- Aonde vai, esposa?
- Do que me chamou!?
- Esposa? - Estaco. Inflando as narinas, ameaço.
- Aiden, de agora em diante, tenha cuidado com suas palavras.
- Adessa!? É vc!? - Uma histérica gargalhada e o deixo falando sozinho até gritar diante do volante do meu carro.
- No nay never! - Alcançando-me com a rapidez de um relâmpago, ele pergunta, receoso, recostando os braços na janela aberta do carro.
- O que disse!?
- Nada. Eu cantei o refrão da música que ouvimos naquele 'pub'. Não se lembra? Em nossa lua-de-mel? Amor...- Sorrio. - Vc já esqueceu?
- Não. - Responde-me ele forçando um sorriso. - Nunca. Foram os melhores dias da minha vida. Vc ainda me ama? - Outra gargalhada e comento.
- Vc é tão inseguro. Isso é fofo.
- Aonde vai? - Acelero, impaciente. - Baby, olha pra mim. Aonde vai?
- Resolver alguns problemas. Por quê? Não posso sair? - Recuando, intrigado, ele refuta.
- Claro que pode. Vc não é minha prisioneira. Vc me aceitou como sou. Lembra?
- Aceitei?
- Baby!
- Aaah...é. Aceitei. - Retirando o pé do freio, faço o carro se mover. Aiden, da calçada, observa-me, confuso enquanto penso no que fazer com as fotos que acabo de receber da 'preceptora do inferno'.
- Saudades, filha.
- Eu também, Doc. - Demorando-me em seu abraço, aguço sua curiosidade.
- O que houve? Não está feliz?
- Nem um pouco...- Sussurro contra sua camisa em malha. - Tenho saudades de quando eu era somente uma stripper cuja única preocupação era escolher a roupa que jogaria na cara desses otários.
- Quer me contar o que está acontecendo? - Encarando seu olhar terno, confesso.
- Preciso. Eu vou surtar se não compartilhar isso com alguém de confiança e, no momento, eu não tenho ninguém além de vc em quem confiar.
- Vem. - Conduzindo-me para longe do palco do 'California', Doc sugere. - Vamos sair daqui?
Doc chora feito criança enquanto me arrependo de tê-lo procurado. Um homem bom com um enorme coração. Um avô carinhoso de duas lindas netas não deveria ser obrigado a ver o que acabo de lhe mostrar. Peço perdão enquanto ele enxuga o rosto com guardanapos de papel sobre a mesa de um bar próximo à boate. Em silêncio, aguardo que se recupere do choque e me diga o que fazer.
- Perdão, amigo. Eu não deveria...
- Acabe com eles. - Rosna Doc cerrando os punhos. Um golpe forte contra a mesa em madeira e ele me encara com fúria nos olhos. - Se precisar de ajuda, conte comigo, mas acabe com eles.
Dentro do carro, observo o vai e vem do limpador de para-brisas. Destruída pelo teor das fotos, volto a ler a mensagem de quem as enviou a mim:
"A César o que é de César. Espero que ambos sejam felizes depois disso".
Arrependo-me de ter sido tão rude com a preceptora. Talvez ela não fosse tão ruim. Eu a humilhei e, agora, recebo, de volta, o mal que cometi. Embora eu saiba que preciso ser mais forte do que nunca, eu choro recostando minha testa ao volante.
- Eu me sinto tão só. - Digo a mim mesma, aos soluços. Abro a porta do carro e, debaixo da chuva, confesso de olhos fixos no céu nublado. - Não vou conseguir sozinha. Eu preciso de ajuda. Protejam minha filha...
- Vc não está só. - Assustada, volto-me em direção à voz que ressoa noite adentro. Um homem alto, negro, com roupas humildes, varre a rua.
- Quem é vc? De onde veio!?
- Muitas perguntas. Poucas respostas. - Diz ele, sorrindo. Apoiando o queixo no cabo da vassoura, ele aconselha. - Siga sua intuição. Muitas vidas dependem de vc. - Sentindo uma paz profunda, eu o vejo se afastar. Desesperada, grito.
- Fica! Me ajuda! - De costas para mim, ele grita.
- Estarei contigo! Siga a sua intuição e salve sua filha!
- Antoine...
Movida pelo pânico, dirijo até a casa de Sweet onde deixara Antoine em mais uma das múltiplas 'noites das meninas'. Após o retorno de Mimi, Sweet promove esses encontros infantis com extrema alegria. Ao estacionar, esbarro em uma moto e a derrubo. Estabanada, eu uso de todas as minhas forças para erguê-la do chão, mas não consigo. Essa porra pesa pra cacete! Extremamente nervosa e ensopada pela chuva, eu a chuto, com raiva. Muita raiva. Urro de dor ao machucar meu tornozelo. Ainda mais revoltada, grito.
- FODA-SE! FIQUE AÍ PARADA! TENHO MAIS O QUE FAZER! - Subo os degraus da escada, xingando a porra do elevador que nunca funciona. Penso que Vincenzo poderia aumentar o salário de sua excelente funcionária. Talvez, quem sabe, Sweet se mude dessa espelunca!? - ABRE A PORTA, SWEEET!!! - Berro ao esmurrar a madeira lascada. Lembrando-me do conselho do homem misterioso, desespero-me. - ANTOINE!!! ABRE A PORTA! É A MAMÃE! - Lentamente, a porta se abre num rangido. Seu rosto perfeito ressurge em minha vida. Arfando de espanto e saudades, indago, decepcionada. - Vc aqui!? É a 'noite das meninas'!
- E quem cuida e cozinha na 'noite das meninas'!? Sua amiga Sweet!?
- Sai, Vincenzo! Inventa outra desculpa pra ficar perto dela! Ok!? - Empurrando-o com a lateral do meu corpo, eu o derrubo e invado o apartamento. Procurando por Antoine, resmungo. - Tenho coisas muito mais importantes pra resolver do que ficar me importando com seu romancezinho de bosta com sua nova funcionária! - Do chão, ele refuta.
- Posso estar sentindo falta de sexo, mas ainda não transo com gente morta. Ou quase morta.
- Do que tá falando!? - De pé, ele explica.
- Sua amiguinha voltou aos velhos hábitos, idiota. Por que acha que estou aqui!?
- Sexo desregrado!?
- Não! Drogas ilícitas, burra!
- Não fale nesse tom comigo, Vincenzo! Eu não sou sua funcionária!
- Mas gostaria de ser...
- Patético!
- Vc andou chorando?
- Não. Eu chorei parada mesmo.
- Ridícula. - Escondo um riso com uma das mãos antes de prorromper em lágrimas. Arremessando o avental para o alto, ele me abraça com força. Recordo-me de algo bom, mas não sei ao certo o que é. O choro de um bebê. Um buquê em minhas mãos. Um chafariz na praça. O sorriso triste de uma linda jovem antes...- O que aconteceu, amor? Me conta tudo. Eu vou te ajudar.
- De onde vem essas lembranças?
- Quais?
- Vc ouviu. Eu sei que ouviu.
- Não ouço lembranças, anta. Eu ouço pensamentos.
- Eu não sei se posso confiar em vc. - Lembro-me das fotos, de Doc. Do homem com olhos faiscantes e a voz de trovão. - Tô com medo...
- Eu ouvi. Agora, eu ouvi, amor. Enfim, vc enxergou. -
Uno-me a ele em um longo abraço até que um coro de 'woohoo' e uma saraivada de palmas afoitas nos separe, instantaneamente.
- "Tá namorando! Tá namorando!" - Cantarolam Mimi, Juju e Antoine. - Eles são os meus pais! - Exulta minha filha. - É claro que namoram!
- Filha! - De braços abertos, eu a recebo em meu colo. - Que saudades!
- Mãe! - Reclama ela. - Não me aperta! A gente se viu hoje!
- Não parece...
- Dess, fala comigo. Precisamos conversar.
- Vc quer que eu deixe minha filha sozinha com...!?
- Uma drogada? É isso, amiga?
- Sweet...- Reviro os olhos diante de sua imagem distorcida. A bela e estonteante recepcionista da academia de boxe 'murchou'. Diante de mim, uma mulher vencida pelo uso constante de cocaína. A mãe distante das filhas que se grudam em mim como chiclete. - Por quê?
- Por que o quê? - Retruca ela, absolutamente destruída. Cabelos desgrenhados, pele translúcida e um micro vestido que me permite enxergar seu útero! - Não me olha assim! Ele não quer nada comigo! - Bêbada, ela fala demais. - Sei lá. De repente, eu não sirvo mais...
- 'De repente'!?
- Não ouça o que ela diz. - Observa Vincenzo carregando Antoine em seu colo. - Vamos embora.
- E deixar as crianças aqui!? Com essa louca!?
- Vem! - Insiste ele. - Depois eu volto e cuido de tudo!
- Não!
- Vem, mãe!
- Não! - Protesto, desesperada. - Mimi e Juju não podem ficar com ela! Não depois do que descobri!
- Descobriu o que, amiga?
- Cala a boca, Sweet! - Indignada, cato as garrafas de cerveja vazias, espalhadas pelos cantos da sala, e as jogo na lixeira da cozinha. - Merda! Se eu tivesse uma vida normal como a sua, eu a aproveitaria, Sweet!
- Amiga, eu te amo...- Diz ela antes de apagar no sofá da sala.
- E agora, Vincenzo? - Usando de sarcasmo, indago. - Vai deixar sua funcionária sozinha!? Ela precisa de cuidados...- Tomando Antoine de seus braços, concluo. - E as crianças também! Fiquem todos juntos e misturados!
- Dess! Não! Eu vou!
- Fica! - Ordeno, colérica. Apesar dos protestos de Antoine em meus ouvidos, fecho a porta e, do corredor, eu grito. - Vá pro inferno, traidor!
