Estou vivendo meus melhores momentos ao lado de minha tia, minha amiga, minha cúmplice enquanto o meu homem luta por nosso sustento, bem longe daqui. Ainda que Antoine me mantenha distante, ela não pode me impedir de cuidar de Matteo como se fora meu filho porque, no fundo, ele é o meu filho Enzo que retornou do mundo dos mortos por amor a mim. Tia Celeste, contrariando minha vontade, parece gostar de Antoine e a protege de mim. Irritada em ver o bebê recusar meu peito por inúmeras vezes, eu o deixo chorando no berço.
- Que chore! Ele não quer meu leite! Então, fique com fome!
- Filha, não é assim que se cuida de um bebê. - Aconselha-me Celeste, preocupada. - Não se lembra de nosso 'bambino'? Enzo era assim também. - Enraivecida, refuto.
- No nay never! Meu filho era calmo, tranquilo! Ele me amava! Meu Enzo me amava!
- Esse não é seu filho, vaca! É da minha mãe! O nome dele é Matteo. Filho de Adessa e Vincenzo! Meu irmãozinho!
- Antoine! Não xingue sua mãe! É feio!
- Vovó! Ela não é a minha mãe e a senhora sabe disso! Me ajuda! - Ajoelhada diante de Celeste, Antoine dramatiza. - Ajuda minha mãe a voltar. Meu pai não pode lutar, vó. Ajuda. - Chego a ver lágrimas nos olhos de minha tia assim que ouço o som estridente da campainha.
- For Pete's Sake! Quem diabos visitaria alguém a essa hora da noite!? - Marchando até a porta, resmungo. - Isso é uma casa de família e não um 'pub'! Quem é!?
- Sou eu, tia! - Responde-me a voz feminina do outro lado da porta. Parece-me a vagabunda que se esqueceu de mim da última vez que voltei. Vincenzo andou mexendo em suas memórias. Ele adora fazer isso. - Sou eu! Cassie!
- Cassie!!! - Grita Antoine num desespero. - ME AJUDA!
- Antoine! Cala a boca ou...!
- Eu trouxe sua torta preferida, tia! Uma 'pavlova' de morango! Abre! - Revirando os olhos, retruco.
- Não estou com fome. Volte amanhã.
- Abra agora, Celeste. - Ordena a voz de um homem que, estranhamente, mexe com os nervos de minha tia. - Ou posso esperar por nosso amigo até o dia amanhecer. O que acha?
- Que amigo, 'Coelhinho'? - Indaga a voz da criatura irritante que não se cansa de bater à nossa porta. - Abre!
- Abra. - Ordena-me tia Celeste, apavorada. - Num sussurro, refuto.
- Não quero falar com ninguém, tia. - Pousando sua mão sobre a minha, ela faz girar a maçaneta ao insistir.
- Abra agora mesmo ou vai se arrepender.
Diante do olhar amedrontado de minha tia, eu abro a porta e os deixo entrar. Sem a menor cerimônia, Cassie passa por mim, entrega-me a torta e abraça, demoradamente, Antoine enquanto Matteo chora em seu berço. Liam, sem me cumprimentar, vai até o quarto e o segura em seus braços e, em gaélico diz que tudo vai ficar bem.
Idiota.
- O que querem aqui a essa hora? - Rosno da cozinha onde deixo a 'Pavlova de morango' sobre a pia. - Já estávamos indo dormir.
- Mentira, tio! Ajuda meu pai e minha mãe!
- Calma, pirralha. Do que tá falando?
- Cassie, o tio Liam sabe!
- Calma, Antoine. - Diz Liam embalando Matteo em seu colo. - Eu vou conversar com sua mãe e avó. Por que não vai até seu quarto com a Cassie e assiste a um filme bacana?
- Tio! - Exalta-se Antoine. - Ela não é...! - Matteo passa para o colo de Cassie enquanto Liam se ajoelha diante da dramática Antoine e lhe cochicha algo. Resignada, ela se afasta lançando um olhar de cólera a mim. Sorrio ao vê-la se afastar levando o pequeno bastardo consigo. - Pode rir agora. - Desdenha ela antes de fechar a porta de seu quarto. - Porque, quando meu tio Liam terminar, minha mãe vai voltar. - Inflando as narinas, ela me encara até que Cassie as tranque no quarto e nos deixe a sós, na sala.
- Acabei de preparar um chá, Liam. Gostaria de uma xícara?
- Obrigado, Celeste. Não venho aqui em missão de paz. Vc, mais do que ela, sabe o que vim fazer aqui. Um amigo corre risco de morte. Um alarme foi disparado entre nossa comunidade. Aquele que vc diz amar pode morrer por sua negligência.
- Que comunidade??? - Pergunto num tom irônico. - Desde quando minha tia pertence a uma comunidade???
- Fique quieta, Eileen. - Ordena-me Celeste, num tom muito baixo. - Não fale nada até eu dizer que pode falar. O assunto aqui é sério.
- Mas tia...!
- 'Fan air'. - Rosna Celeste enquanto me afasto e me sento no sofá em couro com um pequeno rasgo no canto esquerdo. Contrariada, resmungo um 'Ok. Eu fico calada'. - O que deseja Liam?
- Resolver essa situação da melhor maneira possível. Não gostaria de incomodar meu amado e velho amigo Enrico. Isso o entristeceria demais. Estou errado?
- Não. Por favor. Deixe ele em paz. Ele não pode saber que...
- Que vc tem cometido os mesmos erros?
Angustiada, tia Celeste pergunta.
- O que deseja Liam? Por favor, não fale nada a Enrico. Ele não merece saber que tenho errado. Eu não sou má. Eu a amo...
- Por seu amor a Eileen e ao corpo que ela habita, faça com que ela durma. Meu amigo Vincenzo precisa de sua esposa. - Do sofá, eu protesto.
- EU SOU A ESPOSA DELE, CRETINO!
- EILEEN! - Repreende-me tia Celeste. - Continue calada!
- O que esse Liam tem que a faz ter medo de ser quem vc é, tia??? Vc sempre esteve ao meu lado!!! Agora, que estou de volta, vc não me parece feliz!!!
- Celeste, o que decide? Ela dorme ou Enrico acorda?
Atormentada, tia Celeste anda de um lado a outro da pequena sala e, enfim, chega a uma conclusão.
- Não consigo. - Lamenta ela. - Não consigo ir contra minha Eileen. Por favor, deixe-a ficar por algum tempo.
- Tempo suficiente para que meu amigo morra? Tempo suficiente para que seus filhos sofram em suas mãos? Tempo suficiente para que minha amiga Adessa sofra na escuridão onde se encontra, desesperada pelo destino dos que ama!? NUNCA!
- QUEM ELE PENSA QUE É, TIA???
- Alguém que sua concepção de vida jamais irá entender...- Dirigindo-se a Liam, ela implora. - Não. Não deixe que Enrico enxergue meu lado sombrio.
- Tarde demais, Celeste. Ele está entre nós.
Tomada por algum sentimento de remorso, medo ou vergonha, ela tenta se esconder atrás do sofá assim que uma luz fulgurante surge do teto e se materializa diante de nossos olhos extasiados.
- De novo, Celeste? - Lastima o homem que ri com os olhos. - Controle nossa sobrinha e liberte a dona do corpo que ela habita. Vincenzo precisa de ajuda.
- Tio??? O que faz aqui???
Um longo abraço e choro em seu ombro.
- Tenho saudades.
- Eu também, filha. Eu também. - Diz meu tio encarando-me. Seus lindos olhos tristes me fazem chorar. - Sabe que precisa partir. Não é? Nosso tempo já passou.
- Quem disse isso??? Aquele idiota ali???
- Liam é nosso amigo.
- É amigo da 'outra'! - Refuto. - Ele não gosta de mim!
- Eu sequer te conheço. - Defende-se Liam, cruzando os braços. - Adoraria ter te conhecido em um outro momento quando fez o meu amigo feliz, mas, agora...
- Eu não vou partir! No nay never! Eu tenho os meus direitos!
- Filha...- Cochicha tia Celeste, envergonhada. - Talvez seja melhor vc partir e voltar em um outro momento.
- Celeste!
- Perdão, Enrico! Ela é nossa sobrinha! Eu a amo!
- Ela não é a nossa sobrinha, meu bem! Por que vc nunca aprende!? Por que cultiva essa má tendência de manipular os sentimentos dos mortais!? Somos auxiliares dos humanos. É tudo o que somos, Celeste. Nada aprendeu depois de ter 'caído'!? Nada aprendeu após o sacrifício que Vincenzo fez por vc!? Onde está a tua nobreza!? A tua gratidão!? O meu amor por vc não te fez mudar!?
- O que Vincenzo fez pela tia Celeste!? - Indago, curiosa. - Ela não o conhecia antes de nos encontrarmos e nos casarmos! Conhecia!?
- Não...- Responde-me tio Enrico, reticente. - Esqueça o que ouviu. Isso aconteceu há muito tempo quando vc ainda não existia.
- For Pete's Sake! Do que estão falando!? Eu tô confusa!
- Pare de falar, Eileen...- Pede-me tia Celeste aos prantos.
