- Vc está com febre.
- Bobagem. Não sou disso. Eu nunca adoeço. - Murmuro ao me deitar no colchão macio. - Nem gripe eu pego.
- Gosto disso. - Diz Aiden abrindo um sorriso tímido. - Uma mulher forte, guerreira. Isso me faz lembrar de alguém.
- Quem?
- Valkyria...- Exala ele sentado em uma poltrona em couro ao lado de minha cama. Certamente, o próximo item a ser vendido se eu não resolver minha vida financeira, urgentemente. Apoiando os cotovelos nos joelhos, ele cruza as mãos ao indagar. - Do que se lembra do sonho?
- Que sonho?
- Vc sonhou quando paramos de dançar. Disse algumas coisas...
- Que tipo de coisas?
- Nomes...
- Quais?
- Enrico, Antoine...- Revela ele, semicerrando os olhos, à espera de que alguma resposta que faça sentido, mas nada faz sentido. Eu não me lembro de nada. Suas narinas inflam ao indagar. - Quem é Giovanni?
- Não faço ideia! Quem é Valkyria!?
- Uma amiga.
- Mais do que amiga. Suponho...
- Ciúmes? - Uma gargalhada breve e eu respondo com outra pergunta.
- Ciúmes!? Eu!? Por que eu teria ciúme de vc, Aiden!? Somos amigos. Aliás, nem amigos somos.
- Poxa...- Lamenta ele visivelmente constrangido. Arrependida pela insensibilidade, peço perdão.
- Eu não sei o que deu em mim. Não tô legal agora. Esse papo não tá me fazendo bem. Não sei porque dormiria enquanto dançava com vc. Isso não faz sentido. - Um susto e me lembro de algo. - Eu não tirei a louça da mesa! - Seus braços se estendem até mim enquanto prende um riso.
- Fique calma. Eu as retirei. Estão na pia.
- Sério? Vc não me parece o tipo de homem que curte limpar uma casa.
- Não. Não sou, mas gosto de te ajudar. E gosto de seus súbitos arroubos.
- Isso é fofo...- Suspiro vendo-o corar. - Eu quero que sejamos amigos. Juro.
- Somos dois...- Amo seu sorriso tímido. - Do que está rindo?
- De nada...- Recosto-me à cabeceira da cama, cobrindo meu rosto com as mãos. - Eu sou patética.
- Patética e linda e ainda dança bem. O que mais um homem poderia desejar?
- Algo que eu não devo ter porque o homem que eu quero me deixou novamente...
- Ele não te merece.
- Vc não o conhece! - Rebato com o tronco ereto, embora reconheça verdade em suas palavras. - Ele deve ter seus motivos pra me abandonar novamente. Ele é um cara surtado. Na verdade, eu nem sei se ele me abandonou mesmo...- Engulo em seco, prendendo o choro. Não vou chorar agora. Não na frente de Aiden. Ele é tão fofinho! Por que diabos estou pensando em seu beijo!? POR QUE É BURRA??? Quem é vc!? - Vc ouviu, Aiden!?
- O quê, meu anjo?
- A voz! - Respondo, incomodada. - Ela tá na minha cabeça! Que merda!
- Não se preocupa. Isso é normal.
- Desde quando, Aiden!? - Rosno cruzando as pernas, cobrindo-as com o lençol. - Vc ouve vozes em sua cabeça!? Não!? Então, não me diga que isso é normal!
- Fica calma. Talvez a voz te queira bem...ou não. Talvez a voz seja sua...ou não.
- Isso não ajuda, Aiden!
- Vc sempre a ouviu?
- Desde a adolescência. Mas...piorou na fase adulta.
- O que ela diz? - Pergunta-me ele, verdadeiramente interessado. - Me conta.
- Coisas boas. Coisas ruins. Varia muito.
- Já pensou em se consultar com um psiquiatra?
- Não preciso. Não sou louca.
- Preconceito tolo. Um bom psiquiatra poderia te medicar.
- E me dopar? Eu não posso ficar dopada. Tenho uma filha pra cuidar.
- Uma filha linda e inteligente.
- Ela é...- Sorrio, abobalhada. - Eu não vou decepcioná-la. Não posso.
- Não vai. - Afirma ele, erguendo as sobrancelhas. - Eu vou te ajudar.
- Não quero remédios, Aiden. Desiste.
- Tenho um grande amigo psiquiatra. Pode ser útil.
- Útil é pix na minha conta!
- Vc é engraçada.
- Sei...
- O que ela disse agora?
- Quem?
- A voz.
- Não quero falar.
- Vc tá corando. - Atesta ele, esboçando um sorriso.
- Não seja ridículo!
- Calma...
- Não me peça pra ficar calma! E por favor, para de me olhar como se eu fosse uma louca em um manicômio! Eu não sou louca e vc não é o meu psiquiatra! Por que a minha cabeça dói!?
- Vai passar. - Diz ele, tranquilamente. - Vc vivenciou muitas coisas...
- Que coisas!?
- Não se lembra?
- Porra...- Resmungo. - Vc tá me deixando confusa, Aiden. - Num gesto brusco, descubro minhas pernas, disposta a me levantar. Ele me impede com suas mãos em minhas coxas. - Sai da frente. Tem louça suja na pia.
- Eu lavo com vc.
- Obrigada, mas eu não quero. - Lanço um olhar às suas mãos e, inquieta, questiono. - Dá pra tirar suas mãos...?
- Perdão. - Pede-me ele, encolhendo-se na poltrona. - Eu não queria ser invasivo.
- Não foi. Tô de boas. Por que eu tô tonta?
- Vinho. Vc bebeu muito.
- E vc não?
- Não. Eu esperei muito por esse momento. Não o estragaria por taças de vinho. - Reviro os olhos enquanto solto o ar dos pulmões pela boca. Apoiando-me na beirada da cama, eu o encaro ao indagar, curiosa.
- Que momento?
- O nosso momento...
- Que porra de momento, Aiden!? Seja específico!
- A nossa dança.
- Nós não temos 'a nossa dança', Aiden!
- Temos sim...- Suspira ele, sorrindo. - Nós acabamos de criar o 'nosso momento'...de novo.
- De novo? Nós dançamos antes!? - Um riso infantil e ele quebra o clima sinistro.
- No teatro, bobinha. Nós dançamos juntos no teatro.
- Aah tá. No teatro. Pensei que viria com um papo insano de outras vidas. Vincenzo é quem gosta desse papo. O cara tem problemas. - Exalo de olhos fechados. - Ele tem uns transtornos bizarros.
- Além de ser burro. - Rindo, concordo.
- Muito burro. Um idiota, filho da puta. Não me toca!
- Calma. Eu só quero ver se a febre cedeu. - Com sua mão pairando sobre minha cabeça, ele pergunta. - Posso?
- Claro. Perdão.
- Eu te entendo. Vc tem medo de mim e seu medo não é infundado.
- Como sabe? - Sua mão em minha testa desliza até a bochecha. Sem desviar meus olhos dos dele, insisto. - Como sabe que tenho medo de vc? E por que diz que meu medo tem fundamento?
- 'My Irish Angel'...- Murmura ele, recuando, de volta à poltrona. Seus olhos brilham enquanto sinto um forte arrepio percorrer o meu corpo. - Sou um estranho. Um irlandês maluco que não te deixa em paz. - Rindo, concordo. - Viu? Isso dá medo, né?
- Dá. Mas eu gosto de vc. Seu sotaque é encantador.
- Muito ou pouco?
- O quê?
- O quanto gosta de mim? - Ruborizo antes de mentir.
- Pouco...
Ficamos em silêncio por segundos até que ele parta a tensão ao desconversar.
- Vc dormiu, Adessa. Enquanto dançávamos, vc dormiu em meus braços. Não se lembra de dançar comigo?
- Disso eu me lembro...- Ruborizo, pela segunda vez, diante de seu olhar incisivo. É sério!? Vc vai continuar a me encarar dessa maneira!? Eu estou carente, tonta...- Para, Aiden.
- Com o quê? Eu só te fiz uma pergunta. Estou preocupado. Vc está febril.
- Deixa rolar. Eu tô bem. Cadê Antoine?
- No quarto ao lado. Não é lá que ela dorme? - Erguendo-me de súbito, fico tonta. Ele me ampara com suas mãos em minhas costas. Seu cheiro de sândalo me faz arfar. - Vc não está bem. Precisa descansar.
- Me deixa andar, Aiden. - Rosno. - Eu não tô doente. - Ele ri enquanto o empurro com a lateral de meu corpo e caminho até a porta do quarto de Antoine. Antes de entrar, observo sua expressão de felicidade e, confusa, meio que afirmo. - Vc gosta de ser empurrado, né? Que esquisito.
- Gosto de ser empurrado por vc. Vc costumava...- Assustada, eu o interrompo.
- Já sei! Eu costumava fazer isso com vc em outra vida! - Com a mão na maçaneta, reviro os olhos e bufo. - Por que eu só conheço homens estranhos? Isso é patético.
- Adessa...
- Shhh. Fala baixo. Ela tá dormindo. - Sussurrando, ordeno. - Tire os sapatos!
- Mas eu não quero...
- Agora! - Cochicho, com os pés descalços. Lentamente, eu caminho pelo quarto. Sorrio para Cassandra que ainda se mantem acordada, com os lindos olhos castanhos vidrados na tela do celular. Gostaria de arrancá-lo de sua mão e alertar: "Cuidado. Algum garoto vai acabar te machucando. Fica longe deles", mas desisto. - Há quanto tempo ela dormiu?
- Faz tempo. Desde que vcs começaram a dançar. - Lanço um olhar desconfiado a Aiden e, contrariada, afirmo.
- Ela estava na sala com a gente. Isso não faz meia hora. Nós jantamos e ela...veio...
- Tia, ela já tá dormindo há horas. Faz um tempão que nós jantamos.
- Impossível!
- Fala baixo. - Alerta Aiden arrastando-me para fora do quarto. - Ela vai acordar.
- Me solta, Aiden. - Estapeio seu braço. Ele volta a sorrir. Irritada, comento num tom baixo. - Eu não quero sair daqui agora. Tem alguma coisa errada.
- Não tem não. - Cochicha ele. - Nós ficamos juntos por um bom tempo. Vc não se lembra.
- Não mesmo! Isso é estranho!
- Cala a boca. - Ralha ele. - Vai acordar sua filha. Vem.
- Não! - Resisto, confusa. - Por que não quer falar com ela? Tem medo? - Uma careta e ele refuta com uma das mãos em meu braço.
- Medo de quê!? De uma criança!? Vamos sair antes que ela acorde! Amanhã ela tem aula!
- Não me diga o que fazer com a minha filha! - Protesto num cochicho. - Vc tem medo. Eu sinto.
- E a sua febre aumentou. - Constata ele. Num rápido movimento, ele me joga em um de seus ombros, como um saco de batatas, prendendo minhas pernas com suas mãos. Rindo, ele parece se divertir com meus socos em suas costas e meus protestos já fora do quarto. Cassandra sorri enquanto fecha a porta. Um sorriso do tipo: "Agora vai rolar". Rolar o quê!? Eu não o amo e, além disso, ele é gay! Merda! O único homem que ainda não me abandonou é gay. Um deus grego e gay...- Se acalma, baby. Onde vc guarda seus remédios?
