Ainda acordo à noite tendo pesadelos. Vejo Antoine sendo levado por Lúcifer ao lado do juiz. Levanto-me apavorada e corro até seu quarto onde ela dorme, tranquila e feliz, ao lado de Vincenzo. Ainda que haja mais quartos na casa, ele insiste em dormir com ela por medo de perdê-la também.
À noite, Vincenzo nos leva a conhecer a cidade. Cassandra se esquece de sua promessa e flerta com um jovem italiano de férias em nosso país. No colo de Vincenzo, Antoine a chama de 'safada'. Ao seu lado, rimos dos ciúmes infundados de nossa filha enquanto pensamos em um jeito de nos encontrarmos a sós.
- Hoje à noite. - Ronrona ele em meu ouvido. Excitada e empolgada, corro até o chafariz da praça bucólica. Uma pontada forte em meu peito e Vincenzo pergunta. - O que foi? Está passando mal? - Apoiando-me na beira do chafariz, diante de uma igreja, levo as mãos ao peito e respondo num tom baixo.
- Não. Uma lembrança esquisita...
- Olha pra mim. - Ordena-me ele, com suavidade. Sorrio para Antoine sentada em seus ombros enquanto ele volta a ordenar. - Olha pra mim. - Com o olhar distante, eu o encaro. - Não vá embora, Dess. Lute. Fica comigo. É com vc que eu desejo ficar. Entendeu?
- Acho que sim...- Respondo, confusa. - Por que eu tenha a sensação de que já vivi isso tudo?
- Porque já viveu. - Diz Antoine. - A mamãe não se lembra, papai. Ela se esquece de tudo, né?
- Sim. - Diz ele olhando-me fixamente. - Volte ao presente, Dess. Eu preciso de vc no presente. Vc me entende?
- Tá...- Exalo. - Eu não trouxe os remédios. Ficaram no apartamento.
- Não precisamos dele, Dess. Vc é a dona desse corpo. É a sua vez de viver.
- É isso aí, papai. - Pela primeira vez em minha vida, sinto um certo temor em vê-los juntos, unidos por algo que desconheço. Antoine me tira do transe ao gritar, eufórica. - É a sua música, mamãe!!! Vc dançou ela no campeonato!!!
- Na audição, filha. - Corrijo-a num desânimo. - Foi na audição no 'Conservatório de Dança' onde, certamente, nunca mais pisarei. - Observando os paralelepípedos, murmuro. - Não antes de resolver a questão da adoção.
- Ei! - Retirando Antoine dos ombros, ela a põe no chão e me incentiva. - Não desanima! Vamos vencer isso juntos, Dess!
- Vamos...- Concordo sem ânimo. - Vamos sim. - Como, quando, onde encontrar a certidão de nascimento de Antoine e lutar por sua guarda sem chamar a atenção do juiz que deve estar me odiando por expor sua família como eu expus? Torcendo para que Vincenzo não tenha me ouvido por causa da canção em um volume alto, repito forçando um sorriso. - Vamos sim.
- Dança, mãe! - De joelhos, eu a abraço ao sussurrar. - Aqui não, filha. Em casa a gente dança. Ok?
- Promete?
- Prometo.
- Promete que não vai deixar que eles me levem? - Surpreendida, indago.
- Eles quem, filha!? Quem quer te levar!?
- Os homens maus. - Choramingando, ela prossegue. - A Dayse disse que eles vão me levar pra bem longe. 'Pra' uma casa feia e fria. Não deixa, mamãe. Não deixa. - Agarrada a ela, sentindo meu coração ribombar no peito, eu rosno. - Não vou deixar, filha.
- Essa Dayse morre hoje. - Declara Vincenzo. Em meio à multidão eufórica. - Confirmo.
- Hoje. Sem falta.
Após a segunda garrafa de vinho, leve como uma pluma, ao redor da fogueira, aceito o desafio de Cassandra, igualmente alcoolizada.- Ensina o tio a dançar como vc dançou ou 'paga prenda'!
- Eu topo!
- Woohoo! - Exulta Antoine, absolutamente inocente e feliz por ver seus pais unidos e relaxados. - Dança, pai! Dança! Minha mãe é uma professora simplesmente esplêndida!
- 'Simplesmente esplêndida'!? De onde tirou isso!?
- De um filme de terror e amor! - Explico, aos risos. - Na verdade, de uma série da 'Netflix' onde vivos e mortos convivem no mesmo Espaço e Tempo. Isso te lembra alguma coisa!? - Revirando os olhos, ele zoa.
- Não faço ideia do que tá falando!
Outra gargalhada e danço como na audição. Uma canção alegre. Daquelas que te fazem acreditar que a vida será melhor do que tem sido. Tropeço em uma pedra e não caio sobre a fogueira graças à agilidade de Vincenzo que, com força, prende suas mãos à minha cintura e me pede.
- Me ensina a dançar?
- Agora vai! - Vibra Cassandra. Apontando a garrafa de vinho pela metade, em sua direção, aviso.
- Mocinha, é hora de parar de beber. Entendeu?
- Certamente, chefe! - Debocha ela ao lado de seu novo 'crush' a quem lanço meu olhar desconfiado.
- Fica longe dela, garoto. Antes de qualquer coisa, eu preciso conver...conser...con...- Aos risos, corrijo-me. - CONVERSAR COM VC! - Erguendo os braços na defensiva, o jovem loiro e olhos verdes assente com a cabeça. Em uma das mãos, um copo de refrigerante. - Não bebe!?
- Nada alcoólico, senhora.
- SENHORA!? - Rio, histérica. - Nossa! Faz tempo que não me tratam com tanta educação! Um ponto pra vc, mas não abusa! - Algo em seu sorriso me incomoda ou, talvez, eu tenha bebido demais. Quem sabe Cassandra esteja em boas mãos? As mãos de Vincenzo continuam em minha cintura. O crepitar da fogueira me incita a mover sua cintura com minhas mãos. Nossos corpos unidos trocam uma energia que poderia iluminar uma cidade inteira por uma semana. Sob o olhar atento e enciumado de Antoine, desisto de dançar com o homem da minha vida. Homem com que desejo, ardentemente, transar. Percebendo meu desânimo, ele assente ao meu ouvir. - Não vai rolar. Não agora. Perdão.
- Mais tarde, na Kombi. - Ronrona ele antes de levar Antoine até seu quarto e contar histórias até que ela adormeça. Jogada contra a areia, observo as estrelas num céu que, somente longe da cidade, conseguimos apreciar. Um outro gole de vinho e grito.
- DESISTAM DE TOMAR ANTOINE DE MIM! ELA É MINHA! - Adormeço na areia até que Vincenzo me acorde com um beijo em minha bochecha.
- Ela dormiu, Dess. Quer me ensinar a dançar?
- Se eu conseguir levantar daqui...- Um puxão em meu braço e estou de pé, colada em seu corpo. - Eu tô tonta.
- Bebeu 'todas'. Queria o quê!?
- Não briga comigo...
- Não. Não brigo. - Beijo suas pintas simétricas e suas covinhas. Sob a luz das estrelas, ele me faz arfar ao abrir um sorriso tímido. - Se não me ensinar a dançar agora, eu vou te levar pra dentro da Kombi e...
- Calma aêee, bonitão. - Peço com a voz entaramelada à procura de meu celular. Em sua mão, ele o mostra para mim. - É esse aí!
- Caríssimo. Foi seu marido quem te deu? - Inflando as narinas, eu o arranco de sua mão e refuto.
- Eu não tenho marido! Nunca tive! Aquilo tudo foi um pesadelo! - Semicerrando os olhos, procuro a canção em minha playlist no Spotify. Vincenzo roça seu nariz em meu pescoço, o que dificulta minha pesquisa. - Se continuar assim, não vou conseguir te ensinar a dançar...
- Não me importo. Quero vc.
- ACHEI! - Grito em seu ouvido. Ele faz uma careta. Eu gargalho, histericamente e ordeno. - Segura firme na minha cintura! Agora, eu sou a sua professora, 'Mr. Counter Puncher'! - Outro sorriso e eu evito seu olhar incisivo.
- Quem diria que Adessa Love estaria sem graça diante de um homem?
- Cala a boca e me segue.
Envolvo meus braços em seu pescoço, beijando seu Pomo-de-Adão. Suas mãos em minhas costas me puxam para si. Movo meus quadris esperando que ele faça o mesmo.
- Vc precisa me seguir, mocinho!
- Não consigo. - Diz ele, rindo. - Não tenho o seu gingado.
- Gingado!? - Gargalho novamente guiando seus quadris com minhas mãos. Seu pau duro roça em minha pele coberta por mais um dos vestidos que ele me deu. Ainda insegura, rompo o silêncio - Vc tem gasto muito comigo e com as meninas. Não é justo.
- Com quem eu deveria gastar!? Vcs são a minha família!
- Errou novamente! - Piso em seu pé e advirto. - Preste atenção!
Em silêncio, movemos nossos corpos ao som da canção, em um ritmo mais lento. O 'vai e vem' de nossos quadris aumentam os batimentos de nossos corações. Minha boca procura pela sua quando, de súbito, ele declara, tomando-me em seus braços.
- Fim da aula! Eu não suporto mais!