- Não chore...- Abraçando tia Celeste, Enrico lhe sussurra algo que a assusta. Apavorada, ela recua.
- Não. Por favor, não. Eu amo meu filho. Não quero que morra. - Um riso histérico e ela comenta. - Ele não pode morrer, Enrico! Ele é como nós!
- Não é mais, Celeste. Ele, agora, tem um filho nascido de uma humana. Lembra-se das regras que regem os 'caídos'? - Levando as mãos ao rosto, ela emite um gemido de dor. - Por Deus! Eu não me lembrava disso! Eu juro que não! - Do sofá, entediada com o diálogo, pergunto.
- Por que diabos meu Vincenzo morreria!? Ele só está lutando! Ele sempre lutou! Aliás, ele começou a lutar por causa da 'outra'! No meu tempo, meu Vincenzo não corria risco algum, logo, quem faz mal a ele é a 'outra'. Eu devo permanecer! Ela que fique onde está! Qual o problema em Vincenzo lutar!? Dá pra ver que a gente precisa de grana! E, se quer mesmo saber, ele já partiu faz uns dois dias! Tempo suficiente pra ter levado uns bons socos! - Liam ajoelha-se diante de mim e expressando rancor em seu semblante, responde à minha pergunta.
- Se o amasse de verdade, saberia que ele está doente, Eileen. Basta um soco em sua cabeça e seu estado de saúde pode piorar bastante. Deseja um homem depressivo, agressivo, com dificuldade de raciocínio e atenção além de lentidão, alterações na fala e desequilíbrio!?
- CHEGA! - Grito horrorizada. - Meu Vincenzo não vai ficar assim! Ele sempre foi super saudável!
- Enquanto era um anjo, idiota. Agora, ele é um homem comum e, como tal, pode morrer.
- Desde quando ele deixou de ser anjo!? Ele sempre foi o meu anjo! Ele disse que 'caiu' por mim! Vc mente!
- Desde que ele cometeu um pecado pra te salvar, Eileen! Pra salvar sua filha!
- Antoine não é minha filha e ele nunca cometeria mal contra alguém! Não o meu Vincenzo!
- Estúpida! Vc diz que o ama e não o conhece! Ele pode morrer a qualquer momento ou ficar inutilizado pra sempre! - Impressionada, sussurro.
- Não. Isso não. Ele é meu. Ninguém vai tirá-lo de mim.
- Vc pode salvá-lo. Ainda dá tempo. - Erguendo-se, Liam se volta para Celeste. - De cabeça baixa, Celeste ouve sua pergunta.
- Aonde ele foi, Celeste? Precisamos ir até lá!
- Mas...
- Agora! - Grita tio Enrico. Com as mãos trêmulas, ela lhe entrega um pedaço de papel amassado. - "Clube da Luta"!? Onde fica isso!?
- Não sei...- Responde tia Celeste, encolhida. Liam, impaciente, digita o nome do lugar em seu celular e vibra ao comentar.
- Achei!
- Perfeito! Acha que ainda dá tempo!?
- Espero que sim. - Responde Liam, inseguro. Tio Enrico se despede de Antoine que o abraça como se fossem amigos de infância. Ela nunca o vira antes! Garota esquisita! Ao abraçar Liam, ela cochicha algo em seu ouvido que não consigo escutar.
- Só ele pode fazer isso. Só ele. Entendeu, tio?
- Entendi, querida. Fique com a Cassie e seu irmãozinho, ok? Vamos trazer seu pai de volta!
- E minha mãe!? - Lançando-me um olhar frio, ele afirma.
- Sua mãe também.
- Veremos...- Rosno caminhando em direção ao quarto. Antes de sair, meu tio aponta o indicador a Celeste e avisa.
- Quando voltarmos, teremos uma conversinha.
De volta à sala, cobrindo-me com um de seus casacos de moletom, protesto.
- Se eu não for, ninguém vai! Ele é o meu marido! Quem mais quer o seu bem além de mim!?
Tio Enrico e Liam trocam olhares intrigantes entre si. Um sorriso no canto da boca e Liam, aprova.
- Faz sentido. Vc precisa estar lá. Faz todo o sentido. Vamos!
Eu o encontro num quarto de hotel barato, queixando-se de dores fortes na cabeça. João conversa com Liam e Enrico alegando ter tentado convencê-lo a não lutar. Sem êxito, viera junto ao amigo a fim de lhe dar apoio. Deitado em uma cama de quinta categoria, meu Vincenzo, de olhos fechados, descansa após sua penúltima luta. Liam, João e Enrico permanecem na sala enquanto caminho, vagarosamente, ao seu encontro. Deitando-me ao seu lado, pergunto num tom baixo.
- Vc venceu a luta, amor?
- O que faz aqui? Eu pedi a Celeste que não viessem. - Ainda de olhos fechados, ele resmunga. - Voltem. Eu não vou desistir. Precisamos da grana.
- Dói? - Beijo sua testa e seus lábios. - Dói muito, amor?
- Um pouco. Não! Não abra as cortinas!
- Eu só queria que vc respirasse um ar menos pesado do que esse! - Defendo-me ao lado da janela. Observando o quarto minúsculo, desdenho. - Vc já esteve em lugares melhores, amor. Isso não é digno de vc.
- Por que veio, Eileen? - Ele me reconheceu! Ele me aceita e me quer! - Não percebe que nosso padrão de vida mudou? Se ainda me ama, deveria se acostumar a isso. - Deitada ao seu lado, sussurro.
- Eu te amo e é exatamente por isso que não vou me acostumar à pobreza. Vc já foi rico, Vincenzo. Ela, a 'outra', tirou tudo de vc quando te fez pecar. Vc ainda não compreendeu que eu sou a mulher certa pra vc? Vamos vencer juntos, amor. Mais uma luta e vc leva o 'cinturão' pra casa e, a grana também.
- Faz sentido. - Diz ele, sorrindo. Abrindo seus lindos olhos azuis e tristes, ele repete. - Faz sentido seu discurso, Eileen. Vc e eu vivemos uma vida tranquila. Nada lhe faltou. Talvez, tenha sido por esse motivo que vc aceitou se casar comigo.
- No nay never. Eu te amo, Vincenzo.
Liam faz menção em entrar no quarto. Vincenzo o impede ao erguer a mão esquerda. Outra troca de olhares suspeitos e Vincenzo murmura um 'Eu sei, amigo. Eu sei', como se tivesse ouvido seus pensamentos. Talvez o tenha feito. Recuando, Liam nos deixa a sós. Vincenzo me aconchega em seus braços e indaga, desconfiado.
- Mesmo na pobreza? Mesmo que eu tenha que me arriscar a lutar mais uma vez somente para ganhar o prêmio final? - Um beijo em sua bochecha e argumento.
- Amor, vc é forte. Não vai se machucar.
- Eu já estou todo ferrado, Eileen.
- Vai passar. Eu sei. Eu confio em seu potencial. Entre naquele ringue e acabe com o seu opositor e nos dê a vida que nossos filhos merecem.
- Perfeito, Eileen. Perfeito. - Deveria ter notado o tom de lamento em sua voz antes de me distrair com seu beijo ardente. Arfando, eu o ouço pedir perdão. - Repetindo o que já disse em algum momento de nossas vidas, Eileen, eu te amo, mas não gosto de quem vc é agora. - Indignada, tento me desvencilhar de seu braço em meu pescoço e não consigo. Obrigada a ouvir aquela estúpida canção antiga, imploro quase sem voz.
- Me deixa ficar. Eu te amo.
- Vc amava a vida que eu te dei, Eileen. A 'minha Dess' jamais permitiria que eu lutasse por temer me perder. Ela me ama pelo que eu sou. Vc, pelo que eu tinha. Goodbye, baby. - Cravando minhas mãos em seu braço, movendo-me sobre a cama, imploro.
- Para de cantar essa música. Esse 'sha na na na' irritante não vai funcionar novamente. Eu não quero ir. Eu tenho força e poder. Eu vou ficar.
- Tem razão. - Diz ele em meu ouvido, livrando-me de seu braço. Assustada, eu recuo. - Dessa vez, eu preciso de ajuda.
Arregalo meus olhos diante de Liam e Enrico, ao redor da cama, com seus braços erguidos. Imobilizada por algo que não vejo, mantenho-me sobre o colchão. Luzes diáfanas escapam de suas mãos enquanto lágrimas escorrem pelo meu rosto.
- Tio...- Suplico. - Me deixa ficar...
- Sinto muito, filha. - Lamenta ele com os olhos marejados. - Fomos felizes juntos e sempre seremos. Esse não é o seu corpo. Vc já teve a sua chance. Deixe que Adessa tenha a dela.
- No nay...- Minha garganta arranha enquanto movo as pernas aleatoriamente, lutando a fim de escapar do trio bizarro. João me observa, incrédulo. Distraio-me. Volto meu olhar desesperado ao meu tio Enrico que, com seu indicador entre meus olhos, ordena com a voz embargando, os olhos marejados.
- Vá e não volte mais...'Mo Cuishle'.
'Meu sangue. Meu tesouro', foram as últimas palavras que ouvira de meu tio querido.
