA, VINCENZO! - Apertando-me com força em seus braços, ele aconselha. 

- Fica calma. Quanto mais soubermos, mais chances de acabarmos com ele e com Sweet. - Tentando conter as lágrimas, lamento.

- Não é possível que a gente não tenha um dia de descanso. Um só dia. Eu queria ter um só dia como um ser humano normal...

- Não somos normais, Dess. - Mergulhando em seus olhos da cor do mar, eu me acalmo. - Vai dar tudo certo. Eu vou cuidar de tudo.

- Vc sempre diz isso e sempre acontece alguma merda.

- Mamãe! Merda é palavrão! - Protesta Antoine. Trocando de lugar com Cassandra, ela alerta. - Fica longe da janela, Cassie. - Assombrada, Cassandra pergunta.

- Por quê?

Antes mesmo de Antoine responder, sua imagem surge do outro lado do vidro da fachada. Um grito de horror e Cassandra tomba da cadeira e, no chão, arrasta-se para longe de Sweet que nos acena, sorrindo, abraçada pela forma demoníaca de Lúcifer. 

Vincenzo se ergue enquanto protejo Antoine em meu colo. Correndo até a porta de saída, ele grita por seu nome, atraindo a atenção dos poucos clientes na cantina acolhedora. A imagem se desfaz com a mesma rapidez que surgira. 

- Ele quer Antoine. - Sussurro, aos prantos. - Ouvi o que ele pensou.

- Nela, ele não toca. - Diz Vincenzo, enfurecido e impotente.

- Fica longe. - Peço antes de fechar a porta do apartamento e deixá-lo do lado de fora. - Sua presença é um perigo às nossas vidas. Vc sabe disso. Ele não vai desistir enquanto não tiver vc de volta.

- Eu não volto à Legião. - Rosna Vincenzo. Forçando a porta contra mim, ele me pede. - Deixa eu dormir aí. Só por hoje. Não vou dormir em paz se ficar longe de vcs.

- Deixa, tia...

Ainda tremendo de medo, observando o horror estampado no rosto de Cassandra e ouvindo a estridente voz de Antoine repetir a palavra 'Deixa' por centenas de vezes, concordo.

- Só por hoje.


Não tivemos tempo para conversar. Não havia o que ser dito. Ele conhece a verdade e eu também a conheço. Enquanto não afastarmos, de uma vez por todas, Lúcifer de nossas vidas, não teremos uma vida em comum.

Talvez, eu tenha que revelar meu grande segredo escondido por séculos e séculos. 


Por enquanto, durmo com as meninas em nosso quarto e o sinto se mover no sofá minúsculo da sala.

Será que um dia teremos uma vida normal?

"Sem dúvida", responde-me ele invadindo meus pensamentos. Em resposta, suplico num tom baixo.

- Pelo bem de Antoine, até lá, suma de nossas vidas.

"Ok".



Doc me leva até a casa de shows de seu grande amigo onde sou convidada a trabalhar. O salário é bem melhor do que o que eu recebia no 'pub'. Além disso, posso circular pelo salão, servindo clientes e curtindo o som das músicas escolhidas, com perfeição, pelo DJ. Tenho duas folgas semanais onde treino boxe com João, amigo e sócio de Vincenzo. A sensação de socar o 'punch' é indescritível. Lutar me faz esquecer os tormentos do dia-a-dia e me deixa leve, livre da raiva que ainda guardo de Sweet e Vincenzo. Como ele pôde transar com a vagabunda que deseja matar minha filha na intenção de trazer as dela de volta à vida??? 

- Slugger! - Grita João esquivando-se de meus socos. - É isso o que vc é!

- Não entendi! - Desatenta, sou atingida por seu soco. Do tatame, suada, repito. - Não entendi. 'Slugger'!? - Estendendo seu braço, ele me ergue, pedindo-me desculpas. - Sem problemas. Sou forte pra dor. O que é uma 'slugger'? - Sob a luz forte acima do ringue, ele explica.

- Um lutador 'perfurador' rápido e forte e com muita resistência. É um dos estilos atuais do boxe. - Esvaziando a garrafa de um litro d'água, concordo. 

- Sou mesmo. Sou rápida e forte. Ai de quem se meter com a minha filha.

- Gosto disso em vc, Adessa. Seu amor por sua filha não tem limites.

- Não. Nenhum. Sou capaz de matar por ela. - Confesso jogada contra o tatame, de olhos fixos no teto. Faltam duas horas para Vincenzo chegar e treinar seus alunos. Preciso ser ágil para sair daqui antes de sua chegada. João se despede. Exausta, permaneço deitada. Curiosa, indago aos berros. - Que tipo de lutador é Vincenzo!?

- Um 'Counter Puncher'. Levanta daí, vai. Sua aula acabou.

- João me disse que vc chegaria daqui...

- Cheguei antes. - Diz Vincenzo enfaixando os punhos e dedos com bandagens elásticas. - Algum problema?



- Nenhum. - Rumino, erguendo-me diante dele. Espetacular a imagem que tenho daqui. Noto um sorriso no canto de sua boca o que me faz ruborizar. - Idiota. Vc ouviu?

- Fazer o quê? Ser gostoso é uma merda. - Arfando, tento mover os pés do tatame sem sucesso. Estalando os dedos entre meus olhos, ele avisa. - Sua aula acabou, idiota. Minha aluna tá chegando.

- ALUNA??? - Sua gargalhada mexe comigo. Meu sangue sobe até a cabeça enquanto o chuto na lateral das costas. Um chute rápido e forte. Um gemido de dor e eu esclareço. - Sou uma 'slugger'. Melhor ter cuidado com o que fala daqui por diante.

- Que meda...

- Eu vou. - Aviso bem próxima aos seus lábios. Inspiro seu perfume cítrico antes de ameaçá-lo. - Mas eu volto e vou acabar com essa tua aluna vagabunda e com qualquer outra que me enfrentar. - Um passo à frente e ele me instiga, molhando os lábios com sua língua.

- Disso eu não tenho dúvida. O prêmio é seu.

- Professor?

- Diana.

Meu ranço triplica ao ver sua aluna três vezes mais jovem e bela do que eu. FILHO DA PUTA!

- Ela vai ficar aqui? - Pergunta a 'novinha'. Avançando sobre ela, respondo num rosnado.

- No nay never

Antes de deixar a academia de boxe, Vincenzo me alcança na calçada e, expressando preocupação, pergunta.

- Tem tomado seus remédios, Dess?

Cobrindo minha cabeça com o capuz de meu moletom, sentindo-me extremamente fraca, respondo.

- Não. Não sei. Eu me esqueço de me lembrar. Acho que sim. Por quê? 

- Porque eu não quero te perder. - Grita ele de volta ao ringue. Pulando feito um canguru, ele avisa. 

- Vou te ligar todas as noites até vc se lembrar de tomar sozinha, idiota!

- O que é um 'Counter Puncher', imbecil???

- Um lutador rápido, com técnica, intuição e muita paciência pra te aturar! Além de gostoso!

Uma piscadela e eu me derreto. Vou sorrindo sob a chuva fina até chegar ao 'hall' nosso prédio antigo ao estilo 'O bebê de Rosemary'. Engulo meu sorriso, inflando as narinas.

- O que faz aqui? Já não é bem-vinda, Sweet.

- Eu sei. Bateu saudades de Mimi e Juju. Eu queria ver Antoine. Só isso. - Desfigurada pela dor e pelas drogas, ela implora. - Posso falar com ela um 'segundinho'?

- Não. - Tocando-a em seu rosto pálido e frio, capto suas intenções. - Eu sei o que quer, vaca. - Mudando de expressão, ela debocha.

- Não me diga? E o que seria? 

- Falta sangue. Não é? - Desesperada, Sweet se ajoelha diante de mim e implora.

- É só uma gota. Uma gotinha e minhas filhinhas voltam pra casa. - Horrorizada, recuo até a escadaria. - Amiga. - Diz ela engatinhando como serpente em minha direção. Subo um degrau enquanto ela repete, com a voz gutural. - Amiga. É só uma gotinha.


Um chute em seu queixo e a faço rolar pelo chão. Urrando de dor, ela volta a si e, de joelhos, implora antes de desmaiar.

- Estou no inferno, amiga. Me tira daqui, por favor...



Num piscar de olhos seu corpo desaparece, porém, suas palavras sofridas e sinceras permaneceriam em minha memória até o fim. Temendo pela vida de Antoine e Cassandra, eu as deixo por um tempo na casa de Doc e Adele que as acolhem com ternura e amor. Ver Antoine chorar ao se despedir de mim, corta meu coração em trilhões de pedaços.

- Vai ser por pouco tempo, filha. Eu juro.

- Não vai, mamãe. Agora a tia Sweet é o monstro e vc vai ter que matar esse monstro. - Esfregando as mãos na cabeça, ela se mostra nervosa. - Tudo de novo. Tudo de novo. - Lamenta ela, chorando. - Isso não é justo. Eu odeio meu tio Lu! - De joelhos, eu a encaro e assevero.

