'Dess - Uma História Interessante'

'Dess - Uma História Interessante'
AMO ESCREVER

CAPÍTULO 41 - ATAQUES

 




Vincenzo me disse que, se estivermos juntos, nada vai nos destruir. Ele precisa saber o que vi. Precisa conhecer a verdade. Precisa me ajudar a ajudar Cassie e, principalmente, a salvar Sean de Liam e de seus estranhos amigos. Ontem, eu não raciocinei. Não após aquelas brigas e o retorno de Cassie e Sean ao seu lar. Agora, eu entendo que, com Vincenzo, eu posso ser útil. Ele é a minha força. 

Que tipo de gente coleta sangue de um bebê!? Para quê!? Liam não pode ser tão mau assim! Talvez, sejam médicos e estejam procurando a cura para algo de ruim que tem atormentado Sean. 

Ao volante, ligo para Vincenzo. Ele não atende. Tento duas, três vezes enquanto dirijo. Minha chamada é encaminhada para a caixa postal onde deixo uma mensagem:
"Amor, não sai daí! Me espera! Vou te contar tudo! Juntos, vamos vencer!"
Deixo o celular de lado e me concentro em chegar o mais rápido possível ao estúdio de boxe. 
Antoine e Leo lutavam na sala de musculação. Concentrados, ao extremo, não me viram sair. Enrico zela por Matteo. Ainda não sei como trazer Celeste de volta à 'Luz'. Quem eu penso ser para trazer alguém de volta à 'Luz'!? Por vezes, tenho ranço de mim mesma. Estaciono o carro em frente à academia. O de Vincenzo está ao lado do meu.
- Perfeito! Ele ainda tá aqui! - Tranco a porta do carro. Um passo adiante e retorno. - Cacete! Esqueci! - Abrindo-a novamente, alcanço a mochila onde guardei a adaga de Lúcifer. Não quero esconder mais nada de Vincenzo que ficou do meu lado em todos os momentos difíceis pelos quais eu passei. Ele dançou comigo. Ele me defendeu de Liam. Ele se impôs diante da ruiva. Mais do que nunca, eu o sinto mais próximo, fiel, parceiro. Meu homem de verdade!

Caminho até a recepção. A porta está encostada. Puta que pariu. Vincenzo ainda vai se arrepender de ser tão desatento. Eu já cansei de lhe pedir para trancar todas as portas quando estiver sozinho! Mas, ele não se lembra! Penso em gritar por seu nome, mas, resolvo lhe fazer uma surpresa. Tranco a porta da academia e, pulando a catraca, caminho até seu escritório. O ringue vazio está mergulhado na penumbra. Há luz em seu escritório escapando pela brecha debaixo da porta. 
Brechas. Isso me faz lembrar de alguém. Não me lembro de quem. Não agora. Afoita, toco na maçaneta e a faço girar, lentamente.
Gostaria de surpreendê-lo, mas, quem se surpreende sou eu assim que entro em seu escritório. Terrivelmente impressionada, emudeço. Penso estar em um pesadelo. Há um peso sobre minha cabeça. Minha visão volta a embaçar. Pisco por diversas vezes. O ar não quer chegar aos meus pulmões. Tonta, me amparo na parede. Sentindo a claustrofobia chegar, a custo, enxergo o corpo nu da mulher deitada em sua mesa de trabalho. Nua, ela geme como uma gata no cio enquanto ele a fode com força. Enfiando minhas mãos na mochila, consigo sentir a adaga pulsando como o sangue em minhas veias. Alheio à minha chegada, ele urra de prazer enquanto movo minhas pernas com dificuldade. De olhos fechados, ele não me vê. Vejo os músculos de suas costas se contorcendo à medida que me aproximo. Como em um filme em câmera lenta, vou percebendo os detalhes de seus corpos unidos, suados. O cabelo castanho e longo da mulher com a cabeça jogada para trás. Um súbito movimento, e ela me encara com o olhar lascivo. Recuo, horrorizada com o que vejo. 
Eu me vejo em seu rosto! Eu me vejo deitada sobre a mesa! Sou eu que estou deitada sobre a mesa!? Sou eu deitada sobre a mesa!!!  Sou eu!!! Como assim??? Maldita!!!
Enquanto Vincenzo aumenta, freneticamente, o movimento de seu quadril apoiando seus braços na madeira da mesa, confusa, eu me vejo arquear meu corpo. Apavorada, olho ao redor. Há sombras nas paredes e tetos. Fagulhas. Fagulhas de fogo. As mesmas que vira ao tocar a ruiva naquela noite. A mesma ruiva que, agora, me encara e, lambendo os lábios, me sorri. É a ruiva??? 

Cambaleando, tropeço na cadeira giratória e caio contra o chão, atraindo a atenção de Vincenzo que, incrédulo e assustado, pergunta, ainda arfando.
- Dess!? O que faz aqui! Vc é vc!? Como...!? 
Uma gargalhada diabólica e a ruiva se mostra por inteiro, ainda se movendo, voluptuosamente, debaixo de Vincenzo que chega a gozar, involuntariamente. Em franco desespero, ele se afasta da ruiva estirada sobre a mesa, acariciando seus seios como eu fazia nos filmes adultos. Lambendo seus mamilos, ela me provoca.
- Teu homem é muito gostoso. Sabia?
Completamente desnorteado e nu, Vincenzo vem em minha direção e, movendo os braços aleatoriamente, demonstrando insanidade em seus olhos arregalados, ele tenta explicar o inexplicável.
- Eu não fiz isso! Eu pensei...! Era vc! Dess!
- Fica longe de mim. - Rosno com ódio em todo o meu corpo e alma. - Traidor! Eu te odeio! 
Encolhendo-se de vergonha, ele se cobre com a camisa enquanto abro minha mochila e, instintivamente, conectando-me ao cabo do punhal, salto sobre a ruiva e, com minha mão esquerda em seu pescoço, eu a mantenho sob o meu controle. Comprimo minha mão em seu pescoço gelado. Ela sorri, triunfante, triplicando minha ira. Sem hesitar, minha mão direita crava a lâmina afiada em seu coração. Ainda ouço os gritos desesperados de  Vincenzo preocupado com o que acabo de fazer  quando o corpo da ruiva explode diante de meus olhos atônitos e desaparece, sob uma chuva de fagulhas de fogo. 




De joelhos sobre a mesa, em choque, vejo Vincenzo perder a razão.
- Eu não fiz nada, amor. Eu juro. Eu pensei que fosse vc. Eu juro. Era vc. Eu te vi. Era vc, amor. Fala comigo. Era vc, porra!
Largando o punhal, salto da mesa e, sentindo-me humilhada e estranhamente traída, sem olhar para Vincenzo, vou me arrastando pelo corredor até a porta de saída. Algo em mim acordou. Algo de que não gosto, mas que me dá forças para seguir até a calçada e caminhar sob a chuva, sem rumo. Ainda ouço a buzina do carro de Vincenzo a alguns quilômetros de distância,  atrás de mim. A chuva forte me torna quase invisível. Escondo-me em um beco, despistando Vincenzo que dirige, ensandecido, buzinando, gritando por meu nome. Sem saber o que fazer ou aonde ir, retorno ao estacionamento da academia e, sem conseguir chorar, arquejo de pavor ao sentar diante do volante. O punhal que deixara no escritório reluz, sob a luz interna do carro, no banco do carona. Subitamente, abro a porta do carro e vomito no asfalto. Algo se move dentro de mim. Algo ruim. Fecho a porta do carro, tremendo de frio e medo. Minhas roupas encharcadas molham o assento. Encaro-me no retrovisor interno. Um brilho maligno em meu olhar me assusta. 
- Eu não pensei, em nenhum momento, se a ruiva era humana ou não. - Penso alto. - Eu não hesitei em cravar o punhal em seu coração. E se ela fosse humana? Eu teria cometido um assassinato por impulso. Por alguma força vinda desse punhal. Estou cruzando o meu limite. Já não sei o que é real ou fantasia da minha cabeça.  O que era aquilo? Mais um ser da 'Legião'? - Deitada no banco traseiro, não atendo às ligações do celular. Lendo as mensagens de Antoine, enfim, consigo chorar:
"Onde vc tá, mãe!? Volta pra casa! Meu pai tá surtando, mamãe! Volta! Eu preciso de sua ajuda! Vc precisa da minha! Volta, mamãe!"
De tanto chorar, adormeço.