Caminhando até a Kombi iluminada por dentro, ele me joga contra o banco traseiro reclinado. Abro os olhos e me encanto com a decoração de seu interior. Luzes piscando como em dia de Natal me fazem sorrir sobre um colchão macio forrado com lençol de seda. Apoiado na entrada da Kombi, ele me observa, intrigado.
- O que foi? Não gostou? Sei que não é nada comparado ao que vc tinha quando...- Ajoelhando-me sobre a cama improvisada, eu o puxo pelos braços e ordeno.
- Cala a boca. Nunca mais toque nesse assunto. Esse lugar é lindo. Nunca vi nada igual. - Um beijo longo e molhado e, arfando, imploro. - Faz amor comigo ou...se preferir...me fode. - Retirando sua camisa, ela a arremessa contra a areia. Lentamente, ele desata os nós das alças de meu vestido enquanto eu o puxo pelos cabelos e, reclamo. - Me beija!
- Calma. Eu precisa apreciar esse momento. Eu esperei tanto por ele. - Revirando os olhos, eu aguardo até que ele morda o canto da boca ao rever meus seios. Um olhar e ele me deixa sem ar. - O que houve contigo, mulher? - Zomba ele. - Onde está a profissional do sexo que um dia me expulsou de sua vida?
- Morreu. - Respondo, abraçando-o com força. Meus seios pressionam seu peitoral enquanto monto em suas pernas flexionadas. Suas mãos apalpam meu bumbum assim que confesso. - Nada restou daquela mulher além da vontade de ter vc novamente...
- Eu tô aqui, Dess. - Jogando-se sobre mim, ele me faz deitar e apreciar o teto iluminado enquanto beija meu pescoço e minha boca. Beijos molhados e demorados e cheios de paixão me fazem arquear o tronco para trás num gemido. Lá fora, a fogueira ainda resiste à chuva fina. Dentro da Kombi, o calor aumenta de intensidade à medida em que ele retira toda a minha roupa e, de súbito, volta a me observar. Insegura, cubro meus seios e indago.
- O que houve? Eu não sou mais a garota que vc conheceu. O tempo passou.
- Ainda bem, amor. Ainda bem. Vc é outra e eu te amo por isso. - Cruzando minhas pernas em sua lombar, eu o prendo a mim. Beijo sua boca ao perguntar. - Mesmo que eu não seja sua garotinha briguenta?
- Quem?
- A tal de Eileen...
- Dess, vc é ela e Morgana. Vc é todas em uma só e é a única com quem desejo ficar pelo resto de minha vida.
- Injusto. - Protesto antes de ser invadida por seu pau faminto. Gemendo de prazer, retruco.- Vc vai viver muito mais do que eu. E quando eu morrer?
- Eu morro junto.
- Vc é um anjo, amor. Anjos não morrem.
- Morrem sim. Eu já falei disso com vc. - Meu corpo sacoleja com suas fortes estocadas enquanto insisto.
- Se eu tiver um filho seu, vc se torna mortal.
- Isso...- Confirma ele apoiando seus braços ao lado de minha cabeça. Enfurno meus dedos em seus cabelos úmidos, puxando seus fios com força quando ele, no ápice, implora. - Dá pra parar de pensar tanto!? Foca no momento, Dess! Quer estragar tudo?
- Não. Vem. - Jogando minha cabeça para trás, suplico. - Continua...
Arfando, eu o sinto dentro mim. Ora, tranquilo e suave, ora voraz. Sua pele quente e macia me traz de volta ao mundo e me faz pensar que tudo vai dar certo. Sorrio quando ele urra ao gozar. Envergonhado, ele me pede desculpas.
- Eu deveria ter te esperado, Dess, mas eu não aguentei...
- Amor...- Nossos corpos estão unidos quando acaricio seus cabelos e refuto. - Não faz a menor diferença. Foi a melhor de todas as vezes em que estive com vc ou com qualquer homem. O amor muda tudo.
- Muda? - Procurando seu olhar emocionado, confirmo.
- Muda.
Envoltos pelo silêncio da noite ouvimos apenas nossos corações batendo no mesmo ritmo. Suados, trocamos carícias inocentes e nos olhamos profundamente. Enxergo o pai de minha filha e o anjo que 'caiu' por mim. Entendo que o meu destino pertence a ele. Um beijo casto e despertamos de nosso sonho bom com o grito de horror de Cassandra, no batente da porta da sala.
- TIA! CORRE!
- Meu Deus!
- Antoine! - Pressente Vincenzo saindo de mim, rispidamente. Tropeçando, ele se veste e me aguarda. Vestida e desesperada, aperto sua mão com a minha e corremos até a casa onde Cassandra não para de repetir.
- NÃO FOI MINHA CULPA! NÃO FOI MINHA CULPA!
- O QUE HOUVE!? CADÊ ANTOINE! - Grito, atordoada. Chutando a porta de seu quarto, eu a vejo deitada em sua cama, rígida como estátua. A esclera dos olhos cobre seus globos oculares como em um filme de terror. Sobre seu corpinho, Dayse descansa, imponente. Num arroubo de horror, estapeio seu rosto ao gritar. - Filha! Olha pra mim! Volta pra mim!
Vincenzo a pega em seu colo e inicia uma oração em latim. Sentando-se no chão, sem blusa, com sua calça jeans, ele se recosta à parede do quarto e, comprimindo-a contra seu peito, ele se concentra. Ajoelhada diante deles, tento entender o que Cassandra diz.
- Ela começou a falar com outra voz, tia! Eu não tive culpa! - Em total desequilíbrio, vendo que Vincenzo não a traz de volta, avanço sobre Cassandra e a estapeio, violentamente.
- POR QUE VCS DEIXARAM ELA BRINCAR COM ESSA BONECA!? POR QUE ESSE MENINO AINDA TÁ AQUI!? - O rapaz italiano, mantendo a calma, abraça Cassandra e a defende. Seu olhar incisivo me causa desconforto.
- Não foi culpa dela, senhora. Foi minha. Eu duvidei de Antoine quando ela disse que a boneca falava e ela falou. A boneca falou!
- O QUÊ!? - Cravando minhas unhas nos cabelos da boneca, indago, atordoada. - QUE DIABOS ESSA BONECA FALOU!? FALA! - Chorando convulsivamente, Cassandra responde.
- Que ela vai tirar Antoine de vc, tia.
- NUNCA! ISSO ACABA HOJE! - Um olhar insano a Vincenzo e carrego comigo a boneca até a porta da sala. Vincenzo me segue com Antoine em seu colo. Antoine permanece inconsciente até que eu atire a boneca contra a fogueira que volta a arder com vitalidade. Um grito de dor e Antoine abre seus olhinhos castanhos e assustados. Todos assistimos à fumaça densa se misturar às chamas. Uma risada diabólica escapa da figura imensa e sinistra que se desenha à nossa frente. Ela ameaça nos atacar quando Antoine, desperta, ordena com rancor em suas palavras.
- Vai embora! Eu não gosto mais de vc!
O que se passou desde então, eu ainda não consegui compreender. Fomos da euforia ao desânimo completo em poucos dias. Vincenzo ainda se culpa por não ter protegido Antoine de Lúcifer. Afinal, ele havia dito que a casa de praia seria o único lugar onde o Mal não poderia entrar. Mas, o Mal entrou e levou consigo a autoconfiança de Vincenzo que, desde aquela noite, mudara sensivelmente. Esmagado pela culpa, ele se afastou de mim ainda que eu lhe dissesse que não havia culpados.
"Por mais abençoada que seja a casa, são os moradores que dão brechas ao Mal".
Essa frase o deixaria intrigado por dias até descobrir onde a brecha estaria.
- Por que não nos contou antes, Cassie?
- Eu estava com medo, tia.
- De quê???
- De ser expulsa da família...- Confessa Cassandra à mesa da cozinha. Sentada à minha frente, ela baixa a cabeça e me pede perdão. - Eu não faria nada de mal a Antoine. Ela é uma irmã pra mim. - Ao seu lado, Vincenzo estende o braço sobre a mesa em madeira e, sorrindo, pousa sua mão sobre a dela ao declarar.
- Eu sei, meu anjo. Vc daria a sua vida por ela.
- Daria...- Assume Cassandra exausta de tanto chorar. Secando suas lágrimas com um pano de prato limpo, ela argumenta. - Eu nunca poderia imaginar que aquele carinha fosse...- Interrompendo-a, Antoine complementa seu pensamento.
- Um deles? - Revirando os olhinhos, ela resmunga. - Eu não gostei dele assim que 'vi ele'. - Cassandra deixa escapar um 'Quero novidade' enquanto eu corrijo Antoine, em meu colo.
- 'Assim que o vi', filha. - Um olhar assustado e ela pergunta.
- Vc também não gostou dele, mãe!? Por que deixou ele entrar!? - Vincenzo e eu sorrimos juntos de sua confusão. Meu sorriso murcha ao mesmo tempo em que ele expira com sofreguidão. As mãozinhas de Antoine em minhas têmporas me trazem de volta. Sua voz indignada, ordena. - Responde, mãe!
- Não, filha. - Lastimo desviando meus olhos do olhar triste de Vincenzo. - Esse foi meu erro. Eu não percebi quem ele era assim que o vi. Eu deveria ter te protegido e não consegui.
- Não foi vc. Fui eu.
- Eu estava bêbada, Vincenzo! Eu deveria ter me concentrado em seu aperto de mão assim que eu o conheci. Teria evitado tudo isso.