Erguendo sua moto ao lado do meu carro, ele resmunga.
- Mais um arranhão!
- Problema seu!
- Vc a derrubou!
- Vc a estacionou no lugar errado, idiota! - Jogando sua moto contra o asfalto, ele abre a porta do meu carro e, com a chave da ignição em sua mão, suplica.
- Vamos conversar! Eu ouvi o que vc disse que viu! Me mostra!
- Eu quero ver também, mãe! - Exulta Antoine no banco do carona. - Posso?
- NÃO! - Gritamos desesperados, Vincenzo e eu. Assustada, Antoine chora. Sentando-a em meu colo, eu a consolo. - Desculpa, filha. Seu pai é maluco.
- Agora eu sou o pai!? - Sorrindo, ele chacoalha as chaves em sua mão. - Vem pegar! - Antoine gargalha enquanto eu a jogo de volta ao banco do carona e ameaço.
- Me dá a merda das chaves ou vai se arrepender!
Uma careta e ele zomba de mim.
- Que meda...
Antoine continua a gargalhar, torcendo por Vincenzo enquanto corro atrás dele debaixo da chuva. Posso demonstrar raiva ao xingá-lo, porém, intimamente, estou me divertindo...
- PARA, VINCENZO! EU NÃO SOU CRIANÇA!
- MAS SE COMPORTA COMO UMA!
Encarando-me com um sorriso iluminado, ele me faz arfar. Por que o amo tanto? Por que não me afasto dele de uma vez por todas? O que nos separa?
- Sua estupidez, amor. - Responde-me ele. - Eu não tenho medo de nada. Nada mais. Estou disposto a tudo pra ficar com vcs.
- E quanto ao seu pacto idiota com Lúcifer?
- Ele que se foda.
- PAI???
- Foi mal! - Diz ele desviando o olhar cheio de ternura a Antoine. Aproveito sua distração e alcanço minhas chaves. Luto com ele pela posse do molho. Rindo de mim, ele afirma. - Só vai embora se prometer que vai me contar tudo o que sabe.
- Vc não leu meus pensamentos!?
- Pouca coisa. - Puxando-me pela mão, ele sussurra. - Me conta tudo, Dess. Juntos, nós podemos acabar com esse massacre de crianças. Me ajuda a te ajudar. - Engolindo em seco, recuo. - Não tenha medo. Eu não vou desistir de nós dois. - Corrigindo-se a tempo, ele diz. - De nós três. Estou disposto a lutar contra todos os demônios do inferno desde que esteja ao teu lado. -
Envaidecida, eu me calo. Prestes a pular em seu pescoço e lhe beijar, ouço a buzina do meu carro. Antoine, aflita, aponta para o outro lado da rua onde Aiden me observa. Penso rápido.
- ME DEIXA EM PAZ, VINCENZO! - 'Consegue me ouvir. Aiden não pode desconfiar de nada'. - SEGUE COM A TUA VIDA, PORRA! FICA COM SWEET! MIMI E JUJU PRECISAM DE VC! VAZA DA MINHA VIDA DE UMA VEZ TODAS! - Empurrando-o contra sua moto no chão, eu o humilho e sofro por isso. - Vc não chega aos pés do meu homem. Suma de nossas vidas. - 'Me ajuda'.
- Erguendo sua moto, ele a monta e lançando-me um olhar significativo, ele murmura.
- A gente se esbarra. - Acelerando, ele passa, propositadamente, por uma poça de lama que respinga em Aiden. Gargalhando, ele zomba antes de desaparecer na escuridão da noite. - PERDEU!
- Está sem fome?
- Sim. - Respondo com o olhar distante.
- O que te preocupa? Fala comigo.
- Sweet. - Minto. - Ela voltou a se drogar.
- E as crianças? - Desconfiada, eu o encaro, largando, abruptamente, os talheres sobre a mesa de jantar.
- O que tem as crianças!? Por que essa preocupação!?
- Nada! - Recua ele recostando-se à cadeira. - Por que tem sido ríspida comigo!? Eu só quero te ajudar!
- Não queira! Fica longe de mim!
- Baby! - Ergo-me da cadeira e, confusa, caminho até o quarto. Aiden me segue. Ao me segurar pelo braço, ele me pede. - Não me deixa. Eu preciso de vc.
- Pra quê, Aiden!? Pra que exatamente vc precisa de mim!? Pra permanecer na Terra!? Pra cometer crimes!?
- Crimes!? Baby, vc está bem!?
- Não. Não sei quem eu sou...
Desmaio em seus braços. Acordo em nossa cama. Aiden me observa sentado na poltrona em couro num dos cantos obscuros do quarto. Seu pescoço inclinado para o lado o torna ainda mais assustador.
- Por que me olha assim, marido?
- Adessa!?
- Quem mais poderia ser!? - Erguendo-me da cama, retruco. - Que diabos estou fazendo deitada!? Antoine ainda não jantou! - Da poltrona, ele comenta.
- Ela já está alimentada. Cassandra e ela comeram uma pizza. Fique calma, baby. Vc tem estado estranha. Por que não me conta o que está acontecendo?
- Se vc deixar de me olhar como louca, talvez eu te conte! Merda! Eu vou tomar uma ducha!
- Quer companhia?
- Quem sabe?
Meu apetite sexual por ele surge do nada. Entrego-me aos seus beijos e permito que ele me foda contra a parede do box. Confusa e excitada, enxergo seus olhos escuros. Suas estocadas furiosas me fazem gemer de prazer e dor.
- Para, Aiden.
- Por quê? Não me quer mais?
- Quero. Mas tá doendo. Quero me secar e ver minha filha. Posso?
- Sua vontade é uma ordem. - Diz ele, decepcionado. Enrolando uma toalha branca em sua cintura, ele comenta. - Vc mudou. Desde que desmaiou na igreja, vc mudou. Vc me chamou de 'Mr. Byrne'. Lembra disso?
- Quem!?
- Não se lembra?
- Quem é 'Mr. Byrne'!?
- Deixa pra lá. - Um beijo em meus lábios e ele caminha até o closet. Retirando uma camisa social estendida no cabide, ele pergunta. - Gosta dessa?
- Sim. Aonde vai?
- Dançar.
- Com quem!?
- Com vc, baby. Com quem mais eu dançaria?
A despeito da desconfiança, sorrio.
Dançamos durante horas em um clube de danças latinas. Empolgo-me sempre que o vejo dançar. Seu gingado me encanta e me seduz e me faz esquecer de tudo...por algum tempo. Permitindo que eu dance sozinha, ele me incentiva a aceitar os convites de outros dançarinos tão ou mais talentosos do que eu.
Ao final da noite, estamos rindo e comentando sobre meus erros enquanto encaramos a lua sentados no capô do carro. Da orla, aprecio as ondas do mar e bebo do vinho no gargalo. Ele toma a garrafa de minha mão e faz o mesmo.
- Vc não gosta de beber. - Observo, intrigada. - Por que me trouxe aqui hoje?
- Porque quero resgatar o que tínhamos no início. Vc se afastou de mim. Eu sinto. - Com a voz entaramelada, refuto.
- Vc não é bom nisso, Aiden. Quem sente as coisas aqui sou eu.
- Deveríamos ter um filho, baby. - Engasgo, saltando do capô. Levo um tempo para assimilar o que acabo de ouvir e, com os pés descalços no calçadão em preto e branco, indago.
- Por que isso agora!?
- Porque eu quero ser pai! Pai de um filho seu! - Saltando do capô, ele me puxa para si e, fixando seus olhos claros nos meus, implora. - Não me abandona.
- Não vou. Por que tá tão inseguro?
- O que conversava com Vincenzo ontem?
- Nada! - Minto tomando outro gole de vinho. - Ele me atormenta! Pegou as chaves do meu carro!
- Vc ainda o ama? - Mais do que nunca! - Diz!
- Merda! Por que teve que estragar nosso clima!? - Caminhando até a areia, arremesso a garrafa vazia contra o mar. Mergulho nas ondas e, ao retornar à areia, contendo minha ânsia em feri-lo mortalmente, eu o questiono. - Por que eu te daria um filho se vc matou o meu? - Rosnando, comento. - Ainda sinto o gosto de sangue em minha boca, 'Mr. Byrne'.
- De novo, baby!?
Vomito antes de apagar.
- Filha, vc resolveu aquele problema?
- Doc! Há quanto tempo! Tô com saudades!
- Adessa?
- Eu.
- Aiden está por perto?
- Sim. Aiden tá aqui. Por quê? Quer falar com ele?
- Adessa!
- O que houve, Doc!? Vc me parece nervoso! Vou passar o celular pra ele!
- Adessa! Não!
- Doc? - Diz Aiden de maneira polida. - Posso te ajudar de alguma maneira? - Pelo 'viva voz', ouço sua resposta.
- Pode. Cuide bem de minha menina.
- Estou cuidando, Doc. Mais do que imagina. - Confuso, Aiden comenta. - Desligou. Estranho. Ele é sempre assim?
- Não. Doc deve estar com algum problema com a filha. Amanhã eu falo com ele pessoalmente.
- Não, baby. Vc precisa se cuidar.
- Eu não tô doente, marido. - Gracejo abrindo um sorriso malicioso. - Além desses hematomas em minhas coxas, nada há de errado comigo.
- Perdão. Eu não queria te machucar. É que vc me excita. - Sugando o ar entre os dentes, ele se ajoelha entre minhas pernas. - Vc me provoca e me deixa louco.
- Eu sei. Eu gosto de sua violência. - Confesso, abraçada a ele. - Tenho me sentido mais calma.
- Deve ser o chá.
- Pode ser. Quem o indicou?
- Um amigo. Ele é psiquiatra especializado em Fitoterapia.