Por Matteo e Antoine, eu voltei à nossa casa, pela manhã. Por mim, eu fugiria para bem longe e recomeçaria do nada. Minto. Já não tenho a juventude e a garra de antes e, infelizmente, eu ainda o amo. Ele não teve culpa! Eu sei, mas isso não ameniza o ódio que sinto por ele. Ele que me aguarda na sala de estar assim que abro a porta. Estou um 'bagaço'. Suja, descabelada, fraca, com muito frio e os olhos inchados de tanto chorar. Finjo não ver Vincenzo, apesar de sofrer por sua aparência devastadora. Eu nunca o vira tão soturno e sem ânimo. Calado, cabisbaixo, ele ouve meus passos, sente a minha presença, mas não me encara. 
Culpa? Dor? Confusão mental? Foda-se! Vc me traiu! Covarde!
- Não sou. - Alega ele num tom baixo. - Fui tão vítima quanto vc, mas, não se preocupe. Não vou te perturbar com a minha presença. Vou partir hoje, à noite. Nossos filhos precisam mais de vc do que de mim. - Do corredor, recuo. Observando sua  extrema apatia, desisto de brigar e, contendo meu choro, corro até o quarto de Matteo. Enrico, com os olhos tristes, me incentiva.
- Vá tomar um banho, filha. Vou preparar algo pra vc comer e, quando puder, converse comigo. Eu preciso explicar coisas de um mundo que vc ainda não conhece. - Beijando a cabeça de Matteo, eu o obedeço. Deixando a água morna lavar meu corpo debaixo do chuveiro, peço que o Mal que habita em mim, seja levado para o fundo do mar. A cena asquerosa e bizarra se repete em minha mente enquanto visto meu pijama. Secando meus cabelos diante do espelho, não me reconheço. Deveria ter tomado os remédios. Talvez, tudo tenha sido fruto de minha imaginação. Não foi! Aconteceu! Reaja! - Por que vc voltou a falar em minha cabeça? Isso cansa. Desgasta. Para. Por favor. Só por hoje.
- Mamãe?
- Filha! - Seu abraço me aquece como o fogo da lareira. Antoine me aperta contra seu corpo e, carinhosamente, sussurra. - Não deixa o papai partir, mãe. Ele não sabe o que fazer. Tá perdido. Mais do que vc. Vc é forte, mãe. Ele não. 
- Filha, vc não sabe o que aconteceu...
- Sei sim, mãe. Mas prefiro que meu avô te explique. 
- Como sabe!? - Recuo olhando em seus olhos. - Vc viu!?
- Mamãe, vc se esqueceu de quem eu sou? - Seus olhos astutos me observam por segundos até que eu a compreenda. - Tem coisas que eu não posso revelar, mas tem outras que eu posso, mãe. Eu vi o que fizeram a vcs dois. Foi injusto. Dê uma chance ao papai. Eu nunca o vi tão triste.
- Vc é tão sensível, filha e..., é impressão minha ou vc cresceu ainda mais? - Pergunto entre assustada e orgulhosa. - Como pode ter crescido de ontem pra hoje? - Um sorriso triste e ela graceja.
- Tenho treinado com o Leo. São músculos, mãe. Músculos. - Ainda abraçada a ela, indago com o coração partido.
- Vc gosta dele, filha? Como gostava do 'Thor'? - Sempre sincera, ela responde. 
- Mais, mãe. Muito mais. É diferente. Não sei o que é. Eu preciso de vc e o do papai juntos pra me ajudarem a entender isso. - Sem me dar tempo de me emocionar e voltar a chorar, ela me puxa pelo braço e me apressa. - Vem!  Rápido! Ele quer ir embora agora! Só vc pode impedi-lo!
Com os cabelos úmidos, a escova em punho, descalça, corro pelo corredor sendo puxada por Antoine. Chegando até a sala, deparo-me com duas malas e sua bolsa de trabalho junto à porta de saída. De volta da varanda, ele se curva para pegar as duas malas quando, impulsiva e desesperada, ordeno, de mãos dadas a Antoine.
- Larga essa merda! Seja homem e fala comigo! Eu mereço uma explicação! Ninguém me abandona sem uma boa explicação!
- Dess...- Lamenta ele, com lágrimas nos olhos avermelhados. - Eu não sei...
- Vincenzo, não me faz chorar. - Peço, aos prantos. - Me obedece, porra. Larga essas malas e conversa comigo. Me faz entender o que aconteceu porque eu não quero enlouquecer.
- Nem eu, Dess. Nem eu...
- Aonde pensa que vai!?
- Deixar vc em paz. - Jogando as malas e sua bolsa de trabalho no porta-malas, ele murmura. 
- Não sei o que houve, mas me sinto sujo, impuro, indigno.
- E, por isso, vai fugir!? Novamente!? - Grito enquanto ele manobra o carro na garagem de nossa casa. Antoine, ao meu lado, me empresta forças para lutar. Pelo quê? Não sei. - Vai me deixar de novo!? É assim que funciona!? - Grito em seu ouvido enquanto ele recosta a cabeça ao volante. - Vc erra. Vc toma uma decisão. Vc some. É sempre a mesma coisa. O mesmo ciclo, Vincenzo Rossi! E eu que me foda sozinha pra 'segurar a barra' que é viver sem um homem ao meu lado!? - Baixando a cabeça, ele hesita. - Fica com a gente e vamos resolver essa merda. Todos juntos.
Ouço o ronco do motor e o vejo partir. Da calçada, eu o xingo até ficar rouca e chorar, caída sobre os paralelepípedos de nossa rua. - Covarde. Vai e me deixa novamente. Sempre foi assim. Por que mudaria agora?
Antoine e Enrico me erguem e me arrastam até a sala onde peço por um antitérmico. 
- Não me deixem sozinha enquanto eu dormir...
Apago, ardendo em febre.


- Graças ao Criador sua febre baixou, filha. Deve ter sido a chuva e a roupa molhada por muito tempo.
- Enrico...- Minha garganta queima ao prosseguir. - Matteo tá bem? Antoine?
- Todos bem, filha. Fique tranquila.
- Vc é um anjo. Minto. - Tento rir sem êxito. - Um arcanjo. Sem vc, eu não conseguiria chegar até aqui. Me ajuda a levantar dessa cama. Eu preciso voltar à minha vida...
- Vc acaba de se curar de uma febre persistente de quarenta graus, filha. Não é hora de pensar em trabalhar, voltar à sua rotina.
- Meus filhos precisam de mim...- Engolindo em seco, sinto a garganta arranhar. Enrico me ajuda a erguer meu tronco da cama e me recostar à cabeceira. Bebo da água do copo que ele me oferece. Um súbito alívio toma conta do meu corpo. Uma sensação de torpor me faz bocejar. 
- Durma, filha. Quando acordar, eu te conto as novidades.
- Novidades? - Sorrio, voltando a dormir. 




Salto da cama e corro até o quarto de Matteo. Ele parece estar me esperando, de pé em seu berço, sorrindo para mim. Eu me grudo a ele e o encho de beijinhos. O sol invade o quarto pela janela aberta. Ouvindo sua gargalhada gostosa, mostro a ele os pássaros nas árvores do quintal. Curiosa, vejo Antoine e Enrico rindo enquanto caminham até a varanda. Com Matteo em meu colo, ainda muito triste pela partida de Vincenzo, sigo até a cozinha. 
- A vida continua, meu filho. Mamão ou banana amassada? - Pergunto a ele. Surpreendentemente, ele me responde com um 'nanana' mais lindo do mundo! Sou obrigada e enchê-lo de beijinhos novamente, o que o faz gargalhar e me alegrar. Sentado em sua cadeira de refeição. Ele me observa a descascar as bananas e amassá-las em um prato. Salpicando aveia sobre elas, imito Vincenzo ao choramingar um 'voilà'. Apoio meus cotovelos na pia e percebo a falta que ele me faz. Seco minhas lágrimas com um pano de prato limpo e me sento à bancada. Matteo está degustando sua segunda colherada de banana com aveia quando Antoine antecede Enrico ao entrar na cozinha, aos risos. Enrico, com as bochechas rosadas, me observa, calado.
- Dá pra falar o que tá rolando ou tá difícil!? Eu tô curiosa!
- 'Nanana!' - Exige Matteo indiferente à minha curiosidade. Beijando sua testinha, eu o alimento enquanto ouço Antoine, eufórica, anunciar.
- Temos um hóspede, mamãe! Vc não vai acreditar!
- Hóspede!? Leo!?
- Não! Leo tá trabalhando pra cacete na academia! Um hóspede na minha casa na árvore!
- Em sua casa na árvore!? Jesus! Algum bicho!?
- Um bichinho triste e solitário...- Atesta Enrico com seus olhos que riem. - Não gostaria de ir ver conosco?
- Claro! É um filhote de gato!? Pássaro!?
- Não mesmo! - Comemora Antoine saltitante, à minha frente. Seu corpo esguio em nada me recorda a garotinha de alguns meses atrás. Seus longos cabelos cacheados brilham sob a luz do sol. Uma aura de felicidade a envolve assim que ela aponta para a casa em madeira construída, com extremo sacrifício, por Vincenzo, quando ela ainda era pequena e se escondia de mim. - Sobe lá, mãe! - Lançando a Enrico um olhar maroto e ela comenta. - Vc vai amar o filhote!
- Tenho certeza...- Retruca Enrico, aos risos. - Vá! - Desconfiada, deixo Matteo com Enrico e, cautelosamente, subo as escadas de onde pergunto. 
- Esse bicho não morde não, né!? Porra! Se me morder, eu meto o cacete em vcs!
- 'Mamãe!', balbucia Matteo dando-me 'tchauzinho'
- Já volto, filho! - Grito assim que alcanço o piso que cerca a pequena casa. A tábua range de tão velha. Observando a madeira da porta, percebo que faz tempo que não a limpo. O sol incide sobre meus olhos assim que entro no pequeno cômodo. Sem enxergar, tropeço em algo que me parece com um tapete enrolado e caio  contra o piso empoeirado. - Merda! - Reclamo, observando o relevo de seu corpo. Assustado e coberto com um lençol dos pés à cabeça, ele resmunga.
- Agora não, filha. Não dormi nada essa noite. Me deixa dormir mais um pouco. - Caída ao seu lado, pergunto, incrédula.
- Vc!? Aqui!?
- Dess?
- Não, idiota. - Resmungo, erguendo-me do chão. - Vc tá sonhando. Volte a dormir e não fale comigo.
- Dess! - De costas para ele, sorrio. Ele voltou. Ele voltou por nossa família. - E por quem mais eu voltaria, imbecil!?
- Eu te avisei! Não fala comigo! - De tão feliz, quase escorrego nos degraus de volta ao gramado. Percebendo o olhar de expectativa de Enrico e Antoine, pergunto. - O que foi!? Estão com pena!? Adotem esse animal! - Tomando Matteo dos braços de Enrico, caminho pela grama úmida, beijando a bochecha do meu filho a quem cochicho. - Seu pai voltou, filhão. Ele voltou. Ele não vai abandonar a gente.
- 'Papai não?'
- Não, filho. Papai não. Ele é um idiota, mas eu o amo.
 