- Eu fui a culpada, gente. - Assume Cassandra com a voz embargando. - Não briguem por mim. Eu bebi demais e permiti que ele entrasse. Eu dei a permissão. Ele entrou e fez o que fez. Ele o invocou diante do meu nariz e eu não percebi!
- Eu disse que ela era a culpada...- Cochicha Antoine em meu ouvido. - Mas ela é boazinha. Tadinha.
- Não sou. - Refuta Cassie cobrindo a cabeça com o capuz do casaco. Seus olhos avermelhados nos fitam enquanto confessa. - Ele me disse que conhecia o pai do Victor. Eu disse que aquilo era surreal. Um cara vindo da Itália conhecer o pai do monstro que fez aquilo comigo!!! Como??? - Em silêncio, Vincenzo e eu nos entreolhamos por segundos onde assumimos nossos erros. Estávamos transando enquanto Cassie e Antoine corriam perigo. Antoine continua a saborear a lasanha ao molho branco sem o menor resquício de medo. Isso me encanta nela. O mundo ao seu redor pode estar ruindo e ela se mantem calma como em um dia de domingo. Eu odeio domingos. Odeio a forma como Vincenzo desvia seu olhar do meu. Ele me culpa? Movendo a cabeça baixa, ele parece ter ouvido meus pensamentos e discordado de mim. - Tia???
- Oi???
- Não notou isso também??? - Confusa, eu a encaro e pergunto.
- O que eu deveria ter notado!?
- O que eu também não notei, Dess. O rapaz tinha uma tattoo no pescoço.
- E??? - Impaciente, Vincenzo replica.
- Uma tattoo de uma cruz invertida! Como não vimos isso!?
- Ele estava de blusa! A gola cobria seu pescoço! - Protesto, incrédula. - Como poderíamos ver isso!?
- A safada da Cassandra viu porque ele tirou a blusa e ficou se esfregando nele lá na árvore da piscina.
- Eu não vi direito! Estava escuro! - Defende-se Cassandra. - E eu não estava me 'esfregando'! Foi um beijo! Um único beijo e ele entrou...- De volta ao choro, ela argumenta. - Entrou porque eu permiti. Eu não sabia que essa coisa de pedir permissão pra entrar rolava com pessoas. Pensei que fosse um lance com vampiros.
- Ele não era uma pessoa normal, Cassie. - Esclarece Vincenzo num tom sombrio.
- Não? - Pergunta Cassandra, assustada. - O que ele seria, tio?
- Algo pior do que uma pessoa má. Só isso. - Tapando os ouvidos de Antoine, sussurro movendo a boca exageradamente.
- Ele era um demônio. - Horrorizada, ela se encolhe e volta a chorar.
- Meu Deus...- Livrando-se de minhas mãos, Antoine quer saber o que disse a Cassandra.
- Nada, menininha. Volte a comer. Mais uma pedaço?
- Manda! - Exulta ela. Um olhar incisivo a Cassandra e elucido.
- O lance do consentimento acontece com demônios, Cassie. - Lembrando-me de Aiden e do dia em que permiti que ele entrasse em nosso apartamento, repito. - Acontece o mesmo com demônios. Com o Mal, em geral.
- Vampiros...- Diz Antoine, aos risos. De boca cheia, apontando o garfo a Cassandra, ela elucida.
- Vc é engraçada. Muito engraçada. Não gosto de vampiros. Acho eles muito chatos. - Um olhar lânguido a Vincenzo e ela prossegue. - Prefiro anjos. Anjos lindos igual ao meu pai e o meu tio Miguel. Ele me disse que eu preciso ficar forte. Por isso, eu tô comendo tudo, mamãe.
- Do que tá falando, filha? - Sussurro temendo a resposta. - O que seu tio Miguel falou?
- Que, se meu pai não fizer nada, eu vou morar numa casa cheia de crianças. Lá, eu vou fazer novos amiguinhos. - O ruído de minha cadeira arrastando-se no piso em cerâmica a assusta. Saltando do meu colo, ela me observa, intrigada. Erguendo-me, de súbito, eu protesto, após socar a mesa com o punho fechado.
- NUNCA! NINGUÉM VAI TIRAR VC DE MIM! EU JURO! NINGUÉM!
Uma crise de nervos e sou dopada por Vincenzo que me leva até seu quarto. Em seu colo, sonolenta, imploro.
- Não me deixa...de novo.
- Não vou. - Mente ele. - Dorme. Amanhã será outro dia.
Vincenzo nos deixa novamente. Sem cartas, mensagens. Nada. Nada que me faça entender o motivo. Nada que me dê esperanças de que ele vai voltar. A despensa está cheia. Não nos falta o que comer. Há dinheiro em espécie em sua gaveta no armário onde suas blusas estão penduradas em cabides. Eu inspiro seu cheiro cítrico ao me abraçar a uma delas. Lembro-me do dia em que vestira a mesma camisa. O dia em dançamos próximos à fogueira.
"Ninguém vai descobrir que estão aqui. Não use seu cartão de crédito. Use essa grana."
Recordando suas palavras, pergunto-me se ele já não planejava nos deixar aqui e retornar à sua vida enquanto eu não poderei retomar a minha tão cedo. Doc me ligara de um número confidencial e me dissera que ainda tenho um emprego.
"Disse que vc está se recuperando de uma rara e contagiosa doença em um lugar distante. Quando voltar, ainda vai poder trabalhar na boate, filha".
Doc sempre enxergando o lado bom da vida. Eu não sei se voltarei, Doc. Não sem Antoine e, se retornar à cidade com ela, terei de lutar contra os poderosos. Eu me odeio por ter sido impulsiva. Odeio Vincenzo por ter nos deixado sozinhas justamente quando precisamos de segurança. Por que ele sempre foge da batalha? Nunca está ao meu lado quando as coisas pioram. Aiden não era assim...
- Eu te odeio, Vincenzo. - Pondero observando as ondas do mar. Cassandra sentada ao meu lado na areia, abraçada aos joelhos, tenta me retirar da apatia, tão triste quanto eu.
- Ele vai voltar, tia. Ele sabe que precisamos dele. - De olho em Antoine que corre na areia imitando um avião, sem ânimo, indago.
- Por que não deixou nenhuma mensagem? Por que não atende minhas ligações? Como vou lhe contar a novidade?
- Que novidade!?
- Em algum momento, aquele dinheiro vai acabar e eu não posso sequer sacar o meu em algum caixa eletrônico por medo de ser descoberta.
- A gente economiza, tia.
- Ele não pensou que o Victor poderia retornar!? Por que ele é sempre tão egoísta!? Sempre fugindo!
- Calma, tia. Deve ter um motivo.
- Tem. Covardia. - Um sorriso triste e divago. - Foi tão rápido. Como isso pôde acontecer?
- O que foi tão rápido, tia!? Que novidade!? Eu tô ficando 'bolada'!
- Se ele não voltar, como vou sustentar vcs três? - Cassandra leva um tempo até questionar.
- Três??? Que três, tia??? - Lentamente giro meu pescoço em sua direção e, com lágrimas nos olhos, eu a encaro antes de anunciar.
- Eu tô grávida.
- Puta que pariu... - Diz ela cobrindo o rosto com as mãos. Inspirando profundamente, ela me olha e com firmeza, declara.
- A gente vai sair dessa, tia. Amanhã mesmo eu vou procurar um 'trampo' por aqui e vou conseguir. - Um abraço forte e ela sussurra. - Fica 'de boas'.
- Vc vai ser uma ótima, mãe. - Bufando, ela refuta.
- Não vou não! Tia, eu quero distância de homem!
- Quer nada! Tu é safada! - Resmunga Antoine empanando-se na areia morna. De bruços, ela profetiza. - Amanhã mesmo vai encontrar um outro garoto e daqui a pouco, vai fazer aquela coisa nojenta com a língua...- Uma careta e ela complementa. - Argh! Que nojento!
Rimos juntas de Antoine que se senta em meu colo e, subitamente triste, comenta.
- Eu não queria me afastar do meu irmãozinho, mamãe. Não deixa o 'homem de vestido preto' me levar. - Segurando o choro, eu a aperto contra meu peito e prometo.
- Nunca irão te tirar, filha. Nunca.
Nunca é tempo demais.
Conforme prometera, Cassandra consegue um emprego em um dos mercados da pequena cidade onde estamos fadadas a permanecer até conhecer o destino do pai de meu filho. Raramente, Antoine e eu saímos de casa. Não posso ser vista por aí e correr o risco de perder minha filha. Cassandra tem nos ajudado muito a manter as despesas com a casa em dia, embora ainda tenha sobrado dinheiro de Vincenzo. Suas roupas continuam nos cabides. Eu as tenho vestido somente para me sentir mais próxima a ele.
- Onde quer que esteja, me ouça. Volta pra casa, por favor.
Aguardo alguns segundos e, como em todas as tentativas anteriores, não obtenho resposta alguma. Provavelmente, tem se mantido tão ocupado que não consegue mais me ouvir. Ocupado com o quê? Sweet já está morta. Eileen, segundo ele, sou eu, logo, de quem devo ter ciúmes? Minutos de raciocínio e grito, enraivecida.