- Eu não sou louca.
- Não. Eu é que sou louco por vc e não quero te ver sofrer como antes.
- O que eu tinha antes?
- Lapsos de memória. Mas já passou. Tome mais um gole. - Ordena-me ele servindo outra xícara de um líquido fumegante com cheiro de mato. - Vou cuidar de vc, esposa. Na riqueza e na pobreza.
- Na saúde e na doença. Te amo, marido.
- Te amo mais, esposa.
Um beijo e engulo o líquido amargo, voltando a dormir.
- Amor, viu meu celular?
- Fomos roubados. Não se lembra? Na areia da praia. Levaram o meu e o seu.
- Aaah não! - Lamento sentada ao seu lado. - Eu tinha tantas fotos de Antoine! Como vou recuperá-las!?
Do volante, Aiden abre o porta-luvas e, sorrindo com timidez, entrega-me uma caixa decorada com um laço vermelho. - O que é isso?
- Abra.
- Uau! - Exulta Cassandra no banco traseiro. - Um 'Iphone 16 Pro Max'! Irado! - Ainda abalada, agradeço com um beijo em seus lábios.
- Não gostou?
- Sim. - Choramingo. - Mas eu perdi todas as fotos de Antoine.
- Se liga nisso não, mamãe. Tá tudo salvo 'nas nuvens'. Eu recupero tudo. - Aiden fixa seus olhos em Antoine com persistência. Ela gargalha até tombar no colo de Cassandra. Incomodada com sua silenciosa repreensão, indago.
- Algum problema!? Por que tá olhando assim pra ela! - Forçando um sorriso, ele responde.
- Nada. Nossa filha é tão inteligente.
- Tio, eu não sou filha. Meu pai se chama Vincenzo.
- Putz...- Resmunga Cassandra.
- Esquisito.
- O que, baby?
- Sinto que havia algo de importante no celular. - Olhando-o, intrigada, pergunto. - Eu te falei de alguma coisa importante no celular?
- Não, baby. Não havia nada. Eu sempre vejo seu celular. Lembra? Não havia nada lá. Fique tranquila. -
Outra gargalhada de Antoine e Aiden a observa pelo retrovisor interno. Há uma certa tensão entre ambos. - Quer me contar alguma coisa, Antoine?
Ela nos surpreende a todos ao cantarolar.
- 'No nay never!'
Deixo Antoine no colégio e caminho até meu carro estacionado do outro lado da calçada. Sem meus óculos, não o enxergo com perfeição até me aproximar o suficiente para estranhar sua expressão de preocupação.
- O que faz escondido aí, Doc?
- Fale baixo e entre no carro.
- Doc!
- Filha...- Cochicha ele, assustado, cobrindo sua cabeça e parte do rosto com um goro preto. - Entra. Por favor. - Sentando-me no banco do carona, eu o vejo dirigir vagarosamente, olhando para os lados como quem teme ser seguido.
- Tô com medo, Doc. Para. Eu preciso voltar pra casa. Aiden vai...
- Te dopar novamente.
- O quê???
À mesa de uma lanchonete distante do colégio de Antoine, eu o ouço atentamente, embora desconfie de sua sanidade mental.
- Nada faz sentido, Doc.
- Confia em mim. - Implora-me ele com os olhos umedecidos. - Filha, eu não durmo desde que vc me mostrou as fotos! Vc precisa se lembrar, Adessa!
- Que fotos, Doc!? Eu perdi todas no dia do assalto! - Retirando meu novo celular da mochila, eu o coloco sobre a mesa e lamento. - Perdi tudo. Antoine conseguiu 'salvar' algumas fotos dela, mas, a maioria se perdeu...
- Bastante conveniente, não acha? Os ladrões levaram os celulares e deixaram aquele carro de luxo do Aiden!? - Confusa, retruco.
- Ué! Sei lá! Quer entender cabeça de ladrão!? Ultimamente, não tenho entendido sequer a minha! - Meu riso morre assim que ele se curva sobre sua xícara de café vazia e me encara com seus olhos arregalados. - Tá me assustando, Doc.
- Vc se lembra do dia em que me encontrou no 'California'?
- Sim. Lembro. - Elevando meus olhos ao teto, distraio-me com a decoração rústica da lanchonete. Os pingos da chuva fina se chocam contra a janela. Sorrio para a 'Juke Box' ao lado do balcão. - Lembro-me vagamente. Que lugar bonito. - Um arquejo de dor e confesso. - Acho que tô ficando maluca, Doc. Tenho me lembrado de gente que não conheço. Isso é normal?
- Filha! Estão mexendo com a sua cabeça! - Erguendo meu queixo, indago, indignada.
- E por que fariam isso!?
- Pra que vc não faça o que deve ser feito!
- E o que deve ser feito, Doc!? Não faz sentido! - De olhos fechados, ele meneia a cabeça. Certa de que ele está sofrendo, modulo o tom de voz e indago. - Posso te ajudar, amigo? Sua filha surtou de novo? É isso?
Bufando, ele retira seu celular do bolso da jaqueta em couro e, num tom de lamento, diz.
- Eu não queria te mostrar isso, filha. Mas é preciso.
- Por que tá mexendo no celular, Doc? - Alheio à minha respiração ofegante, ele move os dedos no visor do aparelho antigo enquanto rumina.
- No dia em que nos encontramos, eu tive a bendita intuição de enviá-las a mim mesmo. Parece que estava prevendo que vc as perderia.
- Quem eu perdi, Doc!? - Puxando o ar pela boca, insisto. - Doc!? Olha pra mim! Eu não tô bem!
- Estão aqui. Em algum lugar.
- Doc! Eu preciso respirar!
- Achei! - Exulta ele ao voltar a me encarar e avisar. - Mantenha a calma, filha. - Erguendo-me da cadeira, replico.
- Eu quero ir embora.
- A conta, senhor. - Diz a garçonete com os olhos de rapina e um sorriso malicioso. Deslizando a 'comanda' sobre a mesa, ela comenta. - Espero que tenha apreciado o café. - Voltando seu olhar sinistro para mim, ela pergunta. - Por que não tomou o seu?
- Porque não quis! - Respondo rispidamente ao tocar em sua mão e enxergar o que ela faz à sua mãe. Rosnando, eu a advirto. - Saia da minha frente ou vou te fazer sentir a dor que sua mãe sente, vagabunda. - Assustada, ela recua. Doc me segue até a saída onde me abraça e me pede desculpas. - Pelo quê, Doc? Vc não me fez nada. - Com lágrimas nos olhos, ele refuta.
- Mas vou fazer...
Recosto-me em seu carro. Curvando meu tronco para frente, baixo a cabeça e vomito próxima ao pneu dianteiro. Prestativo, Doc me cede seu lenço enquanto volta a me pedir perdão.
- Eu não queria, filha. Mas vc precisava se lembrar.
- É ele nessas fotos!? É o Aiden!?
- Possivelmente.
- Não vi seu rosto.
- E isso faz diferença!? Precisamos parar com isso, filha! Nossas crianças correm perigo! - Inspirando e expirando sentada no banco do carona, concordo.
- Tem razão. - Ainda em meio à crise de claustrofobia, indago. - O que eu faço agora, Doc? Me ajuda. - Suas mãos frias e suadas pousam sobre as minhas quando o ouço prometer algo que jamais cumpriria.
- Faça o que fizer, estarei contigo.
Agarro-me a Antoine assim que ela, aos pulos, cruza os portões do colégio. Ajoelhada na calçada, choro, chamando a atenção dos pais e alunos. Sorrindo, Antoine beija minha bochecha e diz que tem gosto de sal. Ergo-me com ela em meu colo. Sua mochila quase pesa mais do que ela. Seus cabelos encaracolados me fazem lembrar de uma das muitas crianças nas fotos enviadas pela preceptora vingativa.
O horror em perder minha filha me dá forças para encarar Aiden e dissimular minha repulsa. Observando-o da porta da cozinha, ainda me nego a acreditar que o homem de capuz vermelho na foto seja ele. Vestindo somente a calça de seu pijama, ele sorri enquanto usa, com habilidade, a faca que fatia as batatas. Ele tem se mostrado mais caseiro. Menos violento. Menos insaciável. Mais companheiro. Um pai atencioso que ajuda Antoine em seus trabalhos de casa. Não. Ele não pode ser o mesmo homem das fotos.
- Daqui a uns quinze minutos vai estar pronto.
- O quê? - Desperto com seu beijo. - Não entendi.
- Vc está distante, baby. Algum problema?
- Nenhum. - Inspiro profundamente e elogio. - O cheiro tá uma delícia. O que é?
- 'For Pete's Sake', baby! Vc me pediu um 'Boxty' e já se esqueceu!? - Decepcionado, ele comenta. - O chá não está surtindo efeito. Precisamos voltar ao psiquiatra.
- Não! - Protesto, assustada. Um riso nervoso e refuto, afetando uma calma longe de sentir. - Não. Não precisa. Eu sempre fui assim. Meio que aérea. É óbvio que me lembro do 'Boxty'. Estou preocupada. Só isso.
- Com quem?
- Com Sweet. - Minto. - Ela ainda não se recuperou. Tenho pena das crianças.
- Traga as meninas pra cá. - Sugere ele ao me abraçar. - Espaço não falta. - Fugindo de seu beijo, eu concordo.
- Não falta mesmo. Esse apartamento é imenso. - Segurando meu queixo com uma das mãos, ele indaga.
- Por que não quer me beijar? Tem nojo de mim? - Não. Repulsa. - Baby, não me esconda nada. Precisamos ser sinceros um com o outro pra que nosso casamento dê certo. - Sério??? - Não gosto quando não me olha nos olhos.
- Desculpa. Às vezes, dá medo.