- Ele não é e nunca será seu tio, filha. Nunca mais volte a falar com ele. Entendeu? Mamãe vai precisar lutar sim. Vou vencer o campeonato e, com a grana que eu receber, vou poder comprar outro apartamento bem longe daqui. Ok?

- Mimi e Juju estão chorando, mamãe. - Engolindo em seco, inspiro profundamente e comento.

- Elas estão com saudades da mãe. Em breve, todas estarão juntas e Mimi e Juju vão parar de chorar.

- Tem certeza? - Relembrando os passos de meu plano macabro, afirmo.

- Sim.



Não sei se pelo nervosismo diante de mais um problema diabólico em minha vida ou se pela saudade que sinto de Antoine e de seu cheirinho ao meu lado na cama ou, talvez, pela raiva em ver Vincenzo se divertir com uma jovem cheia de vitalidade e vontade de transar com o meu homem enquanto finge treinar com ele. O fato é que, enquanto servia as mesas da casa noturna onde trabalho, eu me permiti dançar equilibrando uma bandeja com garrafas de cerveja sem deixar nenhuma delas cair. Entregando-me à Música, eu me esqueci, por segundos, de meu mundo caótico.

Percebendo meu entusiasmo, o DJ aumenta o som e me incita a continuar. Ressabiada, deslizo a bandeja no balcão onde subo e exibo uma de minhas coreografias que nunca foram devidamente valorizadas no 'California'. Assim que a música termina, o silêncio precede as palmas. Envergonhada e feliz, presto reverências à plateia e, de posse da bandeja, sumo do salão, certa de que serei demitida. 

- Em uma 'Companhia de Dança' de verdade??? Eu???

- Sim! E por que não!? Vc dança muito bem! Por que se esconder aqui!? Já estudou em alguma Escola de Dança!? - A imagem de Aiden retorna à minha mente. Ele sempre me incentivou a dançar. Dançamos juntos no 'teatro fantasma'. - Vc está bem?

- Sim. - Respondo ao homem maduro e distinto à minha frente. Um aperto de mão e o vejo entre bailarinos e professores. Aliviada, pergunto. - É sério? Vc acha que tenho chances?

- Todas. Eu sei enxergar um talento à distância. - Um sorriso honesto e ele me entrega seu cartão antes de partir. - Aguardo por sua resposta. Bom trabalho.

- Obrigada...- Suspiro. Enfim, uma boa notícia. Talvez, eu consiga realizar meu grande sonho e ter uma vida normal. 

Talvez...

Doc me confirma a idoneidade do cliente e me felicita, emocionado. Aos pulos, ao lado de Antoine e Cassandra, comemoro o primeiro passo rumo à mudança de nossas vidas.

- Onde vai dançar, mamãe!? Eu quero ir! - Abraçada a ela, comento. 

- Ainda é cedo, filha. Ainda é cedo.

Cedo demais para comemorar minha vitória antes das batalhas que estariam por vir.


Meu último treino com João antes do campeonato é cancelado por ele no último instante. Irritada com sua ausência por estar lesionado, enfaixo meus punhos e dedos à espera de seu substituto, um dos alunos da academia. O campeonato é amador, no entanto, tenho me esforçado ao máximo a fim de levar a grana do prêmio comigo. Meus planos em vender o apartamento onde ainda moramos e comprar um outro, há léguas de distância daqui, ainda está de pé. Sentada no tatame, cruzo minhas mãos na nuca e, baixando a cabeça, repito.

- Eu vou conseguir. Eu vou conseguir.

- Eu acredito em vc. - Levanto a cabeça e, contrariando minha vontade, sorrio por segundos. Erguendo-me do chão com a rapidez de um felino, argumento. 

- Hoje quem vai mandar vc 'vazar' sou eu. Meu professor tá chegando. Cadê a sua 'novinha'?

- Aqui. Cheia de ciúmes, na minha frente.

- Não seja ridículo! João não faria...?- Abrindo um sorriso cafajeste, ele responde.

- Faria. Eu que pedi. Vc não pode lutar sem que um mestre te oriente.

- Convencido! - Empurrando-o com a lateral de meu corpo modelado por recentes músculos, salto do ringue, protestando. - Isso não é justo! Eu preciso treinar! O campeonato é amanhã, porra! - Do ringue, ele me provoca.

- Tá com medo, covarde!? Vem me encarar! - Giro nos calcanhares e, de volta ao ringue, refuto.

- Não é medo! Tenho pena de vc quando a nossa luta acabar! - Bem próxima a ele, rosno. - Tô com tanto ranço de vc que sou capaz de te matar, velho babão!

Uma gargalhada sonora e eu volto a sorrir, estupidamente. O Tempo poderia parar aqui e agora. Nós dois, sozinhos, brincando de brigar...

- O Tempo não para, panaca! - Grita ele encostando, de leve, sua luva em meu rosto. - Da próxima vez, vai doer.

- Duvido!

Disposta a lutar e a extravasar minha raiva, eu o golpeio com agilidade e força. Ele se defende usando suas luvas na altura do rosto aguardando o melhor momento de me desferir um golpe ou se divertir às minhas custas. Eu o irrito tanto com meus chutes na lateral de seu corpo - golpes proibidos no boxe - que sou atingida por um 'upper' no queixo. Desorientada, eu caio contra o tatame de olhos fechados. Retirando as luvas com rapidez, ele ergue minha cabeça com uma das mãos e, com a mão livre, acaricia meu rosto ao perguntar num tom aflito.

- Dess, vc tá bem!? Foi sem querer! Eu Juro! Vc me irrita, porra! Dess! Acorda!

- Não grita. - Rosno, abrindo os olhos. Movendo, exageradamente, o maxilar, prossigo. - Não sou surda, mas posso ter perdido um dente. Covarde. 

- Perdão...

- Não sorria assim pra mim. - Ordeno permitindo que ele erga meu tronco, vagarosamente. - Eu te proíbo.

- Se eu te pedir pra não lutar, vc vai aceitar?

- Nunca! Por que eu desistiria da luta!? É amanhã! Vc acha que luto mal!? - Sentado ao meu lado, ele responde ao beijar o dorso de minha mão.

- Não. Só tenho medo de que te machuquem. Nossa filha precisa de vc, Dess.

- E de vc também, bastardo. - Recostando-me em seu torso, sinto-me segura. - Não é vc que se diz o pai dela?

- E sou. Vc se esqueceu, né? - Ajeitando com os dedos, minha franja, ele me intriga. - Tivemos uma filha, Dess. Em uma época remota. Essa filha teve outros filhos e os outros tiveram outros, mas todos são da mesma linhagem pura nascidos do relacionamento entre um anjo e uma mulher. - Recuando, protesto.

- Porra! Isso é demais pra minha cabeça! Pode parar! - De pé, cambaleio. Ele me ampara. Em seus braços fortes, ele me leva até a porta do vestiário feminino. - Com meus braços em seu pescoço, pergunto, maliciosa. - Pretende entrar?

- Se vc fechar a porta por dentro, eu entro. - Ruborizo.

- E fazer o quê?

- Te foder...

- Devasso.

- Te amo. 

- Eu também. - Arrependida por ter me declarado, ordeno após um longo e molhado beijo em sua boca. - Ponha-me no chão.

- Sim, senhora. - Diz ele, arfando. Voltando ao meu estado de raiva permanente, pergunto.

- Por que não vai dar aulas à sua 'novinha'? - Desconversando, ele replica.

- Dess, vc não precisa do dinheiro do prêmio. Vc tem a minha casa que é sua. Vamos pra lá onde aquele verme e Sweet não poderão entrar.

- Por que esse medo, Vincenzo!? Vc conhece minha adversária!?

- Dess...

- FALA! ELA É MAIS PESADA DO QUE EU!? MAIS FORTE!?

- Não, idiota! Ambas são 'peso pena'! Mesma categoria, pesos similares!

- Então qual é o problema!? Acha que não sou forte o bastante pra acabar com ela!?

- Ela é uma 'Out-boxer'.

- Sei. - Abrindo a torneira da pia do banheiro, jogo água em meu rosto suado. Observando seu corpo através do espelho, contenho minha ânsia em voltar a beijar sua boca e debocho. - Desenvolve. - Preocupado, ele explica.

- Ela não 'cai dentro' como vc. Vai te cansar até acertar um golpe mil vezes mais forte do que aquele que te dei agora há pouco, amor. Vc não precisa disso. 

- Vc não acredita em mim!? - Pergunto, magoada, ao seu reflexo. - Vc acha que luto mal!?

- Dess, vc começou agora! Ela tem anos de experiência! Me ouve! - Usando dezenas de papéis-toalha em meu rosto e braços, refuto antes de deixar o banheiro e caminhar até a saída. - Eu sou uma 'Slugger', meu bem!

- Dess!!! - Grita-me ele, desesperado. - Não luta! - Da calçada, eu o xingo ainda que reconheça verdades em seus conselhos. - Me ouve!!!