- DA 'NOVINHA'! É ÓBVIO! - Rolo na cama e, de bruços, com o travesseiro sobre minha cabeça, grito contra o colchão o mais alto que posso. Grito até ficar rouca. A imagem dos dois lutando me vem à cabeça com força. A ideia de que ele nos largou por causa da adolescente atrevida toma conta da minha mente. Cheia de ódio, arranco todas as suas camisas dos cabides e as jogo no cesto de roupa suja. Corro até o mar e mergulho. De volta à superfície, observo um carro suspeito estacionado próximo à nossa casa. Corro na areia o mais rápido que posso. Tranco Antoine dentro de casa e, com a camisa de Vincenzo colada em meu corpo, avanço sobre o motorista, esmurrando o vidro escuro de sua janela com meus punhos fechados.
- ABRE ESSA PORRA AGORA! - Dando a ré, o motorista escapa da minha ira. Arremesso pedras contra o vidro dianteiro até perdê-lo de vista. De joelhos, choro, desorientada. Olhando para o céu, imploro. - Não tirem minha filha de mim, por favor. - Cassandra me ajuda a me levantar. Dentro de casa, tranco as portas à chave. Angustiada, fecho as janelas dos quartos, da sala e da cozinha. Atrás de mim, Cassandra me pede para ter calma.
- Vai fazer mal ao bebê, tia.
- Eu não vou deixar que levem minha filha. - Murmuro aos prantos. Andando de um lado a outro, puxando o ar pela boca, prossigo. - Nunca. Ela é minha. Eu a salvei de uma vida de extrema pobreza nas ruas. Eu dei o que pude e o que não pude a ela. Eles não quiseram saber dela quando vendia bala nas ruas. Isso não é justo. Eu fiz um bem a ela. Um bem a ela! Que importância tem algum papel quando eu sei que ela é a minha filha de verdade!?
- Tia, eu vou fazer um chá. - Parada no meio da sala, berro.
- CHEGA DE CHÁ! EU PRECISO DO VINCENZO! POR QUE ELE ME DEIXOU AQUI!?
Antoine chora com meu descontrole. Cassandra a abraça e me observa, calada. Perto de uma crise de claustrofobia, inspirando e expirando, deito-me no chão da sala antes de pedir perdão.
- Eu tô nervosa...e com medo. Muito medo. - Ajoelhando-se ao meu lado, Antoine replica.
- Não precisa, mamãe. Meu tio Miguel disse...- Tapando sua boca com minha mão, eu suplico num tom de voz baixíssimo.
- Não me fala nada. Deixa rolar. Ok? Mais uma das mensagens de seu tio Miguel e eu surto de vez. - Dando de ombros, ela faz 'biquinho' ao rebolar até o sofá e cruzar os braços, insatisfeita.
- Ok. Mas...dessa vc ia gostar.
- Pirralha, eu trouxe pão do mercado. Tem salsicha na geladeira. Que tal um cachorro-quente 'sinistro'? - Exultante, Antoine responde.
- Eu topo! Vem, mamãe! Vc precisa comer!
- Depois...- Retruco ainda deitada no chão. De olhos fechados, eu a ouço resmungar em direção à cozinha.
- Aposto que esse pão é presente daquele menino safado que tá de olho em vc, Cassie. Quando vc vai deixar de ser safada? - Gosto de ouvir a gargalhada sonora de Cassandra e da risada de Antoine enquanto preparam o lanche. Decidida a não desistir, ergo-me do chão e me junto a elas na cozinha, abocanhando um 'hot dog' com tudo dentro. - Tá gostoso, mãe?
- Muito. - Respondo de boca cheia. - Estou faminta.
- Come outro, tia. - Com os cabelos desgrenhados e endurecidos pelo sal do mar, eu aceito outro. Observando a cadeira onde Vincenzo costumava se sentar em nossos lanches, prorrompo em lágrimas sem deixar de devorar o hot dog. Antoine acha graça de me ver chorar e comer ao mesmo tempo. Cassandra enxuga minhas lágrimas com guardanapos de papel. Um pouco mais calma, desconfiada em ver tantas iguarias sobre a mesa, considero. - Vc gastou muito, Cassandra. Isso não é justo. Vou te ressarcir com o dinheiro de Vincenzo. - Franzindo a testa, Antoine exclama.
- 'Ressa' o quê??? - Rindo, explico.
- Devolver o dinheiro que ela gastou, filha. - De costas para mim, lavando os copos apoiada na pia, ela replica num tom baixo.
- Não precisa, tia. Isso foi de graça.
- De graça? Quem te deu? - Deixando cair um dos copos na pia, ela se entrega. - Por que tá nervosa, Cassie? Quem te deu?
- Algum garoto safado. Aposto. - Diz Antoine enfiando o pão boca a dentro com o auxílio de seu indicador. Mastigando, ela afirma. - Ela nunca vai deixar de ser safada, mãe.
- Não fala assim dela, filha. Ela é adolescente e adolescentes gostam de namorar. É natural. Um dia, daqui a muiiiiito tempo... - Antoine ri de meu revirar de olhos exagerado. - Vc vai gostar também.
- Deus me livre! - Dramatiza ela, fazendo o sinal da cruz. - Nunca vou meter minha língua na boca de garotos nojentos! - Rindo, Cassandra se senta à mesa. Intrigada, eu insisto.
- Quem foi, Cassie? - Pousando a mão sobre a dela, insinuo. - Quer que eu descubra?
- Não precisa! - Avisa ela, afastando sua mão. - Ele é meu amigo. Trabalha na padaria. Na verdade, ele é o padeiro. Gente boa.
- Aí! - Ergue-se Antoine, indignada. - Outro safado!
- Antoine Santoro! Fica quieta!
- Mas mãe! - Ignorando-a, volto meu olhar a Cassandra e a interrogo.
- Quantos anos ele tem? Ele já te tocou? Ele gosta de vc?
- Calma, tia. - Pede-me ela cobrindo o rosto com as mãos. Apoiando os cotovelos na mesa, ela confessa. - Ele é só um amigo. Ele não tá nem aí pra mim. É super simpático, alto, forte, moreno...- Um suspiro e ela prossegue. - Um deus grego. Um deus grego cego.
Tocando em seu braço, eu os vejo juntos. O sorriso do homem é jovial e sincero. Ele não a trata com lascívia. Ele a ajuda no que pode. Ela o observa no setor de laticínios e, quando ele a encara, ela ruboriza. Ele caminha ao seu lado até a esquina de nossa casa e, depois, retorna, solitário, até o mercado. Esperançosa, sorrio.
- Tia? Viu alguma coisa?
- Nada. Mas, vai com calma, tá? Um dia de cada vez. Ok? - Parecendo compreender minha mensagem, ela concorda.
- Ok.
Por Antoine, tento me manter equilibrada, no entanto, ficar presa nessa casa, vendo Cassandra se sacrificar por mim, tem me deixado deprimida. A sensação de que estamos sendo vigiadas não colabora para que eu me sinta revitalizada. Os enjoos, seguidos de vômitos, começaram há alguns dias. Ainda que me sinta fraca, penso em dar um passeio com Antoine pela orla. Sempre disposta e animada, ela me encanta ao falar de seu irmãozinho em meu ventre.
- Ele precisa ter nome de santo, mamãe. - Diz ela enquanto caminha ao meu lado. Inspirando a brisa fresca vinda do mar, eu sorrio. Puxando meu braço, ela considera. - Nome de santo protege a gente do Mal. Antoine é nome de santo. Sabia? Santo Antônio foi um santo. Eu não sei o que ele fez pra ser santo, mas a tia no colégio disse que ele foi um santo. Então, eu tenho nome de santo. Meu irmãozinho precisa ter nome de santo. Cassandra não é nome de santa. Por isso, ela é tão safada.
- Para com isso, filha. - Peço aos risos. - Para de implicar com ela. Eu já te disse que ela está em uma fase difícil.
- Difícil!? - Pergunta-me ela, indignada. - Difícil nada! Ela tá lá, agora, com o tal Liam, toda 'desmanchada'...
- "Desmanchada"??? - Contendo meu riso, indago. - E o que seria 'desmanchada'??? - Com as mãos na cintura, ela esclarece sentada ao meu lado no banco de cimento.
- Toda sorridente se engraçando com ele. Ele nem 'tchum' pra ela. Mas, daqui a pouco, eles vão se beijar de língua. Aí eu quero ver! - Abraçando-me a ela, eu a chamo de 'ciumenta'. Rindo, ela admite. - Ela é minha irmã. Preciso tomar conta dela. Mas ela não me dá sossego. Tá sempre atrás de algum garoto. Mas esse é diferente. - Um sorriso no canto da boca e ela repete. - Esse é diferente...
- Como sabe disso? Como sabe de tantas coisas se nós ainda não fomos ao mercado?
- Tenho meus informantes, mamãe. - Esclarece ela, erguendo uma das sobrancelhas. Reviro os olhos e, arfando, divago.
- Seu pai falava isso. Ele me irritava tanto...
- Meu pai ainda fala, mamãe. Ele não morreu. - Angustiada, eu a encaro ao indagar.
- Ele fala com vc, filha? O que ele fala!?
- Muita coisa.
- O quê!? Fala pra mim!
- Ele disse pra não falar com vc porque vc 'ia' ficar nervosa. E ele 'tava' certo. Vc tá nervosa. - Segurando-a pelos braços, afirmo num grito.
- Eu não tô nervosa! Fala! Como ele pôde ter ficado tanto tempo longe da gente e estar conversando com vc!?