- Do que eu sou? Já se arrependeu de ter me aceitado como sou?
- Não. - Minto novamente. Estou horrorizada por ter de me entregar a um demônio todas as noites. Um demônio em um corpo de alguém que já morreu. - Acho que o 'Boxty' tá queimando. - Desconverso. Contrariado, ele se afasta de mim ao abrir o forno e comentar.
- Quase queimou. - Sem luvas de proteção, com sua mão direita, Aiden retira o refratário do forno aquecido e o apoia sobre a pia. - O quê?
- Sua mão. - Engulo em seco e pergunto. - Não queimou? Deixa eu ver.
- Não sinto dor, baby. Não no corpo. - Movida pela compaixão, beijo a palma de sua mão avermelhada. Corro até o armário na despensa e trago comigo a caixa de 'primeiro-socorros'. - Não precisa.
- Cala a boca. Isso aqui vai piorar se eu não tratar. - Massageio sua mão utilizando um creme contra assaduras enquanto apuro meus sentidos na intenção de capturar alguma de suas lembranças. Ele não pode ser o homem da foto. Continuo a massagear e nada vem à minha mente. Nenhuma visão. Nada. Entre decepcionada e agradecida, argumento. - Mesmo que não tenha vida, sua pele reage. Não vou deixar que sofra se eu puder te ajudar.
- Baby...- Vejo lágrimas em seus olhos claros. Num impulso de paixão, beijo seus lábios rubros e grossos. Emocionado, ele confessa. - Eu nunca fui tão feliz como agora. Devo tudo isso a vc.
- Bobagem. - Sussurro contra seus lábios. - Dá pra provar do 'Boxty'? Tô morrendo de fome.
Aos risos, ele recua. Sua mão recém enfaixada volta a empunhar a faca com destreza ao desenhar uma cruz na panqueca irlandesa.
- Prova. - Pede-me ele soprando o pedaço fumegando na colher. Antoine surge, aos gritos, pedindo para provar também. De joelhos, ele brinca. - Seu desejo é uma ordem, madame.
- Está simplesmente esplêndido, senhor! - Exulta Antoine. Inocente, ela arranca o sorriso do rosto de Aiden de uma só vez ao comentar, de boca cheia. - Vc cozinha bem, tio. Mas meu pai cozinha melhor.
- Claro. - Erguendo-se, ele me olha com tristeza ao resmungar. - Ele sempre faz tudo melhor. Quem sou eu pra competir com um anjo?
- Um anjo!? Meu pai é um anjo!?
- Caraca, maluco! - Cassandra retruca arrastando Antoine pela mão. - Tu tá surtando muito ultimamente!
- Como assim? - Pergunto ainda rindo. - Ela voltou a ver coisas? - Incomodada, Cassandra evita o olhar incisivo de Aiden logo atrás de mim. - Pode falar. - Eu a incentivo, revirando os olhos. - Já estou acostumada às esquisitices de minha filha linda.
- Ela tem falado umas coisas, tia. Coisas que acontecem.
- Premonições!? - Indaga Aiden. Arfando, eu afirmo.
- Isso ela nunca teve! O que ela falou, Cassandra!? Conta!
- Não dá, tia...
- Pode falar, Cassandra. Não vou me aborrecer. - Cruzando os indicadores, ele os beija ao prometer. - "I cross my heart". - Receosa, Cassandra revela.
- Ela disse que a escuridão vai chegar e vai levar um dos tios dela e uma amiguinha também.
- Escuridão!? Levar quem, filha!?
- Sei lá! - Antoine dá de ombros. - Eu tô com fome! - Assevera ela puxando Aiden pela mão. - Dá pra gente comer logo, tio!?
- Filha...- Aflita, ajoelho-me à sua frente e, esforçando-me para não gritar ou surtar, insisto. - Que escuridão é essa? Alguém aqui corre risco de morte?
- Aqui não...- Afirma ela, saltitando até a mesa de jantar. Sentando-se na cadeira aconchegante, ela reclama, indiferente aos nossos olhares de espanto. - Alguém aí pode me servir ou tá difícil!? - Sorrindo, Aiden sussurra ao meu ouvido.
- Coisa de criança. Vamos comer, baby.
- Vamos...- Antes de me sentar à mesa, solto um grito de pavor assim que ouço o 'ringtone' do meu novo celular berrar. - Atende! - Ordeno a Aiden com meu aparelho na mão. Em dúvida, ele indaga.
- Tem certeza?
- Não é meu pai, tio. Pode atender 'de boas'. - Ainda rindo dela, ele, enfim, aceita a ligação.
- Sei. Claro. Compreendo.
- Quem é!? - Grito num desespero do outro lado da mesa gigantesca e retangular. - Me dá! Quem é!? - Ignorando-me, Aiden finaliza.
- Vou comunicar. Tenha certeza. Vai dar tudo certo. Conte conosco.
- Por que não passou pra mim!?
- Porque vc me pediu pra atender!
- Calma, gente. - Apazigua Cassandra. Antoine sorri, de boca cheia soltando um 'Eu disse' enquanto ele avisa.
- Baby, fique calma.
- PUTA QUE PARIU!
- Mãe!!! - Repreende-me Antoine. - Que feio!!! - Inspirando e expirando profundamente, eu tento me acalmar ao refutar num tom baixíssimo.
- Nunca se pede calma a alguém antes de dar uma notícia. É óbvio que vai me contar algo ruim. - Esperando que ele volte a sorrir e me desminta, solto o ar dos pulmões pela boca assim que ouço sua voz grave concordar.
- Tem razão.
Ao seu lado, observo os números, linhas e cores no painel do monitor multiparâmetro de sinais vitais, distanciando-me da conversa entre sua esposa e Aiden que a conforta com palavras de apoio. Volto ao último dia em que nos encontramos e que o vira com saúde, embora desesperado. Retorno ao quarto no momento em que Adele chora nos braços de Aiden, agradecendo-o por arcar com as despesas do hospital de última geração pelo qual meu amigo jamais poderia pagar. Não com o salário que ganha no 'California'. Por que parece que todos nós acabamos, de um jeito ou de outro, dependendo da grana de origem suspeita de Aiden?
Respirando com a ajuda de um ventilador pulmonar, Doc luta por se manter vivo após ingerir veneno em grande quantidade. Adele afirma que Doc chegara à sua casa, com os primeiros sintomas de envenenamento, no dia em que nos encontramos na lanchonete. No mesmo dia em que ele me mostrara as fotos. A imagem da garçonete com olhos de rapina não me sai da cabeça. Por que tanto interesse em me fazer tomar do mesmo café que, provavelmente, quase matara meu melhor amigo? Doc emagrecera após a hemodiálise que retirou o veneno de seu sangue. Por que não acorda, amigo? Fala comigo.
- Não me agradeça. Farei o que puder para recuperar a saúde dele. Afinal, é o melhor amigo de minha esposa.
- Sim...- Confirmo sem desviar os olhos do rosto pálido de Doc. - Eu fui a culpada.
- Não diga isso, baby. - Abraçando-me com força, Aiden me faz chorar ao afirmar. - Vcs não se viam há muito tempo.
- Viram sim. - Refuta Adele, rancorosa. - Ele me disse que a encontraria naquele dia. Vc esteve com ele. Não esteve?
- Não. - Minto. Não posso revelar nosso segredo. Não diante de Aiden que me encara com desconfiança. - Ele disse que me encontraria na lanchonete, mas eu não pude ir. Antoine passou mal no colégio naquele dia. Quando liguei pra ele, ninguém atendia.
- Vc mente! - Acusa Adele. - Ele esteve com vc! Ele não queria me preocupar, mas disse que te encontraria e quando voltou, começou a suar frio, vomitar e a urrar de dor na barriga! - Como o apóstolo Pedro renegara Jesus, por três vezes eu a desmenti.
- Eu não me encontrei com ele! - Grito recuando enquanto ela avança, furiosa, em minha direção. - Eu juro!
- Contenha-se, Adele. - Ordena-lhe Aiden. Quase que imediatamente, ela o atende e se senta no sofá, encolhida de dor. - Nós iremos encontrar o culpado. Eu prometo.
- Eu vou te vingar, amigo. - Murmuro ao ouvido de Doc antes de sair do quarto, aos prantos.
Cassandra e Antoine me aguardam no saguão do hospital. Sem opções, eu as levo até a casa de Sweet. Antes de tocar a campainha do apartamento, aconselho Cassandra. - Cuide de Antoine e fique longe do pó branco. Entendeu?
- Tranquilo, tia. Eu saquei tudo. Drogas? Tô fora.
A porta se abre assim que a empurro. Um gesto ligeiro com minha mão e Cassandra prende Antoine em seus braços, impedindo-a de entrar.
- Fiquem aí...- Sussurro. Sob protestos, Antoine me obedece, aguardando-me fora do apartamento enquanto caminho, cuidadosamente, pelo corredor. Garrafas de cerveja e guimbas de cigarro se espalham pelo chão. Abro a porta do quarto de Jujuba e Mimi. Aliviada, eu as vejo dormir, abraçadas uma a outra. Fecho a porta e sigo em direção ao quarto de Sweet temendo ver minha amiga se drogar. A recaída é fatal. Penso em Vincenzo e no quanto preciso conversar com ele. Estou disposta a tudo a fim de me vingar da garçonete vagabunda e procurar pelo grupo de pedófilos assassinos exposto nas fotos. Giro a maçaneta preparada para ver Sweet se drogar. Porém, nada me deixaria preparada para comprovar o que sempre suspeitei...
- Vcs?
- Não é o que vc tá pensando, Dess! - Profundamente magoada e decepcionada, digo num fio de voz antes de fugir dali.
- Eu não tô pensando. Eu tô vendo.