- PARABÉNS, VINCENZO! - Berro, irritada. - AGORA VC ME DEIXOU COM MEDO! SATISFEITO! SE EU PERDER, A CULPA SERÁ SUA!


Ouvindo música, tento me acalmar antes da luta. Vincenzo tenta se aproximar e eu o evito. Aqueço-me sozinha, à espera de João enquanto ouço o coro de uma pequena multidão aplaudir a luta entre os homens. Minha hora está chegando e eu sequer conheço minha adversária. 

- Vai se cansar antes da luta. - Orienta-me ele. - Para de se aquecer um pouco.

- Vai pro inferno, Vincenzo. - Choramingo. - Eu tô com medo por sua causa. Eu estava super confiante e agora...

- Amor...

- SAI!

Subo no ringue no exato momento em que as luzes do grande salão se apagam e um dos meus 'hip-hop' preferidos estremece o chão através dos potentes alto-falantes. Semicerro os olhos e, então, eu a vejo com a cabeça coberta por um capuz vermelho, em seda, desfilando em um 'corredor polonês', vindo em minha direção.

- Que porra é essa, Vincenzo!? - Grito do ringue. - Ela tem música e eu não!

- Foca na porra da luta, Dess! - Repreende-me ele enquanto desço do ringue e, arquejando de ódio, questiono. - Por que ela tem música e eu não!? Eu sou a porra de uma bailarina! Eu merecia ter música! - Agarrando meus braços com força, ele me encara. Consigo enxergar o temor em seus olhos ao me alertar.

- Ela pagou pela música, Dess. Foca na porra da luta ou vai perder.

- Ela pagou!? Ela pode e eu que deveria ser a mãe de sua filha e a mulher que vc diz amar não mereço musiquinha!?

- PORRA, DESS! SOBE!

- NÃO GRITA COMIGO! EU NÃO SOU SURDA!



De volta ao ringue, eu a aguardo enquanto faço o meu 'showzinho' particular, requebrando e me cansando ainda mais. Atraio a atenção da multidão, vingando-me de Vincenzo e da mulher gigantesca que se mostra por inteiro ao retirar o manto e arremessá-lo contra as cordas flexíveis. Paro de dançar e o único pensamento que me vem à cabeça é: 

'Que porra que eu tô fazendo aqui!?'

Confronto o juiz ao reclamar.

- Ela não tem o mesmo peso que eu! Não mesmo! Cancela tudo!

- Com medo, 'mosquinha'? - Desdenha a vaca gigantesca e loira que esbarra em mim, propositadamente. Por segundos, enxergo o rosto de Sweet. Confusa, balanço a cabeça, piscando os olhos, aflitos. - Vai começar ou não!?

- Dess, foca na luta. Por favor...- Suplica Vincenzo antes de descer do ringue e me deixar sozinha com a mulher monstruosa. - Foca na luta e foge dos 'jabs'. Foge do 'jabs'!

Em meio ao caos, esqueço dos golpes e não faço ideia do que venha a ser um 'jab'

- CADÊ O JOÃO??? - Grito, desesperada, pendurando-me nas cordas. - ELE NÃO VAI SER O MEU 'CORNER'???

O som do primeiro 'round' soa quando Vincenzo avisa, contendo seus nervos.

- Eu serei seu 'corner'! Agora vai e luta! Vc consegue!



Após quatro 'rounds', tudo o que consigo é um olho inchado, uma tremenda dor na cabeça e em todos os músculos dos braços, tórax e costas. Jamais havia apanhado tanto na vida. Apesar de ter a minha altura, minha adversária tem a voracidade de uma leoa e a astúcia de um crocodilo. Sabe exatamente o meu ponto fraco: a impulsividade.

- ESQUIVA, DESS! ESQUIVA!

- Não grita comigo. - Choramingo sentada num banquinho em um dos quatro cantos do ringue. Vincenzo usa gelo nas feridas de meus supercílios e na nuca. Isso, de certa forma, não me deixa entrar em pânico. Com ele ao meu lado, sei que não vou morrer no ringue. Ao menos isso! - Ela é forte demais. Não vou conseguir. - Cochichando em meu ouvido, ele me incentiva.

- Vc é esperta, amor. Deixe-a cansada de tanto esperar por seu golpe. Dance, pule e não deixe de golpear. Fuja de seu 'jab'. Ela vai se cansar e, então, acabe com o jogo!

Oitavo 'round' e me irrito com a torcida que a apoia. Sigo as dicas de Vincenzo e a provoco. Com ódio nos olhos vermelhos, ela avança e me prende às cordas. O juiz apita. A luta para. Ela recua, rancorosa. Sem enxergar quase nada, eu dou saltos no meio do ringue quando sinto o peso de sua mão de chumbo em minhas costas. Meus ossos estalam. Estirada no chão, ainda ouço os protestos de Vincenzo:

"Golpe baixo!".

Cuspo sangue no tatame enquanto ouço o juiz contar de um até dez. Tento me mover e não consigo. Penso em Antoine. Se ela estiver me assistindo? Terá vergonha de sua mãe. 

- Me dê sua mão e, talvez, eu te ajude. - De bruços, giro meu corpo. Escutando o som dos números em câmera lenta, enxergo seu vulto ao meu lado. - Vamos lá. Vai deixar essa vaca te vencer e conquistar seu treinador? Ela adora apanhar dele. Vc mesma viu. Não viu?

- Como? - Indago de olhos fechados. Gritos, vaias e sua voz serena e sibilante me incita a lutar. - Treinador? Vincenzo?

- Quem vc acha que treinou sua adversária, meu bem? Quem vc acha que ela é? Dá uma olhadinha.

Reúno todas as forças que ainda possuo e, contrariando as expectativas do público, agarro-me às tiras elásticas. De pé, ouço o som do gongo soar novamente antes de perguntar, cheia de ódio.

- Quem treinou essa vagabunda foi Vincenzo?

- Dess, senta no banco! Vc tá sangrando muito! Seu olho direito!

- Cretino...- Rosno procurando por ele através do som de sua voz. - Aquela é Sweet? 

- Não. É Lady Gaga, meu bem. Por San Juan Diego! Reaja e me deixe ver vc chorar quando eu tocar em sua filhinha ainda hoje. Ela vai me trazer um pouquinho de seu sangue. - Atordoada, berro.

- NUNCA! NINGUÉM TOCA NA MINHA FILHA!

Enxergo seu sorriso irônico antes de perceber que ela vem em minha direção. Sweet me encara e, zombando de mim, proclama.

- Perdeu, piranha.

Um borrão vermelho e desapareço. Movo meus braços e pernas com ódio e agilidade. Avanço sobre ela, aos gritos.

- Vagabunda! Ninguém toca na minha filha!

Uma sequência enlouquecida de 'jabs' em seu rosto e finalizo com um 'upper' furioso em seu queixo. Desmaiada no tatame, monto sobre seu tronco. Sem enxergar seu rosto, aviso.

- Fica longe da minha filha.

Vincenzo me arrasta até o canto do ringue com seu olhar desconfiado.

- Dess?

- No, nay, never, collach

Urros da plateia e o juiz ergue meu braço ao declarar 'Nocaute'. Sem compreender exatamente o que está acontecendo, penso em Antoine. Vincenzo ainda tenta se aproximar de mim com seus olhos arregalados. Atrás dele, Lúcifer sorri ao se despedir. Entre confusa e enciumada, cuspo em seu rosto.

- Dess, volta!

- Porco covarde! Te odeio! - Sussurro sem forças. Tomando-me em seus braços, ele ordena:

'Durma, Eileen!' e cantarola aquela velha canção irritante. 



- Venci?

- Venceu, amor. - Responde-me ele enquanto cuida de meus ferimentos. Deitada sobre a maca no vestiário, eu o ouço prometer. - Eu não vou te deixar sozinha novamente, Dess. Chega de sofrer tanto. Agora eu vou cuidar de vcs.

E eu, como sempre, acreditei.




Meus olhos ainda inchados o enxergam na cabine do DJ. Abalada, subo os degraus, escancarando a porta onde Hunter trabalha.

- Algum problema, baby? - Assombrada, respondo. 

- Nenhum. Desculpa. Pensei ter visto alguém que conheci há muito muito tempo...

- Estranho. - Comenta ele, retirando os fones dos ouvidos. 

- Por quê???

- Um cliente acaba de sair daqui e me pediu uma música em especial. Disse que vc gostaria de ouvi-la.

- Eu??? Como ele era???

- Ah...sei lá!

- Hunter!!! Como ele era??? - Rindo, ele responde. 

- Alto, 'boa pinta'. Simpático e...

- E???

- Um pouco triste. Mas a música que ele pediu é bacana. Gostei.

- Qual foi???

- Aaah...não posso dizer. Ele me pediu pra tocar quando vc estivesse distraída, lá embaixo. - Aiden. Sua imagem pisca, como os letreiros luminosos do bar, em minha mente. Tonta, descanso a bandeja em uma de suas mesas e, prestes a chorar de nervoso, ele me acalma. - Adessa, relaxa. Ele me disse que veio em paz e que te conhece já faz tempo. Falou uma coisa bizarra...do tipo: "Eu tive permissão pra isso". - Fazendo uma careta, Hunter me encara e pergunta. - Isso faz sentido pra vc? - Com a voz trêmula, respondo.