- Desde quando vc me chama de 'baby'?
- Aaah...faz tempo. - Exala ele, nostálgico.
- Vc pode me colocar no chão, por favor?
- Onde ficam os remédios? Essa febre está alta.
- De cabeça pra baixo, eu vou piorar, idiota! Me solta! - Suas mãos me seguram firme pela cintura enquanto deslizo pelo seu corpo, tocando o chão com a ponta dos dedos dos pés. Estico os dedos das mãos, imaginando-me no palco, sentindo seu coração bater junto ao meu. - Por que tá me olhando desse jeito?
- De que jeito? - Pergunta-me ele encarando-me com seriedade...ou seria desejo? Não. Não é. Não rola. - De que jeito, Adessa?
- Seus lábios são...- Umedeço os meus com a língua, contendo um impulso de provar os dele. Sinto-me queimar por dentro e Aiden não me afasta. Ao contrário. Suas mãos pressionam minhas costas contra seu peito. Estou arfando e desejando seu beijo quando ele pisa em minha autoestima ao indagar.
- Onde estão os remédios?
- Porra! - Xingo sem esconder minha decepção. Um forte empurrão em seu tórax e ele cai de encontro ao piso da sala enquanto, passando por ele, rosno. - Procura vc! Que merda!
- Eu deveria limpar sua boca. - Abrindo as gavetas dos armários da cozinha, esqueço-me do que procuro e volto a observar seus lábios carnudos e vermelhos...e apetitosos. É sério que vc não gosta de mulheres!? Erguendo-se do chão, ele assevera. - Vc fala muito palavrão, mocinha.
- Não sou 'moça' faz tempo. - Comento enquanto observo a água da torneira cair sobre os pratos sujos e empilhados na cuba em inox. - Muito tempo. E quem se importa se eu falo palavrão ou não?
- Eu. - Perco-me em seu olhar profundo e distante, repleto de sentimentos obscuros. - No que pensa, baby?
- Preciso de detergente pra lavar a louça. - Minto, insegura com o roçar de sua mão em meu antebraço. Abrindo gavetas aleatoriamente, exclamo. - Que diabos eu tô procurando!?
- Alguém que te deixe feliz. Alguém que nunca te abandone.
- É...- De frente para ele, apoio-me na pia. Desolada, admito. - Vc tem razão. Mas aquele idiota não gosta de mim. Não me ama de verdade.
- Ele tem outra.
- Não tem não. - Refuto, enraivecida. - Ele me disse que nunca teve nada com Sweet.
- E vc acredita nele?
- Vc pode se afastar um pouquinho? Tá quente aqui.
- É a febre. Onde estão os remédios?
- Porra! Tu me confunde! Eu não sei! - Lavo minhas mãos antes de lavar meu rosto debaixo da torneira aberta. De costas para Aiden, sufoco um soluço. Arregalo meus olhos ao sentir suas mãos em minha cintura. Sem enxugar meu rosto, eu me viro em sua direção. Seu quadril pressiona o meu contra a bancada em mármore. Recuo meu tronco e, num gesto infantil, evito seu olhar enquanto prendo meus cabelos, improvisando um coque. Prestes a entrar em combustão, engulo em seco e, tomando coragem, pergunto. - O que tá rolando aqui? Vc é gay e tá ficando excitado. Eu tô sentindo. Dá pra esclarecer as coisas? Porque eu tô mega confusa e sem jeito. - Sua boca contra a minha sussurra.
- Quem te disse que eu sou gay?
- Sei lá...eu...pensei. - Puta que pariu. Que boca macia...- Vc não é? Sei lá. É tipo...bissexual?
- Não. Baby, olha pra mim. - Pede-me ele com seu dedo em meu queixo. Seu pau roça meu vestido enquanto tento não surtar. - Eu sou homem. O teu homem. Vc não se lembra?
- Aiden...não começa...
- Não vou começar. Prometo. - Diz ele enquanto, vagarosamente, beija partes do meu pescoço. Instintivamente, minha boca procura por seus lábios quentes. Tão quentes quanto a minha pele. - Vc precisa de um antitérmico. - Reviro os olhos e, entre excitada e enfurecida, afirmo.
- Eu preciso de outra coisa...Aiden! - Assusto-me quando suas mãos se apoiam em minha cintura e me erguem do chão. Sentada sobre a pia fria, abro as pernas onde ele se encaixa perfeitamente. - Por que tá fazendo isso? Se não gosta de mim, não me machuca. Eu não suporto mais ser abandonada.
- Não será. - Afirma ele enfurnando seus dedos em meus cabelos, massageando minha cabeça. Emito um longo gemido. Todo meu corpo vibra e relaxa. O som de sua voz rouca me faz lembrar de que ainda sou mulher. - Diz que me quer em sua vida.
- Eu quero. Me beija.
- Diga que posso retornar. - Insiste ele enquanto mordo seu queixo, tocando seus lábios com os meus. - Diga!
- Pode, porra! Me beija!
- My Irish Angel...- Suspira ele encostando sua testa à minha. - Eu não quero te perder.
- Não vai... - Afirmo num gemido.
- Diga com todas as letras! Ele precisa ouvir!
- Ele quem, Aiden!? Eu tô confusa! Dizer o quê, Aiden!?
- Ele precisa ouvir que vc me quer em sua vida.
- Eu não te entendo...- Choramingo de cabeça baixa. - Vc me deseja ou tá brincando com meus sentimentos!? Quer me beijar ou não!?
- É tudo o que mais desejo...há séculos. Séculos se passaram sem que a minha sede fosse saciada. -Estamos tão próximos que sinto seu pau pulsar dentro da calça jeans. - Por que precisa ser assim?
- Para de divagar, por favor. Eu tô aqui, diante de vc e totalmente entregue. A gente não precisa ir adiante. É só um beijo.
- Vc não entende. - Lamenta ele, apoiando as mãos ao lado de minhas pernas. Seu cheiro de floresta se espalha pela cozinha e me inebria. Desanimado, ele confessa. - Se ele não permitir, eu não sei do que serei capaz de fazer. - Perdendo a excitação inicial, indago.
- De quem vc precisa de autorização? E pra quê?
- Eu preciso de permissão pra...- Diz ele, atormentado. Suas mãos frias tocam minhas bochechas. Sinto o choque de temperaturas. Por que seu toque é sempre frio destoando da boca quente e carnuda? - Me perdoa. Eu não posso seguir adiante se não...- Minhas mãos em sua cabeça o forçam a olhar para mim. Seus olhos escuros e marejados me contam alguma história. Uma história da qual não desejo me recordar. Não agora. - Diga que eu posso entrar em sua vida e ser o seu homem...de carne e osso. Quebre a maldição.
- Maldição??? Aiden!!! Isso é ridículo!!! Carne e osso??? - Um sorriso melancólico e ele implora num tom baixo e sofrido.
- Diga...por favor. Eu não quero voltar a ser o que eu já fui.
Num salto, alcanço a porta da cozinha. Amedrontada com o que acabo de ver ao tocar em sua cabeça, ordeno, vacilante.
- Sai da minha casa agora, Aiden. Tenho medo de vc.
- Eu sei...- Assume ele dando um passo à frente. - E deveria mesmo. Eu sou estranho. Já fui brutal com vc. Já fui omisso, ciumento, vingativo...
- Aiden, para! - Alerto em posição de ataque. Segurando uma garrafa de vinho vazia acima de minha cabeça, ameaço. - Se der mais um passo, eu te mato. Juro. - Elevando os braços na defensiva, ele sorri antes de me perguntar.
- Como posso chegar à porta sem caminhar? Se quiser, eu posso voar...- Aterrorizada com seus olhos sombrios, corro até a porta da sala e a escancaro, ruidosamente.
- Sai! - Volto a ordenar, arquejante. - Por que eu tenho tanto de medo de vc!? De onde me conhece, Aiden!? E não me diga que foi no teatro porque eu sinto que te conheço há mais tempo!
- Eu só quero cuidar de vc e de Antoine...novamente.
- Sai, Aiden! - Grito, aos prantos. - Vc estragou tudo!
- Não fui eu. Foi ele.
- Não fala de Vincenzo! Vc não o conhece!
- Se ele não tivesse 'caído', eu a teria feito feliz.
- Que porra é essa de queda!? Todos sabem exceto eu!?
- Pergunte a ele. Ele em a obrigação em te contar.
- Aiden...sai da minha casa e fica longe até eu entender toda essa loucura.
- Se vc disser que posso retornar, estarei livre de um futuro de dor. Diga, meu anjo. Diga. Liberta-me. - Compadecida e movida por súbito e inexplicável remorso, prestes atender seu pedido, ouço a doce voz de Antoine logo atrás de mim. Em seu pijama de borboletinhas, ela adverte num bocejo.
- Ainda não, mamãe.
- Do que tá falando, filha? Por que acordou? - Indago, de joelhos. A voz embargada de Aiden responde à minha pergunta.
- Porque vc gritou. Estamos bem, meu anjo. Pode voltar ao seu quarto.
- Não posso não. - Refuta ela. - Meu tio Miguel diz que tem que ser espon...expon...- Irritada consigo mesma, ela soca a cabecinha com seus punhos fechados. Ajoelhada diante dela, eu a impeço de continuar a se punir e, com ternura, eu a ajudo.
- Espontâneo?
- ISSO! - Exulta ela, dando pulinhos. - Tem que ser espontâneo. O que é isso, mamãe? Pra que essa garrafa? Vcs estão brincando?
- Estamos...- Mente Aiden antes de beijar o topo de sua cabecinha e se despedir. Ele toma a garrafa de minha mão e, beijando-me no rosto, sussurra. - Vc não precisa disso, baby. Eu nunca mais te farei mal. Prometo.
Ele caminha até o corredor onde aguarda pelo elevador. Movida pela curiosidade e pelo remorso, corro em sua direção. Dentro da cabine, ele me sorri. Um sorriso triste que me faz ter compaixão por ele. Desisto de pedir que ele volte ao meu apartamento quando, horrorizada, vejo seu reflexo num dos quatro espelhos da cabine.
- Aiden! Quem é vc!?
A porta se fecha lentamente enquanto o ouço responder num desânimo.
- Alguém que precisa do seu amor para voltar a viver.
- Eu só queria ter uma vida normal! É pedir demais!? Sem fantasmas, demônios, bonecas bizarras...- Bufo. - Sem gente caindo sei lá de onde! Sem a porra de um homem encantador que não me beijou porque precisa de autorização!!! Cacete!!! Será que eu cuspi na cruz de Jesus pra não ter direito a um dia de descanso??? Não ria, Doc!!! O papo é sério!!!
- Eu sei, filha. - Diz ele contendo um outro riso. - Eu te entendo. É muita coisa pra uma pessoa só, né?