Corro até a sala. Vincenzo corre atrás de mim enquanto ouço Sweet chamar por seu nome e num gemido, declarar:
"Vc ainda não terminou".
Atordoada, jogo as chaves do carro na direção de Cassandra que as pega no ar. Quase sem respirar, ordeno.
- Voltem pro carro e se tranquem lá! Aumentem o volume do som e não a deixe ouvir nada! Entendeu!?
- Certo, tia!
Descendo as escadas, Antoine e Cassandra se livram a cena deplorável que se segue.
- EU NÃO FIZ NADA DO QUE TÁ PENSANDO, DESS! - Acertando um soco em seu queixo, eu o deixo tonto enquanto grito de ódio.
- GOSTA DE BATER EM MULHER!? QUE TAL APANHAR DE UMA!? VERME! - Bem próxima à sua boca que um dia fora somente minha, alerto. - Fica longe da minha família. Longe da minha filha, seu merda de homem! Merda de anjo dos infernos!
- ESPERA!
- ME SOLTA! - Berro diante do prédio. Lançando um olhar aflito ao meu carro, vejo Antoine mover os lábios com fones de ouvidos. Cassandra canta junto a ela, embora esteja de olho em nossa briga. - NUNCA MAIS ME TOCA! EU VOU LUTAR SOZINHA DAQUI POR DIANTE! FICA COM ELA E COM O QUE ESTAVA FAZENDO LÁ EM CIMA! SEJA LÁ O QUE ERA AQUILO!
- EU NÃO TRANSEI COM ELA!
- VC A ESTRANGULAVA, VINCENZO!
- E ELA GOSTAVA!
- AAAH! ENTÃO TÁ TUDO CERTO! - Outro chute em suas costas e, antes de entrar em meu carro, bizarramente curiosa, indago. - QUE PRAZER É ESSE!?
- Não sei. - Completamente abatido, ele se senta no meio-fio e confessa. - Tentei evitar, mas, desde que 'caí', não consigo dominar esse impulso destrutivo e a única mulher que me incentiva a prosseguir com essa doença, tem sido Sweet. - Um olhar melancólico e ele prossegue. - Eu nunca transei com ela. Juro. Eu nunca te trataria com violência. Com essa violência que carrego comigo desde que vivo no mundo dos Humanos. Eu quero me curar, mas, sozinho, eu não consigo. Quando me lembro de que vc e Aiden transam todas as noites, minha fúria cresce e, então, perco os sentidos.
- Aaah! Agora a culpa minha!? - Erguendo-se de súbito, ele berra.
- SIM! SE NÃO TIVESSE SE JUNTADO AO PIOR HOMEM DE TODOS, ESTARÍAMOS JUNTOS E EU, PROVAVELMENTE, ESTARIA CURADO!
- MENTIRA! CRETINO! - Berro sob a chuva grossa. - VC É UM TRANSTORNADO! AMOR NÃO CURA TRANSTORNOS DE PERSONALIDADE!
- Mas ajudam a amenizar. Dess, acredita em mim. Eu tô me afundando e, sem vc, vou sucumbir.
- FODA-SE! PRECISO VINGAR MEU AMIGO! DOC TÁ MORRENDO NO HOSPITAL!
- O quê???
- Ele foi envenenado na minha frente. - Rosno. - Estou indo agora dar o troco na vagabunda.
- Não se meta com Magia.
- Não. - Ironizo. - Vou aguardar a ajuda de anjo falido e covarde como vc. Adeus, Vincenzo. Eu nunca mais vou me esquecer do que eu vi, mas vou sobreviver. - Abrindo a porta do meu carro, eu o ligo e, sem olhar para trás, meto o pé no acelerador e o abandono.
Sem ter com quem deixar as crianças, retorno ao apartamento onde Aiden me aguarda. Cassandra se apressa em levar Antoine ao seu quarto. Caminhando em minha direção, Aiden demonstra um certo temor ao me abraçar com força. Angustiada, pressinto que algo de ruim acontecera. Temendo a resposta, pergunto.
- Ele morreu?
- Não. Mas está muito mal, baby. Não sei se vai aguentar até amanhã.
- Quero ir lá agora!
- Não pode! Vc acaba de chegar! Está exausta! - Recuando, rosno.
- Eu quero ir lá agora. - Revirando os olhos, ele admite.
- Ok. Eu não vou conseguir te fazer desistir. Ao menos, tome uma xícara de chá. Vai te acalmar. - Sem raciocinar, tomo do chá. Caminho até o banheiro e lavo meu rosto. Meu reflexo no espelho se divide em dois. Apoio as mãos na pia para não cair. Tonta, pergunto.
- O que colocou nesse chá, Aiden?
- Nada. - Diz sua voz sombria. - Nada que te faça mal, baby.
- Se ele morrer, a culpa será sua! - Grito no corredor que leva ao CTI. Descabelada, de pijama, saltara da cama e somente escovara os dentes por insistência de Antoine. Odiando Aiden por ter me sedado, brigo com a enfermeira que me diz não ser horário de visitas. - Foda-se! Meu melhor amigo tá morrendo! Eu não posso deixar que isso aconteça!
- Senhora, mantenha o tom de voz baixo. São sete da manhã.
- Tom de voz baixo é o cacete! - Sem me encarar, ela informa sem a menor empatia.
- O horário de visita se inicia às três da tarde.
- Foda-se! Me deixa entrar!
- Não!
- Sim. - Diz Aiden logo atrás de mim. Encarando-a incisivamente, ele prossegue. - Minha esposa deseja ver seu amigo pela última vez. A senhora não poderia conceder esse pedido a mim? - Um sorriso malicioso e ambos trocam olhares significativos antes da vaca macabra retornar ao Centro de Tratamento Intensivo. - É sério??? Tu conhece essa mulher???
- Nunca a vi antes! - Refuta ele, elevando os braços na defensiva. - Só estou sendo educado!
- Aiden, não brinca comigo! Eu saco as coisas de longe! Vcs se conhecem!
- Não, baby. - Imprensando-o contra a parede, eu o advirto.
- Aiden, agora eu tô com ódio de vc e preocupada demais pra brigar. Quando tudo isso acabar, eu vou querer saber de onde a conhece. Comece a pensar em uma boa resposta a partir de agora.
- Pode entrar, senhora. - Diz a mulher sombria surgindo do nada. - Ele está nas últimas...- Percebendo um certo prazer no tom de sua voz, eu a empurro antes de cravar minha mão em seu pescoço e apertá-lo com força.
- Tu vai se arrepender de ter dito isso a mim, vagabunda.
Do chão, tossindo, ela me xinga enquanto invado o CTI. Corro até o leito de Doc. Seu estado piorou absurdamente. Adele chora encolhida no sofá quando beijo a testa de Doc e sussurro um pedido.
- Não morra, amigo. Não me deixa aqui, sozinha.
- Deram poucas horas pra ele.
- Adele, tenha fé! - Com o olhar distante, ela comenta.
- Não faz sentido. Ontem, depois que vc saiu, ele melhorou. Abriu os olhos e até se alimentou...
- Ele comeu!? Vc provou da comida dele!?
- Não. Por quê? - Afastando um mau presságio, movo a cabeça ao responder.
- Por nada. - Sentada ao seu lado, eu a abraço e, prestes a lhe contar o que houve no dia de nosso último encontro, ouço o sinal estridente do monitor de sinais vitais. Adele e eu saltamos do sofá. Ela chora agarrada à sua mão enquanto grito ao unir minhas mãos e socar seu peito com todas as minhas forças. - ACORDA! VC NÃO PODE MORRER!
Ainda estou socando o peito de Doc quando Aiden me arrasta, afastando-me de Doc, agarrando-me pelos braços.
- É inútil, baby.
- NÃO É! ME SOLTA! - Paro de mover minhas pernas aleatoriamente ao observar a linha verde no painel do monitor deixar de se elevar. Uma linha reta e medonha indica seu fim. Transtornada, desvencilho-me de Aiden, sem deixar de notar sua frieza. Agarrada ao corpo de Doc, peço ajuda. - Se alguém estiver me ouvindo, traga meu amigo de volta. Ele vale mais do que eu...- Sem esperanças, uno minha mão a de Adele quando escuto sua voz protestar.
- Daqui ninguém me tira! Não antes de tentar salvar meu amigo!
- Crianças não são permitidas, senhor! - Reconheço a voz da vaca sombria segundos de arquejar de espanto.
- Filha???
- Saiam da frente! - Ordena Vincenzo, francamente desequilibrado. Aiden tenta impedi-lo de prosseguir. Vincenzo o fuzila com um olhar ao ameaçá-lo num rosnado. - Fica longe de mim ou sofrerá as consequências. A ordem veio de cima. - Aterrorizado, Aiden recua. Ainda confusa, indago.
- Por que trouxe minha filha!? Não quero que ela o veja assim! - Sem paciência, ele me empurra para o lado e vocifera.- Sai da minha frente, porra! O tempo tá passando!
- Calma, pai. - Diz Antoine, sorrindo. - Vai dar tudo certo.
Abrindo caminho até Doc, ela afasta Adele de seu corpo sem vida e, subindo na escada ao lado da cama, alcança a testa de Doc. Esfregando uma mãozinha na outra, ela as apoia em seu peito, próximo ao seu coração. De olhos fechados, ela nos surpreende ao indagar.
- Tio, o senhor não quer acordar? Ainda não é a hora. Tio Miguel mandou o senhor acordar.
Segundos silenciosos de apreensão e tensão se passam até que o milagre acontece. Abrindo seus lindos olhos compassivos, Doc fala com dificuldade.
- Meu anjo. Que saudade. - A voz de Aiden causa-me arrepios ao exultar.
- Uau. Ela é perfeita.