Antes de entrar em casa, ouço Vincenzo gritar do alto da árvore.
- Essa eu ouvi, panaca! Eu vou ficar!
Enrico e Antoine, aos gritos, batem palmas, festejando algo que ainda está longe de ser resolvido.
Trocando a fralda de Matteo, penso que, ao menos, ele voltou e, finalmente, largou a estúpida mania de me abandonar. Será?
Espero que sim.

Apesar de ter retornado, continuo a não falar com Vincenzo. Não por raiva, mas por medo e uma estranha sensação de vergonha. Ele, por sua vez, não me procura. Talvez, pelos mesmos motivos. Ele tem dormido no quarto de hóspedes enquanto eu sinto sua falta em nossa cama. A cena onde ele transa comigo mesma ainda me causa ciúmes e me intriga. É estúpido. Eu sei. Eu estava lá. Eu me vi não sendo eu. Nossa. Isso é confuso até para mim. Por que fariam isso? Para te separar dele, tola! Unidos, vcs são fortes! Pode ser. Faz sentido.
- Sentimos sua falta, Adessa. Vc melhorou?
- Sim. - Minto. - Obrigada, Aninha. As alunas são tão fofas! Elas me deram esse buquê de flores! 
- Viu como vc é importante!? - Incentiva-me Aninha, a recepcionista da 'Just Dance'. - Todos te amam!
- Nem todos...- Lamento ao tocar sua mão. Novamente, as visões. As incômodas visões. Aninha chorando enquanto sua namorada grita com ela. - Obrigada. Mesmo assim. - Antes de cruzar a porta de saída, comento. - Se quiser conversar sobre alguma coisa que te incomoda, conta comigo. 
- Ok. - Replica ela, desanimada. Incomodada, recuo e cochicho aos seus ouvidos. - Ah! Ela não te traiu!
- Sério???


Abraçada ao buquê, ainda me sentindo triste, distraída e solitária, caminho pelas ruas pensando em como fazer as pazes com Vincenzo sem me humilhar. Ele ainda não me pediu desculpas.
Inadmissível!
Cheirando as flores do campo, esbarro em alguém na calçada. Elevo os olhos e, assustada, pergunto.
- O que faz aqui!?
- Não é da sua conta.
- Olha, eu não quero brigar, Liam. 
- Nem eu. - Refuta ele num tom frio e arrogante. - Não perderia meu tempo com vc.
- Preciso ver Cassie e Sean. 
- Sem chances.
- Eu não pedi sua permissão. - Confrontando-o, prossigo. - Eu vou até a casa dela, de um jeito ou de outro.
- A casa dela é a minha casa.
- Até quando!? - Enfurecido, ele rosna bem próximo ao meu rosto. 
- Não brinque comigo, Adessa Love. Eu não estou sozinho.
- Nem eu. - Zombo. - Já ouviu falar em arcanjos ou até mesmo em 'O Portador da Luz' ou 'Estrela da Manhã'? - Aproveito seu súbito descontrole e, num gesto ligeiro e imperceptível, roubo o lenço no bolso de seu 'sobretudo' e o enfio no bolso de meu casaco. - Ficou com medo, né? - Rindo de nervoso, eu me afasto e tentando parecer destemida, alerto. - Se machucar Cassie ou Sean, eu mesma te mato. Mesmo que eu morra depois, eu te mato.
Com ódio nos olhos, ele me dá as costas. Não quero tocar no lenço agora. Não aqui, no meio da rua.
Porra! Eu não acredito! Que diabos eu estou fazendo aqui!?
Em frente à academia de boxe de Vincenzo!?
É sério!? 
Tento fugir quando ouço a voz de Leo me chamar. Uma careta e retorno, sorrindo. 
- Que bom que tá aqui, tia! Queria te mostrar meu novo trabalho! - Ele está tão entusiasmado. Tadinho. Não posso recusar. - Vem!

Novamente sou arrastada pelo braço de um adolescente até o ringue onde Vincenzo para de lutar com João e me encara com seus olhos tristes. Com o buquê nas mãos, cumprimento João sem deixar de notar uma pitadinha de ciúmes no lindo rosto de Vincenzo. Amei! 
Empolgado, já no ringue, Leo me desperta. 
- Tia! Presta atenção!
- Uau...- Exulto. Após lutar contra João, de igual para igual, por um breve período onde Vincenzo me observa, Leo vibra ao declarar agarrado às cordas elásticas.
- Agora já posso fazer parte da "Grande Batalha". Não posso, tia!? 
Um sorriso triste e respondo.
- Pode, Leo. Pode. Claro que pode.

Infelizmente, vc já está dentro dela e não sabe.


- De quem são as flores!?
- Minhas. - Respondo dando as costas a Vincenzo que me segue até a calçada. - Cadê meu carro!?
- Vc veio a pé, idiota!
- Como sabe!?
- Eu vi, imbecil! Quem te deu essas flores!?
- Ciúmes!? - Gargalho, histericamente, em frente à academia. - Não deveria ser o contrário!? Quem tem motivos aqui pra ter ciúmes, Sr. Rossi!?
- Onde deixou seu carro, louca!?
- Não me lembro...
- Na 'Just Dance'!?
- Isso!
- Vc tem sérios transtornos mentais. Sabia!? Deveria tomar os remédios!
- Somos dois, bastardo! Fica longe de mim!
- Eu estava aqui! Quem veio até mim foi vc!
- Não seja patético! Eu me distraí e, por algum motivo, parei aqui!
- Vc caminhou por três quadras e parou exatamente aqui!? Em frente ao local onde eu trabalho!? 
- O Leo trabalha aqui, estúpido! Eu queria ver sua evolução! Só isso!
- Já viu...- Mordendo o canto da boca, ele evita um sorriso. Dando-lhe as costas, não permito que ele vejo o meu. - Quer que eu te leve até seu carro?
- Nunca! Prefiro ir a pé, debaixo de uma chuva de granizos gigantescos do que entrar em seu carro. - Debocho, afastando-me dele. Preocupado, ele alerta.
- Cuidado com quem encontrar. Como diriam Antoine e Leo, 'A Grande Batalha' já começou. - Voltando-me em sua direção, sussurro.
- Eu sei. Eu já recebi o primeiro golpe. Ainda sangra...