- Exatamente!!! - Concordo arregalando os olhos enquanto calço minhas botas de cano longo. De banho tomado, eu me visto após o show, pensando em como comemorar a festa de sete aninhos de Antoine. Meio que histérica, continuo. - Exatamente isso, Doc!!! Eu tô sozinha!!! Quando eu mais preciso de Vincenzo, ele some!!! Tomara que tenha, de fato, caído em algum buraco negro e tenha sido sugado pra outra porra de planeta!!! Caído!!! Caído!!! Eu tô de saco cheio dessa palavra!!!
- Fica calma, filha. Eu estou aqui contigo e não vou te deixar sozinha. - Vestida, eu o abraço e, aos prantos, agradeço. - Te acalma. Muitas coisas boas estão por vir.
- Estão por vir, mas nunca chegam. Eu gostaria de datas, Doc. Eu preciso de datas porque é porrada em cima de porrada...- Rindo, ele me abraça forte e comenta.
- Mesmo sofrendo vc me faz rir. Gosto disso em vc. Não é do tipo que fica se lamentando e se vitimizando. Vc é forte, Adessa. É uma guerreira. Largou a prostituição que te dava um bom dinheiro por amor à sua filha. - Confusa, sussurro contra seu peito.
- Não sei se fiz a coisa certa, Doc. Meu dinheiro tá acabando. As contas estão chegando. A grana que eu ganho aqui é pouca. Como vou sustentar Antoine com tudo o que ela merece?
- Tudo o que ela merece e deseja é estar com vc, filha. O seu amor basta. Pode contar comigo se algo faltar, mas eu tenho a certeza de que vc vai encontrar um caminho. E, quanto ao Vincenzo, ele vai voltar. Eu sei que vai. - Enxugando as lágrimas, eu recuo. Encarando Doc, refuto.
- Não vai não. É hora de eu enxergar a verdade. Ele é maluco. Um puta narcisista que não larga a presa. Assim que outro homem cruzar o meu caminho, ele aparece só pra estragar tudo. Escuta o que eu digo. - Jogando minha mochila nas costas, caminho, de braços dados, ao lado de Doc até a saída do 'California' onde o administrador me aguarda com um semblante indecifrável. Inspiro e expiro profundamente ao observar um envelope branco em sua mão direita. Com a mão livre, ele coça a cabeça num gesto aflito. Contendo meu desespero, indago. - Algum problema?
Doc me ampara com seus braços fortes a fim de que eu não caia no chão. Levo segundos para compreender as palavras que escapam da boca do amante de Sweet. Ainda sem acreditar no que ouço, brinco.
- Isso é uma pegadinha!? Onde estão as câmeras!?
- Me desculpa. - Diz a voz embargada do administrador ao me entregar o envelope com o que ele diz ser mais do que me deve após me informar que estou fora do quadro de funcionárias da boate.
- Repete, cretino!
- É! Despedida! Hoje foi seu último dia como stripper nessa casa! - Confirma ele após meu ataque de histeria.
- Vc não pode!!! Eu só tenho esse trampo!!! Eu tenho uma filha pra criar!!!
- Sinto muito. - Diz o administrador dando-me as costas.
- Adessa não! - Pede-me Doc agarrando-me pela cintura enquanto penso em voar sobre o homem calvo cheirando a charuto vagabundo ao me deixar falando sozinha. - Não vale a pena, filha! Não tem volta!
- Doc... - Exalo antes de despencar contra o piso acarpetado. - Isso é um pesadelo... - Choramingo recostada à parede. Acima de minha cabeça, a placa de 'saída' parece rir de mim. Erguendo-me do chão, ele me leva até a sala onde costumava dançar para clientes especiais.
Desolada, chuto a almofada em forma de boca enquanto penso em Antoine e no que direi a ela quando não puder mais pagar pelo seu colégio ou por sua aula de dança ou pelas bonecas caras com as quais eu a presenteava. Atormentada, sentada no sofá ao lado de Doc, eu o agarro pela cintura e, chorando copiosamente, declaro. - Eu tô acabada, amigo. Acabada. O que eu faço? O que eu faço? Por que ele me despediu? Eu era...eu sou uma ótima bailarina. A plateia estava sempre cheia durante os meus shows. O que eu fiz de errado? - Contendo suas lágrimas, Doc responde.
- Nada. Vc não fez nada de errado, filha. Essas coisas acontecem. São provas pelas quais temos que passar.
- Eu não tenho como sustentar minha filha. - Assumo entre soluços. - Ela não merece isso...
- Nada vai faltar a Antoine ou a vc. Eu te garanto. Vamos dar um jeito nisso. Ok? Olhe pra mim, Adessa. Seja forte. - Abraçando meus joelhos, eu desabafo.
- Eu não quero ser forte. Eu cansei de lutar. Eu só queria viver. Eu juro que eu só queria viver ao lado da minha filha sem pensar em homens, sexo ou qualquer outra porcaria. E agora...- Assoo meu nariz na barra de meu vestido. Jogando-me no colo de Doc, lamento dramaticamente. - Agora eu tô ferrada.
Doc me acalma com suas palavras de conforto. Destruída por dentro, não me importo com o meu exterior. Meu rosto borrado pela maquiagem não me assusta quando me olho nas paredes espelhadas do lugar onde eu fui feliz por um longo tempo. Um lugar onde fora reconhecida com a puta mais bem paga da cidade e a stripper mais quente dentre todas.
Tudo muda.
O tempo todo...
Deixo-me guiar até a calçada, por Doc. Debaixo da chuva fina, fecho os olhos por instantes. Num solavanco, Doc me puxa pelo braço na direção contrária ao meu carro.- Eu te levo. Vc não tem condições de dirigir.
- Doc! - Protesto tentando não tropeçar. - Vc mora do lado oposto da cidade! Não faz sentido! Por que tá com medo!?
- Eu não estou. - Mente ele com os grandes olhos arregalados. - Venha. Eu vou te levar.
- Doc! Vc tá estranho! - Grito sob os pingos da chuva que se intensificam. Ele para de me arrastar, mantendo a mão em meu braço. Olho ao redor e, então, entendo o seu pavor. - Filha da puta! - Sob os protestos de Doc, corro em direção ao carro de Sweet. Em completo desequilíbrio, cerro os punhos e soco a janela do motorista coberta com película automotiva acima dos limites estabelecidos pela lei. Reconheço seu novo carro, portanto, suponho que ela esteja ao volante. - Abre a porta, cretina! - Grito sem parar de socar o vidro, com os punhos já doloridos. - ABRE!!! FOI VC!!! - Acuso enquanto circulo o carro com as luzes internas apagadas. - VC ME TIROU DO 'CALIFORNIA'! POR QUE FEZ ISSO!? EU TE COLOQUEI AQUI! EU TENHO UMA FILHA PRA SUSTENTAR! - Diante de sua covardia, tomada por uma fúria incontrolável, empurro Doc com a lateral de meu corpo e, catando um pedregulho, com muito esforço, no asfalto molhado, eu o atiro em direção ao vidro dianteiro. Vibro com a pequena rachadura causada pelo impacto. Doc, incansável, me impede de prosseguir com minha medíocre vingança ao me abraçar com força, detendo meus braços. Grito, esperneio, choro até me cansar. Então eu a vejo abrir a porta do motorista. Seus saltos altos tocam o asfalto molhado. O irritante som de seu caminhar de puta me faz rosnar nos braços de Doc que sussurra um "Aguenta firme, filha" em meus ouvidos.
- Que merda vc fez no meu carro? - Pergunta-me ela, incrédula. - O que eu te fiz?
- Vc me ferrou. Confessa.
- Do que tá falando!? Vc tá louca!? - Sem batom, vestida em um tubo preto, os cabelos desleixados, ela aparenta ter deixado algum cliente no banco do carona à espera de sua boca em seu pau imundo. VAGABUNDA! - Fala comigo! O que houve!?
- Vc me ferrou. - Minha voz embarga ao me recordar do dia em que eu a livrei de seu cafetão e a trouxera ao California. Deslealdade dói. - Vc e seu amante nojento me ferraram. Eu me lembro da conversa. Eu ouvi vcs dois falando de mim. Vc exigiu que ele me demitisse e ele te obedeceu, Sweet. Ele obedeceu...- Choro pendurada nos braços de Doc ao redor de minha cintura. Minha cabeça pende para baixo enquanto continuo a acusar, sem forças. - Eu ouvi, Sweet. Vc pediu...exigiu que fizesse algo comigo. Algo justo e, se ele não te obedecesse, nunca mais tocaria em vc, sua puta. Por quê? O que eu te fiz? Vc não se lembrou de Antoine? Eu nunca faria mal às tuas filhas...Sweet. Vc disse que seríamos amigas.
- E somos! - Defende-se ela. Doc rompe seu silêncio ao contestar.
- Amigas não fazem isso.
- Eu não fiz nada! Eu juro! Eu amo Antoine! Eu não faria mal a ela!
- Cala a boca, cachorra! - Ordeno ainda presa pelos braços de Doc. Sweet, encharcada, se mantem diante de mim, com os olhos estatelados enquanto prossigo, descontrolada. - Não toca no nome da minha filha! Limpa a tua boca suja antes de pensar em pronunciar o nome da minha filha! Como vc trocou de carro!? Com que grana!? Foi a grana que ganhou pela minha cabeça!?
- Cala a boca, puta burra! - Exclama ela, exaltada. - Eu pedi por um aumento em seu salário, idiota! Um salário justo! Foi isso o que ouviu, amiga! Foi isso! Olha para mim...- Ergo meus olhos devastados pelas lágrimas e a encaro. Pela primeira vez, enxergo sinceridade em seu olhar. Pela primeira vez, sinto vontade de ser abraçada por ela e chorar em seus braços e confessar que a invejo por ser mais jovem do que eu. Por ter um corpo perfeito. Por levar a vida sem culpas. Doc, percebendo minhas intenções, me liberta de seus braços quando, num arroubo de credulidade, pergunto com a garganta em brasa.
- Foi isso mesmo? Vc fez isso por mim?
- Fiz. - Assume ela, entre soluços. - Eu disse a ele que se vc saísse daqui, eu sairia também. Foi isso o que vc ouviu, amiga. Eu jamais te trairia. Vc me deu apoio quando eu mais precisava. Eu nunca vou me esquecer disso. - Estou prestes a abraçar Sweet e selar nossa amizade para sempre quando ouço a porta do carona se abrir, lentamente. Num tom de lamento, Doc deixa escapar um 'puta merda'. Afasto-me de Sweet, cambaleando. Sem acreditar no que vejo, sigo em sua direção. Antes de ouvir sua voz doce e mais uma de suas muitas mentiras, cerro meu pulso direito e atinjo seu Pomo-de-Adão que tanto amo, com um forte soco. Estendido e inerte no chão sob as gotas da chuva, eu o deixo. Doc e Sweet o socorrem enquanto caminho sem direção. Meu coração em pedaços dói quando murmuro.
- Foi vc quem me ensinou, Vincenzo.
Sem saber como, chego ao meu apartamento. Luto contra a fechadura até que Cassandra abra a porta e, assustada, pergunte.