- Faz.

Eu o procuro por todo o salão sentindo seu cheiro de sândalo me acompanhar. Entre assustada e nostálgica, sirvo as mesas até que todas estejam vazias. Caminho até meu carro estacionado na calçada. O vento frio sopra seu cheiro até minhas narinas. Apavorada, imploro.

- Não me faça mal.

Imobilizada, aguardo por sua resposta, em vão. O rugido do vento frio da madrugada é o único som que ouço além maçaneta do Chevette que emperra novamente. Meu sangue gela ao sentir o cano frio de um revólver contra meu rosto e a voz de um jovem com o rosto coberto por um capuz preto anunciar.

- É um assalto. Perdeu. Passa tudo.

Antes de reagir impulsivamente, estarrecida, assisto seu corpo ser arremessado à distância. Engatinhando, em pânico, o ladrão corre enquanto, ainda assustada, volto a sentir seu cheiro de madeira ao meu redor.

- Obrigada...- Sussurro, sorrindo, antes de entrar no carro e fugir dali.



Aplico o dinheiro do prêmio em 'RDB' até conseguir vender o apartamento onde moramos e comprar outro onde Sweet não nos encontre. 

Esse era o plano até que outra tempestade abalasse o barco de nossas vidas.

- Grávida!?

- Foi mal, tia. Vou dar um jeito de não ser mais um peso em sua vida. - Comovida, eu abraço Cassandra e a repreendo com ternura.

- Nunca mais fale isso. Vc nunca foi um peso em nossas vidas. Sempre me ajudou muito. Faz parte da nossa pequena família que agora vai ter mais um componente, né?

- Vou dar um jeito de contribuir com as despesas, tia.

- Para, Cassandra. - Borbulhando por dentro, sorrio. - Vamos viver um dia de cada vez. Ok? 

- Ok. - Diz ela, amuada. - Foi a primeira vez, tia. É muito azar.

- Não diz isso, Cassie. Um filho é uma benção. - Lembranças de meus dois filhos abortados em meu ventre se misturam a outra onde amamento um lindo bebê risonho. Inspirando e expirando o ar fresco que entra pela minúscula janela, evito olhar em seus olhos ao perguntar. - E quem seria o pai?

- Só pode ser o Victor! 

- Antoine! - Repreendo-a. - Não se intrometa na conversa de adultos. Eu já te avisei.

- Ela não é adulta, mãe! 

- Sou sim!

- Não é! Tu é safada! Eu sei como se faz filhos!

- ANTOINE SANTORO! - Choramingando, ela se defende.

- Eu não fiz nada e levo bronca. - Sentando-a em meu colo, acaricio seus cachinhos e peço perdão enquanto ela se defende. - Eu só disse que sei como se faz filhos.

- E como seria? - Pisco a Cassandra antes de fixar meus olhos atentos em Antoine que, triunfante, explica.

- Eles escorregam por um tubo.

- Um tubo??? - Gargalha Cassandra jogando a cabeça para trás. Não faço ideia de como vou sustentar mais um ser vivo, mas estou gostando da ideia de ter vida nova em nossas vidas. - Que tubo, garota??? - Irritada, ela argumenta.

- Um tubo que desce pela cabeça, passa pela garganta e chega até a nossa barriga, idiota! - Aos risos, Cassandra desiste e se joga contra o tapete. Seguro meu riso e insisto em ouvir toda a teoria até o fim.

- Qual seria o tamanho do bebê que desce pelo tubo, filha?

- Tia! - Grita Cassandra em plena crise de risos. - Não alimenta! - Inflando suas narinas, Antoine apoia suas mãozinhas em minhas têmporas exigindo minha total atenção ao responder. 

- Eles são pequenininhos quando Deus põe eles no tubo, mamãe. Depois, eles crescem dentro da nossa barriga. 

- Aaaah! Entendi! - Uma risada e comento. - Ainda bem que entram no tubo ainda pequenos, né!? Quem te ensinou isso!?

- Meu pai, ué! - Com as mãos na cintura, ela pergunta. - Quem mais poderia ser? - Reviro os olhos e retruco.

- Ninguém além dele. Ele e seu tubo imprestável...

Do riso, Cassandra vai ao choro, estatelada sobre o tapete. Preocupada, eu me ajoelho ao seu lado e enxugo suas lágrimas com lenços de papel. Antoine, compadecida e curiosa indaga.

- Tá doendo, Cassie?

- Não.

- Respire fundo e solte o ar, vagarosamente. Isso é ansiedade. Vai dar tudo certo. - Seguro em suas mãos geladas e, de súbito, solto um grito. Recuando, recosto-me à parede, puxando o ar pela boca. Diante da expressão assustada de Antoine, sussurro. - Cassandra, é verdade o que eu acabo de ver? - Ainda chorando, ela assente com a cabeça. - Putz...

Levo Antoine até seu quarto e a proíbo de sair até que eu a chame. Contrariada, ela refuta.

- Eu não sou mais uma criança, mamãe! - Um sorriso e afirmo.

- É sim. Vc é e sempre será o bebê da mamãe. - Eu a vejo revirar seus olhinhos enquanto fecho a porta e, levando a mão peito, inspiro profundamente antes de me sentar diante de Cassandra e perguntar.

- Onde mora esse infeliz?

- Não, tia! Fica calma! - Num tom de voz baixo, refuto.

- Como ficar calma depois do que vi, Cassandra??? Vc disse 'não'!!!

- Mas eu fui até a casa dele, tia. Eu sabia que ele estava sozinho. Dei mole...- Aos prantos, ela me pede. - Deixa quieto, tia. Eles são ricos e poderosos. Conhecidos na cidade...

- Foda-se! 

- Olha o palavrão! - Berra Antoine de seu quarto. - É feio!

- FEIO É OUVIR CONVERSA DOS OUTROS! LIGA A TV, ANTOINE! BEM ALTO!

- OK! OK! - A campainha toca. Desnorteada, berro.

- ESPERA, PORRA!

- Tia...- Apontando meu indicador a Cassandra, aviso. 

- Vc fica aí, mocinha. Eu volto já já. - Escancarando a porta, afirmo. - Esse não é o melhor momento para visitas!

- Não grita porque eu não sou surdo. - Empurrando-me com a lateral de seu corpo, ele invade a sala enquanto ainda seguro a porta aberta. - Por que minha filha tá trancada, porra!

- PAI! - Grita Antoine, eufórica. - OLHA O PALAVRÃO! É FEIO! - Colérica, fecho a porta da sala. Indignado, ele abre a do quarto. Antoine salta em seu colo e dramatiza. - Ela me trancou, papai! Mamãe e Cassandra estão de segredinhos agora! 

- Não me diga...- Diz ele, encarando-me ressabiado. Um beijo na testa de Antoine e ele, ajoelhando-se ao lado de Cassandra, indaga. - Vc tá bem, querida? Posso te ajudar?

- NÃO! - Esbravejo em pé, diante dele. - Quem vai resolver tudo aqui sou eu! - Arranco uma risada de Cassandra ao avisar. - Guarde seu 'tubo imprestável' e vá embora!

- Oi??? Que tubo???

- Vaza, Vincenzo! Eu preciso conversar com a Cassie!

- Então iremos conversar juntos. Somos uma família!

- É isso aí, pai!

- Fique quieta, Antoine!

- Mamãe! Ele precisa saber quem fez isso com a Cassie! - Um arquejo e levo as mãos à cabeça. Andando de um lado para o outro, resmungo enquanto Antoine se agarra a Vincenzo e pede. - Não briga comigo, mamãe. Eu não tenho culpa de ouvir...- Prestes a explodir, deixo escapar um 'shhh' exagerado. Modulando o tom de minha voz, suplico.

- Fica quieta.

- O que vc ouviu, filha?

- Nada, ué! - Diz ela dando de ombros. Ela responde assim que Vincenzo repete a pergunta de maneira mais incisiva. - Eu não escutei nada. Foi a Dayse que me falou.

- DAYSE??? - Vincenzo e eu gritamos a pergunta em uníssono. Assustada com nossos gritos, ela chora. Jogo-me contra o sofá enquanto Vincenzo a faz sorrir com suas palhaçadas. Cassandra, sentada ao meu lado, pede-me perdão e me promete.

- Eu vou dar um jeito em tudo, tia. Fica tranquila.

- Não se atreva a fazer o que pensa em fazer. - Rosno. - Se alguém tiver de fazer alguma coisa aqui, esse alguém sou eu.

- Nós. - Corrige-me Vincenzo e seus olhos melancólicos. - Nós estaremos com vc, Cassie. 

- É isso aí, papai.

Vincenzo pede uma pizza pelo celular enquanto vou ao quarto e observo Dayse e seus olhos esbugalhados. Com uma das mãos, eu a pego. De olhos fechados, concentro-me. Perto de captar alguma informação, Antoine me interrompe e, eufórica, comemora.