- Eu tô exausta, Enrico. Podemos jogar xadrez uma outra hora? 
- É só uma partidinha. Prometo. Eu tenho me sentido tão sozinho...
- Me perdoa. - De camisola, com a toalha enrolada nos cabelos molhados, eu o abraço após meu banho. Verdadeiramente arrependida, confesso. - Eu tenho me aproveitado de vc. Tenho feito vc de babá o tempo todo e nunca mais conversamos. 
- 'Nada a ver', como diria Antoine. Eu sou parte da família. Cuidar do meu neto, além de minha tarefa  é um grande prazer. Se eu não estivesse entre vcs, não sei o que estaria fazendo da minha vida. Nem quero pensar...
- Não pensa! - Beijando sua bochecha, peço que me espere. - Vou pentear meus cabelos. Me espera na sala. Uma partida de xadrez vai me fazer bem. Preciso desenvolver meu lado racional.
- Concordo! - Diz ele, eletrizado. - Te espero na sala! 
- Combinado!
Cobrindo minha camisola decotada com um robe preto de mangas compridas, penteio os fios de meu cabelo. Cato as roupas sujas no chão e as jogo no cesto do banheiro. Lembro-me do lenço que roubei de Liam mais cedo. Sem me concentrar, eu o retiro do cesto e o escondo em minha gaveta de meias. Diante do espelho, digo a mim mesma.
- Depois eu cuido disso. É pesado demais. Enrico precisa de um pouco de atenção.
Uma olhadela no quarto de Matteo e o vejo dormindo, tranquilo, sob a luz azul do abajur e um teto coberto por estrelas. Antoine, deitada em sua cama, conversa sobre 'animes' e lutas com Leo ao celular. Ela esconde seus verdadeiros sentimentos dele. Ainda o trata como um amigo porque ele ainda a trata como uma irmã mais nova. 
Merda! Mãe sofre pra cacete!
Fecho a porta de seu quarto e caminho até a sala envolvida na penumbra. A lareira acesa aquece o ambiente. Velas espalhadas pela sala, em lugares estratégicos, torna o cômodo ainda mais acolhedor. Surpreendida, encontro Enrico à mesa de jantar. À sua frente, uma garrafa de vinho e três taças bojudas. Pisando no tapete felpudo, pergunto, intrigada. 
- Cadê o tabuleiro de xadrez, Enrico?
- Precisamos conversar, meu anjo. Sente-se. - Um arquejo e me assusto com o vulto de Vincenzo na ponta da mesa. Cruzando as mãos na nuca, ele responde antes que eu pergunte.
- Não tenho nada a ver com isso. Cheguei um pouco antes de vc pra jogar xadrez com o meu pai.
- Não te perguntei nada.
- Mas pensou. 
- Enrico! Eu não quero ficar aqui perto dele!
- Somos dois. - Refuta Vincenzo, ao se levantar da cadeira. - Sei quando sou inconveniente. Perdão, pai. Vou dormir.
- Sente-se. - Ordena Enrico, pacientemente. - Nenhum dos dois vai sair daqui até que eu explique algumas coisas.
- Que coisas, Enrico!? Não tem nada pra ser explicado! - Sento-me e, enchendo minha taça, com vinho, até a borda, protesto após  esvaziá-la num só gole. - Seu filho me traiu! E, até agora, mesmo morando sobre o mesmo teto, não me pediu perdão!
- Eu não te traí, porra! - Refuta ele, colérico,  jogando seu tronco sobre a mesa. Seu indicador aponta para mim quando acusa. - Era vc! Vc mesma viu!
- Maldito! Eu não sei o que vi, mas aquilo não era eu!
- Era o que, então!? Fala, Dess! 
- Não sei!
- Calem a boca! - Ordena Vincenzo num tom de voz grave e severo. - Parem de infantilidade e me ouçam! Uma vez na vida, me ouçam!
Calados, de braços cruzados e emburrados como crianças repreendidas por mau comportamento, nós o ouvimos. De frente a Vincenzo, eu evito seu olhar. Ele faz o mesmo.
- Súcubos. - Diz ele tomando um gole de seu vinho. Curiosa, permito que ele encha a minha taça de vinho. Entornando a bebida na terceira taça, ele a entrega a Vincenzo e, com carinho, pede. - Beba. Vai precisar. - Vincenzo me imita e esvazia sua taça enquanto Enrico prossegue num tom soturno, sob a luz das velas bruxuleantes. - Vc foi atacado por um súcubo, filho. - Calada, movo-me na cadeira, demonstrando minha indignação. Vincenzo repete a palavra com uma certa incredulidade. Sem conseguir me conter e, respeitando a sabedoria e o amor que Enrico tem por nossa família, indago num tom baixo. -
- O que é isso, Enrico?
- Criaturas femininas e demoníacas conhecidas por invadirem os sonhos dos homens e roubar deles a energia vital. Frequentemente, são belas e sedutoras, mas suas intenções são sempre malignas.
- E o que isso tem a ver com o que o seu filho me fez?
- Eu não te fiz nada. Eu fiz com vc. - Com a garrafa em sua mão, ele enche sua  taça e a esvazia. Com a voz rouca, ele pergunta. - Quando vai entender que eu fui enganado?
- Quando vc fizer amor comigo com a loucura que fez com aquela vaca! Eu vi! Eu observei tudo bem de perto, seu verme! Nunca te vi tão louco, tão excitado e empenhado em satisfazer às necessidades de uma mulher como naquele momento! E não foi por mim!
- Não se faça de louca! Eu pensei que fosse vc! Eu não tenho nenhum tesão em outra mulher que não seja vc! Merda! Vc, após anos de convivência, ainda não entendeu que eu te amo e que só tenho desejo carnal por vc! Mas, tudo bem! Se vc quiser manter sua versão vitimista do que aconteceu, eu vou embora! Sumo da sua vida! 
- E deixar seus filhos, canalha!?
- Vc não me dá outra opção!
- Eu tô aqui, idiota! Esperando por alguma palavra sua que me faça acreditar em sua versão dos fatos! Vc é burro ou só tá fingindo que é!?
- Eu sou um monte de merda. - Confessa ele, desabando sobre a cadeira. Seu tronco se curva sobre a mesa e, escondendo a cabeça entre os braços flexionados, ele lastima. - Por mais que eu tente, eu nunca vou te convencer de nada. Eu nunca serei o que vc quer que eu seja. Eu 'caí' por nada. Pai...- Erguendo-se da cadeira, ele encara Enrico e suplica. - Me deixa partir. Por favor. Eu não aguento mais.
- Não, filho. Vc é mais forte do que imagina. Sente-se.
- Não se atreva a me deixar novamente, Vincenzo Rossi! - Protesto, amedrontada. - Não vai! Fica e me diz o que aconteceu!
- Ele não precisa, filha. - Diz Enrico ao tocar o centro da minha testa com seu indicador e, sutilmente, ordenar. - Veja com os olhos do coração.


De olhos fechados, sou levada de volta ao escritório de Vincenzo, um pouco antes de eu chegar. Ele, sozinho, concentrado na tela do computador calculando orçamentos, não a enxerga num dos cantos da sala. Sua forma animalesca e asquerosa se transmuta, aos poucos, em uma mulher bela, longos cabelos escuros, seios fartos e o rosto exatamente como o meu. Uma cópia exata de mim, exceto por um detalhe: a cauda que se esconde entre as pernas à medida em que caminha até ele e o surpreende pelas costas. A voz aveludada o encanta. "Dess!", diz ele, feliz por me ver. Num ato selvagem e ligeiro de seu braço, ela varre a mesa, jogando todos os objetos no chão. Sem lhe dar chances para raciocinar, ela o força a se deitar e o beija na boca, sugando-lhe parte de sua energia. Entregue a ela, pensando ser eu, ele murmura. "O que tem hoje, mulher? Não deu pra me esperar em casa?"
"Tenho fome", responde ela com o pau de Vincenzo em sua boca. Ela o suga ainda mais. Ainda mais entregue, ele fecha seus olhos e não enxerga a cauda que se movimenta como uma serpente venenosa. O corpo da criatura, ou seja, o meu, pulsa enquanto ele a penetra. De olhos fechados, ele ri, inocentemente, de minha lascívia. "E se chegar alguém? Vamos terminar em casa, amor". Agarrada a ele, ela o força a continuar até que ele goze dentro dela no exato momento em que abro a porta e ele, impactado, abre os olhos incrédulos.
Horrorizada, de volta à nossa sala de jantar, lamento.
- Foi horrível...
- Vc viu, Dess?
- Sim. - Desconfiada, lanço um olhar a Vincenzo e o questiono. - Como vou saber se vcs dois não combinaram isso!? Vc gosta de mexer com as minhas memórias, Vincenzo!
- Mas eu não, filha. - Defende-se Enrico, magoado. - Não sou assim. Não minto.
- Perdão. - Peço cobrindo meu rosto com as mãos, evitando chorar na frente de Vincenzo. Com a voz embargando, prossigo. - Não quis te ofender, pai. Nunca o faria. Como esse idiota não percebeu a cauda dela!? 
- Que cauda, Dess!? - Grita ele, descontrolado. - Vc queria me engolir e eu iria reparar em cauda!? - Chorando de raiva, refuto.
- Desde quando eu chegaria nua no seu escritório, idiota!? Ela estava nua! Eu estava nua e vc não reparou nisso também!?
- Vc me atacou por trás! Talvez tivesse deixado a roupa no banheiro, porra! Sei lá! - Ofendido, ele volta a se erguer da cadeira e argumentar. - Vc viu a verdade, Dess. Se ainda quiser acreditar em minha suposta traição, o problema é seu. Eu não sei mais o que fazer além de me manter distante de vc e não te machucar a cada vez que vc me vê. Com licença.
- Não! - Ergo-me da cadeira e, com meu corpo, eu o impeço de passar. Rindo, ele me pede. 
- Dá pra sair? Eu não tô brincando. 
- Nem eu. - Enrico, silenciosamente, deixa-nos a sós. Ele cumpriu sua missão. Agora, eu assumo o controle. 
- De quê, idiota? Vc não tem controle sobre mim.
- Vc fodeu aquela criatura como nunca me fodeu antes! Eu exijo uma retaliação!
- Isso é sério!? Todo esse tempo sem falar comigo foi por esse motivo tosco!? Por que eu não te fodi com força, Dess!?
- Sim! Com força, intensidade e loucura! - Grito. Estapeio seu rosto e, pressionando-o contra a parede, eu o provoco. - Aiden já me fodeu daquele jeito! Vc nunca!
- Vá pro inferno. - Rosna ele. Seguindo-o até o quarto de hóspedes, tranco a porta assim que entro e com a voz rouca, imploro.
- Me leva até lá.
- Por que falou nesse merda!?
- Pra te deixar puto e ter o que aquela criatura asquerosa teve!