- Tá doendo, mamãe. - Choraminga ela. Beijando seus braços, eu peço perdão. Choro agarrada a ela enquanto ela beija meus cabelos ao cochichar.
- Ele foi matar o monstro da cruz de cabeça pra baixo, mamãe. Lembra dele? O menino de olhos verdes. - Em silêncio, eu a encaro e assinto com a cabeça. - Isso é segredo. Ele não pode saber que eu te contei. Ok?
- Ok. - Assustada, pergunto. - E ele conseguiu matar o monstro? - Um sorriso triunfante e ela confirma.
- Claro que sim! Meu pai é um herói!
- E por que seu 'pai herói' ainda não voltou?
- Aaaah...!- Movendo a cabecinha de um lado para o outro, ela retruca. - Isso aí eu não sei não! Ele disse que é surpresa! - Sentindo-me traída e colocada em segundo plano, aviso.
- Quando ele falar com vc novamente, diga a ele que eu também tenho uma surpresa. Minto. Tenho duas. Um soco bem forte naquela cara é uma das surpresas. A outra, eu conto pessoalmente. - Aos risos, ela me pede.
- Vamos ao mercadinho, mamãe? Quero ver o rosto do Liam. - Estranhando o pedido, eu o aceito. De volta à estrada de pedras, caminhamos juntas até a cidade. Ainda pensando no que acabo de descobrir, chegamos ao mercado. Cassandra corre em nossa direção. Alegre e corada, ela me apresenta a Liam. Extremamente cordial, ele me cumprimenta. Agarro sua mão. Segundos de conexão e enxergo asas gigantescas em movimento. Um súbito recuo e eu os assusto. - Vc tá bem, mamãe? - Cambaleando, digo que sim. Liam me faz sentar em um banquinho em madeira enquanto me serve uma xícara de cappuccino.
- Devem ser os hormônios. Causam vertigem e alucinações.
- Alucinações??? Vc sabe o que eu vi???
- Onde, senhora?
- Me chame de Adessa. - Um gole do cappuccino fumegante e, intrigada, indago. - Por que seu nome é irlandês?
- Porque meus pais nasceram lá.
- Simples, né. - Diz Cassandra, encantada. - Eu adoro a Irlanda. Nós já fomos lá. Eu já te contei?
- Sim. Umas dez vezes. - Responde Liam abrindo um sorriso encantador. Cassandra se 'desmancha' à minha frente enquanto Antoine me cutuca com o cotovelo e alerta.
- Não te disse, mãe!? - Prendendo o riso, eu o convido.
- Gostaria de jantar lá em casa hoje?
- Seria uma honra. - Sem desviar meu olhar de seus lindos olhos castanhos, afetando suspeita, volto a perguntar.
- Eu já te conheço de algum lugar?
- Dificilmente. Eu nunca saio daqui.
- Vc conheceu algum Aiden?
- Não. É um nome irlandês. Provavelmente, há muitos deles na Irlanda. Aqui...- Dando de ombros, ele conclui. - Não conheço nenhum. Por quê?
- Por nada. - Saltando do banquinho, despeço-me de Cassandra e de seu olhar esperançoso. - Um dia de cada vez. - Cochicho ao seu ouvido. - Lembra?
- Certamente. - Ao lado de Liam, ela nos acena.
- Às oito!?
- Perfeito, senhora!
- Adessa! Esse é o meu nome! - Aviso ao descer os degraus. Ao meu lado, Antoine a repreende, antes de partirmos.
- Não seja safada! - Cassandra cobre o rosto com as mãos enquanto Antoine insiste em bancar sua mãe. - Eu tô de olho!
Gargalhando, eu a arrasto comigo de volta à estrada. Distraída, não percebo dois vultos se aproximarem de Antoine. Tarde demais, percebo os dois homens de terno preto. Um deles a carrega em seu colo enquanto o outro me impede de ir ao seu encontro, prendendo-me pelos braços. Aos gritos, movo minhas pernas no ar enquanto ele comprime, com seus braços fortes, minha barriga. Ouço Antoine gritar por meu nome. Horrorizada, vejo-me impotente quando, num repente, Liam, literalmente, voa sobre o homem que carrega Antoine e o derruba. Antoine rola no chão de areia e pedrinhas e se esconde debaixo do carro. Cassandra atinge a cabeça do segundo homem com um taco de baseball. Urrando de dor, ele me solta. Corro até Antoine e a arrasto para longe do carro. Liam ergue o sequestrador pelo pescoço e o mantem suspenso com sua mão gigantesca. Prestes a perder a consciência, o verme de terno preto é lançado à distância. Liam grita algo que não compreendo. Algo que os assusta e os faz entrar no carro e acelerar até sumirem, deixando para trás, uma cortina de poeira.
- Uau! - Vibra Antoine em meu colo enquanto choro compulsivamente. - Isso foi 'irado', tio!
- Foi mesmo! - Diz Cassandra entre assustada e deslumbrada. - Vc lutou por nós! Não sei como te agradecer!
- Não precisa. - Retruca Liam, desconcertado. - Eu faria por qualquer um. - Desapontada, Cassandra, lamenta.
- Aaah tá.
- Não! Digo! - Do chão, eu o vejo mover as mãos e braços aleatoriamente enquanto Cassandra o encara. - Não faria por qualquer um! Eu fiz por vcs porque vcs são importantes pra mim! Entende!?
- Sim! - Um sorriso faiscante e ela responde. - Super entendi! - Partindo o clima romântico entre ambos, do chão, com Antoine em meu colo, peço.
- Alguém pode me ajudar aqui?
- CLARO! - Respondem ambos em uníssono. De pé, procuro feridas no corpo e rosto de Antoine sem notar meus braços e pernas arranhados. Liam ostenta um dos olhos, roxo e inchado, ao alertar. - Vcs não podem ir sozinhas pra casa!
- Não se preocupa. - Digo sem convicção. - Vamos ficar bem. - Com Antoine em meu colo, eu o vejo ir até o mercado e retornar com um molho de chaves em sua mão. Mostrando-a para mim, ele informa, ainda confuso.
- Eu as levo até lá! Vamos!
Assim que chegamos a casa, Liam, logo atrás de mim, ajoelha-se diante do batente da porta, murmurando palavras que desconheço. Desconfiada, lanço um olhar a Cassandra e, bem próxima a ela, cochicho.
- Ele sempre faz isso? - Um ligeiro olhar em sua direção e posso jurar ter visto algo pontiagudo em suas costas curvas.
- Não. Somente quando a casa é protegida. - Responde-me ele, de cabeça baixa.
- Por quem?
- Pelo Criador.
- Vc é católico?
- Não tenho religião. Tento seguir os preceitos que Seu Filho deixou.
- Seu filho?
- O Filho do Criador. - Elucida ele ao se erguer. - O Messias.
- Ah! Jesus! - Um riso curto e concluo. - Entendi! Mas essa mesma casa foi invadida por algo ruim. Faz sentido?
- Sim. Não são as casas que dão brechas e sim os moradores da casa. Somos humanos, Adessa. Seres perseguidos, o tempo todo, pelo Mal. Difícil não cair.
- Concordo. - Observando seu rosto e corpo, deduzo. - Vc precisa de um banho. - Conduzindo-o até o banheiro, deixo uma das camisas de Vincenzo sobre o cesto de roupa suja e, antes de sair, ainda insegura, digo. - Fique à vontade, 'Liam da Irlanda'.
Sentados à mesa, conversamos enquanto Cassandra prepara pizzas tendo como ajudante, Antoine.
Cassandra cuidara dos ferimentos de Liam com extrema atenção e carinho. Percebo, entre os dois, uma forte conexão. Talvez, agora, dê certo. Adoraria ver Cassandra unida a um homem que lhe desse estabilidade emocional, filhos saudáveis e lindos como os que eu teria com Vincenzo, caso ele estivesse aqui para me fecundar novamente.
- Dois meses. - Respondo mecanicamente tentando disfarçar a dor que me corrói por dentro.
- Qual será o nome da criança?
- Nome de santo. - Interfere Antoine. - Eu pensei em Matteo.
- Por que não 'Mateus', filha? Ele não vai nascer na Itália.
- Vai sim. - Afirma Antoine enlaçando o pescoço de Liam com seu bracinho. Um beijo em sua bochecha o faz corar. - Matteo é um lindo nome. Não é, Liam?
- Concordo. Nome de santo.
Por que eu sempre tenho a estranha sensação de que Antoine é mais do que uma linda menininha com muita imaginação?
Enquanto saboreamos as pizzas de Cassandra, algo me surpreende. Liam deixa escapar que conhece Vincenzo há anos. Ressabiada, pergunto.
- De onde?
- Daqui mesmo. - Responde-me ele com naturalidade. - Ele nos visita faz tempo. Um bom homem.
- Desde quando?
- Tia! - Soltando o ar dos pulmões pela boca, peço desculpas. Cassandra sentada ao seu lado, lhe serve outro pedaço da pizza. Apoio meus cotovelos na mesa e a observo referindo-se a mim. - Devem ser os hormônios. Eles se amam e se dão muito bem. Gostou da pizza?
- Muito. Já pode casar. - Ruborizando, ela se encolhe e pede.
- Não me zoa. Acho que nunca vou me casar.
- Vai sim. - Um sorriso iluminado e até eu me arrepio. - Basta encontrar o homem certo.