- A pizza chegou, mamãe! Vem!

Uma última olhadela em sua boneca  predileta e os pelos de minha nuca se eriçam.

- Eu volto. - Alerto.





- Isso é verdade?

- Estou comendo.

- Tia, fica calma.

- Eu tô calma. Eu só quero terminar de comer essa fatia de pizza em paz, sem discutir com esse homem.

- Esse homem é o papai, mamãe. 

- E eu já te pedi pra não se meter em conversa de adulto.

- Ué! Mas eu tô sentada na mesa, mãe!

- Sentada à mesa. - Corrijo-a num rosnado. - Vc está sentada à mesa e deveria ficar quieta enquanto os adultos conversam.

- Não é justo. - Vincenzo a defende. - Ela é inteligente. Sabe interagir. Se estamos conversando diante dela, ela julga que pode opinar.

- Julga mal! - Largo os talheres e abocanho o pedaço da pizza segurando-a com as mãos. De boca cheia, refuto. - Antoine não tem que te contar tudo!

- Ah! - Encarando-me incisivamente, ele provoca. - Então é isso! Vc tá nervosa pelo lance do assalto!

- EU NÃO ESTOU NERVOSA! - Berro ao me levantar da cadeira e levar meu prato até a cozinha. Dois passos e Vincenzo me alcança. Agarrando-me pelos braços, sussurra, raivoso. 

- Agora ele é seu herói!? Um demônio lascivo filho da puta que te salvou de um assaltante é seu herói!?

- Melhor do que ser um covarde mentiroso que treinou a amante pra me ferrar no ringue!

- Louca! - Grita ele, recuando. Seus olhos se arregalam enquanto ele abre um sorriso incrédulo. - De onde vc tirou essa merda de teoria!? Quem eu treinei, porra!?

- Ai ai ai ai ai! - Resmunga Antoine com os pratos no colo seguida por Cassandra que se mantem calada. - Eu vou brigar com os dois, hein! Tô avisando que palavrão é feio! Depois não diz que não avisei!

Cubro meu riso com a mão enquanto Vincenzo ri, livremente. Gosto disso nele. Não guarda rancor. Anjos não devem guardar rancor. Anjos são um bando de idiotas que não guardam rancor ou amor por ninguém.

- MENTIRA! EU TE AMO!

- Que lindo...- Suspira Cassandra. - Acho que vou chorar.

- Segura o choro! - Ordeno. - Isso é falso pra cacete! - Lançando-me um olhar decepcionado, ele resmunga ao seguir até a sala.

- Essa cozinha é claustrofóbica.

- Me dá outra maior, imbecil.

- Não fala assim com ele, mamãe. - Antoine o segue até o sofá. Sentando-se em seu colo, ela o defende. - Meu pai não é imbecil. O tio Aiden era.

- Boa, filha! - Ambos riem deitados no sofá. - Sua mãe não tem boa memória.

- Claro! - Diante dele e de Antoine em seu colo, protesto. - Não poderia ter! Vc vive mexendo nelas! Eu já nem sei quem sou!

- Mas sabe que pode falar com quem já não faz parte dessa vida!

- Não grita, papai.

- EU NÃO TÔ GRITANDO!

- TÁ SIM! - Grito em resposta. - VC FERRA COM A MINHA MEMÓRIA E COM A MINHA VIDA E DEPOIS RECLAMA DO QUE SOBROU DE MIM!

- Gente. Calma. - Pede Cassandra branca feito cera. Levando a mão à boca, ela alerta. - Eu acho que vou...

Correndo até o banheiro, ela vomita. Vincenzo me afasta dela. Eu o odeio por isso. Antoine me dá a mão e assegura.

- Vai dar tudo certo, mamãe. - Chegando ao meu limite, choro, escondendo meu rosto entre minhas mãos. - Mãe, não fica assim. - Abraçando Antoine, observo Vincenzo cuidar de Cassandra como um pai cuidaria. Ele a faz se curvar sobre o vaso sanitário, segurando seus cabelos com as mãos. "Estamos aqui. Fica calma", diz ele com ternura. "Isso é normal. Vai se habituar com o tempo".

Entre encantada e magoada, lembro-me de que ele deveria ter dito isso a mim quando engravidei dele há anos. No entanto, lembro-me dessas mesmas palavras repletas de carinho, dirigidas a mim, em algum momento de minha vida.

- Chega. Vou tomar um calmante. 

Choro caminhando até a cozinha onde procuro por algo que me faça dormir imediatamente. 

- Que tal um chá?

- Fica longe, Vincenzo.

- Não consigo, Dess. Eu não treinei ninguém, amor. Eu juro. Eu estava com vc o tempo todo.

- E a 'novinha'?

- Foi com ela que vc lutou?

- Não.

- Então, amor. Não faz sentido. Com quem falava enquanto estava no tatame tentando se levantar?

- Não quero falar. - Lúcifer?

- Não precisa. Eu já ouvi. E vc acreditando no 'Pai das Mentiras'? - Engulo um ansiolítico a seco. Esvazio a garrafa d'água em um só gole. Apoiando minhas mãos na pia, observo a torneira que não para de pingar. Essa merda. Por mais que eu aperte, a água continua a pingar...- Vou consertar pra vc, Dess.

- Para de ser bom comigo. Eu não valho nada.

Um abraço forte e ele me faz arquejar. Eu o aperto o mais forte possível. Ele quase não me deixa respirar. Nosso abraço dura uma eternidade. 

Outro momento em que o Tempo deveria parar.

- Mas o Tempo não para, Dess. - Sussurra ele ao meu ouvido. - Por que ainda mantem contato com Aiden?

- Eu não sabia. Ele apareceu do nada...- Recuando, ele quebra o clima de paz entre nós dois e reinicia a discussão.

- E então vc sorriu e agradeceu ao seu salvador!

- Vc estava lá?

- Não, Dess. Tenho informantes.

- Então informe aos seus informantes que eu não fiz nada além de agradecer e partir! Babacas!

- Vc ainda pensa nele??? - Esbarrando no copo sobre a pia, eu o deixo cair no chão. Seus cacos ferem meus pés descalços quando explodo.

- NÃO!!! VC NÃO ME OUVIU??? ELE APARECEU DO NADA!!! ALIÁS, ELE NEM APARECEU!!! EU SENTI A PORRA DA PRESENÇA DELE E AGRADECI POR TER SALVO A MINHA VIDA!

- Fala baixo, mamãe. Eu tô ficando triste.

- Desculpa, filha. - Peço, de joelhos. - Eu tô exausta. Quero dormir. Só isso.

- Vou cuidar dos seus pés.

- Não precisa, Vincenzo. Vá embora. Eu não quero mais brigar.

- Nem eu, Dess. Deita no sofá.

- Não!

- Deita, mamãe! - Ordena Antoine, enfurecida. - Chega de briga nessa casa! Ai ai ai!

- Ok. - Submeto-me aos cuidados de Vincenzo, imaginando como poderia ser a nossa vida se não brigássemos tanto. Se ele voltasse a me amar como antes...- Doeu.

- Em mim também, idiota. - Resmunga ele enfaixando meu pé com gaze limpa. - Vc sabe que te amo.

- Não parece. A gente vive brigando por nada.

- Nada? Vc me acusa de ter te exposto ao perigo e ainda se relaciona com aquele merda e vc acha que isso é nada?

- Vc tá cada vez mais humano. Sabia? - Sentando-se no sofá, ele apoia meus pés sobre suas pernas e pergunta. 

- Isso é bom ou ruim?

- Sei lá. Vc era mais doce.

- Mais babaca, né!?

- Vc continua sendo um babaca.

- Um babaca que te ama e faria de tudo por vc.

- Vc nunca foi me buscar no trabalho. Mesmo sabendo o quão perigoso é sair de madrugada. - Num rompante de fúria, ele se ergue e me acusa.

- Então é por isso que ele vale mais do que eu, né!? Não faz nada da vida! Aliás! - Uma gargalhada sarcástica e ele complementa. - Ele não tem vida! Vc prefere um homem que se tornou um demônio e ocupou um corpo de algum pobre coitado do que a mim! Eu tenho vida, Dess! Eu tô aqui por vcs e vc não me valoriza!

- Calma...- Peço, assustada. - Vc nunca se exaltou assim.

- Eu tô cansado, Dess! Me dá as chaves! - Andando de um lado ao outro, ele procura por algo. Antoine e Cassandra se juntam a mim, no sofá. - Onde elas estão, porra!?

- Papai?

- Filha...- Ele bufa de olhos fechados. As veias de seu rosto e pescoço pulsam com força. - Desculpa. Papai tá nervoso.

- Estão aqui, ó! - Abrindo a gaveta da estante da sala, ela balança o molho de chaves. - Toma. Fica calmo, papai. - Um forte abraço e ele chora em seu ombro. - Vai dar tudo certo, pai. Não chora.

Aos prantos, Cassandra me agarra enquanto tento não chorar também. Com a voz embargando, indago.

- O que quer com as chaves?