- O que aconteceu, tia!? Vc tá toda molhada! Não veio de carro?
- Não. Eu...me esqueci...- Respondo num fio de voz. - Antoine. Onde tá a minha filha?
- Aqui! - Surge ela, radiante e confiante em um futuro melhor. Um futuro que não poderei dar a ela. Abrindo os bracinhos, ela espera por meu abraço. Caio de joelhos e, vencida, me deixo abraçar por ela. Um profundo alívio nasce de seu abraço. Um fio de esperança me faz sorrir e chorar agarrada a ela. - Mamãe, não chora. Vai dar tudo certo. Meu tio me disse isso hoje.
- E o que ele disse? - Enxugando minhas lágrimas, ela aconselha.
- Acredite em milagres. Eles existem.
- Eu sei. - Forço um sorriso. - Vc é um deles, filha.
- A senhora precisa de um banho. Eu vou preparar a banheira. Depois do banho, a gente pode comer uma pizza?
- Não sei, filha. Daqui pra frente, vamos ter que mudar algumas coisas. - Reviro os olhos e, num riso curto, assumo . -Tá. Ok. Eu tô exagerando um pouco.
- Meu tio disse que vai trazer duas! - Exulta ela.
- Tio!? Que Tio!?
- Eu escolhi os sabores. Uma de muçarela pra senhora e outra de calabreza pra mim e pra Cassandra.
- Antoine! Que tio foi esse?
- Tio Aiden, ué. Ele disse que vai cuidar da gente até a senhora resolver tudo.
- E, como ele sabe do que me aconteceu? Vc sabe de algo?
- Eu não, ué! Só sei que vou te dar um banho antes que ele chegue! Vem, mãe! - Sem forças para lutar, deixo-me levar pelo pequeno anjo que habita em minha casa. Submersa na banheira, eu me esqueço de tudo o que virá pela frente e me concentro no que ainda tenho. Beijo o rostinho de minha filha enquanto ela ensaboa meus cabelos. Ouço o toque insistente no celular. Cubro meus olhos com uma toalha de rosto umedecida, recostando minha nuca na banheira em 'mármore diamante'. Outro luxo do qual devo me desfazer. Merda. Não vou atender. Não quero atender e mergulhar nos problemas. Antoine atende. Sempre alegre, ela conversa com seu tio Doc. - Ela não quer falar com ninguém, tio. Tá dodói. Tá bom. Eu aviso. Ele morreu?
- Quem morreu!? Jesus não! - Arrependida por meu ato impulsivo, estico o braço a fim de tomar meu celular das mãos de minha filha. Antoine recua. Fazendo biquinho, ela me ignora. - Aaah! Tá! Não morreu! - Suspiro aliviada. De volta à banheira, mergulho a cabeça, fugindo dos problemas...sem êxito. - Morreu ou não morreu, tio Doc!? Assim fica difícil! - Volto à superfície, enrolando-me na toalha. - Calma, mãe! - Pede-me Antoine, irritada, ao celular. - Eu tô conversando com meu tio!
- Me dá o telefone, filha!
- Não! Continua, tio! - Bufo, sentando-me na tampa da privada, rezando para que eu não o tenha matado. Eu não posso...eu não vou conseguir viver sem ele. - Aaaah tá! Entendi! Seu amigo tá vivo e o golpe não foi mortal! Que golpe, tio!? E o que é 'mortal'!? É tipo aquele jogo 'Mortal Kombat'? Gosto não.
- Antoine! - Esbravejo. - Deixa eu falar com ele!
- Ok. - Prossegue ela, revirando os olhinhos. Como alguém tão nova pode ser tão segura de si? Como eu vou te sustentar sem grana, filha? Como eu vou sobreviver sem aquele cretino? - Sim. Entendi, tio. Eu falo pra ela. Deixa comigo. Aaah tá. - Rindo, ela se despede. - Eu também te amo, tio. Vou desligar. Mamãe precisa de mim. Beijos.
- Não desliga! - Aviso tarde demais. Com um sorriso matreiro e um ar de triunfo, ela toca no ícone em vermelho. - Eu queria falar com ele...
- Não precisa, mãe. - Diz ela, arremessando meu celular dentro do cesto de roupas sujas. - Seu cabelo vai ficar duro sem o condicionador. Volta já já pra banheira. - Desnorteada, eu a obedeço. De volta à água ainda morna, ela massageia meu couro cabeludo com suas mãozinhas delicadas. De olhos fechados, eu engulo em seco antes de ordenar, suavemente.
- Fala tudo o que seu tio Doc te disse.
- Uma coisa estranha...tipo...'seu golpe não foi mortal. Ele ainda vive e ainda te ama'. Quem, mãe?
- Ninguém, filha. - Um outro suspiro e, abrindo um sorriso patético, deixo-me afundar na banheira e ouvir o som do silêncio.
Eu me odeio por ainda esperar algo de Vincenzo.
Diante do espelho, eu me visto com o pijama de borboletinhas. O mesmo que Antoine veste. Não vou me deixar abater antes da tempestade chegar. Não mesmo. Decidida, calço minhas pantufas de ursinho, pensando no quão estúpida eu fui ao gastar tanto com frivolidades. Do quarto, eu ouço seus risos eufóricos após o toque da campainha. AIDEN??? Meu coração ribomba no peito ao me recordar da figura sinistra que vira no elevador. Aiden não é humano. Sei lá. Será que eu vi o que creio ter visto?
- ANTOINE! - Grito do quarto. - NÃO DEIXA ELE ENTRAR!
- JÁ ERA! - Grita ela, empolgada. - ELE JÁ ENTROU E TROUXE PIZZA!!! WOOHOO!!!
Corro pelo corredor que parece se alongar à medida em que chego ao seu final. Estaco diante da porta da sala. Com uma das mãos, ele segura a maçaneta. A outra, gira a chave na fechadura. A porta se fecha. Meu queixo cai. De costas para mim, ele argumenta com sua voz mais rouca do que o normal.
- Isso é pra garantir que ninguém estrague a nossa festa. - Fechando o trinco na altura de seus olhos, ele meio que rosna. - Ninguém mais entra ou sai desse apartamento hoje.
- E o tio Aiden!? Ele vai chegar com mais pizza!
- Sério? - Graceja ele, com ternura. De joelhos, ele indaga. - E quem vai segurar tantas pizzas assim?
- Eu!!! - Grita Antoine, eufórica. Com a cabeça coberta pelas caixas, ela avisa. - Sai da frente, mamãe!!! Não tô vendo nada!!! - Eu a deixo levar as pizzas até a cozinha enquanto o confronto num tom baixo.
- O que faz aqui?
- Retribuindo sua gentileza. - Diz Vincenzo apontando o indicador ao seu pescoço. - Ainda dói. Sabia?
- Deveria ter morrido. - Rosno. - Sai da minha casa agora e volta pra vagabunda da Sweet.
- Eu não tenho nada a ver com ela, merda. - Rosna ele de volta. - Vc é louca? Quase me matou. - Rindo, ele comenta. - Vc nasceu pra lutar.
- É o que faço desde que nasci e é o que farei se não sair daqui agora.
- É o que vc deseja? De verdade?
- Para. - Cochicho. - Não ouse me olhar desse jeito. Sabe que eu não...
- Tio, vamos comer! Eu tô com fome! Muita fome! - Avisa Antoine puxando-o pela barra da blusa suja e úmida. - Eca! De onde vc veio!? Tá tudo sujo atrás!
- Uma louca me atacou na rua, pirralha. - Voltando seus olhos a mim, ele comenta. - Ela era louca e linda. - Engulo um riso enquanto penso no quanto ele deve ter rolado naquele chão imundo onde o deixei. Bem feito.
- Mamãe! Acorda!
- A culpa é sua. - Diz ele ao passar por mim, em direção à mesa na sala de jantar. Sem cerimônia, ele retira a blusa e a joga contra mim. Seu cheiro de maçã verde invade minhas narinas, olhos, ouvidos...cérebro. - Vc ainda guarda alguma camisa minha aqui?
- Sim. - Respondo num arquejo. - No meu...
- Eu sei onde fica. - Afirma ele mostrando-me suas covinhas, os dentes pontiagudos. - Eu não me esqueci de nada, Dess.
- Só de mim...
- Nunca.
- Ei, vcs dois!!! - Retruca Antoine, sentada à mesa. - Senta! Vai esfriar!
- 'Sentem'. - Corrijo-a a caminho do quarto. - Somos dois, filha. - Cassandra, ao seu lado, acena para mim enquanto solta um: "Fica tranquila, tia. Eu fico com ela aqui na sala!". É sério? Ela deve pensar que sou uma devoradora de homens e eu estou 'na seca' há séculos! - Fica aí, Vincenzo! - Seguindo-me, ele refuta.
- Séculos não. Há pouco mais de um mês, nós dois...
- Sério? Eu nem me lembro. Fique onde está. - Alerto com a mão espalmada em seu peitoral nu. Em meio ao corredor, assevero. - Eu não te convidei pra entrar no meu quarto. Já volto. E, quando eu voltar, vc vai me contar que porra de história é essa de 'cair'. Entendeu?
- Sim, senhora. - Brinca ele, elevando os braços na defensiva. - Outro golpe daquele eu não aguento.
Sorrio de seu sorriso cafajeste sentindo-me ridícula, fácil, estúpida.
- Eu mereço sofrer...- Digo a mim mesma com uma de suas camisas na mão. Eu as guardo em uma gaveta especial, junto ao seu perfume cítrico. - Eu te disse pra não chegar perto de mim...
- Não consigo. - Confessa ele, empurrando a porta do meu quarto com um dos pés. - Saudades...- Ronrona ele em minha nuca.
- Eu também...
Entrego-me ao seu beijo roubado, quente, molhado. Minha mão trêmula deixa sua camisa cair sobre o tapete felpudo do quarto enquanto nossas línguas se enroscam, nossos braços se atrapalham em busca de nossos corpos. Meus dedos se enfurnam em seus cabelos, puxando-os pela raiz. Ele emite um gemido de dor. Sorrindo, digo contra sua boca semiaberta.
- Vc merece sofrer muito mais, idiota. Por que me deixou?
- Eu não te deixei. - Refuta ele, antes de me beijar novamente. Salto em seu colo, enroscando sua cintura com minhas pernas, enquanto ele me pressiona contra a parede. - Eu disse que voltaria, pateta. Comprou o vestido?
- Que vestido?
- O de noiva, idiota.
- Sério??? - Exultante, beijo cada parte de seu rosto. Excitado e feliz, ele enfia sua língua em minha orelha. Emito um gemido de prazer enquanto puxo os fios de seus cabelos. Com as mãos em minhas pernas, ele me sustenta no ar. Nossos corpos não se desgrudam até que eu o empurre e, subitamente, lembre-me de Antoine.
- Cassandra tá com ela. - Esclarece-me ele beijando meu pescoço. Retribuo seus beijos, demorando-me em seu Pomo-de-Adão. - Beija mais. Ele sofreu muito hoje. - Solto um riso inconveniente. Ele mata meu riso com seu beijo afobado. Prestes a ser jogada contra a minha cama, ouço o som da campainha berrar de ansiedade. - Puta que pariu...