- Faz sentido.
- Papo besta. - Reclama Antoine, para variar, de boca cheia. - A gente sabe o que vai acontecer, tio Liam. - Acariciando os cachos de Antoine, ele sorri ao comentar.
- Vc é especial.
- Sou mesmo. - Rindo, ela observa. - Pena que minha mãe não me deixa falar o que eu quero.
- E o que seria? - Indaga Liam, inocente.
- Nada. - Um olhar sapeca e eu ordeno, suspeitando de suas intenções. - Não se atreva! Coma de boca fechada e fica quieta! - Revirando os olhos, ela dá de ombros e se cala. Sem apetite, belisco pedaços da pizza planejando, silenciosamente, nossa fuga. Sinto-me tranquila quanto a Cassandra. Liam não se cansa de demonstrar seu interesse por ela e, daqui, consigo enxergar sua aura luminosa. Partiremos assim que todos tenham dormido já que Liam se nega a partir e nos deixar sozinhas.
- Durmo no chão da sala sem problemas.
- Tem uma cama extra em meu quarto. - Sugere Cassandra em sua camisola sexy. - Não há necessidade de se sacrificar.
'Sacrificar'. Eis é uma palavra da qual Vincenzo desconhece o sentido. Chorando por dentro, penso que sua filha estaria em algum lugar desconhecido se um outro homem, um estranho, não a tivesse arrancado das mãos dos malditos de terno preto. Seres que, certamente, vieram a mando do juiz vingativo. Destruída por dentro, proponho.
- Ele dorme em minha cama e eu e Antoine vamos dormir em sua cama extra, Cassie. - Um beliscão em seu braço e cochicho. - O que acha, querida? Um dia de cada vez. Lembra?
- Ok. Ok. - Concorda ela, desanimada. Antoine leva o cobertor e o travesseiro até os braços de Liam e, de súbito, me arranca uma gargalhada ao alertar antes de correr de mim e se trancar no quarto de Cassie.
- Liam, cuidado.
- Com o que, querida?
- Com Cassandra!
- Por quê!? - Aos risos, ela elucida.
- Porque Cassandra é safada!
Ainda rindo, ouço Cassandra resmungar antes de se deitar em sua cama extra.
"Ninguém merece".
- Calma, Cassie. Vcs vão ficar juntos. Eu sei. Eu sinto.
- Sério, tia!?
- Sim. - Respondo, num tom sombrio, de olhos fixos no teto. - Nada como um novo dia após uma noite obscura.
Antoine ainda dorme em meu colo quando cruzo o umbral da porta da sala e os deixo dormindo. Caminho, vagarosamente, até a Kombi e deito Antoine no mesmo local onde seu irmão fora concebido. Jogo nossas mochilas no banco do carona e, sentindo fortes cólicas, peço a Matteo que aguente firme, ao cochichar, acariciando meu ventre.
- Vamos para um lugar seguro, filho. Sua irmã corre perigo aqui.
Procuro a chave da ignição no porta-luvas onde Vincenzo costumava guardá-la e não a encontro. Xingo um palavrão. Antoine resmunga no banco traseiro.
- Onde a gente tá, mãe?
- Em um sonho! Dorme, filha! - Atordoada, assistindo o sol nascer, mergulho no espaço entre o porta-luvas e o banco do carona. Outro palavrão ao bater com a lateral do meu tronco no câmbio de marchas. Uma dor lancinante nas costelas e sou obrigada a engolir meu grito. Enfim, encontro a chave. Eu a giro na ignição. O carro não liga. Insisto sob os primeiros raios de sol incidindo contra meus olhos. Um terceiro palavrão e Antoine desperta.
- Isso é feio, mãe.
- Dorme, filha! - Grito, girando, repetidamente, a chave na angustiante tentativa de ouvir o motor 'roncar'. - PORRA DE LATA VELHA! - Deslizando para o banco do carona, sonolenta, Antoine volta a me repreender. - Culpa do seu pai! Comprar um carro velho! Eu quero o meu!
- O seu também é velho, mamãe. - Observa ela, imparcial. - Tenta novamente.
- Não vai pegar!
- TENTA! - Ordena-me ela, enfurecida. - Eles estão chegando!
- Eles quem??? - Grito, assombrada. - O que tá vendo, filha???
- Liga o carro, mamãe...- Choraminga ela. - Eu não quero que o 'homem de vestido preto' me leve.
- NUNCA! - Enraivecida, perco o controle. Bato com a testa por duas vezes seguidas contra o volante e repito. - NUNCA! NINGUÉM VAI TIRAR VC DE MIM!
- Tá saindo saindo sangue! Tá saindo sangue! - Avisa ela, aflita, apontando seu indicador para o meu rosto. Filetes de um líquido quente escorrem até meus olhos, embaçando minha visão. Uma olhadela no retrovisor interno e entendo seu horror. Meu rosto é um borrão de sangue e suor. - Limpa. - Pede-me ela com uma de suas toalhinhas do colégio em suas mãos. - Limpa logo! - Minhas lágrimas lavam meus olhos, livrando-os do sangue. Sua toalhinha branca, molhada e, agora, vermelha, seca meu rosto. Busco equilíbrio dentro de mim a fim de não deixar que ela surte. Um forte abraço e sussurro.
- Mamãe tá com medo. Muito medo. Vamos sair daqui antes de o homem mau chegar. Ok?
- Não vamos...- Alega ela, chorando. - Eles já estão aqui.
Em minutos, quatro carros pretos com placas oficiais da Justiça nos cercam. Enfim, o carro dá sinal de vida. Decidida a não me render, piso no acelerador sem retirar o pé da embreagem. Pisco por diversas vezes até reconhecer o juiz com sua imponente toga preta sobre um terno alinhado.
'O homem de vestido preto'.
Ao seu lado, ostentando um sorriso sarcástico, Lúcifer me encara. Aterrorizada e sem controle, ordeno num tom baixo.
- Põe o cinto de segurança, filha.
Retirando o pé da embreagem, dando marcha à ré, colido com um dos carros. Gargalhando, Lúcifer aconselha.
- Não seja patética, Adessa. Entregue a pequena.
- Nunca. - Rosno. Prestes a acelerar e atropelar Lúcifer, o juiz e seus capangas, deparo-me com a figura de Liam diante do carro. Seus lindos olhos castanhos e arregalados se fixam em mim enquanto pede.
- Pare. Confie no Criador. - Ensandecida, ao volante, refuto aos berros.
- ELE NÃO TÁ AQUI, LIAM! SAI DA MINHA FRENTE!
- Para, mamãe. Eu tô com medo.
- Eu também!
Lúcifer diz algo que me chama a atenção ao identificar Liam.
- Por Baco! Outro que 'caiu' por nada!
- Tia! Não faz besteira! - Pede-me Cassandra, apoiando-se na janela aberta. Coberta pelo casaco de Liam, ela o empurra para o lado assim que me ouve lamentar.
- Tarde demais...
Piso fundo no acelerador. A poucos metros da parede humana à minha frente, vejo Lúcifer elevar, elegantemente, seu braço. Instantaneamente, a Kombi 'morre'. Dois de seus homens abrem nossas portas e nos arrancam de seu interior. Antoine cospe no rosto de Lúcifer enquanto luto contra meu agressor. Um chute forte na lateral de seu tronco e ele se curva para frente. Tomada pelo desespero, agarro sua cabeça com minhas mãos e atinjo, repetidas vezes, seu rosto com meu joelho direito até que ele tombe para o lado. Com seu sangue em minhas mãos, corro até Antoine. Lúcifer, limpando seu rosto com um lenço em cetim, debocha.
- Isso não são modos de uma garotinha educada, Antoine. Nunca mais cuspa em mim. - Rosnando, ela refuta.
- Eu não sou uma garotinha. E vc sabe disso. - De olhos arregalados, ele a joga no colo do juiz que, vingativo, decreta.
- Determino que essa criança permaneça sob a proteção do 'Conselho Tutelar' até que sua adoção seja concedida.
- Não. Não. Por favor, não. - Suplico. - Ela é minha filha. - Um olhar de ódio e ele me faz a pergunta que eu sempre temi.
- Tem os documentos de sua adoção?
Sem me dar tempo de lutar ou gritar, ele a joga contra o banco traseiro de seu carro e tranca a porta do carona. Invado o carro pela porta do motorista e, aos prantos, protesto.
- Ela é minha filha! Ninguém vai tirar ela de mim! - Agarrada a ela no banco traseiro, eu prometo. - Ninguém vai nos separar, filha. Eu juro. - Enxugando minhas lágrimas, eu a ouço cochichar.
- Ele tá chegando, mamãe...
- Quem???
Violentamente arrastada para fora do carro, caio contra o chão de terra. Um chute em meu ventre e urro de dor. O covarde que nocauteei se prepara para um novo golpe quando Liam o atinge com o taco de baseball na cabeça. Tonto, ele cambaleia. Um chute em seu rosto e o verme desmaia. Do chão, em meio à poeira, vejo Lúcifer acenar para mim ao entrar no carro do juiz onde Antoine grita com suas mãozinhas no vidro traseiro.
Há sangue escorrendo pelo interior de minhas coxas enquanto rastejo até o carro com os faróis acesos. Sem esperanças, apavorada, preparo-me para minha última cartada.