- São minhas. Da minha casa. - Diz ele, sem olhar para mim. Despedindo-se de Antoine e de Cassandra, ele me ignora ao informar, enfático. - Quando vcs duas precisarem de abrigo, falem comigo. Ok?

- E a mamãe? Vai ficar de fora? - Encarando-me cheio de mágoa, ele responde antes de partir.

- Ela já tem quem a proteja. Fui.

- Espera! - Mancando, eu o alcanço no corredor. - Por que tá sangrando!? Seu nariz!

- Não é nada...- Diz ele, baixando a cabeça.

- Ninguém sangra pelo nariz por nada, Vincenzo! Fala! O que vc tem!? - Limpando o sangue com a barra da camisa em malha, ele responde.

- Tenho lutado muito. Só isso. É comum.

- NÃO É! - Agarrando-me ao seu pescoço, suplico num tom baixo. - Não se atreva a morrer e me deixar aqui, sozinha.

- Nunca. - Levando-me, em seus braços, de volta ao sofá, ele beija minha boca e, sorrindo, confessa. - Eu nunca vou conseguir te deixar, palhaça.

Sorrindo, deito-me na cama ao lado de Antoine ainda sentindo o sabor de seu beijo quando Cassandra comenta.

- Tia. Com todo respeito, vcs deveriam resolver esse 'barraco' na cama.

- Quem me dera...

Suspiro.





Dispersa, pensando em qual coreografia escolher na apresentação de amanhã no 'Conservatório de Música e Dança', esbarro em um dos clientes enquanto retorno ao bar. Peço desculpas num tom alto. Ele me dá as costas e some na penumbra. 

- Gente esquisita. - Comento com o 'barman' sem deixar de compará-lo ao 'Jack Tequilla'. Seu sorriso é tão sinistro quanto o dele. - Me dê duas cervejas e duas Tequilas, por favor. 

- Ok. - Diz ele, sorrindo. Antes de voltar ao salão, ele indaga, curioso. - Não vai beber o seu?

- Não entendi. - Mostrando-me um 'Sex on the Beach' sobre o balcão, ele elucida. - Foi aquele esquisitão que te pagou uma bebida. Disse que esse é o seu drink preferido. - Com os olhos vidrados nos cubos de gelo mergulhados no líquido alaranjado, lembro-me das únicas três pessoas que conhecem minha bebida preferida. Uma delas é Doc e ele não está aqui, logo, só me restaram duas únicas opções. Procurando por Vincenzo, afasto-me do balcão. 

- Obrigada. Não posso beber em serviço. Deixa pra próxima! - Dando de ombros, ele recolhe o copo enquanto caminho pelo salão, intrigada, pensando na terceira opção. - Isso não pode estar acontecendo novamente. - Resmungo servindo as mesas, olhando, desconfiada, ao meu redor. Nenhum vestígio de Vincenzo, então, assustada, concluo. - Ele não pode voltar. Não é justo. - A voz de Hunter ressoa nos alto-falantes.

- Essa é pra vc, bailarina! - Envergonhada, sob a luz dos holofotes, tento fugir quando ele me impede ao segurar minha bandeja e descansá-la sobre a mesa vazia. - De um homem sem nome, com muito amor.

Seu braço envolve minha cintura. Sua mão quente segura a minha. Um sorriso tímido e ele me convida.

- Dança comigo? Eu preciso disso pra partir em paz e te deixar pra sempre, baby.

- Aiden...

- Foi a nossa primeira música nessa vida, antes de vc mergulhar na outra. Lembra?

- Aiden, não.


Esqueço-me de que estou trabalhando e, mais uma vez, entrego-me a ele e à mesma canção que nos embalou logo no início, antes de nos casarmos. Eu prometi a ele que seria mais doce e cumpri minha promessa até descobrir com quem havia me casado.
- Vc precisa ir embora, Aiden. Não pertence mais a esse mundo. - Argumento após a música findar. Num dos cantos do salão, eu peço. - Não faça mais isso. Esse é o meu trabalho. Eu preciso da grana pra viver, Aiden. Vc não. - Um outro sorriso tímido e ele me enternece.
- Gosto de te ver envergonhada, baby. Como nos velhos tempos na Itália. Vc ainda era minha.
- Eu sempre fui sua, Aiden. Enquanto estivemos casados, eu sempre fui sua. Eu jamais te traí. Saiba disso. - Olhando ao redor, temendo ser vista por Vincenzo, imploro. - Suma.
- Eles me deixaram ter esse último momento com vc.
- Eles? Quem?
- Os 'Superiores'. - Elucida ele olhando para o teto espelhado. Repito seu gesto enquanto ele me observa com seus lindos olhos claros. - A morte não é o fim, baby. Um dia, nos encontraremos novamente. - Um arquejo de pavor e indago.
- Vc vai voltar???
- Não. - Abraçando-me com força, ele sussurra. - Não será nessa vida. Em outra. Sei lá. Não se preocupe. Deixarei vc e Vincenzo livres de minha incômoda presença. Já me convenceram de que fui um ser medonho. - Olhando em meus olhos, ele procura por minha resposta. - Me perdoa por ter sido tão cruel?
- Sim. Já passou. Vá em paz. - Um longo e voraz beijo em minha boca e ele se despede.
- Agora sim, eu vou em paz. - Confiante e triste, ele recua. - Nunca me esquecerei do sabor do seu beijo, amor. Isso não é um 'adeus'. É um 'até breve'.

Seu corpo desaparece entre a fumaça esbranquiçada enquanto o procuro pela cozinha. Sigo até a calçada, no exterior da boate e, então, acredito que ele tenha partido...para sempre.

Eu espero que sim.

Cobrindo minha cabeça com o capuz de meu casaco, caminho até meu carro no estacionamento da boate onde Vincenzo me aguarda recostado à sua moto. Não preciso ler pensamentos para entender sua expressão de desgosto. Angustiada, eu me defendo.
- Eu não tive culpa de nada! Vc viu!
- Não vi nada. Vc se entregou. - Ironizando, ele comenta. - Que clima romântico. Eu quase chorei.
- Vincenzo, para! Eu não sabia!
- Eu sei que não, mas poderia ter evitado. - Sentindo-me culpada, eu o agarro pela gola de sua camisa e suplico. 
- Para, por favor. Ele foi embora. Pra sempre.
- Ah...tá. Então, agora eu posso ficar tranquilo? - Um empurrão em seu peito e esbravejo.
- Vá pro inferno! Eu preciso descansar! 
- Dançou demais, né? - Do volante do meu carro, grito.
- NÃO! DAQUI A ALGUMAS HORAS, EU TENHO UM SONHO PRA REALIZAR!
- EU NÃO SOU SURDO! - Estacionando sua moto diante do meu carro, ele me provoca. - PARA DE GRITAR!
- FODA-SE! ME DEIXA PASSAR!
Abrindo um sorriso cafajeste, ele meneia a cabeça e continua ali, parado, diante de mim. - O que vc quer? - Pergunto, exausta. - Eu preciso dormir um pouco. Antoine e Cassandra estão sozinhas...- Acelerando sua moto, ele me diz antes de partir.
- Estavam. Eu chego lá em alguns minutos. Durma tranquila e sonhe com seu anjo diabólico.
- Idiota...- Rumino observando sua silhueta desaparecer em meio à neblina. - Eu só quero vc. Quero viver em paz com vc e nossa filha. É pedir muito?

Deixo o 'Conservatório de Dança' absolutamente confiante de que conseguirei uma das poucas vagas para bolsistas. Acabo de realizar uma das melhores apresentações de minha vida. Ainda eufórica leio a mensagem de Vincenzo vibrando em meu celular.

"Corre pra casa. Temos problemas"