Desnorteada, caio contra o chão. Erguendo-me com rapidez, em posição de ataque, semicerro meus olhos e o encaro.
- Professor Enrico!? O que tá fazendo aqui!? - Uma olhadela ao redor e exclamo. - De que universo paralelo vc saiu!? Que porra de lugar é esse!? Onde está Antoine!? Matteo!?
- Dess??? - Nossos olhos se encontram. Logo percebo sua dor ao gritar, incrédula.
- VINCENZO!?
- DESS! - Vibra ele, sorrindo. Levantando-se da cama que desconheço, ele vem em minha direção. Instintivamente, estapeio seu rosto. Ele se queixa, rindo de mim. - Dess!!!
- Para de falar meu nome, Vincenzo! Tá me assustando!
- Dess...- Emocionado, ele me abraça com força. Em meu ouvido, ele sussurra. - Vc voltou, amor. Vc voltou. - Meu coração bate descompassado quando indago, desorientada.
- De onde eu voltei? Onde estamos? - Afasto-me dele. Então, eu os observo intrigada. - LIAM!? O QUE FAZ AQUI!? João!? Que porra é essa!?
- Eu te explico, amor. - De costas para Vincenzo, afirmo.
- Eu te conheço, professor! Enrico! Da faculdade!
- Sim. - Diz ele, sorrindo.
- SIM??? - Berro, ainda mais confusa. - SIM??? É TUDO O QUE TEM A DIZER??? EU TE VI HÁ SÉCULOS E VC SURGE DIANTE DE MIM E SÓ DIZ 'SIM'???
- Se vc falar um pouquinho mais baixo, talvez, eu possa te explicar.
- NÃO VOU FALAR BAIXO! - Grito. - O SENHOR ME DISSE QUE NÃO CONHECIA MEU VINCENZO! - Cruzando os braços, abrindo um sorriso franco, ele refuta.
- Vc chegou a essa conclusão sozinha, meu anjo.
- NÃO ME TOCA, VINCENZO! EU QUERO NOSSOS FILHOS!
- Estão com a Cassie. - Elucida Liam. - Fique tranquila.
- TRANQUILA???
- Dess!
- Se chamar meu nome novamente eu juro que te espanco! - Recuando, levo a mão ao meu coração e recordando-me dos últimos momentos de lucidez, choro ao lamentar.
- Vc prometeu que não iria machucar meu coração, Vincenzo. Vc prometeu.
- Eu não quis...
- Que olho roxo é esse, amor? Vc tá cheio de hematomas! Eu sinto a sua dor! Ela se espalha por todo o seu corpo! MERDA! Que quarto é esse? Eu não acredito que vc...
- Calma. Eu explico.
- Vc traiu minha confiança e voltou a lutar.
- Eu precisei! - Defende-se Vincenzo, cambaleante. Eu o seguro pelos braços, mantendo-o de pé. Compadecida e furiosa, mordo sua mão. Rindo, ele pergunta. - O que é isso, mulher???
- Era pra ser um soco na tua cara, mas, vc já tá sofrendo demais, cretino! Por que me traiu!? Por quê!? Sabe que não pode lutar! Quer morrer e nos deixar!? - Fixo meus olhos no teto, puxando o ar pela boca. Todos rodam ao meu redor. Ouço vozes desconexas. Pedidos de desculpas. Olhos assustados. Antes de perder a consciência, concluo. - Vc vai lutar novamente. Eu te odeio, Vincenzo...
- João! Abre a porra dessa porta e me leva até o ginásio!
- Não posso! Vincenzo me pediu pra...
- Foda-se o que Vincenzo te pediu! Vc é amigo dele! Sabe que, se ele apanhar mais do que já apanhou, ele pode morrer no ringue! É isso o que deseja!?
- Não! - Refuta ele, indignado. - Foi pra isso que vim com ele! Pra tentar impedi-lo de lutar!
- Eu sei...- Choro de pavor enquanto calço meus tênis de corrida sentada no colchão onde, há pouco, Vincenzo descansava. Dando nós em meus cadarços, suplico. - Me ajuda a chegar até lá, João. Vc é o único amigo de carne e osso que ele tem.
- Não entendi!
- Esquece! - Grito bem próxima a ele que, certamente, não acreditaria na versão angelical de Vincenzo e seus amigos alados. - Me leva até o ginásio! Eu sei que ele tá lá agora! Eu o vi no ringue! Ele não vai desistir! Não na última luta!
- Não mesmo. - Concorda João, desanimado. - Eu tentei...- Tocando em sua mão, vejo sua esposa grávida, sozinha, à sua espera, longe daqui. Penso que Vincenzo tem muita sorte em ter João como amigo. - Eu nem sei mais o que faço aqui.
- Só me leve até o ginásio, João! Volte pra casa! Vc já fez o que devia ter feito! Já mostrou sua lealdade! Sua esposa e filha precisam de sua presença!
- Co como sabe disso???
- Não sei. Só sei que sei. Me leva? - Um sorriso cativante e o faço concordar. - Yess! Vamos! - Vibro ao abrir a porta do quarto do hotel e, descendo os degraus, pulando de dois em dois, chego ao estacionamento. Aperto o botão na chave presencial do carro de João que assovia em alto e bom som. Alucinada, corro até ele. João me segue, cabisbaixo.
- Como sabe que vai ser menina? Ainda não fizemos a 'ultra' morfológica. - Não preciso tocar em seu corpo para entender o quanto ele sofre por estar longe de sua pequena e linda família. - Adessa. Vc está bem?
- Não! - Entrego as chaves de seu carro em suas mãos ao concluir. - Odeio carros! Prefiro correr! Eu sei que o estádio é aqui perto! - Andando de costas, indago. - Tô certa!? - Franzindo o cenho, ele permanece calado. - JOÃO!!! ACORDA!!!
- O que vai fazer?
- PRA ONDE DEVO CORRER??? QUAL A DIREÇÃO??? - Atordoado, ele aponta o indicador em direção a uma longa avenida. Ainda expressando incredulidade, ele balbucia.
- Ao final dessa avenida, à esquerda...
Num arroubo de felicidade, eu o abraço com força ao sussurrar em seu ouvido.
- Vcs quatro serão muito felizes! Volte pra casa! Obrigada por ser amigo do meu Vincenzo!
- Quatro!? - Grita ele enquanto me distancio. - É o nosso primeiro filho! - Prestes a iniciar minha corrida, grito, aos risos.
- O segundo virá em menos de um ano, João! Economiza! - Berro sob os primeiros pingos da chuva forte que cisma em me acompanhar em todos os momentos importantes de minha vida. Dessa vez, eu vou vencer. - ECONOMIZA!
Após uns cinco quilômetros de corrida, à noite, em uma avenida tranquila, chego ao estádio suntuoso e abarrotado de gente ensandecida, ansiosa por socos, chutes e sangue.
- VAZA! - Grito, encharcada e decidida a invadir o ginásio pelo portão principal onde um 'brutamontes' recolhe, pacientemente, os ingressos dos que permanecem na fila gigantesca. - Não toca em mim! - Aviso, eletrizada, molhada, irritada com a confusão que dera início assim que tentei entrar sem o bendito ingresso. - Eu não preciso! Sou esposa de Vincenzo! Ele vai lutar hoje! Não te contaram isso!? - Um sorriso de escarnio e ele responde.
- Não. Volta pra fila. - Impertinente, grito.
- Tá muito longa! Eu não tenho ingresso! Meu marido...!
- Pra fila. - Insiste ele sem mover um músculo de seu rosto quadrado. - Sob os protestos da turba inquieta que, assim como eu, deseja entrar no ginásio, torço os fios de meu cabelo molhado e, soltando o ar pela boca, 'banco' a boa moça. Forçando um sorriso, falo educadamente.
- Olha. Meu marido vai lutar contra alguém aí hoje. Não sei quem é, mas ele não pode lutar porque ele tá doente. Ele pode morrer no ringue se eu não tirá-lo daí, entendeu? Deixa eu entrar? - Revirando os olhos, ele repete.
- Pra fila.
- DIABOS! VC TEM PAI? MÃE? FILHA? ESPOSA? MARIDO? QUALQUER PESSOA QUE TE AME OU COM QUEM VC SE PREOCUPA!? MEU MARIDO PODE MORRER HOJE POR SUA CULPA! ME DEIXA ENTRAR!
- Pra fila.
- PRO INFERNO! - Berro antes de socar seu pescoço largo. Arrancando palmas e assobios da plateia na fila, espero que ele tombe contra o chão, mas, o máximo que consigo é assisti-lo engolir sua própria saliva e, com ódio em seus olhos escuros, me empurrar até a calçada onde ele repete, mecanicamente.
- Pra fila.
- NÃO VOU! - Grito aos prantos. - INSENSÍVEL! MEU MARIDO...- Vou recuando entre furiosa e desesperançada quando esbarro em alguém. - NÃO ME TOCA! - Aviso antes de olhar em seus olhos e arfar. Um profundo alívio percorre meu corpo frio quando ela me pergunta.
- Aceita meu ingresso? Acabei de perceber que tenho outro compromisso.
- Eu te conheço? - Indago, emocionada à mulher com grandes olhos azuis, bochechas coradas e um sorriso cheio de ternura. - De onde vem?