Com o indicador, traço um pentagrama na terra amarelada. Ao seu redor, desenho outros símbolos cabalísticos murmurando palavras de força, alimentadas pelo ódio.
De súbito, a imagem de Padre Pietro surge em minha mente ao aconselhar.
"Use seu poder somente uma única vez. Ele vai sugar sua energia vital por completo e, talvez, vc nunca mais se recupere".
- O que pretende com esses desenhos, meu bem? - Desdenha Lúcifer agachado à minha frente. Algo o assusta assim que o encaro porque ele recua como uma serpente hesitante diante de sua presa. Sinto minha respiração ofegar e minha visão embaçar quando eu o ouço observar. - Seus olhos estão...
Prestes a por em risco a vida de meu filho e a minha em troca da vida de Antoine, com uma pedra, corto um dos pulsos. Antes do primeiro pingo de sangue atingir o centro do pentagrama, Liam, com seu coturno, apaga tudo ao me repreender.
- NUNCA MAIS FAÇA ISSO! ELE CHEGOU!
O ruído do acelerador o precede. Com seu capacete, ele faz a moto girar em círculos antes de atirá-la contra o chão e, resoluto, caminhar até o juiz. Da mochila, ele retira um envelope e, da cabeça, o capacete. Sua voz mesclada de raiva e imponência, ordena.
- Retire a nossa filha desse carro agora ou teremos problemas.
- Vincenzo, não seja ridículo. Saiba perder.
Um ligeiro olhar de Vincenzo a Lúcifer e ele se refugia atrás do tronco de uma árvore. Retirando o casaco de couro, Vincenzo o joga no chão e caminha até Lúcifer. Suas asas imensas se mostram a todos pela primeira vez. Impactada, permaneço no chão. Antoine escapa do carro e me abraça ao celebrar.
- Meu pai é um anjo! Eu te disse! Eu te disse! - Revoltada com tanta violência, ela o incita. - Acaba com ele, papai!
Empunhando um crucifixo em madeira, Vincenzo o encosta no peito de Lúcifer e recita algo em latim. Uma breve e ruidosa explosão e, de Lúcifer, nada restara além de fumaça.
Voltando-se na direção do juiz, com o olhar furioso, Vincenzo o desafia.
- Percebo que já leu o documento. E então? Quer ter o mesmo fim ou terminamos aqui? De uma forma ou de outra, vc o encontrará no inferno, seu monte de merda. Aliás, dê lembranças ao seu filho quando lá chegar. Ele e eu tivemos uma 'conversinha' há alguns dias.
- Do que está falando? - Indaga o juiz, amedrontado. Um sorriso irônico e Vincenzo responde.
- Uma pena ele ter exagerado na dose de cocaína. Foi mais fácil do que eu imaginava.
- Maldito seja. - Rosna o juiz. Amassando o documento, ele o atira no rosto de Vincenzo que, confiante, debocha.
- Isso é uma cópia, Vossa Excelência.
Furiosos, o juiz e seus capangas entram em seus carros e desaparecem sob a nuvem de poeira. Aliviada, entrego-me à dor e me deito no chão molhado pelo meu sangue.
- Fica com seu pai, filha. - Sussurro ao empurrá-la para longe. Quase sem forças, minto. - Eu vou ficar bem.
O rosto preocupado de Vincenzo é a última visão que tenho antes do nada chegar.
Uma ligeira olhadela ao meu redor e me situo. Liam e Cassandra, abraçados, comemoram o meu retorno. Antoine, exultante, pula em meu colo e, apesar dos meus gemidos de dor, ela me enche de beijinhos ao declarar, em alto e bom som.
- Meu pai me salvou, mamãe! Meu pai me salvou! - Um beijo em sua testa e, ainda com dor, sussurro.
- Que bom, filha. - Sob protestos, ela se deixa levar por Vincenzo, a única pessoa que evito encarar. - Como está o meu filho? - Cochicho ao médico de plantão.
- Perfeito. - Responde-me ele, num tom baixo, após me examinar. Antes de nos deixar a sós, ele aconselha. - Mas, se puder me fazer um favor, evite encrencas daqui por diante. Ok? - Um sorriso triste e assinto com a cabeça. Vincenzo ao pé da cama, toca em meu ventre sob o fino lençol e responde por mim.
- Deixa comigo, doutor. Agora, ela vai sossegar.
Espero que o médico feche a porta do quarto de hospital e, erguendo meu tronco com dificuldade, cerro o punho enfaixado. Dor e raiva se misturam quando eu o acerto com um soco em seu lindo rosto. Arregalando os olhos, ele protesta.
- Dess! O que eu fiz!? - Gargalhando, Antoine responde.
- Essa é uma das surpresas que ela guardou pra vc, papai! - Com suas mãos, ele segura meus braços com força. Sorrindo, ele adverte.
- Te aquieta, mulher. Por que tanta violência?
- Isso foi por nos deixar sozinhas, bastardo.
- Eu não te deixei sozinha, Dess. Liam estava aqui.
- E eu lá sabia quem era o Liam!? Meu homem era vc!
- Era??? - Livrando-me de suas mãos, resmungo.
- Vá pro inferno. Meu corpo todo dói...- Ao meu lado, Cassandra exulta.
- Tia, eu nunca vi uma mulher lutar tanto como vc lutou! Foi 'irado'!
- Foi mesmo! - Concorda Antoine. - Vcs viram o cuspe que eu dei no tio Lu!?
- Sim! - Gargalha Cassandra sem compreender a verdadeira identidade do 'Tio Lu'. - Que voz grossa foi aquela, pirralha!?
- Eu vi nos filmes! - Explica Antoine atirando-se, dramaticamente, contra um pequeno sofá. - Deu medo, né!?
- Total! - Celebra Cassandra. Liam, ao seu lado, me observa, calado. - O que foi, tia!? Que olhar é esse!?
- Nenhum. - Recosto-me à cabeceira, gemendo de dor em todos os músculos e ossos do meu corpo. Estapeando Vincenzo que tenta afofar meu travesseiro, alerto. - Assim que eu sair daqui, 'Liam da Irlanda' e eu, teremos uma conversinha.
- Esquece o Liam. Ele é meu amigo. Só isso.
- Duvido, Vincenzo! Vcs têm algo em comum! Eu ouvi!
- Ouviu de quem, Dess? - Indaga-me ele ao cruzar os braços. - Do 'Pai das Mentiras'?
- Pai de quem???
- Deixa pra lá, Cassie. - Cochicho ao seu ouvido. - Depois a gente conversa. Vc viu as asas?
- Asas??? Onde, tia??? - Indignada, respondo.
- Do Vincenzo! Vc viu! Estávamos todos lá! - Aos risos, ela comenta.
- Foi mal, tia. Não rola. Asas???
- Puta que pariu! - Procurando por Vincenzo, revolto-me ao lançar um olhar de raiva a ele. - Não é possível! Vc fez com ela também!? Apagou suas memórias!?
- Ela bateu com a cabeça. - Diz Liam a Vincenzo. - Deve ter afetado alguma coisa. - Reativa, arremesso uma garrafa de água mineral, ao lado de minha cama, em sua direção. Ele se esquiva da garrafa e eu grito.
- Afetou porra nenhuma! Tu também viu, Liam! Todo mundo aqui viu as asas de Vincenzo! Lúcifer 'vazou' depois disso! - Antoine gargalha de minha impulsividade. Vincenzo meneia a cabeça, em uma clara demonstração de desaprovação.
- Quem??? Lúcifer??? - Bufando, aviso.
- Cala a boca, Cassie! Antes que eu perca meu equilíbrio!
- Ele já foi, Dess! Já deu! Seu equilíbrio deve estar na praia, curtindo um 'luau' a essa hora. - Irritado, ele se afasta de mim e atira, em meu rosto, uma bola de papel amassado antes de se sentar ao lado de Antoine no sofá e gracejar. - Quando encontrar seu equilíbrio, pede pra ele ler o que tá escrito aí, porra!
- Pai...
- Foi mal, filha. Sua mãe me deixa maluco.
- Eu sei. - Diz ela, sorrindo. - Minha mãe é demais. Meu irmãozinho vai ter nome de santo. Sabia?
- Sabia. - Responde Vincenzo, enternecido. Um arquejo e ele pronuncia seu nome. - Matteo. Meu filho está a caminho.
- Vc não vai deixar de me amar, né?
- Nunca! - Emociona-se Vincenzo ao abraçar Antoine e declarar. - Vc é a minha primogênita.
- Prima de quem??? - Rindo, ele explica.
- A primeira filha. Vc é a minha primeira filha de muiiiiitos filhos que sua mãe e eu teremos.
- Merda. - Resmungo ao me levantar da cama e arrastar a porra do suporte para o soro fisiológico que pinga pinga pinga irritantemente. - Não se pode guardar segredos de vc, Vincenzo. Vc e essa estúpida mania de ler pensamentos. Era pra ser uma surpresa.
- E foi, amor. - Diz ele abraçando-me com carinho. Conduzindo-me de volta ao leito, ele sussurra. - Quando eu soube, eu quis voltar, mas não pude. Não até conseguir atingir meu objetivo.
- Que porra de objetivo, Vincenzo!? Não dá pra ler nada nesse papel amassado! Não deu pra perceber meu olhinho inchado nesse rostinho estragado!? - De volta à cama, ele me cobre e, sentando-se ao meu lado, acariciando meus cabelos, concorda. - Eu percebi, Dess. Vc lutou como uma leoa. É por isso que 'caí' por vc. Tinha que ser vc. - Envaidecida e envergonhada, baixo a cabeça ao pedir.