A caminho do carro, ainda tento obter mais informações que me acalmem, mas Vincenzo não responde às minhas perguntas ainda que as tenha visualizado, o que me faz pensar que algo muito grave me aguarda em nosso apartamento.
Dirijo, pelas ruas da cidade, acima do limite de velocidade, ultrapassando todos os sinais vermelhos até chegar à garagem do antigo edifício. Procuro pelo controle do portão automático que cai de minhas mãos trêmulas. Com uma das mãos no volante, xingo enquanto enfio minha cabeça no espaço apertado entre a embreagem e o banco onde me sento. "Yess", exulto assim que o encontro. Aguardo, desesperada, o portão se elevar lentamente. Acelero na ânsia de largar o carro e subir os degraus até o terceiro andar. Antes disso, ouço o baque surdo de meu carro colidindo com algo que geme. 
- Deus. Não. - Arquejo, horrorizada implorando que, ao sair do carro nada veja além de um pneu largado por displicência de algum morador ou um outro carro mal estacionado. Salto do carro, cambaleando. A agonia de querer ver o que aconteceu a Antoine ainda é maior do que descobrir de quem é o corpo jogado contra a parede do andar térreo. - Meu Deus! Perdão! Eu não vi! - Defendo-me enquanto me aproximo, vagarosamente de alguém que geme de dor, encolhido, iluminado pelas luzes do farol. Ajoelhada, pergunto. - Qual o seu nome? Por que ficou na frente da porta da garagem? Como vc está? - Subitamente, eu empurro o corpo, antes de bruços e enxergo seu rosto. Um grito de horror e, fora de controle, pergunto. - Sweet! O que faz aqui!? Meu Deus! Vc tá ferida!
- Dess!? 
- Vincenzo! Me ajuda! - Ao meu lado, ele a observa com raiva em seus olhos ao murmurar. - Vc a encontrou.
- Ajuda! - Do chão, seu rosto magro e manchado pelo sangue que escorre de sua cabeça, ela pede com os olhos injetados.
- Acaba com tudo de uma vez antes que eu faça algo pior à sua filha. Me liberta daquele homem. - Golfando sangue, ela implora. - Me liberta dele, amiga. Eu não vou suportar viver assim.
- Dele quem, Sweet?
- Ela tentou machucar nossa filha! - Acusa Vincenzo, enfurecido. - Só não conseguiu porque eu cheguei a tempo de evitar o pior.
- Sweet? - Incrédula, eu me jogo contra o piso. - Por quê!?
Sua figura esquálida me causa pavor e compaixão. Sua voz fraca suplica.
- Acaba com tudo, amiga. Antes que eu não consiga mais me controlar. - Um urro de dor e ela cospe sangue vermelho escuro. A colisão contra o carro deve ter afetado algum órgão interno. Ainda que ela tenha atentado contra a vida de minha filha, eu me ergo do chão e tento levantar seu corpo curvado para frente. Um grito de dor e, então, entendo o motivo da hemorragia. - Sweet! O que fez!?
- Termina. - Pede-me ela com um punhal enterrado em seu abdômen. Desorientada, tento puxá-lo enquanto Vincenzo me impede, ao alertar.
- Vai piorar!
- Perdão, Vincenzo. Perdão, amiga. Eu sempre te amei. Eu nunca desejei seu homem. Foi sempre vc. Sempre, amiga. 
- Para de falar. - Imploro pressionando a ferida com meu casaco de moletom. Um outro carro abre a porta da garagem.
- Não podemos ser vistos aqui. - Assevera Vincenzo ao carregar Sweet em seus braços. Ligeiramente, ele sobe os degraus. Seguindo seus passos, aflita, aviso. - Não quero que Antoine a veja assim, Vincenzo!
- Não vai, amor. Não vai.
Abro a porta do apartamento. Cassandra arregala os olhos ao rever Sweet.
- Ela não, tia! - Desorientada, ordeno.
- Vá para o quarto e não deixe que Antoine saia de lá! Entendeu!?
- Sim, senhora! - Ouço os protestos de Antoine enquanto Vincenzo estende o corpo quase sem vida de Sweet no chão da sala. Acariciando sua testa gelada, eu minto.
- Vc vai ficar bem, amiga. - Apertando minha mão contra seu peito, ela chora ao dizer.
- Vc é um anjo. Perdão. - Com a voz embargando, ordeno.
- Cala a boca antes que eu te meta a mão na cara, vaca estúpida. - Um sorriso triste e ela me pergunta.
- Vc acha que ainda verei Mimi e Juju?

Desabo.

Recostada à parede, choro como criança. Vincenzo me abraça forte parecendo não saber o que fazer quando ouvimos Antoine gritar.
- ME TIRA DAQUI! EU PRECISO FALAR COM A TIA SWEET ANTES DO FIM!
Num impulso, ergo-me e corro até seu quarto, ordenando que Cassandra destranque a porta. Antoine beija minha bochecha e cochicha. 
- Tenho uma surpresa pra tia Sweet.
- Não...- Escapando de meus braços, ela segue até a sala. Vincenzo, imobilizado, a deixa tocar no rosto de Sweet e acariciar seus cabelos. Assustada, peço a Vincenzo.
- Faça alguma coisa. - Um gesto ligeiro e ele me pede silêncio. Ajoelhada ao lado de Antoine, eu a observo. Cassandra chora ao lado de Vincenzo. - Filha, a tia tá muito doente. Ela...
- Tia, adivinha quem veio te ver?

Um clarão vindo da janela da sala ofusca nossas vistas. Cassandra, emocionada, desmaia. Assustada, agarro Antoine que se diverte ao explicar. 
- Elas estavam com tantas saudades que não conseguiram te esperar, tia.

Caio contra o piso ao reconhecer seus rostos risonhos. Uma dor pungente e me lembro da culpa que ainda carrego por não ter conseguido salvá-las. Vestidas como princesas de contos de fadas, elas caminham até Sweet que, incrédula, ergue os braços, engasgando-se com seu próprio choro. 
- Calma, mãe. - Diz Mimi, deitando-se ao seu lado. - Vc vai com a gente. - Jujuba imita a irmã mais velha que retira, cuidadosamente, o punhal da barriga da mãe. Imobilizados pela emoção do momento, Vincenzo e eu as observamos, emudecidos. Antoine esfrega suas mãozinhas uma na outra. Um sopro e, pressionando o ferimento, ela estanca o sangramento. 
- Bom trabalho, meninas. Agora o titio vai levar a mamãe.

Saio do transe ao reconhecer sua voz sibilante. Agachado, como um corvo, ao lado de Antoine, Lúcifer se prepara para levar a alma de Sweet ainda presa ao corpo quando Vincenzo, de pé, o confronta.
- Eu te repreendo, 'Filho da Inveja'! Em nome do nosso Criador, eu te expulso!
- Não pode. Tem tantos pecados quanto a morta. - Um sorriso sarcástico e Vincenzo refuta.
- Nem tantos. - Apontando o indicador na direção da janela, ele refuta. - Eu tenho pecados, mas ele não os têm. - Confuso, olhando ao redor, Lúcifer indaga.
- Ele quem, criatura!?
- Meu tio. - Esclarece Antoine de mãos dadas a Vincenzo. Ambos recuam. É quando eu o enxergo.
- NÃO É JUSTO! ELA SE MATOU! - Protesta Lúcifer. - SUA ALMA ME PERTENCE!
- Errou mais uma vez, irmão. Deus julga pelas intenções. Ela te serviu com a única intenção de rever suas filhas. Nunca foi por maldade. Exausta, confusa e decidida a proteger Antoine, ela tomou a única atitude que sua mente ensandecida julgava correta. E ela somente fincou essa adaga em seu ventre por sua causa. Vc a atormentou dia e noite. Logo, ela salvou uma vida. Graças a vc, ela vem comigo. - Com a alma de Sweet em seus braços, Miguel, o Arcanjo, zomba do 'Anjo Caído' antes de partir ao lado de Juju e Mimi. - Perdeu, irmão.

Revoltado, Lúcifer lança-me seu olhar de fogo e ameaça Antoine em meu colo. 
- Isso ainda não acabou, criança linda.
- Não mesmo. - Rosno, triunfante. - O melhor eu vou guardar para o fim, 'Rejeitado'.
Consumido pelo fogo, ele desaparece. Cassandra desperta, atordoada. Antoine boceja ao resmungar.
- Eu quero dormir, mamãe.
- Ela perdeu muita força, Dess.
- Eu sei. Vou cuidar dela.
- Vamos, Dess. Vamos. - Após vomitar, Cassandra pergunta, intrigada.
- E quanto ao corpo? Ela não vai ficar aí deitada, né?
- Não. Deixa comigo. Vai descansar.
Após dar um banho em Antoine e deitar ao seu lado até que ela dormisse, saio do quarto onde Cassandra dorme profundamente. Caminho até a sala. Vincenzo esfrega o chão com panos úmidos. Ajoelhando-me ao seu lado, beijo sua bochecha e, cheia de ternura, pergunto.
- Vc limpou tudo sozinho? Por que não me esperou?
- Não havia tempo, Dess. O corpo deveria ser levado o mais rápido possível. - Arregalo meus olhos e, receosa, faço outra pergunta.
- E quem teria levado o corpo de Sweet? - Sentando-se no chão úmido, ele me encara com seriedade ao me responder com outra pergunta.
- Quer mesmo saber?
- Não. - Inspiro e expiro profundamente. De olhos fechados, retruco. - Chega. Por hoje já deu. Como vc mesmo diria: "Já deu, burro. Já deu". - Deita comigo? - Um sorriso inocente e ele assente com a cabeça. Erguendo-me, eu estendo meu braço a ele e o convido. - Vem...amor. - De mãos dadas, ele me pergunta.
- O que quis dizer com "O melhor eu vou guardar para o fim"?
- Bobagem. - Minto. - Era só uma frase de efeito.
- Sei...- Diz ele, desconfiado. - Vou fingir que acredito.


No chão do quarto de Antoine, exauridos física e emocionalmente, dormimos 'de conchinha', felizes por Sweet ter, finalmente, encontrado a paz que tanto procurou em vida.



Em meu dia de folga, Vincenzo nos leva à praia. Sob o sol ameno, divirto-me com Antoine construindo castelos de areia. Uma onda forte e nossa obra de arte se desfaz.