- De longe. Se quiser entrar, aproveite esse momento. Sou a próxima da fila. - Despertando de meu transe, agradeço. Num abraço forte, murmuro.
- Que o Criador te abençoe.
- Já nos abençoou, Adessa. - Sussurra ela em resposta. - Nunca se esqueça de onde veio e do que é capaz de fazer. Somos irmãs. 'Blessed be'. - Encantada, subo os degraus e antes de vê-la sumir ao virar a esquina, retorno a uma época distante, anterior ao meu primeiro encontro com Vincenzo antes de sua 'queda'. Uma dor pungente no peito e repito num tom baixo, 'blessed be'.
- Ingresso! - De volta a esse mundo, diante do 'brutamontes', esfrego meu ingresso em sua camisa ao rosnar.
- Aqui, filho da puta. - Cuspo em sua blusa. Liam surge no exato momento em que o homem tenta me segurar pelo pulso. Certamente ele me arremessaria para fora do ginásio se Liam não me socorresse com um breve aceno. O homem, meio que hipnotizado, me solta e volta ao seu trabalho. - Por que não me deixou socar a cara dele, Liam!? Era o que ele merecia!
- Menos, Adessa. Menos.
- Onde ele tá??? Cheguei a tempo de...??? - Um olhar impotente e Liam responde.
- No ringue.
- PUTA QUE PARIU! - Berro antes de correr até o centro do grande ginásio. Boquiaberta, observo as centenas de pessoas sentadas nas arquibancadas que cercam o ringue onde meu Vincenzo, de cabeça baixa, sentado em um banquinho tosco, aguarda pelo início da luta. - VINCENZO!!! - Grito entre a multidão alvoroçada. "Olha pra mim!!!", penso. Dos alto-falantes, músicas, num volume ensurdecedor, impedem que ele leia meus pensamentos. Empurrando um e outro, vou me aproximando do ringue. Distribuo chutes e cotoveladas a fim de abrir meu caminho até ele. Volto a gritar seu nome quando arquejo de pavor ao contato de seus dedos longos e finos. Sua voz sibilante pergunta.
- Veio assistir ao fim de nosso amigo? - Faço-o engolir seu sorriso malicioso no momento em que choco o topo de minha cabeça contra sua testa delicada. Filetes de um sangue escuro escorrem por sua pele alva. Sua boca delicada forma um oval perfeito ao se indignar. - Quem vc pensa que é ao machucar o 'Senhor dos Infernos!?
- 'Anaita' - Rosno manchando minha mão direita com seu sangue. - Sua memória é curta ou está fingindo não me conhecer, Lúcifer?
- Espera! - Um olhar de desprezo e eu ordeno.
- Fique onde está, abutre. Não se mova até o final.
Liam, assustado, chama por meu nome. Desperto próxima ao tatame.
- O que pretende fazer com esse sangue, Adessa?
- Não sei. - Subo no ringue minutos antes da luta ter início. A multidão se ergue das cadeiras e arquibancadas. Com a mão manchada de vermelho, ergo o braço. Ouço palmas e urros como os dos vikings nas séries que assistia ao lado de Cassie. Como devem estar meus filhos? - Não se aproxima! - Aviso a Vincenzo, atordoado. Sigo até seu adversário ainda ausente e, antes de ser expulsa do tatame pelo árbitro, traço um círculo ao redor de seu banco em madeira. Um círculo de sangue. Sangue do 'Anjo Caído'. Sendo empurrada para fora do ringue, grito por três vezes encarando o banco vazio onde o opositor de Vincenzo irá se sentar:
"Eu te impeço de fazer mal ao teu adversário e a ti mesmo!"
- Tirem ela daqui! - Grita Vincenzo após o segundo 'round', visivelmente desequilibrado. De sua boca aberta, escapam filetes de sangue que ele cospe em um balde. Desespero-me. - Volta pra casa, Dess! Cuida dos nossos filhos!
- Não se atreva a me dar ordens com relação aos meus filhos! - Refuto, aos gritos, no espaço entre as cadeiras e o ringue. - Eles estão com a Cassie e, se não estivessem, estariam correndo perigo graças a vc, seu filho da puta! Vc os deixou com a sua mãe! Aquela vaca traiçoeira que invocou a 'outra'!
- Eu não queria, Dess...
- Me solta! - Ordeno a Enrico que me segura pela cintura com seus dois braços. Se ele não despertasse em mim uma grande ternura, já o teria atingido com meus cotovelos e me libertado dessa prisão. Desse inferno! - Sai daí agora ou eu vou invadir essa merda! - Mordo o braço de Enrico assim que ouço o som do sino anunciando o terceiro 'round'. Liam me pede perdão antes de tocar em minha testa e ordenar num tom sereno.
- Se acalma.
Presa dentro de mim mesma assisto Vincenzo lutar com todas as suas forças contra o atual campeão dos 'Meio-Pesados'. Apesar de meu feitiço de merda, o pugilista 'vai com tudo' pra cima de Vincenzo que, ágil, desvia de seus golpes. Exceto, de um: um golpe baixo e sorrateiro exatamente entre suas pernas. Urrando de dor, encolhido no chão, vejo um sorriso medonho no rosto deformado do crápula covarde. Explodindo de ódio por dentro, liberto-me de Liam e, com o auxílio das cordas elásticas, retorno ao tatame. Engatinhando, alcanço Vincenzo ainda no chão. Seu olho esquerdo está fechado e inchado. O direito pouco enxerga. Sangue e suor se misturam em seu rosto quando o ouço murmurar.
- Dess. Volta...- Secando sua pele com uma toalha limpa, refuto.
- Nunca. Desiste. Por favor. Não vale a pena. Vamos pra casa.
- Agora não...
- Vincenzo!
- Falta pouco. - Esforçando-se por sorrir, ele afirma. - Falta pouco, Dess.
- Pra vc morrer? - Sussurro em seu ouvido. Magoada afasto-me dele ao avisar. - Se não parar agora, nossos filhos e eu vamos sumir da sua vida. Entendeu?
O maldito sino anuncia o início de outro 'round'. Vincenzo se ergue. O juiz lhe confere um ponto pela falta cometida contra ele. Da plateia, ele me lança um olhar enfurecido. Engolindo em seco, dou-lhe as costas e caminho até a saída. Enrico me pede para permanecer no estádio e manter a minha fé no Criador. Liam cruza os braços num desânimo. Com a visão embaçada pelas lágrimas, atravesso a faixa que me leva ao lugar sombrio por onde entrei. De lá, ouço urros, gritos, palmas da multidão enlouquecida. Todos gritam por seu nome enquanto o árbitro declara: 'Nocaute'. Meu coração se constringe. Enxugando meu rosto com meu antebraço, dou meia-volta e chego a tempo de observar Vincenzo erguendo o cinturão.
"Isso é por vc, Dess! A mulher que eu sempre amei e sempre vou amar!", grita ele ao microfone de um dos repórteres, minutos antes de tombar, inconsciente, contra o tatame, onde sua cabeça quica por duas vezes.
Abraçada ao seu corpo, choro enquanto todos celebram. Diante de mim, de cócoras, Lúcifer me pergunta, sarcástico e cruel.
- Daqui a quantas horas devo retornar a fim de levá-lo comigo?

Tremendo de frio, aguardo, junto a Enrico e Liam, a saída de Vincenzo do 'Centro de Ressonância Magnética' de um hospital particular e absolutamente chiquérrimo. Chego a sentir vergonha de estar trajando meu moletom antigo e úmido. Não sei como viemos parar aqui. Entrei na ambulância de mãos dadas a Vincenzo e aqui estou. Enrico me abraça tentando conter meu tremor.
"Vai dar tudo certo, meu anjo. Acredite".
- Acredito. - Minto. Como alguém com a cabeça 'sequelada' pode sair de uma luta como aquela sem problemas??? - Ele tem...
- 'ETC'. Eu sei. Ele me contou.
- Quando vcs conversaram? - Indago sentindo todo meu corpo sacudir de frio. - Vcs são íntimos?
- Pode-se dizer que sim. - Reviro os olhos e, exausta demais para discutir, encolho-me em seu abraço. Sentados em poltronas acolchoadas, imagino no quanto deverei trabalhar a fim de pagar por uma noite de internação nesse hospital com alta tecnologia. Vinte e quatro horas por sete dias na semana pelo resto de minha vida??? - No que pensa, Adessa?
- Em sair daqui com ele. Vivo. Perfeito. E, em um café quentinho...
- Nisso eu posso ajudar. - Diz Liam, sempre prestativo. - Só um minuto.
Vejo Liam brigar com a máquina de 'café expresso' logo adiante. Desajeitado, ele a chuta com a sutileza com que deve tocar em Cassie. Rindo, levanto-me e, ao seu lado, ergo minha perna direita e atinjo a lateral da máquina com um chute leve e certeiro. Libero parte de minha raiva na pobre máquina e ainda comemoro erguendo o café em um copo super fofo e, certamente, caro. Antoine adoraria tomar um desses. Quero meus filhos de volta. Quero minha família de volta. Quero ir pra casa com Vincenzo. Aos prantos, bebo o café em um só gole aguçando a curiosidade de Liam.