- Não precisa, porra! Vc acaba de me comparar a um homem...um demônio  que te machucou, estuprou e te manteve em um cativeiro por muito tempo, Dess! Vc se esqueceu do dia em que padre Pietro e eu te resgatamos!? Vc fedia à merda! Por causa dele, vc quase morreu! É como ele que devo me comportar!? - Desorientado e enfurecido, ele me empurra ao declarar. - Esqueça!
Um susto e caio contra o piso em madeira após ter batido com a cabeça na quina da cama. De olhos fechados, penso que vou desmaiar. Não me movo até que ele, desesperado, ajoelhado ao meu lado, me pede perdão. - Foi sem sequer, Dess. Eu não queria...
- Eu sei...- Murmuro arrependida. - Eu fui a culpada. - Erguendo meu tronco, cuidadosamente, ele indaga, preocupado.
- Onde dói!?
- Aqui...- Com uma das mãos, toco no osso 'occiptal' atrás da cabeça, levando a mão livre ao meu peito, desorientada, concluo. - E aqui.
- Bateu com os seios?
- Não, idiota...- Sussurro sentindo dor na cabeça. - No coração. Não no órgão...- Revirando os olhos, eu me recosto em seu tronco, matando um pouco das saudades. - Burro.
- Estúpida. - Levantando-me do chão em seus braços, ele decide. - Deixa eu cuidar disso aí.
- Não tá sangrando.
- Eu cuido! Vc não pode dormir por seis a doze horas! - Grita ele arregalando seus lindos olhos azuis. Escondendo meu sorriso em seu pescoço, eu o deixo me xingar enquanto me deita na cama. - Vadia. Filha da puta vingativa. Fica aí. Não se mexe. Já volto com a caixa de 'primeiros socorros'. - Ciente de que não preciso de socorro, exalo ao concordar com os olhos fechados.
- Ok. Volta logo.
- Eu te odeio, Dess.
- Somos dois. Eu também me odeio...




- Por que vai se levantar, Dess? Vc ainda precisa ficar em observação.
- 'Observação' é o caralho! Se eu não posso dormir e se não tem nada de excitante para fazer durante o período entre seis a doze horas nessa cama, eu prefiro trabalhar.
- Não me deixa puto de novo, Dess!
- Sai da minha frente. Eu preciso fazer algo de útil já que vc...
- Cala a boca!
- Quem diria...- Debocho saltando da cama. - Vincenzo Rossi mostrando seu lado selvagem à sua 'esposinha' medíocre...sem cauda. - Uma dor aguda na cabeça e, fazendo careta, alerto. - Se vier atrás de mim, eu te estanco na porrada.
- Eu não vou. Fique tranquila. - Ofendida, refuto.
- Seu anjo de merda. Nunca mais toca em mim.
- Dess...

- Posso ficar com vc?
- Filha?
- Por que tá chorando, mãe? Vc e o papai não fizeram as pazes? Vovô estava tão confiante...
- Enrico é um sonhador. Não vive nesse mundo. Seu pai...
- O que, mãe? O que tem meu pai?
- Seu pai é muito melhor do que eu, filha. Ele nunca vai entender o que eu sinto porque o que eu sinto, tá lá no fundo do poço. No escuro, escondido na lama.
- Não tá não, mãe. Vc é tão linda e iluminada quanto ele. - Afirma Antoine abraçada a mim. - Não desista dele, mãe. Unidos, somos imbatíveis. E, ele, sem vc, não é nada. 
- Não me faz chorar, filha.
- Já era. - Diz ela, rindo do meu choro. - Vc chora por tudo, mãe. Por felicidade, por tristeza, em filmes, dançando, ouvindo música. Isso é bom, mamãe. É bom. Chorar é bom. Eu queria chorar, mas não consigo. - Triste e curiosa, indago, sentada no chão da 'brinquedoteca' com Matteo. 
- E  por que diabos vc gostaria de chorar, Antoine? Tá triste? Doente?
- Não sei. - Confessa ela cobrindo o rosto com suas mãos delicadas. - Sempre que ele me diz adeus, eu sinto vontade de chorar. O que é isso, mãe?
- Leo?
- Sim. Ele não me enxerga, mãe. Ele pensa que eu sou a irmã mais nova dele, mas eu não queria que ele me visse assim. Eu não sei o que eu quero, mas eu não quero isso. Dói. 
- 'Dodói'. - Ratifica Matteo, sorrindo, brincando com seus bonecos. Rindo de meu choro compulsivo, ela me abraça por um bom tempo. - Fica tranquila, mãe. Eu não vou desistir agora. Não antes de saber que ele me vê como as outras garotas. - Assoando meu nariz na barra da minha camisola, indignada, eu a corrijo. 
- Vc nunca será vista como as outras garotas que ele conhece, filha. Sabe por quê!?
- Não...
- Porque vc é a garota mais especial que ele poderia conhecer nesse e em outro mundo! Quando ele perceber isso, vc vai ter o que deseja!
- Vou? - Pergunta ela, esperançosa.  
- Vai. - Afirmo, insegura. Matteo me agarra pelo pescoço e, num beijo, baba meu rosto. Beijo seu rostinho e o faço sentar ao prosseguir. - Vai ter o amor do seu melhor amigo. - Agora, é ela quem chora. Abraçadas, choramos juntas até que ela, de súbito, ergue-se e, confiante, avisa. 
- Vou lutar muito, mãe! Vou ser a melhor lutadora de boxe que já viram e, quando ele perceber que sou imbatível, ele vai entender quem eu sou!
- Filha...- Do chão, eu a advirto. - Vc não precisa provar nada a ele. Leo já sabe quem vc é e qual é o seu valor. Ele só precisa de um tempo. Ele vivia em um mundo escuro até te conhecer. Dê tempo ao tempo. Por que não o convida pra lanchar aqui amanhã à noite? Vcs podem lanchar e, depois, 'maratonar' um daqueles desenhos esquisitos de monstros que já foram gente comendo gente no meio da rua. - Rindo, ela elucida. 
- 'Shingeki no Kyojin'!
- Oi??? - Matteo ri de minha expressão. Eu beijo sua barriguinha até ele gargalhar. 
- 'Attack on Titans'! 'Ataque dos Titãs', mãe! É muito louco, mas ele gosta!
- Não faz o menor sentido pra mim, filha. Gente que vira monstro que come gente pra ficar forte e continuar comendo gente e monstros como eles...
- Eu sei, mãe. Também não curto muito, mas...
- Pra estar ao lado dele, vc finge que curte. Né?
- É...- Suspira ela.


- Eu te entendo, meu amor. Eu assistia às lutas de boxe com seu pai, mesmo detestando aquela violência gratuita.
- Por que não assiste mais, mãe? Ele tá tão sozinho.
- Eu também.
- Mãe...- Lamenta ela. Afetando alegria, eu a incito a convidar Leo para lanchar em nossa casa. 
- Vai! Liga pra ele! Eu vou pedir pizza!
- Com batata frita!?
- Claro! Faz total sentido! Nada como um nível alto de colesterol e triglicerídeos para uma vida feliz!
Rindo, ela me abraça e me beija na bochecha ao declarar.
- Vc é a melhor mãe do mundo. Eu sabia que seria vc. Naquela noite, na praça, eu sabia que deveria oferecer o 'drops' a vc.

Emocionada, ela me beija no rosto e abraça seu irmãozinho. Estirada no chão colorido, chorando ao me recordar da noite chuvosa onde uma menininha linda e desinibida surgiu em minha vida, vejo Matteo deitar sua cabecinha em minha barriga e balbuciar um 'dodói'?
- Não, meu amor. Não é 'dodói' não. 
- Mãe! - Da porta, ela me pede. - Para de chorar e, por favor, conversa direito com o papai. Ele é burrinho, mas te ama.

Ainda no chão emborrachado, eu gargalho sem deixar de chorar. Encolhendo-me em posição fetal, eu imploro.
"Não tirem Antoine de mim. Não vou suportar."
- O que pretende fazer?
- Um experimento. - Respondo, emburrada, de costas para ele. - Preciso de paz pra conseguir respostas. - Erguendo Matteo em seu colo, Vincenzo o faz gargalhar. Retirando o sorriso do rosto, ele me  pergunta.
- O que pensa conseguir com o lenço de Sean? - Surpreendida, refuto.
- É do Liam. Eu o roubei dele.
- É do Sean, Dess. Presta atenção. Desde quando Liam teria um lenço com estrelinhas azuis e o nome de Sean bordado em azul?  - Assim que estendo o lenço no chão, penso: "Faz total sentido! Total!" - Claro que faz. Vc não tem estado bem da cabeça. Quer ajuda?
- Não!
- Ok...- Diz ele, meio que sem graça. Afastando-se de mim, levando consigo nosso filho, ele avisa. - Cuidado com o que procura. Isso pode te machucar ainda mais. - Engatinhando, eu o alcanço e, segurando em sua panturrilha esquerda, eu o prendo a mim e indago, amedrontada.
- O que quis dizer com isso!?
- O que eu disse. Tá se metendo em algo muito maior do que imagina.
- Então vc deixaria seus amigos nas mãos de gente ruim porque eles são bem maiores e perigosos do que vc imagina!? - Agachando-se, fixando seus olhos nos meus, ele responde.
- Nunca, Dess. Eu só quero que vc tenha cuidado. Não quero que se machuque. Não quero te perder.
- 'Mamãe e papai'. - Balbucia Matteo arrancando um sorriso nosso. Por segundos, ele me olha com ternura. Eu o correspondo. Em seguida, acuso.
- Vc sabe de alguma coisa.  Fala. Liam não é um anjo como eu pensei.
- Não tenho certeza. Meu pai e eu temos recebido mensagens estranhas a seu respeito.
- Sério??? E não me falam nada??? Ele tem Cassie e Sean sob os seus cuidados, Vincenzo!!! Eu o vi tirando sangue de Sean!!! 
- Como assim!?
- Nada...- Rosno. - Vai trabalhar e me deixa sozinha. Por que diria algo a vc se vc tem seus informantes eficientes?
- Dess, eu não quero mais...
- Vai embora! E, por favor, preste atenção nas caudas daqui por diante!
- Não fala assim. Isso nos afasta ainda mais. - Impulsiva e enciumada, ergo-me do chão e, tomando Matteo de seus braços, num chute, bato a porta contra seu rosto. Perdida dentro de mim mesma, não sei o que fazer para reconquistar a paz entre nós dois. A angústia de não ter hesitado em matar um ser humano, ainda que não tenha sido humano aquilo que extingui com o punhal, me separa dele como o sol da lua.
E eu o amo tanto...
Mais do que antes.
Como um anjo pode machucar tanto um coração?
- 'Papai feio. Ai ai ai'.
- Concordo, filho.