Castelos de areia se desfazem de um dia para o outro. Assim como nossos sonhos.

- A gente constrói outro, mamãe. - Incentiva-me Antoine. Vincenzo abre um de seus sorrisos iluminados e eu, estupidamente, sinto que a felicidade, enfim, chegou. - Tô com dor na cabeça, papai.

- Ela tá febril. - Constata ele, preocupado. - Melhor irmos pra casa. - Carregando-a no colo até o calçadão, ela argumenta. 

- Papai deveria morar com a gente, mamãe. Ele não sai de lá mesmo. - Gargalho carregando bolsas, barraca e cadeiras seguindo Vincenzo até meu carro. Ainda tagarelando, ela aconselha. - Papai vende a moto e dá a grana pra mamãe e a gente vai morar na casa dele, na outra praia.

- Ótima ideia. - Diz Vincenzo abrindo o porta-malas. Escondidos de Antoine sentada no banco traseiro, ele me dá um selinho na boca. - O que acha? Quer morar comigo? - Desconversando, peço um outro beijo.

- Quero um de verdade. - Agarro-me ao seu pescoço e, após beijar cada parte de seu rosto, ataco sua boca com voracidade. - Salgado. Gosto disso.

- Tô vendo tudo, hein! - Grita Antoine. Como dois adolescente, ruborizamos. - Mamãe, vc tem que aceitar a 'poposta' do papai. - Rindo, ao volante, corrijo-a.

- 'Proposta', filha. 

- Por que eu devo aceitar?

- Porque a Dayse disse que a gente vai ter que fugir.

- ANTOINE!

- Dess, isso é coisa de criança. - Ronrona ele. Seus lábios próximos aos meus me acalmam. Da janela do meu carro, ele beija minha bochecha, acendendo-me por dentro. Um olhar lascivo a Vincenzo e, pergunto. 

- Te encontro lá em casa? - Mordendo o canto da boca, ele exulta, antes de acelerar e partir.

- Com certeza! 

Pensando em nossa noite de reconciliação, ausento-me até ouvir o berro de Antoine.

- Mamãe! O celular! - Desperto. No visor, o nome de Cassandra me faz arquejar de temor. Demoro a atender observando as ondas do mar. Engolindo em seco, toco na tecla vermelha e fecho os olhos. 

- Cassie? - Do outro lado da linha, sua voz fraca implora.

- Me ajuda, tia...



Invado a festa arrastando Cassandra comigo. Impulsiva e reativa, decido enfrentar os pais do maldito adolescente que violentara Cassandra, deixando sua semente nela. Semente que teria germinado se ele não a tivesse espancado novamente. Ainda marcada por seus chutes e socos, ela deseja vingança e eu, Justiça. 

Sem ter onde encontrar Vincenzo, levo Antoine comigo. 

O pior de todos os meus erros. 

- Olha o que o seu filhinho fez! - Grito ao abrir espaço entre convidados com trajes finos e olhos curiosos. Um frio no estômago e prossigo conseguindo a atenção do adolescente de merda que se esconde atrás de sua mãe. - Sai daí agora e confessa o que fez, seu escroto! Gosta de bater em meninas!? 

- Como deixaram essa mulher entrar!?

- A senhora é a mãe!? - Pergunto num tom sarcástico em meio ao salão 'cinco estrelas' onde comemoram o aniversário do assassino. Cassandra abraça Antoine enquanto eu dou três passos adiante e a confronto. - Seu filho faz dezoito anos hoje!? Parabéns! Ele deve ter sido muito bem educado! Aquela moça ali...- Aponto o polegar a Cassandra. - Estava grávida de seu neto! Uma gravidez forçada se é que a senhora me entende! Não posso falar em voz alta o crime que esse merdinha cometeu porque a minha filha está presente! Mas posso lhe dar os pêsames pela morte de seu neto e por ter um filho que jamais vai saber o que é ser um homem de verdade! - Avançando sobre o rapaz, eu berro. - DA PRÓXIMA VEZ, QUANDO UMA MULHER DISSER 'NÃO' É 'NÃO'! ENTENDEU???

- Tirem essa mulher daqui. - Ordena o pai altivo, soberbo, juiz reconhecido e conhecido por garantir os direitos de políticos corruptos. Assustada, acerto um 'jab' na garganta de um dos muitos seguranças. Ele tomba contra o chão. Atordoada, alerto. 

- NÃO TOCA EM MIM! EU JÁ VOU! - Recuando, protegendo Antoine e Cassandra com meu corpo, aviso à mãe em choque. - Se o seu filho se aproximar de Cassandra novamente, eu acabo com ele!

Antes de cruzar o portal da saída, ouço o juiz questionar.

- A criança negra é sua filha biológica? - Pânico e raiva se misturam quando giro nos calcanhares e o afronto.

- Racista! 

- Responda! - Gaguejando, eu me entrego.

- Si sim. Claro que é. - Perco minhas forças, minha coragem, agarrando Antoine em meus braços. Obviamente, percebendo os sinais em meu rosto,  o homem soberbo caminha em minha direção enquanto tremo da cabeça aos pés. Arrependida por ter sido impetuosa, sussurro. - Fica longe.

- Tem medo do quê? De que eu descubra que sua filha não nasceu de vc ou que ela não é adotada? - Cassandra me abraça e me conduz até a saída enquanto encaro seu olhar sombrio. - Gostaria de ver os papéis de adoção amanhã, em meu gabinete. - Num fio de voz, afirmo.

- Ela é minha filha biológica. - Um sorriso sinistro e ele aponta para um dos cantos do salão ao argumentar. 

- Não é o que aquele cavalheiro me disse. Vcs se conhecem há muito tempo?

Os ossos do meu pescoço estalam assim que giro a cabeça. Sufocando um soluço, eu o reconheço.

- Vc não...- Dando de ombros, ele refuta.

- Sou eu sim, meu bem. E o juiz deseja os papéis da adoção. Não se lembra de onde os deixou? 

- Maldito!

Lúcifer se aproxima, triunfante enquanto não consigo me mover. O pavor toma conta de mim quando o vejo esticar os braços e gracejar.

- Deixa eu ver a minha pequenina. Eu posso cuidar dela enquanto vc explica ao juiz como a encontrou na rua e até hoje não a adotou legalmente.

- Corre, mamãe!

Uma súbita crise de claustrofobia e eu cambaleio até a calçada. Lúcifer e o juiz se deleitam com meu sofrimento logo atrás de mim. Cassandra me empurra em direção à calçada. Antoine chora em meu colo. Prestes a ter um ataque de pânico, ouço o som estridente de uma buzina. Olho em direção à rua. Como no final de um pesadelo maluco, Vincenzo salta de uma Kombi colorida e asperge água no rosto de seu arqui-inimigo que lastima.

- Água benta? Argh. Que previsível.

- ENTRA! - Ordena Vincenzo, de volta ao volante. De dentro da Kombi ainda vejo o rosto deformado de Lúcifer e o sorriso macabro do juiz que promete, aos gritos.

- EU VOU TE ENCONTRAR!

Alcançamos a autoestrada em pouco tempo. Tempo em que me mantenho pensativa até indagar.

- Por que não chegou antes!? - Enfurecido, Vincenzo explode ao volante.

- POR QUE TEM QUER SEMPRE IMPULSIVA, DESS!? ISSO NÃO TERIA ACONTECIDO SE VC PENSASSE ANTES DE AGIR, PORRA!

- Calma, papai. 

- Desculpa, filha. - Diz ele encarando-me pelo retrovisor. Calada, compreendo que a razão está com ele. Eu me odeio por isso. Eu odeio esse meu lado reativo. - Vc não vai perder nossa filha, Dess. Não fica assim.

- Tô com medo.

- Não tenha. Estamos juntos e isso é o que importa.

- Aonde vamos?

- Aonde nenhum mal nos alcança.

- Pra casa de praia!!! - Vibra Antoine, inocente. - Woohoo!!! - Sem esperanças, provoco.

- De onde essa Kombi bizarra surgiu?

- Vendi minha moto. Comprei essa Kombi 'maneira' e um vestido. 

- Vestido!? - Sorrindo, ele olha para a janela aberta. Um tapa em seu ombro e repito. - Vestido!? Pra quem!? Por quê!? - Uma freada súbita e, no acostamento, ele olha para trás e, encarando-me com seus olhos plácidos esclarece.

- Noivas precisam de um vestido. Não é?

Arquejo e, sem palavras, eu me calo. Gargalho enquanto Cassandra e Antoine batem palmas e assoviam, eufóricas. Histérica, Antoine berra em meu ouvido.

- FINALMENTE MEUS PAIS VÃO SE CASAR!!!

Feliz, eu sorrio, mas, por dentro, a sensação de que ondas gigantescas ameaçam derrubar o meu castelo mais lindo e precioso, me angustia.







Continua...












CAPÍTULO 35 - INJUSTO

  Na sala de espera do mesmo hospital onde Vincenzo voltara à vida, aguardo, ao lado de Liam e Enrico, ao desenlace da tragédia. Vincenzo, d...