- Está ruim?
- Não. Delicioso. - Choramingo. Arremessando o copo vazio contra a lixeira, ele solta um gritinho tímido, do tipo 'Yes'. - Gosto de vc, Liam. Já não preciso ter aquela conversa porque vc já mostrou ser o homem perfeito para Cassie e um amigo fantástico para o meu...- Voltando a chorar copiosamente, sou conduzida por ele de volta ao sofá confortável onde continuo a tremer feito 'vara verde'. - Vc está com febre, Adessa.
- Bobagem. Isso passa.
- Filha! Não seria interessante...?
A porta do 'Centro de Ressonância' se abre. Num salto, alcanço a mão de Vincenzo que, deitado na maca, limpo e sonolento, abre um sorriso de alívio. Correspondo ao seu sorriso até me recordar de que o deixaria caso continuasse a lutar.
- Não vai não, Dess. Eu não vou morrer. Não agora.
- Cala a boca. - Resmungo caminhando ao seu lado até entrarmos em um quarto amplo, limpo, lindo e individual. Quem vai pagar por isso??? - Larga a minha mão, covarde.
- Dess, fica aqui. - Pede-me ele apalpando o colchão macio onde o acomodam. - Para de bobagem. Ainda preciso de cuidados.
- Bastardo. - Sentando-me ao seu lado, observo. - Seu rosto, agora, é o exemplo clássico e literal do 'Surrealismo'. Completamente destruído, sem forma.
- Vc vai deixar de me amar por isso? - Livre do olhar enigmático do médico que nos acompanhou até o quarto, cochicho em seu ouvido.
- Eu não me apaixonei por vc por causa do seu rostinho lindo. Foi pelo teu pau simplesmente esplêndido. - Uma gargalhada espontânea e ele geme de dor.
- Para, Dess. Não fala mais nada. Dói tudo.
- Bem feito, cachorro. Eu pedi pra parar...- Espirro por quatro vezes seguidas. Um forte cansaço e procuro pela poltrona ao lado da cama. Assoando o nariz, advirto com a voz fanha. - Eu tô bem.
- Não é o que parece, senhora. Posso? - Erguendo o braço, o médico de plantão encosta o dorso de sua mão em minha testa, afere minha pressão, ausculta meus pulmões e, enfim, sem demonstrar preocupação, declara. - Pneumonia.
- OI???
- Não afirmo, mas, possivelmente, vc tenha contraído o vírus.
- Como???
- Ou bactéria.
- Hein??? Como assim???
- Correndo, debaixo de chuva forte, por cinco quilômetros, até chegar ao ginásio? - Sugere Liam, contrariado. Respondendo ao médico indignado, Liam prossegue. - Sim, doutor. Ela fez isso.
- Foi por um bom motivo! - Defendo-me após outro espirro. - Qual o problema!?
- Nenhum. - Responde o médico. - Talvez dois ou três dias de internação...
- NUNCA! ESSE HOSPITAL DEVE CUSTAR O OLHO DO MEU...!
- DESS! - Enrico gargalha num dos cantos do quarto enquanto Liam considera, encabulado.
- Ela é uma dessas pessoas que fazem tudo por amor.
- Bobagem. - Refuto, incomodada. - Alguém tinha que deter o mocinho aqui, logo, eu corri, doutor. Estou mega acostumada a correr e a viver perigosamente. - Um risinho tímido de Liam e Vincenzo ordena.
- Vá com ele e faça todos os exames, Dess. - Oi??? Vc já pensou em como vamos pagar pelo seu tratamento??? E ainda quer que eu trate a bosta de um resfriado nesse hospital mega caro??? - Dess, vai. Tá tudo sob controle.
- Vc me ouviu??? - Exalto-me. Impedida pela enfermeira de me aproximar do meu marido, explodo. - Tira a mão de mim, mocinha! Ele é o meu marido! Preciso falar com ele sobre algo importante!
- Se chegar perto dele...- Explica a jovem enfermeira. - Talvez o contamine e a conversa de vcs vai rolar em uma mesa de centro espírita. - Fraca demais para iniciar uma briga, deixo-me levar.
- Cadeira de rodas??? Isso é patético!!! A porra é nos pulmões!!! Não nas pernas!!!
- Senhora. Sente-se, por favor...- Resmunga a enfermeira. Vincenzo lança um sorriso complacente a ela. Eu 'lanço' em Vincenzo um de meus tênis. Por um triz, eu não o acerto na cabeça. Graças a Deus. Por que sou tão impulsiva? - Ciumenta, hein! - Brinca a enfermeira ao me empurrar pelo corredor. Num tom confidencial, ela cochicha. - Eu também sou. Ninguém chega perto do meu marido. Ninguém.
Gostei dela.
Pneumonia Bacteriana.
Essa é boa. Liam e Enrico se revezam entre o meu quarto e o de Vincenzo enquanto perturbo o médico implorando que ele me deixe voltar ao meu lar.
- Eu posso me cuidar sozinha. Meu marido vai ter alta amanhã. Eu não vou...eu não admito ficar aqui por conta de uma bactéria. Me deixa sair, doutor.
- 'Legionella pneumophila'.
- Quem??? - Ouço o ronco dos meus pulmões ao indagar. Antibióticos de última geração circulam em minha corrente sanguínea enquanto o médico insiste em me irritar com sua explicação acadêmica.
- Uma bactéria rara e perigosa, senhora. Não posso te liberar antes de uma melhora significativa em seu quadro. - Movendo-me na cama, prestes a remover o acesso em meu braço, refuto.
- Bobagem! Eu não fico doente! De onde isso vem!?
- Estão entre as formas de vida mais primitivas do planeta. Há milhares dela no solo, na água do mar e nas profundezas da crosta da Terra.
- Profundezas da crosta da Terra? - Repito entre uma tosse e outra. Um olhar significativo a Liam e pergunto, sem forças. - Pode ter vindo através de sangue?
- Não. Mas se alguém contaminado estiver bem próximo a vc e tossir ou espirrar...
- Ou cochichar em meu ouvido. - Penso alto ao me recordar de Lúcifer expelindo gotículas de sua boca podre ao se indignar com meu golpe contra sua testa. - Maldito. Ele fez de propósito.
- Quem, senhora?
- Ninguém. - Minto. - Me deixa sair, doutor. Meu marido e filhos precisam de mim.
- Quer contaminar a todos? - Horrorizada nego com a cabeça. - Nunca.
- Podemos medicá-la em casa? - Indaga Liam, devolvendo-me a esperança. - Ela pode se manter isolada em um quarto até ficar curada.
- Vai custar caro. - Afirma o médico.
- Mais caro do que nesse hospital de milionários??? - Uma careta e o médico cochicha.
- Sim.
- Puta que pariu...
- Perdão. - Diz Liam, envergonhado. - E, se pudermos pagar, vc daria alta a ela?
- Liam! - Rosno. - Nós não temos grana! - Ignorando-me, ele prossegue.
- Se houver uma significativa melhora, ela poderia sair daqui e se tratar em casa?
- Se houver um milagre...- Considera o médico observando meus últimos exames em seu 'tablet' mais caro do que a porra da nossa Kombi. - Quem sabe?
- Dess! - Vincenzo surge em meu quarto. Saltando da cama, arrasto comigo o suporte para o soro de tão contente em vê-lo de pé, sorrindo, andando com o apoio de muletas, em minha direção. Liam, o médico e Enrico me fazem retornar ao leito onde tusso como uma tuberculosa em seus últimos dias na Terra. Cobrindo meu rosto, protesto quase sem voz.
- Não deixem que ele se aproxime!
- Dess, se acalma. Quanto mais nervosa, mais vc vai tossir. - Usando máscara cirúrgica, ele se aproxima e me beija na testa. - Tenho uma surpresa.
- Qual? - Pergunto aos prantos. Vincenzo se senta ao meu lado na cama enquanto Liam, Enrico e o médico deixam o quarto. - Do que tá falando? Por que as muletas?
- Uma distensão muscular. Só isso. Passa logo.
- E a doença? Eles vão te curar?
- Não tem cura, Dess. - Diz ele, num desânimo. - Por outro lado, o médico me disse que não há como diagnosticar, com certeza, a síndrome antes da minha morte. Logo, eu posso não ter a doença.
- Sério? - Suspiro, esperançosa. Mergulhando em seus olhos vívidos, questiono. - Vc pode ter outra coisa menos grave?
- Talvez. Mas eu não quero falar disso. - Alegre, ele informa. - Terei 'alta' amanhã, amor. - Sorrindo e tossindo, beijo sua mão ao afirmar.
- Eu sabia. Vc é forte. Mas, por favor, chega de lutas.
- Chega de lutas. - Concorda ele, deitando-se ao meu lado, largando as muletas. - Não se preocupa com os gastos, Dess. O prêmio da luta vai pagar por tudo.
- Grande merda. - Resmungo. - Tudo isso pra gastar com a porra de um hospital?
- Vai sobrar um pouco, amor. Confie em Deus.
- Seu Deus não me protegeu de um de Seus 'filhos caídos'...
- Como assim?