- Lê pra mim. - Após ler os termos técnicos ao desamassar o documento, as palavras que piscam em minha mente são: 'concedo', 'adoção', 'juiz', 'entrego minha filha', 'aos futuros pais unidos em comunhão de bens'. Vincenzo finaliza a leitura. Sob a forte tensão de todos, pergunto, assombrada. - Como vc conseguiu a assinatura da mãe biológica de Antoine se nós sabemos que ela já...?
- Morreu. - Complementa Antoine. - Minha outra mãe tá morta.
- Não foi fácil. Quer mesmo saber? - Cerrando os olhos, respondo de imediato.
- Não!!! Por favor, poupe-me dos detalhes!!! - Extremamente ansiosa e nervosa, questiono. - O que esse documento quer dizer, Vincenzo???
- Que nós conseguimos, Dess! Antoine Rossi é, oficialmente, nossa filha aos olhos de Deus e dos Homens!
- Jamais irão tirá-la de nós???
- Nunca, amor! - Um abraço forte nos une. Extremamente emocionados, choramos juntos até que eu o corrija.
- Vc errou o nome dela. Seu sobrenome deveria ser Santoro e não Rossi. - Cruzando as pernas, eu o ouço explicar, empolgado.
- Normalmente, os filhos herdam os nomes do pai e não o da mãe. Logo, Antoine, de agora em diante, terá Rossi em seu sobrenome se vc aceitar meu humilde e tão esperado pedido. - Arrancando o acesso de minha veia, salto da cama. Sob o som estridente dos aparelhos que controlam meus sinais vitais, eu o vejo se ajoelhar e, com os olhos marejados, enfim, me propor ao abrir um caixinha de veludo vermelho. Uma aliança de diamante reluz sob a luz fria do teto.
- Casa comigo, Sra. Rossi?
Meu sangue escorre pelo antebraço enquanto, eufórica, grito um 'SIM!'.
- É óbvio que sim!!!
Ele me toma em seus braços e, com cuidado, beija minha boca lacerada. Dói, mas eu não me importo. Mesmo que não tenha sido o pedido de casamento com o qual sonhei, foi o mais inusitado e feliz que poderia ter.
Enrolando uma gaze em meu antebraço, ele avisa, exultante.
- Vou chamar a enfermeira, sua louca! - Segurando-o pelo braço, eu aviso.
- Se enfiarem outra agulha em mim, eu surto de novo. - Um olhar encantado ao meu anel de noivado e considero. - Não estou doente. Quero ir pra casa, Vincenzo. Pra nossa casa e ter uma vida normal.
Em seu colo, a caminho da bendita Kombi, recosto minha cabeça em seu ombro e, num suspiro, murmuro.
- Agora seremos felizes. O Mal se foi.
Antoine, Cassandra e Liam no banco traseiro festejam com aplausos e assobios. Antoine solta um 'Woohoo' que quase nos ensurdece. Gargalhando, Vincenzo, ao meu lado, ao volante, comenta.
- Ela tem ótimos pulmões. Nosso filho vai ter também.
Sem caber em mim de tanta felicidade, olho para o céu estrelado e, sentindo um pitada de medo, peço em pensamento.
"Se isso for um sonho, não nos deixe acordar".
Partimos da casa de praia uma semana após o terrível confronto com Lúcifer e seus seguidores. Ostentando alguns hematomas, abraço Liam com quem conversei por algum tempo. Ele nada me confessou, no entanto, ao segurar seu garfo em nosso jantar de despedida, entendi o porquê de tanto carinho por Cassandra e dedicação à nossa família.
Lúcifer se enganou. Liam não 'caiu por nada'. Diferentemente de Vincenzo, Liam 'caíra' por curiosidade. Por querer encontrar o amor após visitar a Terra por inúmeras vezes e não compreender o sentimento que une pessoas mesmo diante do sofrimento.
"Isso é amor", dissera-lhe. Vincenzo me contara que ele e Liam não são os únicos entre os humanos. Há milhares de anjos entre nós. Alguns procuram por amor. Outros escolhem nos ajudar em momentos difíceis.
"Basta fechar os olhos e ouvir o silêncio e lá estarão eles", sussurra-me Vincenzo após fazer amor comigo em nossa última noite na praia. Abraçada ao seu corpo nu, preocupada, pergunto.
- O que será de Cassandra? Ela o ama.
- Ele sente o mesmo por ela, mas é tímido. Ele vai nos encontrar em nossa casa na cidade.
- É bom mesmo. - Advirto. - Ai dele se a fizer sofrer.
- Nunca! Ele não é bobo! Ele te viu em ação, Dess!
Rimos juntos dos meus arroubos de violência. Eu mesma não sei de onde tirei tanta força para lutar contra homens mil vezes mais fortes do que eu.
- O amor, Dess. - Esclarece Vincenzo após ler meus pensamentos. - O amor de mãe é capaz de coisas que até Deus duvida. - Um suspiro e concordo.
De volta à casa da praia, arrumando nossas bolsas, ele enfatiza.
- O Amor é capaz de tudo. Até de me fazer de otário a ponto de comprar um vestido de noiva quando a minha noiva já havia se casado com outro.
Sufoco um soluço assim que o vejo.
Branco, rendado, mangas longas e bufantes, cintura justa. Saia longa.
- É tão lindo...- Suspiro.
- Veste, tia. - Pede-me Cassie.
- Eu vou. - Num dos cantos da sala, escondida, eu me dispo. Deslumbrada, Cassie pensa alto.
- Eu adoraria ter um desses...- Vencendo sua timidez, Liam afirma.
- E terá!
- Woohooo! - Uiva Antoine. - A safada vai casar! A safada vai casar!
Uma gargalhada histérica e Cassie beija Liam no rosto.
- Vou mesmo?
- Vai.
- Começou a palhaçada. Daqui a pouco, ela tá enfiando a língua na boca dele, papai.
- Que filhinha rabugenta eu tenho! - Exclama Vincenzo fazendo cócegas em Antoine. Seu riso ecoa pelas paredes da casa quando, enfim, eu apareço, timidamente, em meu vestido de noiva. Mudo, Vincenzo me admira. Antoine bate palmas ressaltando minha beleza.
- Minha mãe é uma princesa...
- A minha princesa. - Diz Vincenzo curvando seu tronco para frente, convidando-me a dançar. Olhando-me com extrema ternura, ele alerta. - Não se atreva a recusar. - Meu coração ribomba no peito ao comentar.
- Não tem música, amor.
- Tem sim. - Afirma Liam ao selecionar uma canção em sua playlist no celular.
- Cassie me disse que é uma de suas prediletas. - Um sorriso se estampa em meu rosto ao gracejar.
- Então isso se trata de um complô?
- De fato. - Diz Vincenzo ao me abraçar e sussurrar. - Fica comigo pra sempre?
- Pra sempre.
Eufórica, Antoine exulta.
- É a do filme, mamãe! É a do filme! Vcs vão ficar juntos pra sempre igual ao casal do filme! - Inocentemente, ela profetiza. - Mesmo depois de mortos, vcs vão ficar juntos!
Deixando-me levar pelo homem dos meus sonhos, pai de meus filhos, sussurro.
- Pra sempre. Na vida e na morte.
De volta ao prédio onde Antoine e eu moramos, revivo os últimos momentos de Sweet arrastando-se pelo chão até os degraus. Vincenzo me desperta do transe ao abrir a porta de meu apartamento e, mais uma vez, me surpreender.
- Onde estão os meus móveis???
- Vendi.
- Como assim??? Eram meus!!!
- Caraca...- Sussurra Antoine preocupada. - Onde eu vou dormir, papai?
- No chão, pirralha. - Do centro de minha sala vazia, encaro Vincenzo e Cassandra que trocam olhares de cumplicidade. Entre irritada e intrigada, pergunto.
- O que tá rolando aqui, Vincenzo!? Eu quero meus móveis de volta! Vamos começar uma vida nova!
- Exatamente! - Exulta ele, erguendo-me do chão, rodopiando com a leveza de um dos bailarinos do "Ballet de Bolshoi". - Vida nova! Casa nova! Móveis novos!
- Vincenzo, vc tá louco. - Retruco, meio tonta. - Me põe no chão. Eu juntei uma grana pra poder vender esse apartamento e comprar um outro maior pra nós três. Digo. Agora, quatro, com nosso filho.
- Errou! - Diz ele, eletrizado. - Somos em cinco, amor! Esse apartamento é pequeno demais para nossa nova família! - De volta ao chão, resmungo.
- Tu tá me assustando. O que vc fez?
- O dinheiro dos seus móveis e do seu apartamento estão em sua conta bancária. - Com as chaves em suas mãos, ele caminha até a porta da saída e, antes de cruzar o batente, indaga. - Vai ficar aí sozinha ou quer se juntar aos bons?
Em seu colo Antoine me pede para segui-los. Cassandra, compreendendo minha total confusão mental, esclarece.
- Tia, ele quer te fazer uma surpresa. Vem. - Puxando-me pelo braço, ela assegura. - Confia em mim. Vc vai gostar. - Perdida, eu os sigo e, insegura, pergunto a mim mesma.
- Vou?
Continua...