- Será o Doc? - Pergunto, arfando. De volta ao chão, ajeito os cabelos desgrenhados enquanto caminho, descalça, até a porta, ainda pulsando de desejo. - Por que ele viria?
- Não é ele. - Afirma Vincenzo, num desânimo, logo atrás de mim. - Não o deixe entrar, por favor.
- Ele quem? - Antoine me antecede e, pela brecha entre o batente e a porta, ela exclama, inocentemente.
- Tio Aiden!!! Mais pizza??? - De joelhos, do lado de fora do apartamento, ele responde, com doçura.
- Sim. Um festival de pizzas. Que tal? Abra a porta, meu anjo.
- Não! - Protesto tomando-a em meu colo. - Aiden, eu te pedi pra não voltar até que...
- Eu preciso falar com vc. Abre a porta.
- Não dê permissão pra que ele volte à sua vida, Dess.
- Voltar à minha vida??? Como assim??? - Encaro Vincenzo, incrédula. - Ele só quer comer pizza com Antoine!!!
- Não, Dess. Vc ainda não entendeu?
- Não dê ouvidos a ele, meu anjo. Deixa-me entrar.
- Que papo louco! - Vocifera Cassandra. - Isso parece coisa de filme de terror! Tipo...só vampiros pedem permissão pra entrar na tua casa!
- Vampiros e demônios. - Esclarece Vincenzo num tom sinistro. Aiden se enfurece ao declarar, entre a brecha.
- Vampiros, demônios e Anjos Caídos!
- Uau! Isso é surreal! - Vibra Cassandra. Antoine, em meu colo, pede, compadecida.
- Deixa ele entrar, mãe. - Vincenzo a toma de mim e, beijando sua bochecha, diz com a voz embargada.
- Um outro dia, pirralha. Hoje não. Ok?
- Por que tem pena dele!?
- É uma longa história. - Responde-me Vincenzo, recuando com Antoine em seu colo. - Não o deixe entrar...por favor.
Um forte empurrão com a lateral de seu corpo contra a porta e Aiden deixa cair as caixas com as pizzas no chão do corredor. Recuo, assustada, batendo com a cabeça na parede. Vincenzo protege Antoine. Aiden, ainda do lado de fora, se afasta, sorrindo. Grito quando ele corre em minha direção. Num arroubo de coragem, antes de ter minha porta destroçada, eu a tranco à chave. Vincenzo, Antoine e Cassandra me observam, atônitos. Ainda recostada à porta trancada, ouço, através da madeira, Aiden se desculpar e prometer com a voz abafada.
- Eu nunca mais vou te machucar. Eu juro.
- Ok, Aiden. Vai. - Murmuro, de olhos fechados. Vou escorregando até o chão enquanto o ouço sussurrar, num tom de ameaça.
- Eu vou, mas eu volto. Quando vc souber quem ele é, de verdade, vai precisar de mim...baby.
Cassandra, impressionada, leva Antoine até o banheiro alegando que suas mãos estavam sujas. Vincenzo me ergue do chão e me leva em seus braços até sofá. Ele retorna da cozinha com uma bolsa de gelo e a apoia na parte posterior de minha cabeça. Antoine retorna à sala dizendo-se faminta. Cassandra e Antoine, sentadas à mesa, saboreiam as pizzas enquanto permaneço inerte e muda, com os olhos fixos em Vincenzo. Cassandra, Antoine e Vincenzo conversam entre si até que não sobre pedaço algum das duas pizzas.
- Escove os dentes. - Peço a Antoine, beijando-a no rosto. - Não se esqueça de rezar, filha.
- E as pizzas do tio Aiden!? Deixa eu pegar!
- Não! - Desespero-me com a possibilidade de que ele ainda esteja no corredor. Antoine choraminga.
- Tadinho do tio, mãe. Ele trouxe pro festival. - Comovida, eu sigo até a porta e, antes de abri-la, Vincenzo me protege com seu corpo e me convence.
- Melhor que eu abra. Ele já não está aqui.
- Como sabe?
- Eu sinto. - Num rápido movimento, ele resgata as pizzas para a alegria de Antoine que pula em seu colo.
- Valeu, tio. Te amo. - Emocionado, ele se deixa beijar por ela que nos surpreende ao perguntar. - Posso te chamar de pai? Eu ainda não tenho um. - Assentindo com a cabeça, ele gagueja ao responder.
- Po pode.
- Putz! - Cassandra rompe o clima emotivo. - Que noite foi essa!?
- É...- Concordo, perplexa e imóvel.
- Pode deixar, tia. Eu cuido dela. - Diz Cassandra levando-a de volta ao quarto. Meio que assustada, ela indaga. - Vai dar tudo certo, né?
- Sim. - Assente Vincenzo. - Durmam com Deus.
Antoine abraça Vincenzo com força. Vincenzo, de olhos fechados, sussurra um: "Te amo, filha. Não vou deixar que nada de mau te aconteça."
As duas somem ao fecharem a porta do quarto. Diante dele, na sala vazia, eu o confronto.
- O que Aiden quis dizer com 'quem vc é de verdade'?
- Eu vou contar.
- Conte agora ou saia da minha vida pra sempre.
- Eu 'caí' por vc.
- Disso eu já sei. Caiu de onde? Do céu?
- Não. De um lugar mais sombrio. Dess, a história é longa e triste.
- Tenho todo o tempo do mundo pra te escutar. A menos que queira me perder e se afastar de minha filha.
- Ok. Então, prepare-se. Deixe para trás tudo o que aprendeu. Tudo aquilo em que acredita como verdade e apenas me ouça. Eu não sou mau. Eu só queria lutar uma luta justa, mas fui enganado.
- Por quem?
- Por um anjo caído com mais poderes do que eu. - Abraçando-me com força, ele compreende o meu medo e, tentando amenizar a tensão, confessa. - Eu 'caí' por vc e por vc, eu cairia mil vezes. Em vc, eu enxerguei a minha paz e redenção.
- Para de me enrolar e conta logo. - Inspirando profundamente, ele pergunta.
- Preparada?
- Não...
Sentada no sofá da sala, cruzo minhas pernas e me disponho a ouvi-lo, porém, jamais poderia imaginar o que seria dito naquela noite. Sentando-se ao meu lado, Vincenzo, relutante, narra a sua história.
A sua versão da História onde conta, com um olhar distante, seu relacionamento com o seu Criador. Ele fora criado puro e inocente e seu dever seria o de orientar a Humanidade prestes a ser criada.
Um anjo ele diz ser.
Um Anjo Bom. Benevolente e obediente às ordens d'Aquele que o criou. Essa obediência fora testada a partir da criação dos Homens que passaram a tomar mais tempo de seu Pai.
Enciumado por ser preterido, ele deixara brechas para que seu melhor amigo, o primeiro anjo a ser criado, o convencesse de que a Humanidade deveria ser extinta. Pouco a pouco, as ideias subversivas de seu amigo foram tomando espaço em seu coração puro. Seu grande amigo escondia uma verdade sombria.
"Humanos são cheios de defeitos e recebem mais cuidados do que nós, anjos criados à Sua Imagem! É hora de nos rebelarmos e lutarmos pelos nossos direitos! Os Homens são dotados de livre arbítrio enquanto nós somos obrigados a cumprir ordens!", alegava o subversivo.
Longe de desejar lutar contra seu Pai, o Bom Anjo se negara a se juntar à legião de anjos rebeldes coordenada pelo anjo contestador. Dizia querer somente conversar com seu Criador e esclarecer alguns pontos que já os distanciavam. Movido por um sentimento obscuro, o líder da rebelião fora se mostrando cruel ao lidar com os habitantes da Terra. O Bom Anjo, a fim de não confrontar seu melhor amigo, fingia não enxergar maldade nele.
Em uma das incursões à Terra, sob as ordens de Arcanjos, seres superiores aos anjos, ele a conheceu. Acostumados ao contato físico com as mulheres dos vilarejos, o Bom Anjo a perseguira. Ela, dele fugia por não desejar ter em seu ventre a semente de um anjo.
Engravidar mulheres era algo bastante comum entre anjos. Seus filhos, dotados de grandes poderes, eram alvos do anjo rebelde e de seus seguidores. Eles os matavam por pura inveja.
"Não vou permitir que te façam mal", dissera o Bom Anjo à crédula mulher antes de se deixar fecundar.
Ligada à Magia, a mulher possuía o poder de prever o futuro. Com apenas um toque, ela conhecia as intenções dos que dela se aproximavam. Escondera a gravidez do Bom Anjo por temer pela vida de seu filho. No entanto, enxergando bondade e amor em seu coração, a mulher, nos braços do Bom Anjo, dormia em paz. O Bom Anjo, apaixonado, convencido por ela, a não lutar contra seu Pai, retornara ao Céu, temendo perder o amor da jovem iludida. Dividindo seu segredo com o anjo rebelde, selara seus destinos.
A mulher já o havia alertado quanto às intenções de seu amigo, no entanto, o Bom Anjo, tarde demais, acreditara em suas palavras. Mostrando-se enfurecido e traído, o Anjo Mau, enfim, deixara sua máscara cair. Jurou vingança contra ele e a mulher amada.
"Esse filho não haverá de nascer", profetizara o Anjo Mau.
Desorientado, o Bom Anjo pedira para descer à Terra. Com sua autorização negada, ele se revoltara contra o Arcanjo dos olhos metálicos.
"Ela precisa de mim!", gritara ele preso aos grilhões incandescentes que o impediam de se mover. Esse era o castigo usado contra aqueles que se negavam a cumprir as ordens do Alto. Cabia a ele apenas esperar que o tempo passasse.
E o Tempo passou.
Sob a falsa acusação de adorar um deus maligno, a mãe do filho do Bom Anjo fora expulsa de sua aldeia. Reclusa, sozinha e prestes a dar a luz, ela ainda o esperava. Esperava pelo retorno do Bom Anjo, aprisionado.
A rebelião se dera no mesmo dia em que o Bom Anjo fora liberto. Misturando-se aos rebelados, ele fora, injustamente, confundido com um deles. Expulso do Paraíso, atormentado, sem temer a punição, ele a procura. Diante do que restara da casa de sua amada, incendiada pela população do vilarejo, ele se ajoelha e chora a sua perda. A mão do Anjo Mau pousa em seu ombro ao propor.
"Junte-se a mim e teremos o mundo aos nossos pés".
Negando-se a olhar nos olhos faiscantes daquele que fora o primeiro anjo a ser criado, o Bom Anjo o repele com repulsa. Gargalhando, o Anjo mau se afasta prometendo se vingar. Vagando pelos aldeões, o Bom Anjo ainda procura por seu corpo sem vida. É quando ele a ouve pela última vez.
Amargurada, sempre à espera do pai de seu filho, soubera da rebelião. A ideia de que o Bom Anjo havia morrido durante a batalha minara sua vontade em viver e lutar.