- Lúcifer me infectou com essa bactéria. O médico disse que ela é conhecida como "Doença do Legionário". Vive entre as formas mais primitivas da Terra. Suspeito, não? - Beijando minha cabeça, ele dá de ombros e diz.
- Deixa aquele otário pra lá. Eu estou bem. Vc vai ficar bem. Logo logo estaremos em casa com nossos filhos, Dess.
- E com a sua mãe. - Rosno. - Aquela vaca traiçoeira.
- Ela não é minha mãe. - Refuta ele, rindo. - Ela se acha minha mãe.
Assusto-me com o som do ringtone de meu celular. Mancando até minha mochila, Vincenzo o alcança e o atende. Abrindo um de seus mais encantadores sorrisos, ele exulta.
- Filha!!! - Lançando-me um olhar entusiástico, ele ativa o 'viva voz'. - Estamos morrendo de saudades de vcs! Como estão todos aí!?
- 'Agora não é hora pra isso, papai. Depois conversamos'. - Rindo do corte cirúrgico de Antoine, ouço Vincenzo se lamentar.
- Poxa, filha. Papai tá com tanta saudade...
- 'Eu também, pai. Mas meu tio diz que tem que ser agora ou não vai dar mais tempo!'
- Seu tio??? Que tio??? Tempo de quê??
- 'Papai!!!' - Grita ela, furiosa. - 'Preciso que faça exatamente o que eu mandar agora ou a mamãe não sai daí tão cedo. Entendeu???'
O milagre pelo qual esperávamos chegara através de Antoine. Ouvindo sua voz suave e cheia de fé, choro enquanto ela ora em latim. Sem querer interromper seu transe, eu a escuto até o final quando, aos soluços pergunto onde aprendera a falar daquele jeito.
- 'Meu tio Miguel tá aqui. Ele falou e eu repeti'. - Responde-me ela, tranquilamente. - 'Ele disse que os bichinhos estão mortos agora. Disse também que se não matasse os bichinhos agora, eles 'iam' ter mais filhinhos'.
- 'Iriam'. - Eu a corrijo, sentindo um alívio surreal em meu peito.
- 'Isso! Isso mesmo! Espero vcs amanhã! Vamos fazer uma surpresa, mamãe!'
- 'Burra! Agora deixou de ser surpresa!' - Reclama Cassie ao fundo.
- 'Burra é vc! Mamãe, a Cassie tá mandando um beijo. Ah! Ela continua safada! Amo vcs! Fui!'
No dia seguinte, sem conseguir explicar minha súbita melhora e, francamente, cansado de ouvir meus pedidos, o médico me concede alta hospitalar após eu assinar um termo de responsabilidade por não acreditar no que vira em seu tablet. Como diria Antoine:
'Todos os bichinhos morreram'.
Vincenzo e eu saímos juntos do hospital. Feliz, sentado ao meu lado no banco traseiro do carro de Liam, ele sussurra.
- Na saúde e na doença. Juntos. Pra sempre.
- Pra sempre.
Ao volante, Liam sorri. Enrico, ao seu lado, tenta esconder uma lágrima. Seus olhos que riem nos admiram pelo retrovisor externo. Reconheço seu olhar. O mesmo que lançara a Vincenzo no dia do suposto acidente de carro quando ele ainda era um adolescente. Ainda fraca, cochicho ao ouvido de Vincenzo.
- Depois vc vai ter que me explicar essa história bizarra de pai, mãe, acidente de carro e pacto com Lúcifer pra livrar Celeste de uma possessão.
- Dess...relaxa. - Diz ele, abraçando-me, desviando os olhos para a estrada. - Olha quanta árvore linda. Não é hora pra tristeza. Estamos voltando pra casa, amor.
- Não me importa, Vincenzo. - Rosno. - Tem uma mulher estranha em nossa casa, cuidando dos nossos filhos. Um anjo que foi possuído pela porra de um demônio!? Isso não faz o menor sentido! - Bufando, ele sorri. Enrico voltando-se para trás, concorda.
- Não faz mesmo, filha. Vc está certa. Quando chegarmos à sua casa, explico tudo. Ok? - Lançando a ele um olhar suspeito, concordo.
- Ok.
- Agora curte a viagem. - Pede-me Vincenzo inspirando a ar puro invadindo as janelas. - Chega de problemas. - Mordo minha boca, calando-me por minutos. - Para de pensar, Dess. Para de pensar.
- Não consigo! - Afasto-me dele e, preocupada, pergunto. - Quanto sobrou do seu prêmio depois de vc ter pago aquela conta absurda por dois dias de internação!?
- O suficiente pra gente pagar as contas por alguns meses, Dess. - Um olhar de reprovação e ele comenta. - Não é hora nem lugar pra falar disso, amor. Em casa. Ok? - Calada, cruzo os braços. Encarando meu reflexo na janela ao meu lado, peço ao Criador por uma milagre.
- Outro? - Furiosa, rumino diante de sua expressão de uma paz que desconheço.
- Para de ler a porra dos meus pensamentos, Vincenzo! Vc pediu pra eu ficar calada. Então me deixa quieta!
- Uma hora vc diz 'Seu Deus'. Outra hora, vc pede ao seu Criador. Decida-se, amor. Vc acredita ou não em Deus? - Com o indicador em seu peito, refuto.
- O 'Seu Deus' é seu! Deixe o 'Meu Criador' em paz!
- São a mesma Entidade, Adessa. - Explica Liam ao volante. - Com nomes diferentes. Somos todos filhos do 'Seu Criador'. Criaturas que se desviaram do 'Caminho'. - Um riso sarcástico e pergunto.
- De que caminho tu te desviou, Liam!? Tu é bom pra cacete! Dá até raiva! - Rindo de mim, ele replica.
- Nem tanto, Adessa. Já me desviei algumas vezes e, se não fossem meus amigos, dentro desse carro, eu teria me perdido e não teria encontrado a Cassie.
- Sua 'Little Princess'...- Suspiro. - Ela teve sorte.
- E vc não??? - Pergunta Vincenzo, indignado.
- Claro que sim. - Afirmo voltando aos seus braços. Beijando seus lábios, confesso. - Eu tô com medo, amor. Só isso.
- Milagres acontecem, filha. - Diz Enrico com a cabeça para fora da janela. Seus cabelos esvoaçam sob a ação do vento quando ele, aos risos, repete. - Milagres acontecem! - Um olhar a Vincenzo e concluo num cochicho.
- Tua mãe é uma vaca e teu pai é 'pancada'.
- Ela não é uma vaca, Dess. - Diz ele num tom conciliador.
- É sim. - Rosno. - E eu até agora não me conformo com o fato de vc ter entrado no ringue sem 'musiquinha'. Patético.
Somos recepcionados por uma festa assim que pisamos em nosso apartamento. Doc, Adele e João nos dão as boas-vindas. Louca de saudades, Cassie pula nos braços de Liam enquanto ouvimos, pela enésima vez, Antoine xingando-a de 'safada'. Enrico abraça Celeste que me lança um olhar sombrio. Meus seios latejam enquanto procuro por meu filho em seu berço.
- Dorme como um anjinho. - Diz ela recostada à porta. - Não o acorde, querida. Ele já está bem alimentado.
- Impossível! - Rosno diante de seu sorriso indecifrável. - Eu não o amamento há dois dias!
- Eu mesma dei seu leite, tia! Aquele que vc deixou nas mamadeiras dentro da geladeira! - Afirma Cassie entrando no quarto, esbarrando, propositadamente, em Celeste. Demonstrando sua repulsa por ela, Cassie me acalma ao dizer. - Ninguém além de mim, o alimentou. Fica tranquila, tia. Vamos pra sala. Ele não vai acordar tão cedo. - Em meu colo, embalo Matteo e o beijo demoradamente na testa. Uma ligeira imagem me vem à mente. Confusa, encaro Celeste, semicerrando meus olhos. - O que foi, tia?
- Nada. - Minto. Vi algo. - Vamos pra sala.
- Podem ir. Eu fico com ele. - Empurrando Celeste contra a parede, repito entredentes. - Vamos pra sala. Todos nós. Entendeu?
- Claro, meu bem. - Responde-me ela afofando os cabelos com seus dedos nervosos. À minha frente, ela replica, eufórica. - Todos para sala imediatamente!
- Bizarra. - Cochicha Cassie.
- Eu sei...- Murmuro tentando me esquecer do que acabo de ver, mas não consigo.
A vida segue normalmente como antes da luta de Vincenzo e de suas graves consequências. Liam e Cassie retornaram ao seu lar. Enrico viajara à Itália por motivos que desconheço, levando consigo Celeste que prometera retornar em breve com ótimas notícias. Aliviada, eu a vejo entrar em um táxi rumo ao aeroporto.
- Vá e não volte mais. - Murmuro com Matteo em meu colo. Vincenzo nos abraça e, apesar de seu tremendo esforço em me ajudar, retorno à depressão pós-parto manifestando outros sintomas: o pânico em perder meu filho é um deles. - Ele não quer o meu leite. - Reclamo entre soluços, embalando Matteo em meus braços. Aflita, prossigo. - Ele amava mamar em meus seios, Vincenzo. Bastaram dois dias de ausência e, agora, após uma semana da partida de seus pais, ele ainda não quer meu peito! Alguma coisa aconteceu em nossa ausência! Eu sei! Eu sinto! Eu vi alguma coisa na noite da festa surpresa!