Enchendo-me de coragem, procuro, durante sua ausência, por alguma prova que o ligue ao ritual. Invado seu closet, revirando gavetas e cabides em busca do maldito manto vermelho com capuz. Quase chegando à 'Nárnia', desisto. Deitada sobre as roupas espalhadas pelo chão, encaro o teto. Desanimada, penso em desistir de tudo quando sinto sua presença ao meu lado.
- Vai desistir sem lutar? Essa não é a 'tia Dess' que eu conheci. - Sufoco um soluço. Erguendo meu tronco, reclamo.
- Giulia!? Por San Juan Diego! Por que não descansa, criança!? Eu já matei o seu assassino! Por que não atravessa o túnel!?
- Porque não me deixam! - Revirando os lindos olhos claros, ela resmunga. - Eles me deram essa missão e não posso descansar antes de impedir a morte de outras crianças que partiram do mesmo jeito que o Luka.
- Por quê!? - Indago, de bruços. - O que o Luka tem a ver com vc!?
- Temos o mesmo pai.
- Então...vcs são...?
- Irmãos, tia! Meu irmão ainda sofre! De onde está, ele ainda chora pelas outras crianças! Sacou!? Reaja! - Erguendo-se do chão, ela ordena. - Levanta daí!
- Não suma! - Grito de joelhos. - Eu já procurei em todos os lugares! Me ajuda! - Antes de sumir, ela pergunta.
- Já tentou embaixo do colchão, tia?
Como se minha cama fosse um crocodilo prestes a me atacar, eu a observo antes de me mover em sua direção. Cautelosamente, toco nos lençóis. Apavorada, eu os puxo antes de ser tomada por uma força extrema e erguer, de uma só vez, o pesado colchão 'king size'. O colchão tomba para o lado contrário ao meu enquanto eu recuo, abruptamente, chocando-me contra a parede. Sufoco um grito de horror ao encontrar o que procurava. Estendida sobre o estrado da cama, enxergo a longa capa em veludo vermelho. Sem saber o que sentir, balbucio.
- É ele.
- O que está fazendo, baby?
- Faxinando! Nunca ouviu essa palavra!?
- Temos empregadas.
- Foda-se! Eu quero me movimentar! - Minto. Desejo apagar os vestígios de minha intrusão em seu mundo. Desejo limpar nosso quarto das lembranças do que fizeram a Luka. - Eu tô cansada dessa vida de 'burguesinha' que vc me dá! - Minto outra vez. Talvez, tenha me adaptado ao luxo e dele, não queira me afastar e, por isso, não quero aceitar que Aiden seja um deles. - Eu quero ser útil, merda!
- Baby...- De joelhos, esfregando o piso ao redor da cama com as mãos em um pano de chão embebido em água sanitária, eu não o ouço até que ele me erga pelos braços e me faça encarar seu sorriso tímido. Eu gosto tanto dele... - Baby. Para. Vc está me assustando. O que houve? Alguém te magoou?
- Não. - Jogando o pano úmido no chão, evito seu olhar. - Só tô exausta de tudo. Só isso. Preciso lavar minhas mãos. - Debaixo da água que jorra pela torneira da pia de nossa suíte, esfrego minhas mãos e braços com repulsa. Usando uma escovinha, arranho a pele do antebraço até sangrar. Revejo o sangue de Luka escorrendo pela grande pedra minutos antes de exalar. - Que nojo! Eu preciso fazer alguma coisa!
- Chega! - Resoluto, Aiden me toma em seus braços e me obriga a permanecer debaixo do chuveiro. A água fria me desperta. Resmungando, aviso.
- Eu tô vestida!
- Eu sei! Melhor assim! Eu não quero me desviar do propósito!
- Que propósito, porra!
- Te acalmar, baby. - Diz ele com ternura. Debaixo d'água, choro ao ouvir sua voz vacilante. - Eu nunca te vi assim antes. Não me deixa. Por favor. Não me deixa. Sem vc, eu não sou nada. Absolutamente nada. Não me deixa, esposa. - Uma parte minha ainda se nega a enxergar o óbvio quando respondo enquanto ele seca meus cabelos.
- Não vou.
Cruzo os braços mantendo minha mochila contra meu peito. Olho para os lados, receosa. Temendo estar sendo seguida, apresso o passo. Desço os degraus que me levam ao metrô. À espera do próximo trem, sinto uma presença maligna ao meu lado. Seu sorriso sinistro consegue ser mais assustador do que seus olhos escuros como a noite. Prestes a me empurrar contra os trilhos do trem, uma senhora de cabelos longos e vermelhos me abraça e me conduz ao interior do vagão que acaba de parar, mantendo-o afastado. Há medo e ódio nas feições do jovem que me assiste partir, impotente, assim que as portas se fecham lentamente. Emocionada, procuro a senhora a fim de lhe agradecer por ter me salvo e não a encontro no vagão vazio. Ainda assustada, caminho pela rua deserta sem compreender como descobrira a loja certa dentre tantas outras.
- Espero que caiba em mim. E se ficar curto demais? USE TÊNIS! Quem fala comigo!? Morgana!? Já ouvi falar em seu nome!? NUNCA! EU SOU A QUE ELE PREFERE E SEMPRE SEREI! Ele quem, idiota!? Vc tá louca!? - Porra! - Esbravejo ao esbarrar em alguém. - Não olha pra onde anda!?
- Fala sério! - Resmunga ele sob a luz dos letreiros luminosos.
- Puta que pariu! O que tá fazendo aqui, seu verme!?
- Trabalhando, idiota! Vc vive 'metendo' essa de que não sabe por onde anda, mas sempre vem parar aqui! - Rindo histericamente, refuto.
- E por que eu andaria por essas ruas infestadas de ratos se eu moro em um bairro de classe média alta!?
- Porque vc pertence aos ratos. - Rosna Vincenzo ao me dar as costas. Comprimo minha mochila com as mãos porque não quero que ele saiba o que contem dentro dela. - Para de pensar alto, babaca. O que tem nessa mochila?
- Nada que te interesse! Sai da frente! - Recuando, ele se curva numa reverência e ironiza.
- Fique à vontade, 'milady'. - Levo a mão ao peito e emito um gemido de dor. Preocupado, ele me toca no rosto e indaga. - O que houve, Dess?
- Não sei. Eu já vi isso antes. Dói. - Um sorriso triste e ele comenta.
- Todas as nossas lembranças são doloridas e parece que sempre serão até que vc o faça partir.
- Aiden?
- Sim. Enquanto ele estiver entre nós dois, nunca seremos felizes juntos. Ele sempre tira vc de mim.
- Como?
- Prefiro não dizer...
- Prefiro não ouvir.
- Vc não vai fazer o que eu penso que vai!?
- Não sei o que pensa que vou fazer, mas, certamente, se eu fizer o que vc pensa que vou fazer, isso não lhe diz respeito.
- Vermelho!
- O que, idiota!? - Grito diante da fachada espelhada da academia de boxe. Desconversando, ironizo. - Essa é a sua cor preferida!? 'Vermelho puta' viciada em cocaína!? - Enraivecido, ele responde.
- Não! 'Vermelho burra' metida à heroína! - Um passo à frente e ele me ameaça. - Não se atreva a ir até lá sozinha! - Outra risada histérica e minto. - Não faço ideia do que tá falando! - Estou prestes a seguir Aiden e acabar com tudo. Ainda não sei como, mas vou encontrar uma saída.
Sua camisa molhada se gruda ao seu corpo com músculos definidos o que, ainda, me distrai. Com suas mãos em minhas têmporas, ele fala suavemente.
- Dess, vc não pode ir sozinha. É perigoso demais.
- Se ao menos eu soubesse aonde ir...
- Eu sei onde eles se encontram.
- Sabe!?
- Sei...- Sorrimos juntos. Uma suave corrente elétrica percorre meu corpo antes de eu me afastar e indagar.
- Por que não me disse antes!?
- Porque eu não quero que vá sozinha. Precisamos de ajuda. - Reviro os olhos ao bufar.
- Eu não preciso de ninguém. Vou salvar nossa filha e outras crianças antes que...
- Que o quê?
- Ele tem interesse em Antoine. Eu senti. No dia em que ela fez Doc voltar à vida. - Minha voz embarga ao confessar. - Tô morrendo de medo e é o medo que vai me levar até eles. Ninguém vai tocar na minha filha.
- Em nossa filha...- Corrige-me ele. Forçando-me a me manter em seu abraço, ele reforça. - Nossa filha. Ninguém vai tocar na nossa filha.
Minutos de paz sob a chuva fina e me esqueço de tudo em seus braços até que ele, sorrateiramente, puxe minha mochila e a leve consigo.
- Filho da puta! Me dá!
- Não antes de ver o que tem aqui! - Sigo-o xingando até o interior da academia vazia onde ele abre o zíper da bolsa e murmura, abismado ao rasgar a embalagem. - Porra. É sério?
- Eu preciso saber o que rola lá dentro. A preceptora que me enviou as fotos foi vingativa, Vincenzo. Eu a humilhei. Ela revidou. Talvez, não seja o Aiden. - Olhando-me com indignação, ele aumenta o tom de voz ao indagar.
- E se não for, porra! Tudo bem!? Vamos deixar que crianças morram porque o seu Aiden não é o líder deles!
- NÃO! - Tomo o pacote de suas mãos e refuto, aos gritos. - EU VOU SALVAR AQUELAS CRIANÇAS! SÓ NÃO SEI COMO!
- Dess, vc tá sendo perseguida!
- Vc viu o que rolou no metrô!? - Pergunto, horrorizada. - Foi bizarro!
- Doc foi envenenado por alguns deles, amor. Eles estão se movimentando. Querem acabar com as testemunhas. Por que acha que seu celular sumiu?