"Tens certeza disso?", perguntara a crédula mulher ao Anjo Mau. Mostrando-se extremamente triste, ele mantem a mentira, incitando-a a partir em busca de seu grande amor.
"Do outro lado, ele te espera", sussurra o Anjo Mau ao lado da mulher com o filho em seu ventre. "Pula. Não vai doer. Eu prometo".
Em seus últimos momentos na Terra, ela jurou jamais acreditar no Criador e em Sua Bondade. Encorajada pelo Anjo Mau, ela se joga do penhasco segundos após a chegada do Bom Anjo que, num desespero, mergulha no penhasco sob os protestos do Anjo Mau.
O horror no rosto da mulher amada ficaria impresso para sempre em sua memória. Seus dedos ainda se tocam antes do impacto mortal. Com o corpo sem vida da mãe de seu filho, em seus braços, o Bom Anjo, enfim, compreende tudo. Toda a trama traçada pelo Anjo Mau que o desejava, secretamente.
"Tenha piedade de sua alma", suplica o Bom Anjo ao Arcanjo que descera à Terra. "Ela pecou por mim. Eu fui o culpado".
Tomando a mulher, com o filho sagrado, em seus braços, o Arcanjo, de olhos metálicos, ruge contra o Anjo Mau e a leva consigo.
"O Nosso Pai te perdoou. Volta comigo", dissera o Arcanjo antes de voar aos Céus diante da recusa do Bom Anjo.
"Permanecerei na Terra até reencontrá-la. Eu a amo"
Séculos de dor e solidão se passariam até que, enfim, o Bom Anjo a encontraria.
- Foi por vc que eu 'caí', Dess. Fala alguma coisa.
Em choque, aos prantos, murmuro.
- Não consigo...
Levo um bom tempo a fim de parar de chorar e, enfim, dizer algo a Vincenzo que me observa em silêncio.
- Digamos que eu acredite nessa história absurda. Por que teu Deus não te ajuda a se livrar do anjo mau? Ele não é justo?
- O nosso Deus é justo, Dess. Vc precisa acreditar n'Ele. Se eu estou aqui é porque ele é justo. Ele sabe o quanto eu te amo e o quão boa vc é.
- Para de palhaçada porque eu sou ruim pra cacete! Vc conhece meu passado!
- Conheço e nunca enxerguei maldade em vc. Foi por necessidade e falta de orientação.
- Onde vc estava que não me impediu de me prostituir e adoecer!? Por que teu Deus não me orientou!?
- Ele estava contigo! Vc não O ouviu! E eu estava te procurando! Acha que é fácil te encontrar dentre mais de oito bilhões de pessoas!?
- Não me olha assim. Vc já não é o Vincenzo que eu conheço...
- Sou sim, amor. - Diz ele com um olhar lânguido. - Eu sou aquele que sempre te amou. O mesmo de sempre.
- O narcisista de sempre. - Revirando os olhos, ele me corrige.
- Meu transtorno não é o Narcisismo.
- Aaah...é! Seu transtorno é gostar de espancar mulheres! - Ele desliza no sofá, em minha direção. Pressionando suas mãos em minhas têmporas, ele pergunta com seriedade.
- Alguma vez eu já te machuquei?
- Fisicamente não...- Resmungo. - Vc me tortura e algo me diz que sempre fez isso. A panaca que pulou do penhasco deve ter sentido a força da tua mão.
- Nunca. Ela carregava um filho meu.
- EU NÃO QUERO SABER DISSO!
- Boba. Não fica com ciúmes. Era vc. - Solto o ar pela boca, afastando-o com minhas mãos. - Dess...
- Então eu era meio que uma pitonisa? - Gargalhando, ele joga a cabeça para trás e eu quase volto a enxergar o meu Vincenzo de sempre. - Como foi parar naquela sala imunda na noite em que me...violentaram?
- Ouvi seus gritos. - Confessa ele, baixando a cabeça. - Gritos e preces por socorro são mais audíveis aos ouvidos dos anjos.
- Eu não cumpri minha promessa.
- Qual?
- Eu acredito em Algo Maior e Antoine tem me ensinado a amar o Crucificado.
- Jesus?
- Não. Nóe. Ora! Me poupa! Não ria! É sério! - Abrindo um sorriso, comento. - Só ela pra me mostrar o lado bom da vida. - Engulo o sorriso e resmungo. - Mesmo que não haja lado bom. Saiba que eu ainda não acredito na tua história. Qualquer um que tenha lido a Bíblia poderia ter contado a mesma história. Exceto a parte em que nós dois...vc e eu...a casa queimada, etc. Isso vc inventou.
- É a verdade, Dess. Vc me pediu pra te contar a verdade. Eu tô contando.
- O que isso tem a ver com a nossa vida atual? Por que vc sempre me abandona?
- Eu preciso despistá-lo.
- Ele quem?
- Meu inimigo. Vc o conhece.
- Aiden???
- Não. Aiden não gosta de mim, mas tem os seus motivos.
- Quais???
- Não posso falar.
- Vincenzo!!!
- O 'Tio Lu', Dess! O 'Tio Lu' é o nosso foco!
- O meu foco é te tirar do meu sofá e fechar a porta da sala na tua cara! Esse é o meu foco! Vc é mais louco do que eu imaginava, Vincenzo! Some daqui!
- Dess...- Sussurra ele, num desespero. - Vc precisa acreditar em mim. Ele não vai parar até conseguir.
- Conseguir o quê!? Do que tá falando!?
- Vc não ouviu a história!? O que o Anjo Mau fazia aos filhos de humanas com os anjos!?
- Eu não acredito em uma letra da tua história! Some já daqui! - Grito, angustiada, porque acabo de tocar em seu peito e as imagens de asas gigantescas reluzem em minha mente como um outdoor na 'Times Square'. - Sai, Vincenzo!
- Eu sei que tá nervosa. Eu não deveria ter contado. - Retomando o pouco do meu equilíbrio emocional, argumento.
- Se vc é a porra de um anjo, deve ser eterno...
- Sim. Até que...
- Corta o suspense, Vincenzo! Até que o quê!?
- Até fecundar uma mulher e o fruto desse relacionamento se torne carne.
- Tá!!! Traduzindo!!! Se vc tiver um filho e ele sobreviver, tu pode morrer!!!
- Sim.
- Tipo...ele nasce e tu morre???
- Não, imbecil! Ele nasce e, se alguém enfiar a porra de uma faca no meu coração, eu posso morrer!
- Isso é patético! Quem vai enfiar uma faca no teu coração justo quando nosso filho nascer!?
- Hipoteticamente, idiota! - Um sorriso cafajeste e ele comenta. - Gostei. "Nosso filho".
- Bastardo...
- Vc é linda...
- Putz. Então...se os nossos dois filhos tivessem nascido, vc teria algo a perder...
- Tira isso da cabeça, Dess! Eu te proíbo de pensar que eu poderia fazer mal ao fruto do nosso amor!
- Que amor, Vincenzo!? Desde quando tu me ama!? Tu já me largou por diversas vezes!
- Foi pra ele não te encontrar, estúpida! - Rosna ele, impaciente. - Tenta entender o que eu tô tentando explicar! Se o anjo mau souber que existe um fruto de nosso relacionamento, ele vai se vingar! Ele jurou vingança pela eternidade!
- Ele é eterno e imortal e vc não! Vcs não foram criados juntos!?
- Ele foi o primeiro. Criado à imagem do Pai. É diferente de todos. - Solto um riso histérico, contendo meu pavor crescente. - Tem grandes poderes.
- Maiores que os seus?
- Eu os perdi quando 'caí'. Só me restou a telepatia.
- Caiu mal pra cacete!
- Não ria de mim, Dess. Meu único erro foi ter confiado nele. Vc não faz ideia do quanto eu te procurei...
- E quando me encontra é só pra me ferrar!!!
- Não! - Diz ele sorrindo. Um de seus sorrisos tímidos. - Eu sei que te faço mal, mas eu te amo, Dess.
- Então trata de não amar. Seu amor dói. Eu não quero um anjo. Quero um homem que esteja comigo sempre. Que me dê apoio...suporte. By the way, de onde vem a tua grana!? Como vive aqui na Terra !? Como paga as contas da tua casa na praia!?
- Porra, Dess. Eu sou anjo. Não um vagabundo. Eu trabalho. Vc sabe. No ringue. E eu herdei uma pequena fortuna de um grande amigo que morreu em meus braços. Eu sei como lidar com dinheiro. Com tanto tempo de sobra, eu tenho que aprender alguma coisa, né?
- Por que não o salvou!?
- Eu não sou Deus! Eu sou a porra de um anjo ferrado!
- Sendo um anjo, vc deveria ter sido mais misericordioso comigo!
- Eu sou, Dess!
- Vc carregou a vaca da Sweet até um quarto no 'Moulin Rouge' e fechou a porta na minha cara! Vcs passaram a noite juntos dentro do quarto! O que tem de misericordioso nisso!?
- Eu sou um anjo! Não um robô! Tenho sentimentos! Quando eu te reencontrei, vc era uma garota de programa, Dess! Saía com vários homens! Ficava nua na boate! Atuava em filmes pornôs! Caralho! Eu fiquei puto e enciumado e quis dar o troco! Só isso!
- Aaaah...tá! Agora eu tô super tranquila. - Ironizo. - E por que continua com ela!? O que estava fazendo com ela trancado no carro!?
- O que eu estava fazendo dentro do carro!?
- Tá tentando ganhar tempo pra encontrar resposta!?
- Para, Dess. Eu estava te esperando lá fora e ela me pediu pra ensiná-la a mexer no painel do carro novo.
- Putz. Que decepção. Poderia ter escolhido uma resposta melhor...
- Dess, nós não fizemos nada. Eu juro. - Mergulho em seus olhos azuis e desisto de procurar a verdade. - Essa é a verdade, amor. Eu tenho uma dívida com ela, embora não a ame. Eu nada sinto por ela além de compaixão.
- Que diabos de dívida é essa!?
- Eu a matei em outra vida, Dess. Acidentalmente. Estávamos juntos, mas vc não se lembra. - Sua voz torna-se sombria ao revelar. - Foram momentos terríveis que devem permanecer no esquecimento. - Um calafrio percorre meu corpo quando desconverso.
- Vc morreu nessa outra vida aí?
- Teoricamente sim. Saio do corpo antes do fim.
- E ocupa o mesmo corpo sempre?
- É. - Assume ele, desapontado. - Parece que sim.
- Isso não faz sentido.
- Eu sei...
- Vc tem mais grana do que aparenta. - Afirmo, desconfiada. - Anjos têm mães?
- Como assim!?
- Vincenzo! A tua mãe morreu em um acidente de carro, porra! Ou vc mentiu!? Anjo tem mãe!? Quem era a mulher que eu vi naquele dia!?
- Somos muitos aqui na Terra. Muitos 'caíram' por amor aos humanos. Ela foi um deles. Ela e eu somos extremamente ligados e ela sofre por não ter reencontrado seu grande amor...
- Seu suposto pai?
- Sim.