- Dess! Não 'viaja'! Por favor! - Pede-me ele, impaciente. - O que vc viu!? O que acha que Celeste pode ter feito contra o meu filho!? Ela me ama! - Matteo chora em meu colo enquanto argumento, aos prantos, em meio à sala. Antoine assiste à TV, sempre atenta a tudo. - Eu vi alguma coisa! Foi muito rápido! Uma lembrança dela! Eu não sei o que é, mas não é algo bom! Não é amor! Não é! Nosso filho tá com fome e eu não consigo alimentá-lo!
- Calma, porra! Ele tá nervoso!
- E eu também! - Grito mais alto do que Vincenzo. Antoine se ergue do sofá e, mostrando-me seus bracinhos esticados, ela ordena.
- Me dá ele, mamãe.
- Não, filha...
- Agora.
Em seus braços, Matteo abre seu sorriso angelical e chega a gargalhar diante dos carinhos da irmã que o leva de volta ao quarto. Eu a sigo, sentindo-me uma péssima mãe. Vincenzo me segue pedindo-me perdão. Num sussurro, peço.
- Fica quieto. Ele dormiu. - Antoine, de cabeça baixa, passa por mim e por Vincenzo. Antes de deixar o quarto em direção à sala, ela nos impressiona ao se dirigir a Vincenzo e meio que ordenar.
- Explica à minha mãe quem é a vovó de verdade, pai. Fala tudo. Ela precisa saber.
- Por que as velas acesas?
- Porque me acalma.
- Vc tá nervoso?
- O que vc acha, Dess?
- Não sei. Quem viu sua mãe tentando amamentar o meu filho fui eu. Teoricamente, quem deveria estar nervosa seria eu. Não acha?
- Ela fez isso!?
- Eu vi. - Ressentida, sento-me diante dele no tapete da sala mergulhada na escuridão. Há velas acesas ao nosso redor, tornando o momento ainda mais sombrio. - Mas não quero falar sobre isso. Vai te magoar. Vc pode até não ter a 'Síndrome do Pugilista', mas ainda está doente. Ainda sente dores e eu não quero que sofra por minha causa. - Cruzando as pernas, ele pousa suas mãos sobre as minhas e refuta.
- Vc não me faz sofrer, amor. É por vc que eu vivo. Vc me fez 'cair' e permanecer aqui, na Terra. Vc me deu motivos pra querer ser humano. Nunca duvide de meu amor por vc.
- Não vou. Me conta tudo. Agora.
- Se puder, tente perdoar Celeste. Ela não é como nós.
- Não?
- Não. Ela tem tendências que não temos.
- 'Nós' quem, Vincenzo? Nós dois ou 'nós' anjos? - Ao som da chuva que cai contra a janela fechada, ele responde com um olhar obscuro.
- Nós anjos. Anjos que 'caíram' por amor aos Humanos e anjos que escaparam da 'Legião'.
- Oi??? - Imediatamente, ele me faz calar com sua mão em minha boca e me orienta.
- Se quiser que eu conte a verdade, precisa me ouvir até o final, sem interrupções. Sei que não vai ser fácil entender o nosso mundo, mas tente me ouvir até o final e, depois, eu respondo o que quiser. Ok? - Relutante, respondo com um 'Ok'. Há um aroma inebriante no ar enquanto o ouço narrar a estranha história de Celeste. - Celeste fazia parte da 'Legião' até conhecer Enrico, um dos anjos a serviço do Criador, orientado a restabelecer a ordem entre o Céu e a Terra. Assim que Enrico a vira ao lado de Lúcifer, ele a quis ajudar. Ela o desejava como uma mulher deseja um homem. Ele a considerava uma irmã perdida, apesar de nutrir sentimentos por ela. Enrico faz parte de outra ordem: a dos arcanjos. Acima de mim e de Liam, logo, seus poderes são maiores. Sua bondade e compaixão são ilimitadas. Ainda que Celeste se empenhasse em seduzi-lo, Enrico, por amor ao Criador, negava-se a ceder aos seus caprichos. Lúcifer, o primeiro de nós a ser criado, guardava consigo segredos que, com Celeste, compartilhara. Por vingança contra a própria Celeste, ele lhe ensinara a conquistar Enrico usando de magia mundana.
- Mundana???
- Magia usada pelas mulheres da Terra àquela época. Havia muitas delas que, por poucas moedas de ouro, destruíam vidas de boas pessoas.
- Sério? - Puta que pariu. - Continua.
- Tem algo a me dizer, Dess?
- Nada. - Minto. - Continua.
- Enrico, enfim, se entregara a Celeste e, por ela se apaixonou, afastando-se do Criador, por vergonha. Viveram felizes por algum tempo até que Lúcifer viera cobrar por sua ajuda.
"Faça com que Enrico se junte à Legião", ordenara Lúcifer. Celeste, acuada, chegara a tentar convencer Enrico a se juntar aos anjos rebelados, obviamente, sem sucesso. Enrico, desolado por ter falhado com o Criador tentou se afastar de Celeste, porém, eles se amavam intensamente. Dando as costas a Lúcifer, Celeste seguira ao lado de Enrico, vagando pela Terra à procura de paz.
- Quando vc entra na história, Vincenzo? Por que eu te vi na porra daquele carro segundos antes de colidir contra um caminhão!? Desde quando vc foi criança!? Vc me disse que não mudava de aparência! Vc pode voltar a ser criança!?
- Eu te pedi pra ficar calada, porra...
- Eu tô tentando acompanhar a saga. - Defendo-me. - Afinal, minha família e eu estamos dentro desse enredo. Vc pode voltar a ser criança???
- Agora eu não posso porra nenhuma! Sou mortal! Lembra!?
- Fala direito comigo. - Choramingo. - Essa vadia dos infernos encostou a porra do peito dela na boquinha angelical e pura do meu filhinho.
- Do nosso filho, Dess. Nosso. Isso nunca mais vai acontecer. Eu te prometo. Como mortal, eu não posso fazer mais nada. Mas, àquela época, eu podia. Foi por isso que vc me viu como um adolescente no carro e diante dela, na cama, se contorcendo. Ela estava possuída, Dess. Eu sei. É bizarro. Um anjo possuído por outro anjo que se tornou um demônio. Os anjos da 'Legião' tornaram-se fortes e quase que invencíveis graças aos maus pensamentos e atos dos Humanos que os veneravam como deuses. Diante da recusa de Celeste em macular a honra de Enrico, Lúcifer a entregou aos seus asseclas. Tendo sido do bando e ainda cultivando más tendências, Celeste se tornou um alvo fácil. Atormentada por vários deles, ela nada podia fazer além de gritar, berrar por socorro em seus raros momentos de lucidez. Já formávamos uma família a fim de orientar os passos de Celeste. Enrico pedira a minha ajuda. Não se pode negar ajuda a um arcanjo, Dess. Eles são pura Luz. Como seu filho e de Celeste, eu me compadecia de seus sofrimentos insanos. Seu corpo era um amontoado de chagas abertas. Ossos expostos sob a pele, olhos estatelados. Enrico fizera de tudo por salvá-la até que Lúcifer sugeriu uma troca.
- Filho da puta. Vc em troca da liberdade da vaca.
- Sim.
- Por que vc???
- Não sei.
- Eu sei! - Revolto-me entre as velas bruxuleantes que me levam a uma época distante e sofrida. - Eu o conheço há tempos. - Deixo escapar. - Escondia a sete chaves suas preferências por temer uma condenação.
- Do que tá falando, Dess? - Pergunta-me Vincenzo, desconfiado.
- De nada. - Minto outra vez. Até quando vou poder guardar isso comigo? - Desculpa. Vou ficar calada. Juro.
- Vai guardar o que, Dess?
- As preferências. - Minto.
- Que preferências são essas?
- Vc. Ele tem um fetiche por vc. Ele quer vc pra ele. Ele é a porra de um 'viado encubado'. Já esteve com mulheres em épocas remotas, mas sua predileção é por meninos belos e inocentes.
- Para, Dess. Tu tá surtando. - Corto seu riso ao meio ao revelar.
- Ele te quer como homem, Vincenzo. Só vc não enxergou isso desde o início. Eu me lembro de tudo. - Levando as mãos à boca, eu me calo, arrependida. - Foi mal. Continua.
- Tá me escondendo alguma coisa? Como sabe do que ele fazia em épocas remotas?
- Eu vi quando o toquei. - Minto pela enésima vez. De olhos fechados, aguardo, aterrorizada, o galo cantar em algum lugar da sala. Sentindo-me patética, forço um sorriso e volto a pedir. - Continua.
- Resumindo. A fim de evitar o sofrimento de Enrico mais do que o de Celeste, eu me ofereci a Lúcifer em troca de uma vida pacífica ao meu grande amigo e mentor. Por algum tempo, vivemos sob o mesmo teto como pais e filho até que a colisão contra o caminhão ceifou a vida de Enrico e de Celeste que, sem ele, retornou ao inferno.