Infelizmente, a tentativa de Enrico em nos aproximar acabou por nos separar ainda mais. Graças à minha estúpida impulsividade e a um ciúme doentio, não nos falamos há dois dias. Chega a ser engraçado esbarrar com ele pelos cômodos da casa e ter de me conter em não pular em seu pescoço ou xingá-lo de filho da puta. 
Vou ao seu escritório, sem que ele saiba. Enquanto ele dá aulas, auxiliado por Leo, deixo que Anahita tome conta de mim e pratique sua magia de luz. Assim que desperto do transe, vejo desenhos cabalísticos debaixo da mesa onde Vincenzo trabalha e acima da porta de entrada. Queimo sálvia a fim de espantar as energias negativas residuais. Limpo com álcool e raiva, a mesa onde aquela piranha maligna ousou tocar meu marido e, para finalizar, borrifo água benta que roubei da pia de uma igreja próxima à academia, em todos os cantos da sala e do banheiro até a porta por onde ele e João entram, assustados.
- Que porra é essa, Dess!? Tem alguma coisa pegando fogo!? - Rindo, respondo que não. 
- É sálvia. E não vou responder pra que serve. Pergunte ao 'Google'. 
- Vc é louca, Dess! Tem fumaça lá fora!
- E daí!? Assim já limpa a academia toda! Duvido que tentem invadir seu escritório novamente!
- Entraram em seu escritório, Vincenzo!? Quem!? - Indaga João, apavorado. - Precisamos de um segurança!
- Fica na paz, meu irmão. Isso é coisa dela. - Refuta Vincenzo, bancando o 'bom moço'. Um beijo em meu rosto e João se despede.
- Se quiser, pode realizar esse ritual lá em casa também, Adessa. Estamos precisando. - Incrédula, sussurro um 'Ok'. O que tá rolando nesse planeta!? Todos estão sendo atacados!? Segurando-me pelo braço, Vincenzo sussurra.
- Isso é pra me proteger?


- Digamos que sim. Não quero que o pai dos meus filhos seja atacado por outra piranha com a cauda mais comprida que os meus cabelos. - Catando minhas coisas, não lhe dou atenção até que ele volte a se assustar e indagar.
- Que porra de desenho é esse em cima da porta, Dess!? Isso aqui é um local de trabalho! Não é um templo, um terreiro ou coisa parecida! - Enfurecida, respondo apontando para o pentagrama.
- Isso aqui é um símbolo de proteção contra demônios, Vincenzo! Já que vc não consegue distinguir a porra de um súcubo de sua esposa, eu vim aqui e estou tentando tornar esse local o mais seguro possível! - Seu corpo me impede de passar pela porta aberta quando peço sem olhar em seus olhos. - Me dá licença. Eu já vou embora.
- Não vai me benzer antes? - Sua voz serena me ruboriza. Sua mão em meu rosto me deixa tonta. Aspiro seu perfume de maçã verde misturado ao seu suor...- Eu preciso ser bento. Vc não acha? - Murmura ele bem próximo à minha boca. Ansiando por seu beijo, chego a fechar os olhos quando Leo, inocentemente, parte ao meio, o clima romântico assim que me vê do corredor. - Merda...- Resmunga Vincenzo.

Passando por ele, sigo em direção ao grande amor de minha filha que me abraça com entusiasmo. Meu coração ainda bate em descompasso quando ele pergunta.
- Cadê Antoine!? Ela não veio hoje! 
- Ela não te disse o porquê?
- Disse que precisava se afastar de mim. - Responde-me ele, desorientado. - O que eu fiz, tia!? - Erguendo os braços em posição de defesa, ele jura. - Eu nunca a maltratei! Nunca a toquei sem respeito! - Esse é o problema, querido. Esse é o problema. - Fala com ela pra ligar pra mim, tia! Por favor! Ela me faz falta!
- Sério!? - Sorrio, animada. - Tipo...muito!?
- Sim. Ela é a minha melhor amiga. - Murcho. - Minto. Ela é a minha única amiga. Sem ela, a vida fica sem graça.
- Uau...- Exulta Vincenzo logo atrás de mim. - Isso foi bacana.
- Por que não vai lanchar com a gente lá em casa!? - Sugiro. - Faça uma surpresa a ela! Aposto que ela vai gostar!
- Posso? - Pergunta ele, inibido.
- Claro! - Incentiva-o Vincenzo. - Quer carona!?
- Já é! Vou pegar minhas coisas e já volto!
- Bancando o bom pai? - Provoco.
- Fiz o mesmo que vc, idiota.
- Estamos competindo?
- Quem sabe? 
- Não me olha assim! Vc sabe o que esse olhar me causa!
- Tesão?
- Vá pro inferno! - Dando-lhe as costas, sorrio ao avisar. - Dê carona a ele. Vou na frente. Preciso preparar o coração de Antoine.
- Depois, vc pode me benzer!? - Erguendo o dedo médio, excitada, grito da porta.
- Vincenzo! Vá à merda!
Antes mesmo de estacionar o carro na garagem, percebo algo de errado ao olhar para o segundo andar de nossa casa. As janelas do quarto de Matteo estão escancaradas. O vento esvoaça a cortina em 'voil'. Um súbito arrepio e corro até a varanda onde Antoine, aflita, me aguarda.
- Meu filho!
- Não sei! Ele tá chorando lá dentro, mãe! Meu avô e eu já tentamos abrir a porta! - Subo os degraus antes dela terminar de relatar os fatos. Logo atrás de mim, ela conclui. - E não conseguimos! Tem alguma coisa lá dentro!

Do corredor, espantada, vejo Enrico se jogar contra a porta em total desalinho enquanto Antoine chora e reza pedindo por ajuda. Junto a Enrico, chuto a porta com minha perna mais forte. Nada. Ouvir meu filho chorar sem saber o porquê me faz enlouquecer.
- CALMA, FILHO! MAMÃE TÁ AQUI! - Tocando a porta, eu me concentro e os vejo cercando o berço de meu filho. Com os punhos cerrados, bato na madeira até que minha pele sangre. Enrico está prestes a ter um infarto enquanto clamo ajuda dos céus.
- Arcanjo Miguel! Proteja meu filho! 
Mais golpes e, chorando de desespero, imploro recostada à porta.
- FIQUEM LONGE DELE! ELE É INOCENTE!

Vincenzo e Leo, assustados com nossos gritos, nos afastam da porta. Vincenzo conta até três e ambos chutam a porta com toda a força.
Enfim, ela se abre, estrondosamente. Sou a primeira a entrar e a gritar de pavor. Vincenzo, sem hesitar, avança contra os seres da 'Legião' que tentam, sem êxito, encostar em Matteo. Chorando de medo, ele é protegido e amparado por Doc que o segura em seu colo. Confusa e horrorizada, eu vejo Leo, Vincenzo e Antoine lutarem contra a turba que se desloca com agilidade. Erguendo seus braços, de olhos fechados, Antoine recebe do alto algum tipo de carga elétrica e a canaliza para os dedos das mãos, atingindo-os com raios que os ferem.  Leo, lutando por nossa família, lança um ligeiro olhar a Antoine onde espanto e encanto se misturam. Doc, com os olhos cheios de lágrimas, murmura.
- Perdão, filha. Não posso te entregar Matteo agora. Não até que tudo termine. Eles o querem. 
- Meu filho precisa de mim, Doc!
- Confie em mim! Comigo, ele ainda está protegido!

Decidida a proteger meu filho dos porcos que nos atacam, com um de seus gizes de cera, traço um círculo de proteção ao redor de Doc que o segura em seu colo. Em profunda agonia, percebendo a luta injusta onde Vincenzo, Leo e Antoine estão em desvantagem, corro até o  meu quarto e a pego pelo cabo. O punhal pulsa em minha mão. Enchendo-me de ira, volto ao quarto e avanço contra dois dos seres da 'Legião', sem êxito. Leo cai contra o chão, com arranhões em seu rosto. Antoine o ajuda a se reerguer. Vincenzo, sozinho, não desiste, mas, em breve, eles irão vencer a luta. Sem raciocinar e sem opções, eu o invoco. 
Dentro do círculo, com a ponta do punhal, traço uma pequena linha em meu pulso até que a pele sangre. Doc protesta dentro do círculo.
- Isso não, filha! Isso não!