- Foi roubado. - Respondo inocentemente. - Levaram o do Aiden também.
- Boba! Vc acredita em tudo o que ele fala mesmo sabendo que é um demônio unido a outro demônio!?
- Ele tem sido bom comigo e com Antoine...
- Porra! - Exalta-se ele socando o 'punch' pendurado num dos cantos do galpão. Enfurecido, ele continua. - O cara manteve uma criança em cativeiro e vc ainda o defende??? Ele mostrou o que é a vc, Dess!!! Ga'al dorme na tua cama e vc não vai reagir??? Vai esperar que mate nossa filha porque, como ele mesmo disse, "ela é perfeita"??? Perfeita pra quê, Dess!? RESPONDE!!!
- Não não...- Diante de minha apatia, ele me empurra contra a parede e avisa num rosnado.
- Eu não vou ficar aqui parado. Chega de esperar por vc. Com ou sua permissão, vou matar esse merda!
- Vamos. - Concordo, confusa. - Eu não suporto mais viver assim. Eu não deveria ter humilhado a preceptora. Se eu a tivesse tratado bem, Doc não teria visto as fotos e estaria bem.
- Pelo amor de Deus, Dess! Acorda! Se a preceptora enviou as tais fotos é porque ela estava lá! Ela estava no ritual! Não te parece coerente!?
- Faz sentido...
- Dã! - Zomba ele socando sua testa. Um pouco menos nervoso, ele me lança um olhar benevolente ao dizer. - Amor, vc é boba. Não vai conseguir sozinha. Tem pena dele. Sempre teve. Vc não tem a raiva necessária pra lutar contra essa gente.
- Não tenho!? Tenho sim!
- Não tem! Vc distribui socos e pontapés, mas não tem coragem de atirar em alguém ou de usar uma faca quando for preciso.
- Eu vou conseguir.
- Não vai.
- Por que tá me olhando esquisito?
- Por nada. - Dando-me as costas, pergunto, intrigada.
- E quem teria coragem de lutar contra eles? Você? - Voltando-se para mim, sob a tênue luz da luminária, ele me assusta ao responder num tom sombrio.
- Uma de suas amigas.
- Sweet???
- Não. A mais violenta de todas.
- Do que tá falando???
- Eileen.
- Quem???
- Esquece. - Caminhando até a saída do galpão, refuto, irritada.
- Fique com essa Eileen porque eu vou lutar com as armas que eu tenho!
- Espera! - Puxa-me ele pelo braço. - Me ouve.
- Não! Responda-me vc! Como soube sobre Doc, a perseguição no metrô e a preceptora!? Eu não te falei nada!
- Sou a porra de um anjo. - Um sorriso matreiro e ele pergunta. - Se lembra disso? Tenho meus informantes. - Um tapa em seu rosto e, alcançando a calçada, ironizo.
- Então peça aos seus fantásticos informantes para estarem na mansão na próxima lua cheia. Ah! E leva essa tal de Eileen também! Deve ser outra que gosta de apanhar! Filho da puta!
- Como estou?
- Irreconhecível.
- Não a incentive, Adele! - Repreende-a Doc. - Ela não pode ir sozinha! É perigoso! - Afofando seu travesseiro, resmungo.
- Vincenzo disse a mesma coisa e vc o vê por aqui!?
- Deixe que eu me recupere, filha. - Pede-me Doc ainda acamado. Em seu quarto, quase que recuperado, ele insiste. - Isso não tá certo. Eu sei lidar com essa gente. Vc não. - Diante do grande espelho retangular, observo meu reflexo e, sentindo fluir uma estranha energia em meu corpo, sussurro.
- Talvez eu saiba, Doc. Talvez eu saiba.
Antes de partir e deixar Antoine e Cassandra sob os cuidados de Adele, Doc, em segredo, entrega-me seu revólver. Assustada, eu o deixo cair no chão ao gritar.
- Eu não sei usar isso! - Com esforço, ele se levanta da cama e segura a arma, cuidadosamente. Erguendo-se, ele argumenta.
- Está travada. Eu te ensino a usá-la. Vc precisa de proteção.
- Não precisa, amigo. E, mesmo que eu quisesse, não daria tempo. - Do bolso da longa túnica vermelha, retiro um punhal que reluz sob a luminária de seu quarto. Encarando-o com a voz trêmula, comento. - Prefiro usar isso.
- Deus do céu, filha! O que pretende fazer!? Não foi esse o combinado! Vc iria apenas para observar e colher provas!
- É exatamente o que pretendo fazer. - Minto. - Colher provas e se algum idiota encostar em mim, vai se ferrar. Fica tranquilo, Doc. - Forço um sorriso e, sem convicção, afirmo. - Vai dar tudo certo, Doc.
- Vc tá linda, mamãe! Parece a 'Chapeuzinho Vermelho'! Pra onde vai!?
- A um baile à fantasia. - Minto a Antoine antes de beijar suas bochechas e chorar. Apertando-a contra o peito, sussurro. - Te amo mais do que tudo nesse mundo.
- Eu também, mãe. - Olhando-me, curiosa, ela pergunta. - Mas, por que tá chorando? Se não quer ir ao baile, não vai, ué!
- Eu preciso, filha. Por vc, eu preciso.
Dirigindo o carro de Doc, sigo Aiden por quilômetros. Estaciono distante da mansão luxuosa e iluminada. Cubro minha cabeça com o capuz vermelho e, por entre as árvores, eu o observo caminhar até o grande portão onde o reverenciam. Elegante, de smoking, ele cumprimenta o grupo que o segue arrastando suas longas capas vermelhas pela escadaria até o grande portal. Inspirando profundamente, lanço um olhar à lua cheia e amarelada e suplico.
- Me ajuda. Eu não sei o que fazer, mas preciso fazer alguma coisa.
- Eu não acredito.
- Puta que pariu! Quer me matar de susto!?
- Vc é teimosa pra cacete!
- O que faz aqui!?
- Fala baixo, idiota! - Cochicha Vincenzo com a cabeça coberta pelo capuz vermelho. - Vc não vai entrar lá! Não mesmo!
- Aaaah! Tenta me impedir! - Agarrando meu braço com força, ele indaga, irritado.
- Como pensa em entrar!? Tem a senha!?
- Que que que senha!?
- Burra...- Rosna ele, recuando. Andando de um lado a outro, de cabeça baixa, ele parece pensar em alguma saída. - Para de pensar! Estou tentando raciocinar!
- Não grita comigo! - Vindo em minha direção, transtornado, ele pede.
- Fala baixo, Dess. O que vc pensa que vai fazer aqui?
- O mesmo que vc, idiota! Vou lutar contra eles e defender nossa filha! Não ria de mim!
- Estou sorrindo pra vc, amor. - Diz ele num desânimo. - Eles são muitos e perigosos. Provavelmente, já sabem que estamos aqui.
- Não sabem não. Eu tomei bastante cuidado. Aiden não faz ideia de nada. Doc me emprestou seu carro. - Uma piscadela e, triunfante, assumo. - Viu? Não sou tão burra quanto pensa.
- Ele sabe que vc está aqui, Dess. Ele sente seu cheiro.
- Tolice. Eu não usei perfume. Por que não tá na casa de Sweet!? Eu passei por lá! Sweet estava drogada e as crianças não estavam lá!
- Eu não sou babá, Dess!
- Elas não estavam lá...- Repito, intrigada. - Onde elas devem estar?
- Não sei. Com algum parente? - Com a voz trêmula, comento.
- Sweet não tem ninguém além das filhas. Ela não disse nada. Estava aérea. Esquisita...
- Não me deixa nervoso, Dess.
- Tô com medo do que penso.
- Fica calma. Não pensa em besteira. Não agora. Elas estão bem. Devem estar na casa de alguma amiguinha.
- Tem certeza? - Forçando um sorriso, ele afirma.
- Sim. Aiden sabe que o seguiu.
- Não mesmo. Não me olha assim.
- Vc sabe o que ele é.
- Sim...- Confesso, arrependida.
- E o aceitou mesmo assim. -
- Cala a boca. - Resmungo, empurrando-o com a lateral de meu corpo. Deixando-o para trás, caminho pelo gramado. Eu o odeio por ter dito a verdade. Eu me odeio por não conseguir me livrar de Aiden. Alcançando-me, ele me faz parar e comenta, esperançoso. - Talvez, se o visse como ele realmente é, vc conseguiria se livrar dele.
- Talvez...
- O que faremos?
- Vc não tem um plano!? Que absurdo! - Pressionando-me contra o tronco de uma árvore, ele ri antes de responder.
- O meu plano é me misturar a eles e investigar. - Seu corpo contra o meu me impede de respirar e de raciocinar. Logo, replico.
- O meu também.
- Vão te reconhecer, idiota...- Diz ele contra meus lábios.
- Não vão...- Suspiro. Medo e paixão se misturam dentro de mim quando refuto.
- Que reconheçam. Já tô pensando em acabar com eles faz tempo.
- Não me diga?
- Para de me olhar assim, seu transtornado, espancador de mulheres.
- Falou a mulher com várias faces...
- Não entendi.
- Esquece, Dess. - Retirando meu capuz, ele observa meu rosto como se me visse pela primeira vez e, abrindo um sorriso cafajeste, ele argumenta. - Se essa for a última vez em que eu te vejo, eu quero sentir o gosto do teu beijo pela última vez...- Apavorada, imploro.
- Não fala assim. Vc não vai morrer.
- Dess. - Sussurra sua voz rouca antes de me beijar. Volto a sentir o gosto de seus lábios, de sua língua sedenta. Seus gemidos, as mãos em meu rosto, sua boca em meu pescoço. O desespero de matar as saudades é interrompido quando ruídos de passos nos separa, de imediato. Agachados próximos a um arbusto, enxergamos seus coturnos por baixo da manta em vermelho. Cobrindo minha cabeça, jogo-me contra a grama e lamento.