- Então, vc teve infância? Porra. Isso tá fodendo com a minha cabeça. Para.
Uma pausa e eu me afasto dele. O homem diante de mim se desconstrói a cada pergunta.
- Eu não confio mais em vc. Como eu posso continuar a te amar? Cara. Vc tá me arrancando um dos meus melhores sentimentos com essa história maluca. Por que me contou? - Furioso, ele explode.
- POR QUE VC INSISTIU! VC ME COAGIU! DISSE QUE SUMIRIA DA MINHA VIDA LEVANDO ANTOINE CONTIGO!
- NÃO GRITA! - Esbravejo. - QUAL É O LANCE DO AIDEN!?
- JÁ DISSE QUE NÃO POSSO FALAR! É ELE QUEM TEM QUE TE DIZER A VERDADE DELE!
- ENTÃO PORQUE O IMPEDIU DE ENTRAR???
- PORQUE SE ELE RETORNAR À SUA VIDA, ELA VAI SE TRANSFORMAR EM UM NFERNO!
- Do que tá falando? - Pergunto receosa. - O que tem de mau nele?
- Ele e aquele a quem ele se uniu, há séculos.
- SEJA ESPECÍFICO!
- VC E ELE TEM UMA PARADA PRA RESOLVER E EU, INFELIZMENTE, NÃO POSSO ME METER!
- QUE PARADA É ESSA!?
- VC PRECISA LIBERTAR O CARA! PRONTO! É TUDO O QUE EU POSSO DIZER!
- Libertar de quê? - Suplico.
- Não posso falar, caralho! Não tenho permissão para falar dele. Só posso te aconselhar a não deixar que ele volte à sua vida. Vc se lembra do dia em que, aqui, nessa mesma sala, exorcizamos um demônio!?
- E o que isso tem a ver com ele?
- Raciocina, Dess.
- Não quero. - Choramingo com medo. - Não quero mais falar nisso. Por que me contou?
Um silêncio sinistro e ele me encara, compassivo.
- Esquece, Dess. Eu vou dar um jeito nisso.
- Como?
- Não te interessa.
- Imbecil.
- Idiota.
- Qual o nome do teu inimigo? O que supostamente me empurrou do abismo?
- Ele não te empurrou. Ele te induziu. Vc pulou por vontade própria.
- A porra do nome do verme!!!
- Lúcifer! Satisfeita!?
- Não fala mais nada. - Peço, assustada. - Acho melhor vc sair daqui.
- Não posso, Dess. Ele vai querer o que é nosso.
- Do que tá falando, porra!? - Caio do sofá ao me levantar. Arrasto-me no tapete felpudo ao alertar. - Eu vou surtar se vc disser mais uma palavra!
- Foi por isso que eu não te contei antes. - Assevera ele, revirando os olhos, falando sem parar. - Sempre foi assim! Eu te reencontro! Eu me esforço pra te reconquistar! Eu te reconquisto! A gente a encontra! A gente se casa! E sempre tem alguma coisa que nos separa antes do fim!
- Vc é louco...- Constato, encolhida num dos cantos da sala. Temendo pela resposta, pergunto. - Quem a gente encontra?
- Vc já sabe...
- Para! - Grito antes de correr até o quarto de Antoine. Sua mão me impede de gritar novamente enquanto seu corpo força o meu contra a parede do corredor. Seus olhos insanos invadem os meus. Tento me mover, mas não consigo. Choro de horror enquanto ele cochicha.
- Dess. Me escuta. Não conta nada pra ela. Não faz nada que a faça se conectar a ele. Não agora que vc sabe de tudo. Ele é capaz de qualquer coisa pra me impedir de ser feliz com vc. Ele é capaz de qualquer coisa pra tirar a nossa filha da gente. Por ela, fica calada. Não vai gritar se eu liberar sua boca? - Assinto com a cabeça. - Ok. - Diz ele, confiando em mim. Retirando a mão de minha boca, eu grito por Antoine. Comprimindo os olhos, ele não parece ter gostado do que acabo de fazer. Sua mão está de volta à minha boca quando, arfando, ele confessa. - Eu fiz merda. Eu errei novamente. Vc não deveria saber. Não deveria. Me perdoa, amor. Isso não vai mais acontecer. - Ele sorri antes de se assustar e cair no chão, rolando e urrando de dor. Acabo de chutar seus bagos com meu joelho. Aterrorizada com o homem que, agora, desconheço, abro a porta do quarto de Antoine e a tomo em meus braços.
- Ela tá dormindo, tia. - Avisa-me Cassandra, desconfiada. - Tá tudo bem?
- Sim. - Minto ninando Antoine em meu colo. - Vai dar tudo certo. Tudo certo. - Repito num tom baixo no ouvido de Antoine que sorri, sonolenta. - Vai dar tudo certo, filha.
- Dess?
- Se afasta de mim. - Rosno sem olhar para ele. Sentado ao meu lado na cama de Antoine, ele acaricia sua cabeça quando, num choro compulsivo, declaro. - Ninguém vai levar minha filha de mim. Ninguém. Entendeu? Sai da minha casa. Eu ainda sou dona dela. Ainda...
- Ninguém vai levar Antoine, amor. Eu juro.
- Suas promessas não estão valendo muito, Vincenzo! Tu não consegue cumprir nenhuma! Nem aqui, nem no céu! Nem na puta que te pariu! Some daqui! Eu vou surtar se isso for real! Eu tô surtando! Por que me contou! Some da nossa vida, Vincenzo!
- Se acalma. Ela vai acordar.
- Não toca na minha filha!
- Mamãe...- Diz Antoine, preocupada. - Por que tá chorando? Vc brigou com ela, pai?
- Não, filha. Não. - Responde Vincenzo com lágrimas nos olhos. - Eu vou sumir.
- Some não, pai.
Antes de tocar em minha testa, ele confessa.
- Vcs duas são a minha vida. Eu não me arrependo do que fiz. Faria outra vez. Eu errei em ter te contado, Dess. Eu errei e vou consertar esse erro. Ao menos, isso eu posso fazer. De tudo vai se esquecer, exceto do meu amor por vc. Eu vou sentir sua falta, Dess.
- Não toca em mim!
- Shhh...
Adormeço.
Abro os olhos e a vejo sorrir. Ouço o som dos trovões lá fora. O cheiro da chuva invade o meu quarto. De pijamas, sinto frio. Ele me cobre com o edredom ao se sentar na beira da cama e, com um sorriso triste, pergunta.
- Tá melhor?
- Do quê?
- Vc ficou tonta após o lanche. Eu te servi um chá e vc dormiu por horas. Antoine e eu brincamos enquanto dormia.
- Quem acendeu a lareira? - Ouvindo o crepitar do fogo se alimentando da madeira, relaxo. - Gosto do fogo.
- Sério? Nenhum medo?
- Por que teria?
- Por nada. - Beijando o topo de minha cabeça, ele se despede. Antes de encostar a porta do quarto, ele diz algo que me traz angústia. - A gente se vê amanhã.
- Tem certeza? Vc vai voltar mesmo? - Sem ânimo, ele responde.
- Sim. Vou. Vc se lembra de algo após o jantar?
- Lembro. De não ter comido um só pedaço da pizza.
- Tem mais na geladeira.
- Volta, Vincenzo. - Num arroubo de paixão, corro até ele e o abraço. Meus braços o envolvem pelo pescoço quando imploro. - Não me abandona. Volta pra mim.
- Eu volto. - Mente ele. Ele vai me abandonar novamente. - Eu volto, Dess. Para de pensar em besteira.
- Vc disse que compraria o meu vestido de noiva. Cumpra essa promessa. Por favor.
- Eu vou, amor. Eu vou.
Num beijo longo e cheio de paixão, ele se despede. De volta à cama, revejo tudo o que passara ao longo do dia. Um dia atípico, repleto de fortes emoções e uma incômoda lacuna. Procuro me recordar do que acontecera entre o jantar e a nossa despedida e...nada. Incomodada, recosto minha cabeça em meu travesseiro macio e penso no que será de Antoine e de mim a partir de agora.
- Preciso vender esse apartamento antes que as dívidas o tomem de mim. Porra. Eu odeio esse celular. Alô!
- Que bom que seu bom humor está de volta.
- Fala, Aiden. O que deseja?
- Preciso te encontrar e conversar sobre negócios. É urgente.
- Que tipo de negócios?
- A venda de seu apartamento, dentre outras coisas. Sou um homem prático. Se tem que ser feito, que seja.
- Aiden, tu tá doidão??? Quem te disse que eu quero vender meu apartamento, porra??? Vai cuidar da tua vida e deixa a minha em paz!!! Tu quase quebrou a minha porta!!! Surtado!!!
- Eu fiquei com ciúmes, baby.
- 'Baby' é o caralho! Eu quase te implorei pra me beijar e tu esperando a porra de uma permissão!!! Tenha uma boia noite!!! Minto!!! Tenha uma péssima noite, idiota!!! NÃO RIA DE MIM!!!
- Vc só tem a mim...
- Não faz voz de sofrido não! Eu te conheço! Tu é do mal!
- Eu estou tentando mudar...por vc.
A estranha sensação de que lhe devo algo invade meu peito. Inspiro e expiro, procurando me acalmar. Em silêncio, ele me aguarda do outro lado da linha.
- Olha. Eu tô cansada. O dia foi estressante. Só quero dormir com a minha filha e, amanhã, eu vejo o que vai rolar. Eu vou dar um jeito em tudo. Vc vai ver. Vincenzo e eu estamos juntos. A gente vai se casar e dar um jeito em tudo.
- Vc ainda confia nele. - Lamenta Aiden. - Ok. Quando acordar desse sonho, me procura. Eu posso te ajudar. Ele não.
- Vá pro inferno, Aiden...- Bocejo. - De qualquer forma, valeu pela preocupação.
- Espera. Não desliga.
- Aiden...- Resmungo, irritada. - O que quer comigo? Fala.
- Antoine merece uma festa bacana. Sete anos é uma data especial.
- Como sabe que...?
- Me deixa proporcionar isso a ela. Por favor. - Surpresa e intrigada, olho ao meu redor. Mergulhada na penumbra do meu quarto, eu me arrepio ao ouvir sua voz ronronar ao celular. - Vou te dar tudo o que eu puder, baby. Sonha comigo.
Um riso sinistro e ele finaliza a ligação. A luz da tela do celular clareia parte do quarto enquanto me sinto vigiada.
Exausta, fecho os olhos. Um aroma ácido misturado ao terroso e doce de patchouli preenche o quarto por inteiro enquanto mãos me despem, vagarosamente.
- Posso matar a tua fome? - Pergunta-me a voz gutural. Entre o sono e a vigília, todo meu corpo lateja quando respondo, inconscientemente.
- Pode.
Nua, abro minhas pernas e o sinto dentro de mim. Quente, grosso, úmido, forte.