Uma gota é o suficiente para trazê-lo até o quarto.
Seu vulto entra pela janela trazendo consigo uma cortina de fumaça espessa. Em sua forma demoníaca, ele urra de raiva. Vincenzo protege Antoine e Leo, afastados da poeira com cheiro de enxofre. Cubro, com meu corpo, o corpinho de Matteo que, subitamente, para de chorar. Doc me abraça enquanto ouço os gritos de pavor daqueles que riam de nosso sofrimento. Lúcifer dizima, com fogo, os membros da 'Legião' que ousaram pensar em tocar no sangue de seu sangue. Após sugar com sua boca descomunalmente aberta, o que restou dos seres diabólicos, ele se faz homem e nos encara a todos. Antoine rosna.
- Maldito. Ainda não acabou.
- O que é seu ainda está por vir, meu bem. 

Vincenzo me protege com seu corpo. Lúcifer gargalha com sarcasmo.
- Tolo. Eu não vim porque quis. Não estava passando pela redondeza e resolvi fazer uma visita. - Uma piscadela e ele insinua. - Alguém me chamou.
- Dess!?
- Discutam depois. Não tenho tempo a perder. Eles estão se multiplicando como baratas em bueiros. Por Baco! Tomem mais cuidado! Qualquer um parece poder entrar nessa casa! Vampiros, demônios, anjos caídos, mortos! For God's Sake! Até eu! Ah! - Uma pirueta digna de um bailarino e ele enfatiza. - E o que eu fiz não foi por bondade. Foi por puro interesse. Quero essa escória longe dos humanos. Os Humanos são meus. - Lançando um olhar malicioso a mim, ele avisa. - Tudo tem um preço e eu vou cobrar por isso. - Antes de se desmaterializar diante do olhar petrificado de Leo, ele comenta. - Menininho bonito. Que bom ver uma carinha nova entre vcs. E pensar que eu quase tive sua alma em minhas mãos. - Lamenta ele, aos risos.
- Verme! - Grito furiosa e arrependida avançando sobre ele que, em segundos, desaparece.
- 'Arrivederci'!

Após cuidar dos ferimentos de Leo e Antoine, Vincenzo vem em minha direção. De cabeça baixa, sentada no chão da sala, agarrada ao meu filho, aviso.
- Não preciso. Sei me cuidar sozinha. - Com severidade na voz, ele refuta.
- Não é hora pra isso, Dess. Deixa eu ver esse braço. 
- Eu já estanquei o sangue.
- Com a fralda de Matteo? Belo trabalho.
- Não quero brigar, Vincenzo.
- Nem eu. Estamos todos abalados com o que aconteceu. Me dá seu braço, por favor. - Obedecendo-o, permito que ele retire a fralda manchada de sangue e observe mais um dos muitos ferimentos em meus pulsos. Forçando-me a olhar em seus olhos assustados, ele ordena.
- Nunca mais corte na vertical, entendeu?
- Por quê? Eu nem vi o que estava fazendo.
- Não dá pra suturar, idiota. Quer morrer e deixar sua família sem a sua proteção?
- Limpando o ferimento, ele agradece, num suspiro. - Graças a Deus não foi profundo. - Com o braço estendido, recostada ao sofá, observo seu cuidado em não me machucar ainda mais. Desinfectando o corte superficial, unindo minha pele com tiras adesivas, ele murmura. - Vc não deveria ter feito aquilo. Vc o invocou. Agora, ele pode entrar aqui quando quiser.
- Nunca. Eu sei como afastá-lo. 
- Dess! Ele é Lúcifer! 'O Príncipe das Trevas'! Não é mais um de seus seguidores em suas redes sociais!
- Não briguem. Pelo amor de Deus...- Pede-nos Enrico, sentado em sua poltrona preferida. Devastado, ele implora. - Chega de lutas e brigas e desavenças. Isso nos enfraquece. Vcs não percebem isso?
- Vovô tem razão. Estávamos fracos porque vcs não fizeram as pazes. Não levaram a sério o fato de que o Mal nos espreita e quase levaram o meu maninho. - Leo abraça Antoine e afaga seus cabelos. Beijando seu rosto, ele pergunta, desconcertado.
- Isso costuma acontecer entre vcs? Digo...'Legião Infernal', Lúcifer, mortos?
- Vc se esqueceu de anjos,  arcanjos, súcubos e demônios que já foram seres humanos, Leo. - Considera Antoine, em seus braços. Apesar de tudo, estou feliz por ela. - Bem-vindo ao nosso mundo. 
- Não tenho como te agradecer, Leo. - Confesso enquanto Vincenzo enfaixa meu pulso. - Vc não teve medo. Já chegou 'caindo dentro'. Lutou como um bravo guerreiro. Praticamente, um 'Eren Jaeger'! - Rindo, ele comenta. - Se eu sou o Eren, Antoine é a minha 'Mikasa Ackerman'. - Lisonjeada, ela ruboriza. -  Que lance irado foi aquele dos raios!?
- Aaaah...- Um suspiro e,  estirada sobre o tapete com a cabeça em seu colo, num dos cantos da sala, ela responde. - Depois te explico como fazer. 'Tá ligado'?
Vincenzo, exausto e com arranhões em seu rosto e braços, exaurido, se joga ao meu lado. Sorrindo para Leo, pergunta.
- Quem são esses?
- Personagens de 'Ataque dos Titãs', papai. Se quiser, pode assistir com a gente.
- Eu não aconselho. - Resmungo, prostrada, ainda agarrada ao meu filho que brinca de soprar pela boquinha fazendo ruído. - Tudo muito louco...
- Podemos fazer uma oração? - Pergunta Enrico, fragilizado. - Ainda não acabou.
- Claro, pai. Tem toda razão.
- Sério, Dess!? - Zomba Vincenzo. - Falou a mulher que invocou Lúcifer!
- Eu o faria novamente se fosse pra salvar a vida de nossos filhos! - Refuto, irritada e ainda mais arrependida. - Eu te odeio, Vincenzo!
- Fica. - Pede-me ele, evitando que eu me erga do chão. - Tô muito cansado pra brigar. Perdão. Vc fez o que pensou que seria o certo. Agiu por impulso e, se não fosse por vc...- Enrico conclui, exausto.
- Nós não estaríamos aqui, tentando não brigar.
- Chega de brigas, pai. Chega de brigas, mãe. É hora de reconciliação. 
- Concordo. - Digo num sussurro. De cabeça baixa, Vincenzo diz o mesmo.

- Quero a nossa família de volta.
- Somos dois...- Murmuro atrevendo-me a olhar em seus olhos distantes. - É preciso cuidar dos seus ferimentos. - Assevero. - Será que vc confia em meus parcos talentos de Enfermagem? - Um de seus sorrisos iluminados e ele responde.
- Sim. Sou todo seu. - Um riso eufórico e o chamo de 'bobo'. - Somos dois bobos, Dess. Bobos desperdiçando tempo com bobeiras.
- Faz sentido. - Concordo, arfando. - Total...- Erguendo um dos braços, Leo, empolgado, pergunta entre intrigado, animado e transtornado.
- Então, agora eu já posso fazer parte da 'Grande Batalha'!? 
- Total! - Exulta Antoine beijando-o no rosto. - Nós dois, juntos, vamos derrotar os titãs de merda do inferno!
- Já é! - Antes que Antoine e Leo se beijem diante de meus olhos estatelados e meus nervos abalados, aviso.
- Vou pedir nosso lanche. 
- Lanche??? 
- Vincenzo! A vida continua, querido! E eu estou morrendo de fome!
- Somos dois! - Revela Leo, eufórico.
- Três! - Antoine o precede, histérica. 
- Quatro...- Enrico, ainda carecendo de cuidados, ergue seu braço esquerdo. - Não sei quando vou poder mover meu outro braço, mas, a boca, eu posso mover.
- Façam seus pedidos! - Aviso eufórica. - Hoje vamos ter um banquete de 'fast food' em comemoração à nossa vitória contra a 'Legião'!!!
- Contra uma pequena parte dela...- Corrige-me Vincenzo, desanimado.
- Contra a 'Legião'! - Brada Antoine, erguendo um de seus braços. Leo a imita ao vibrar, sem compreender que estamos fadados à derrota.
- Aos guerreiros da 'Grande Batalha'!!! Que os deuses nos protejam!!!
- Que os deuses nos protejam!!! - Repete Antoine, eletrizada. Um olhar a Vincenzo e, baixando a cabeça, murmuro.
- Deuses??? Ela já se esqueceu de quem ela é??? De onde veio???
- Deixa eles, Dess. É somente uma expressão. Ela quer estar na mesma sintonia que a dele.
- Ok. - De olhos fechados, inspiro ao confessar. - Tô com medo.
- Eu também.
- De quê?
- De te perder novamente, amor. Juntos, continuamos fortes. Não se afasta mais de mim.
- Nunca. - Um sorriso e peço. - Deixa eu cuidar desses arranhões? Já tô ficando enjoada.
- Antes pede a comida, mãe! Tô varada de fome!
- Aaah tá. 
- Mas, antes, vamos orar. - Diz Vincenzo sob o olhar compassivo de seu pai. - Nós só estamos aqui graças ao Criador que nos protegeu.
- E a uma pequena ajudinha de Lúcifer, 'O Príncipe das Trevas'. - Acrescenta Leo, ainda confuso. - Isso tudo é muito louco. 'Tá ligado'?
- Total, Leo. Total. - Suspira Antoine irritantemente apaixonada. 