- Já era. Fomos pegos. - Erguendo-se, Vincenzo me faz gritar.
- Volta!
- Eu sabia que viria, meu grande amigo. - De onde estou, eu o vejo abraçar um homem alto, forte e sem face. Cautelosamente, eu me aproximo deles enquanto Vincenzo me apresenta ao homem que esconde seu rosto. - Dess, esse é um grande amigo. - Curiosa, procurando por seus olhos, indago.
- Ele tem nome?
- Sim.
- Qual?
- Amigo. - Irritada, pergunto.
- Ele pode nos ajudar?
- Muito.
- Ele fala?
- Pouco.
- Saco...
Obrigada a segui-los em silêncio, chegamos ao primeiro portão onde nos pedem a senha. Olhando para o chão, ouço a voz do amigo de Vincenzo ressoar em algum dialeto. Não faço ideia do que acabo de ouvir, mas funcionou. De mãos dadas a Vincenzo, subo os degraus da longa escadaria sem deixar de notar morcegos sobrevoando nossas cabeças. Vincenzo percebe meu pavor e apertando minha mão diz.
- Confia em mim, amor. Estarei sempre contigo. - Escondo um sorriso assim que ultrapassamos o grande portal. O interior da mansão é todo em vermelho e preto com detalhes em dourado. Há um altar logo adiante. Sobre ele, um rebuscado castiçal dourado equilibra três velas bruxuleantes.
Garçons com máscaras servem champanhe aos presentes. Uma histeria incômoda toma conta dos convidados que conversam sobre a grande surpresa que nos aguarda. Sem erguer a cabeça, vejo serpentes e ratos espalhando-se pelo piso em preto e branco. Uma delas avança sobre mim. O amigo de Vincenzo a repele com um simples erguer de seu braço. Assustada, penso em ir embora e desistir de tudo. Vincenzo diz ser tarde demais.
- A cerimônia vai começar.
- Algo de ruim vai acontecer, Vincenzo! - Aviso, em pânico. - Vc não viu os ratos e serpentes!? O Mal tá presente aqui! Eu não quero ficar!
- Não há como sair antes do fim, Dess. Seja forte. - Cochicha ele, apreensivo. - Vc sabia que seria assim ou achou que encontraria anjos, fadas e gnomos numa 'Rave'? - Sua mão toca meu rosto ao afirmar. - Não vou deixar que nada de ruim te aconteça, amor. - Escondidos por uma das muitas pilastras em mármore, refuto.
- Não é de mim que estou falando. Algo de ruim vai acontecer a alguém inocente.
- Eu sei, amor. Eu sei. - Diz ele, aflito. - Eu sinto a mesma coisa. Segura o choro, Dess. Vão nos descobrir. Controle-se.
- Não consigo! Eu quero sair daqui! - Um toque do homem sem rosto em meu ombro e me sinto revigorada e mais calma. Surpreendida pela energia que vem dele, agradeço antes de me aproximar e pedir. - Posso ver seu rosto? Acho que o conheço.
- Não, Dess.
- Não perguntei a vc, Vincenzo. - Reclamo sem desviar meus olhos do homem alto, costas curvadas para frente e a cabeça baixa, coberta com o capuz, a quem volto a perguntar. - Eu te conheço?
- Ele não pode se mostrar antes do momento certo, Dess. - Rosna Vincenzo apertando meu braço. - Fica calada.
- Estúpido. Eu só queria...- Um arquejo de espanto e deixo escapar um palavrão. - Puta que pariu. Olha aquilo.
- O quê? - Erguendo o braço, aponto meu indicador a uma mulher baixa e esquálida. Eu jamais me esquecerei de seu olhar maldoso. - Dess, não a encare. - Um brusco movimento e ele me esconde com seu corpo antes de eu ser vista por ela. Puxando-me pelo braço, ele me guia ao outro lado do salão repleto de gente sombria. Uma multidão inquieta e ansiosa nos cerca. Irritado, Vincenzo rumina. - Quer estragar tudo?
- É a preceptora do inferno. - Cochicho. - Ela tá aqui. Ela tirou as fotos. Ela faz parte do grupo. Sempre fez. Como eu sou estúpida. Ela cuidava da minha filha. Da minha filha! - Prestes a perder o controle e correr em direção à preceptora vingativa, ouço a ordem do amigo de Vincenzo ressoar em minha cabeça confusa.
"Te aquieta. Para o bem de tua filha, te aquieta".
- Como fez isso??? - Intrigada, semicerro os olhos e o confronto. - Vc 'caiu' também?
Vincenzo está prestes a me responder quando seus lindos olhos azuis se arregalam. Olhando na mesma direção, arquejo, horrorizada. Alguém surge, no altar, vestindo túnica preta. Seu rosto coberto pelo capuz se mantem escondido sob a penumbra. As luzes do salão se apagam. Tochas presas às paredes são acesas emprestando ao ambiente, um clima fantasmagórico. Hipnotizada pela presença do homem no altar, dou um passo à frente. Aos gritos, os convidados o louvam como a um deus. Puxando minha capa, Vincenzo avisa num tom baixo.
- Nunca mais se afaste de mim, Dess, ou vai estragar tudo.
- Tudo o quê? - Mergulhando em seus olhos, indago, assustada. - O que vc sabe que eu não sei? O que vai rolar aqui, Vincenzo?
- O que viu nas fotos, Dess!!!
- Não pode...
- Não vai rolar se conseguirmos impedir, Dess. Eu prometo.
- Algo deu errado...- Afirma o amigo de Vincenzo ao encarar o líder no altar. Num tom de lamento, ele diz. - Anteciparam o ritual. Chegamos tarde demais.
- Tarde demais pra quê!? - Grito, angustiada, incomodada com os empurrões da turba ensandecida que saúda em coro:
"Salve, Asmodeus! Salve!"
- Hoje teremos duas! - Exulta a jovem ao meu lado.
- Duas o quê!? - Seu sorriso me faz tremer ao ouvi-la responder.
- Duas oferendas ao mestre! Não te contaram!?
- Não! - Grito, apavorada. - Vc é a vaca macabra do CTI! Bandida! - Acertando um soco em seu pescoço, eu a faço desmaiar. - Isso é por ter tentado matar meu amigo. - Chutando seu corpo inerte, vou abrindo espaço entre a multidão de rostos patibulares em êxtase. Tentando não surtar, digo a mim mesma. - Eu preciso achar o Aiden! Ele não vai permitir que nada de ruim aconteça!
- Caralho! - Protesta Vincenzo logo atrás de mim. - Vc ainda não consegue enxergar a verdade!? Não reconheceu o homem no altar!?
- NÃO! - Berro totalmente descontrolada. - ME SOLTA! ELE DISSE QUE NÃO ERA UM DELES! ELE DISSE! - Recuando, incrédulo, Vincenzo me olha com repulsa ao apontar para o altar e comentar. - Vc é como ele. Vcs dois se merecem. - De costas para mim, eu o vejo partir ao lado de seu amigo. Puxando o ar pela boca aberta, tonta, observo, em câmera lenta, o sacerdote erguer um corpo de criança com seus braços fortes. Em choque, caminho até o altar. Diante de mim, o sacerdote sorri, triunfante. O sangue inocente da criança sem vida escorre por seu antebraço após encharcar a gaze branca enfaixando sua mão direita. O curativo que eu mesma refiz hoje pela manhã. Como em um pesadelo, grito a fim de acordar. Desperto assim que o líder joga o corpo frágil de Mimi sobre a pedra em mármore e retira seu capuz.
- Vc prometeu...- Digo antes de subir no altar e acolher o corpo de Mimi em meus braços. Olhando em seus olhos escuros e frios, aviso. - Eu vou te matar, Aiden. Vc é um psicopata.
- Ele não está. - Diz a voz gutural. - Mas posso deixar recado assim que terminar.
No chão, recostada à parede, aperto Mimi contra meu peito e revejo seus últimos momentos de vida. Choro, enchendo-me de ódio sob o olhar enfurecido de seus seguidores clamando por sangue e vingança.
- Tragam a outra! - Ordena a preceptora olhando-me com soberba. Por segundos, temo pela vida de Antoine até reconhecer o choro de pavor de Jujuba no colo de Aiden, ainda com vida. Ensanguentada, imagino pelo que ela deve ter passado antes de chegar aqui. A imagem de Luka vem à minha mente segundos antes de olhar para a multidão que urra de dor ao ser dizimada pelo fogo azul escapando das enormes asas abertas do amigo de Vincenzo.
- Miguel...- Sussurro, perdida. Vincenzo sobe os degraus até o altar e, acolhendo o corpo de Mimi em seus braços, pede-me algo que sou incapaz de compreender.
- Somente vc tem o poder de acabar com ele, Dess. Tem que ser agora. - Jujuba grita por Sweet. Vincenzo, desnorteado, repete num berro. - TEM QUE SER AGORA!
- Como??? Não tenho coragem!!!
- Vc não! Ela tem! - Aos prantos, indago.
- Ela quem???
Aiden, tomado por seu demônio, gargalha ao elevar os braços. Nas mãos cerradas, uma adaga reluz sob a luz das tochas enquanto ouço Vincenzo cantarolar ao meu ouvido:
"Sha na na na na na na na na na..."
De súbito, eu me ergo do chão, ainda sentindo o gosto metálico de sangue na boca. Lançando um olhar de raiva a Vincenzo, rosno.
- Vc prometeu que nunca mais me deixaria.
- E não vou deixar. Termine o que começou.
Caminho até ele. Segurando seus punhos no ar, aviso.
- Hoje não é o seu dia de sorte, Mr. Byrne.