Acordo com fortes cólicas que atribuo à minha menstruação. Procuro abstrair a sensação de prazer durante o sono porque não posso me dar ao luxo de uma recaída. Não agora que estou organizando a festa de Antoine com a grana que angariei ao vender meus vestidos de grife e alguns de meus sapatos no 'ebay'. Ainda há muito o que vender se eu não quiser falir, porém, no momento, ainda me reservo o direito de manter comigo minhas botas de couro com cano alto.
Como um par de botas pode guardar tantas lembranças?
Eu as calçava quando encontrara Vincenzo pela primeira vez e, com elas, fugira do "California" sentada na garoupa de sua moto. Ainda sinto seu cheiro e o som de seu coração batendo contra o meu ao se despedir na noite das pizzas.
- Filho da puta.
- Tia! Palavrão é feio! - Enfio quatro batatas fritas na boca antes de concordar.
- É feio mesmo. Escapou...- Rindo de minha careta, Antoine e as filhas de Sweet me imitam. Sorrio, sugando, no canudo, o refrigerante enquanto penso no porquê de estar aqui, sentada diante dela, em um parque de alimentação num dos mais caros shoppings da cidade. - Desembucha. O que quer de mim?
- Nada, amiga. - Diz Sweet extremamente bem maquiada, cabelos escovados, as unhas tão longas que me fazem pensar em como ela se limpa intimamente sem lesionar as hemorroidas. - Eu só queria te agradecer por tudo e...
- E o quê? - Resmungo cobrindo minha cabeça com o capuz de meu moletom, as únicas peças do meu guarda-roupa que não vendo de maneira alguma. São confortáveis e escondem imperfeições do meu corpo que não vejo sem roupa há um bom tempo. Evito a porra de espelhos. Espelhos falam comigo e, geralmente, são coisas ruins do tipo: "Tá gorda!", "Tá magra demais!", "Olha uma nova ruga em seu rosto!", "Cadê o brilho em seus cabelos!?" - Não entendi.
- O que vai fazer no níver de Antoine?
- Não sei. - Minto. Já aluguei um salão modesto perto nossa casa. Faltam poucos itens: o DJ, o Buffet, o menu especial, a animação da festa, a decoração e as lembrancinhas. Ah! A lista de convidados está completa! Doc e sua família, Antoine e suas duas únicas amiguinhas do colégio, as duas filhas de Sweet e eu. Perfeito! - Não quero pensar nisso agora.
- Posso te oferecer uma ajuda? - Rancorosa, indago.
- Com que grana, Sweet!? Como conseguiu comprar aquele carro!? Vale muito mais do que vc ganha no "California" e com todos os...- Pigarreio incomodada com o olhar inocente das crianças sobre mim. Por mais que ela mereça, eu não vou desmoralizar Sweet diante das filhas. Prendendo o choro, ela aguarda por mais um de meus arroubos de ignorância. - Vale mais do que vc poderia ganhar com os 'amigos' que te indiquei. Engole o choro!
- É assim que ela fala comigo, tia. - Reclama Jujuba, a caçula. - Briga com ela. - Retiro meu capuz e, com os cabelos desgrenhados, eu a repreendo com ternura.
- Sua mãe te ama, Ju. Ela não faz por mal. - Pousando sua mão sobre a minha, Sweet agradece. Evitando seu olhar, retruco. - Não precisa. Eu sei o que é ser mãe. É um amor que chega a machucar...endoidecer gente sã.
- Amiga, deixa eu te ajudar. - Sugere ela enquanto as crianças correm até o pátio de diversão, no exterior da praça de alimentação. Sem desviar os olhos de Antoine, repito.
- Não precisa. Ela vai ter uma festa bacana com a grana que eu puder bancar.
- Mas eu quero. Eu sou a madrinha dela. - Retirando um envelope de sua bolsa de grife, ela insiste, empurrando-o sobre a mesa. - Pega. É seu.
- De onde tirou isso, Sweet? - Indago, preocupada. - Tu não tá se metendo com gente ruim não, né?
- Não. - Diz ela, sorrindo. - É da rescisão.
- Rescisão? Não entendi. - Eu a encaro e enxergo orgulho em suas palavras. Orgulho de si mesma.
- Eu larguei o 'California', amiga. Assim que soube de sua demissão, eu me demiti. Mas, antes, eu meti a porrada no dono daquela espelunca. Ele não vai poder usar o pau dele por muiiiito tempo. - Rimos juntas até que eu comece a chorar, copiosamente. - Adessa. Vc tá bem?
- Vc fez isso por mim?
- Claro. Vc faria o mesmo. - Impulsiva, eu a abraço, debruçando-me sobre a mesa, derrubando refrigerante sobre as batatas. Sem saber o que dizer, emudeço. - Eu te amo, amiga. Me perdoa se te fiz algum mal.
- Eu nem sei o que dizer. - Exalo. - Por que fez isso? Vc ganhava bem lá.
- Eu encontro outra boate. - Diz ela, dando de ombros. - E quando eu encontrar, eu te chamo.
- Não vou ficar com essa grana, Sweet. As crianças precisam. Vc sabe o quanto se gasta com duas filhas.
- Pega. - Insiste ela pousando sua mão sobre a minha. A imagem de Vincenzo no interior de seu carro ofusca minha visão. Num impulso, recuo. - O que foi?
- Nada. - Por que diabos Vincenzo daria dinheiro a Sweet!? Raciocina, idiota! Cala a boca. Eu não quero te ouvir. COMO SE PAGA PELO TIPO DE TRABALHO DE SWEET??? - Por que Vincenzo te deu essa grana!? Vcs treparam!?
- Claro que não! - Protesta ela, sorrindo. - Essa grana é minha! Pega! Deixa de ser boba!
- Não...- Empurro o envelope sobre a mesa quando, prestes a discutir com Sweet, volto minha atenção ao pátio de diversão. - Que homem é aquele? - Rosno antes de me levantar da cadeira e correr, desviando-me das mesas. Empaco, cheia de pavor, diante do homem alto e elegante que, de joelhos, conversa, animadamente, com Antoine. - Se afasta da minha filha. - Ordeno, vacilante. Lentamente, o homem se ergue e se volta para mim. Seu sorriso me arrepia. Reativa, cerro os punhos e, com um soco, atinjo seu nariz afilado. Ele sorri enquanto, calmamente, retira um lenço de seu terno alinhado, embora antiquado. - Vem, filha. - Puxo Antoine pelo braço sem me importar com o pequeno alvoroço ao meu redor. Em meu colo, Antoine o defende.
- Ele só queria saber quantos anos eu vou fazer, mamãe.
- Sete anos é uma idade especial. - Diz ele limpando o sangue que escorre de seu nariz. Um outro sorriso sinistro e ele argumenta. - Uma idade considerada por muitos como sagrada.
- Foda-se vc e a sua teoria! Fica longe da minha filha ou eu te mato! - Aproximando-se de mim, ele sussurra em meu ouvido.
- Difícil matar imortais. - Recuo, assustada, evitando que ele a toque com os dedos longos, as unhas escuras e afiadas. Parecendo apreciar o meu temor, ele volta a sussurrar. - Mas vc pode tentar. Poderes vc tem. Use-os, meu bem. - Um olhar ao redor e ele comenta num tom de desprezo. - Odeio humanos. Adoram um escândalo. Até breve, Antoine. - Despede-se ele com uma piscadela. Quero gritar e avançar sobre ele, mas minha pernas não se movem. Horrorizada por sua presença impactante, eu comprimo Antoine contra meu peito, alheia aos apelos de Sweet e de suas filhas. - Solte a menina. Ela chora. - Diz ele recuando sem desviar seus olhos faiscantes de mim. Antes de voltar à realidade, ele me choca ao falar num tom sarcástico. - Mande lembranças ao meu amigo. Estou com saudades.
Ele some quando, enfim, lembro-me de respirar. Puxo o ar pela boca. Numa crise de claustrofobia, imploro a Sweet que, desnorteada, se mantem ao meu lado.
- Me tira daqui.
- Vc conhece aquele homem!? - Pergunta-me ela ajudando-me a caminhar até o estacionamento. Antoine e as filhas de Sweet caminham à nossa frente. Receosa, eu o procuro por todos os lados. Sweet repete a pergunta antes de entrarmos em seu carro. Sentada no banco do carona, tremendo-me dos pés á cabeça, minto.
- Não. Eu não o conheço.
Após uma chuveirada, sentindo-me mais forte, encaro o envelope sobre a cômoda do meu quarto. Antoine e eu estamos sozinhas em casa. Aproveito nossos últimos momentos de um conforto que poucos têm. Ao seu lado, no imenso e aconchegante sofá da sala de cinema que levei meses para montar, dividimos a pipoca enquanto assistimos a um filme de comédia; o que me faz esquecer, por pouco tempo, o que deixara em meu quarto. Eu a beijo na testa e a vejo adormecer ao meu lado, em minha cama. Ainda me arrepio ao me recordar do encontro com o homem elegante e sombrio. Não a quero sozinha em seu quarto e, talvez, esse seja o nosso destino: dormimos juntas em um quarto pequeno. Caminho, descalça, em direção à cômoda. Hesito antes de tocar no envelope ainda lacrado. Penso nas últimas palavras do homem elegante e uma incômoda sensação de que ele, de fato, conhece Vincenzo, me faz arquejar. Abro, vagarosamente, o envelope. Surpreendo-me com a quantidade de notas de cem em seu interior. Sorrio ao ler o bilhete de Sweet escrito com sua letra quase indecifrável.
"Vc merece mais, amiga. Te amo".
Antes de terminar a contagem das cédulas, sufoco um soluço, deixando-as cair sobre o tapete persa. Corro até o banheiro da suíte onde posso chorar sem medo de acordar Antoine. Com o envelope nas mãos trêmulas, eu me deixo levar pelas imagens que me trazem muita dor. Persisto até que não haja dúvidas. Rasgo o envelope movida pela raiva. Diante do espelho, eu me sinto um nada. Eu os vi. Eu os vi com clareza. Não há como negar. Foram várias visões e todas nítidas. Vincenzo estava dentro do carro. Fora ele quem dera o envelope a Sweet. Ele quis me ajudar. É fato. Talvez ele me ame. Talvez, tenha piedade de mim. Eu o vi dentro do carro, o envelope jogado no banco traseiro de onde o vejo...nitidamente, urrando, logo após gozar na boca de Sweet.
Tento apagar essa imagem de minha mente, mas desisto. É hora de enfrentar a realidade e desistir dele.
Um anjo não faria isso. Eu o odeio. Eu me odeio por ter acreditado em tudo.
Antoine é uma criança comum. Ela não corre riscos e, infelizmente, não há como negar, embora eu deseje.
Vincenzo e Sweet são amantes.
Num ato infantil, eu o bloqueio em meu celular e em minha vida.
- Posso entrar? - Pergunta-me Aiden sob o batente da porta da sala de estar. Decidida a me esquecer de Vincenzo e do mal que ele me faz e, negligenciando, conscientemente, minha intuição sobre Aiden, eu desfaço o círculo de proteção ao responder.
- Pode. Fique à vontade. - Um sorriso de triunfo e ele murmura.
- Finalmente, 'My Irish Angel'. Agora ele ouviu.
Continua...