É tão bom ser jovem. Acabamos de enfrentar seres infernais e tudo o que eles desejam é 'fast food' e música que eu desconheço. 
Um beijo em meu rosto e Vincenzo aconselha.
- Atualize-se, 'The Flashback Girl'. Atualize-se. - Matteo caminha até seu avô e o beija no rosto, revitalizando-o. Um sopro de alegria me faz cochichar ao ouvido de Vincenzo.
- Ainda me ama?
- Estranhamente, mais do que nunca.




- É sério que eles estão dançando uma música que fala sobre atentados à escolas!?
- A melodia é 'bacaninha', Dess.
- Mas a mensagem não, Vincenzo! - Exalto-me após esvaziar, sozinha, uma garrafa de vinho tinto. - Vc deveria repreendê-los!
- Eu??? Vá vc!!!
- Covarde...- Rosno. Observando Matteo dormindo em seu carrinho, ao meu lado, à mesa de jantar, ouço Vincenzo me alertar uma segunda vez.
- Não podemos servir a dois senhores, Dess. Uma hora, vc vai ter que decidir a quem seguir.
- Isso nada tem a ver com o que acabamos de falar e, eu não me recordo de te ouvir reclamar da 'ajudinha' de seu antigo amigo quando estava com as garras daquele monstro em sua garganta prestes a te sufocar. 
- Vamos esquecer tudo isso, por favor? - Pede-nos Enrico, ao se erguer da cadeira, com dificuldade. Vincenzo o auxilia e, com o braço de Enrico em seu ombro, ele o conduz ao seu quarto. Eu os sigo, empurrando Matteo em seu carrinho. Do jeito que estou bêbada, não vou me arriscar a pegá-lo no colo. - Não sabe beber...- Resmunga Vincenzo ao deitar seu pai no colchão macio e cobri-lo com um edredom. Sorrio, enternecida, assim que ele beija a testa de Enrico e o agradece por ter tentado salvar nosso filho. - Eu não pude fazer nada, filho. Infelizmente.
- Vc orava enquanto tentava abrir a porta, Enrico. - Intrometo-me, afastando pai e filho, com o meu corpo. Vincenzo ri de minha infantilidade enquanto beijo a bochecha de seu Enrico e prometo o que não sei se poderei cumprir.
- De alguma forma, vou trazer Celeste de volta, pai. Não sei como, mas eu vou tentar.
- Promete? - Pergunta-me ele antes de fechar os olhos e bocejar. - Ela está tão sozinha e confusa...
- Prometo. - Afirmo. Com um sorriso no rosto, ele adormece.
- Como pretende fazer isso, 'Feiticeira Escarlate'? Com mais sangue? - Pergunta-me ele no corredor, após fechar a porta do quarto de seu pai. - Mais uma dessas e vc morre de hemorragia, idiota.
- Isso é muita maldade. - Refuto, ressentida. - Eu não sabia o que fazer. Não tive opções.
- Eu já sei disso. Perdão. - No quarto de hóspedes, ele retira sua blusa de maneira máscula. Um sorriso e, erguendo suas sobrancelhas, ele pergunta. - O que foi? Nunca viu? 
- Já...é que...
- Dess, eu quero dormir. Pode me dar licença?
- Estamos com medo. 
- Estamos? Matteo tá com medo também? Daqui, não me parece. Dorme como um anjo.
- Vc sabe o que eu quero dizer...eu...ele...
- Quer dormir aqui, Dess?
- Sim. Não quero ficar sozinha com ele e, nem pensar em deixá-lo naquele quarto sozinho novamente. - Retirando a calça jeans, ele a arremessa para longe e, caminhando até o banheiro, declara. - Como queira. Vou tomar um banho e, quando voltar, espero que já esteja dormindo. - Humilhada, eu me calo. Deitada em sua cama, eu me encolho quando sinto o peso de seu corpo sobre o colchão. De costas para ele, peço que me abrace. - Banho rápido. - Comento sentindo seu braço frio sobre o meu. - Tem certeza de que lavou tudo?
- Sim...- Sua voz mais grave do que o normal me responde. Sua mão úmida desliza por entre minhas pernas até a virilha esquerda. Incomodada, peço. - Hoje não, amor. A gente precisa conversar...
- Dess! - Grita Vincenzo, de pé, na porta do banheiro. - Com quem está conversando!? - De súbito, giro meu corpo e me assusto com seus olhos cujas pupilas e íris duplicadas me encaram com desejo. Antes de ser tocada pelo ser diabólico, intimamente, ele emite um gemido de dor e desaparece. Vincenzo, diante de mim, com sua cruz benta, arqueja, aterrorizado. Ele o expulsou e eu sequer percebi a diferença entre ambos. - Foi isso o que aconteceu comigo, Dess. Eu não percebi nada naquela noite. - Envergonhada e assombrada, ajoelhada sobre o colchão, imploro.
- Me perdoa por não ter acreditado em vc? - Abraçando-me com força, ele me faz deitar e, acomodando nosso filho entre nossos corpos, ele, enfim, me perdoa.
- Vamos recomeçar do zero? - Minha voz embarga ao dizer 'sim'. Tremendo de medo e nojo, agradeço por seu beijo em minha testa. 
- Escolha um lado, Dess. 
- Já escolhi, amor. Onde vc estiver, eu estarei.
- Sem adagas ou invocações?
- Sim. - Minto antes de dormir em seus braços.

Já cruzei os limites que me mantinham do lado da 'Luz'. Agora, metade minha é 'Escuridão'.


Hoje é aniversário de Enrico. Sabe Deus quantos anos ele completa. Antoine e Vincenzo já lhe deram seus presentes. Enquanto preparo os ingredientes para o seu famoso 'Fettuccine ao Molho Branco', rindo, eu o observo dançar, na sala, com Matteo, uma de suas canções prediletas após ter aprendido a lidar com 'Alexa'. Matteo solta gritinhos eufóricos andando ao seu redor  enquanto penso no quão perigoso pode ser o meu presente. Não tenho garantias de devolução. Não é do tipo: 'Satisfação garantida ou seu dinheiro de volta'. Ainda assim, não vejo outra opção além de me arriscar a perder tudo, inclusive, meu corpo.
- Dança comigo? - Convida-me Enrico, especialmente alegre. Seus olhos brilham mais do que nunca. - Deixe a comida para depois. - Ordena-me ele diante de minha recusa. - Eu sou o aniversariante. Eu tenho prioridade hoje. -  Enquanto sou guiada por seus braços, indago, curiosa.
- Por que eu sinto que vc tá mais feliz do que nunca?
- Porque estou. - Responde-me ele, sem rodeios. - Celeste já não faz mais parte da 'Legião'. - Arquejo, surpreendida enquanto ele prossegue sem deixar de me fazer girar ao som de sua música. 


- Como sabe disso!?
- Informantes...- Sorrindo, ele confessa. - Ela se libertou deles por mim. Ela ainda me ama, mas...- Num repentino desânimo, ele para de dançar e pede para 'Alexa' diminuir o volume do som. - Sentando-se no sofá, ele prossegue. - Mas ela se recusa a vir aqui porque reconhece o mal que te fez. Ela precisa ser perdoada com amor. - Dando de ombros, ele volta a lamentar. - Não tenho outra opção além de vê-la de longe. - Com lágrimas nos olhos, ele comenta. - Ela está ainda mais bela, embora muito fraca. 
- Vincenzo a ama! Ele não tentou!?
- Sim. E ela ainda não se libertou. Ela tenta, mas não consegue.
- Ele sabia disso e não me contou nada!?
- Não fique brava, filha. Ele não quis te deixar ainda mais aflita. Já bastam os problemas pelos quais vcs têm passado. - Intrigada, pergunto.
- Onde ela está!? Em algum universo paralelo!? - Um riso curto e ele responde.
- Não. Em frente ao seu portão, vigiando, sempre alerta. Combinamos um sinal caso a 'Legião' tente entrar aqui novamente.
- No portão!? - Sério??? -Interessante!
- Não brigue com ela, filha. Ela se arrependeu de verdade. Meus informantes não mentiriam jamais. - Um beijo em sua bochecha e me ergo, decidida. - Aonde vai!?
- Comprar o seu presente. - Respondo, retirando meu avental. De joelhos diante dele, suplico. - Cuide de Matteo por mim, Enrico. Não deixe que o machuquem. Promete? Ninguém. Ninguém mesmo. - Confuso, ele promete. - Vou ao banheiro e já volto.
Abraço Matteo e, com lágrimas nos olhos, eu o encho de beijinhos por todo o rosto. Chorando, cochicho.
- Te amo, filho. Eu vou voltar. Me espera. Que Arcanjo Miguel te proteja.

Deixando meu filho no colo de Enrico, corro até o banheiro e me tranco dentro dele. Insegura e triste, ao encarar o meu reflexo no espelho, ordeno a ela que me sorri, triunfante.
- Traga sua tia de volta. Ela te ama muito. Muito mais do que a Vincenzo e Enrico. Traga Celeste de volta e não machuque a minha família. Não tente machucar meus filhos. Entendeu!?
Fecho os olhos ao responder.
- Nunca. 'No nay never'.


Continua...












CAPÍTULO 41 - ATAQUES

  Vincenzo me disse que, se estivermos juntos, nada vai nos destruir. Ele precisa saber o que vi. Precisa conhecer a verdade. Precisa me aju...