- Desde quando anjo morre??? Não revire os olhos!!! É uma pergunta pertinente!!!
- Não morrem. Desaparecem por um tempo. Tempo em que Celeste se perdeu. Não posso mensurar a dor de Enrico até reencontrarmos Celeste inconsciente entre os seres da 'Legião'. Com a ajuda de Arcanjo Miguel, amigo de Enrico, nós a trouxemos de volta à Terra onde ela tenta se livrar do julgo impiedoso de Lúcifer sempre exigindo mais dela.
- Exigindo vc! Isso não é justo! Vc nada tem a ver com o 'B.O.' dela, porra! E vc ainda deixa essa vaca mundana, louca e maligna sob o nosso teto??? É sério???
- Calma, Dess. Ela não é má. Ela mudou. Desde que padre Pietro a exorcizou, ela mudou.
- Mudou porra nenhuma! Na primeira oportunidade em que se viu sozinha, ela invocou a 'outra' enquanto vc viajou pra lutar! Eu sofri, presa em meu próprio corpo! Tem ideia do que é isso!? - Desvencilhando-me de seu abraço, explodo.
- EU NÃO QUERO MAIS ESSA VACA TRAIDORA EM NOSSA CASA! ELA VAI TE FERRAR ASSIM QUE TIVER UMA CHANCE!
- Não. Ela mudou.
- IDIOTA!
- DESS!!! - Ergo-me do chão e, andando de um lado ao outro da sala, argumento.
- Se ele não conseguir te levar, vai tentar levar alguém a quem vc ama! Foi disso que vc sempre teve medo! Agora eu te entendo! Ela ainda tem más tendências! Eu vejo em seu olhos! Ela vai ser capaz de tudo pra juntar sua suposta família e te separar de mim e das crianças! Ou, quem sabe, levar as crianças!?
- Calma, amor.
- ME SOLTA! SÃO MEUS FILHOS QUE CORREM PERIGO! ELA NÃO É BOA, AMOR! ACREDITA EM MIM! ANTOINE PODE SER A PRÓXIMA!
-Antoine não. Não ela...
- Por que tanta certeza???
- Ela é mais forte do que todos nós juntos.
- Do que tá falando? - Indago, amedrontada. - O que tem a minha filha de tão especial?
- Ela é um querubim, Dess. Um ser ainda mais poderoso e inacessível do que anjos e arcanjos.
- Não. Não. Não mesmo. - Tonta, alcanço a cozinha. Bebo água da bica. - Não. Não fala mais nada. Chega de anjos, arcanjos, demônios. Legiões. Querubim??? Não. Não. Nossa filha é normal assim como eu! Eu a encontrei na rua vendendo bala de menta! NÃO! TIRA MINHA FILHA DISSO! LÚCIFER TEM SEU SUOR E SANGUE!
- Não tem poder sobre ela. Até hoje, ela nada sofreu. Isso é um bom sinal.
- E Matteo??? Ele...!!!
- É cem por cento humano. É com ele que devemos nos preocupar, Dess. - Abraçando-me a ele, choro copiosamente. - Eu vou proteger nossa família, amor. Custe o que custar.
- NÃO DEIXE QUE CELESTE PISE NESSA CASA NOVAMENTE, VINCENZO!
- Não vou. - Afirma ele, desolado. - Agora tudo mudou. Tenho que proteger nossos filhos e ela ainda continua surtada. Enrico precisa saber.
- Se ela tentar algo, vai ter o que merece! EU NÃO A QUERO AQUI! - Berro, desnorteada. Recuando, peço. - PARA, VINCENZO! AFASTA A PORRA DESSE DEDO DA PORRA DA MINHA TESTA! - Modulando a voz, ele me pede para me esquecer de tudo o que ouvira da história de Celeste e Enrico.
- Lembre-se somente de nunca deixar nosso filho sozinho com ela, amor. Perdão. Eu preciso fazer isso.
- De novo não...
Um sopro de Vincenzo e as velas se apagam assim como eu e minhas lembranças.
Apesar de tentar disfarçar, Vincenzo ainda sente dores na cabeça e tremores nas mãos. Não preciso de meu dom para imaginar seu esforço enquanto dá aulas durante horas na academia. João reveza com ele quando a exaustão toma conta de seu corpo. Gostaria de ser a mulher que já fui. A guerreira destemida e ajudá-lo, mas, agora eu me sinto um nada à espera de que meu filho volte a aceitar meu leite.
- Ele tá mamando, Dess! - Exulta Vincenzo num sussurro. Emocionada, com os olhos marejados, eu o vejo sorrir sentado ao meu lado. Aconchegando-se a mim, ele me incentiva. - Nosso filho te ama, Dess. Não duvide disso. Nunca. Vamos passar por tudo isso juntos e, um dia, vamos rir de tudo.
- Espero que sim, amor. A dor passou? Já tomou seu remédio? - Um olhar lascivo aos meus seios expostos e ele cochicha.
- Tenho planos para essa noite. - Prendo o riso enquanto ele prossegue. - Gostaria de levar minha esposa pra jantar fora.
- Melhor não, amor. Precisamos economizar.
- Perdão por não te dar o que merece, Dess. - Cobrindo meus seios com a camisola, eu o repreendo com um selinho em seus lábios.
- Tenho tudo o que desejo, amor. Tudo mesmo. Não fala assim. Me deixa triste.
- Há um mês que não faço amor com minha esposa. Sabia?
- Nossa. Que absurdo. Ela deve ser intragável.
- Não é não. A culpa é minha. - Matteo adormece em meu colo enquanto Vincenzo, assanhado, ronrona ao meu ouvido. - Se ela não me quiser hoje, posso foder vc com força?
Afoita, acomodo Matteo em seu berço. Vincenzo, logo atrás de mim, beija minha nuca, acendendo-me por dentro. Seu pau duro roça minha pele coberta pela longa camisola. Como adolescentes, encostamos a porta do quarto trocando beijos ardentes, retirando nossas roupas que voam de encontro ao chão. Erguendo-me pelas pernas, ele me pressiona contra a porta do guarda-roupas de Matteo. A chave da porta cai. Faz barulho. Eu gargalho. Com um beijo, ele me cala enquanto seu pau me invade com força. Agarrada ao seu pescoço, beijo sua boca, mordo seus lábios. Mato as saudades do homem que amo. Contendo-se para não urrar alto, ele goza em mim.
- Calma. - Sussurra ele, sorrindo. - Ainda não acabou. Agora é a sua vez.
Antes de me arremessar contra o pequeno sofá próximo ao berço de nosso filho, ele desiste.
- Quem pode ser, porra!? - Reclama Vincenzo ao ouvir a campainha tocar. - Já é tarde!
- Deixa tocar. - Murmuro beijando sua bochecha. - Antoine tá dormindo, amor. Liam e Cassie viajaram. Deixa tocar.
O som insistente da campainha nos irrita. De volta ao chão, visto minha camisola. Descalça, caminho até o corredor ordenando a Vincenzo que vá tomar um banho.
- Eu cuido disso. - Antes de abrir a porta, aviso. - Esteja pronto quando eu voltar, gostosão!
- Voltar de onde? Vcs pretendem sair? - Um súbito horror me vem à mente. Levo a mão ao meu peito sentindo o coração bater, descompassado. Seu sorriso falso me desequilibra, forçando-me a ser grosseira.
- O que faz aqui, Celeste!? As crianças estão dormindo! Seu filho e eu já vamos nos deitar! - Empurrando a porta contra mim, ela invade a sala rindo, eufórica, à procura de alguém. - Celeste!
- Calma, meu bem. Viemos trazer ótimas notícias. Onde está Vincenzo?
- Aqui. - Diz ele visivelmente incomodado. Por quê? Ele a adora! - É tarde, Celeste.
- Perdão, meu filho. - Pede Enrico diante de mim. Visivelmente envergonhado, ele argumenta. - Ela estava incontrolável, Adessa. Eu disse a ela para esperarmos até amanhã, mas...
- Conte logo, Enrico! Conte! - Enraivecida por sua extrema euforia, resmungo.
- Ela é surtada assim mesmo ou é cocaína?
- Dess!
- Foi mal...- Rosno. - Entra Enrico. Fique à vontade. - Vc! Ela não! Bato a porta com força assim que ouço o som de seu risinho pelo qual tomei ranço. Por quê? Não faço ideia. - Vou ao banheiro e já volto. - Aviso ao lançar um olhar decepcionado a Vincenzo. - Celeste, vc poderia rir um pouco menos e um pouco mais baixo. As crianças estão dormindo. Obrigada. De nada. - Tranco-me no banheiro onde abafo meu grito debaixo do chuveiro. - 'Empata-foda' do caralho! - Digo ao meu reflexo no espelho sem compreender o motivo de ter tanta raiva dela. Instintivamente, volto ao quarto de Matteo. Aliviada, eu o vejo dormir feito um anjinho. Cato nossas roupas no chão e as jogo no cesto. Ouço o som das palmas histéricas de Celeste enquanto arrasto-me de volta à sala onde todos, repentinamente, se calam. Assustada, pergunto. - O que houve? Algum problema?
Enrico sorri com os olhos enquanto Vincenzo se aproxima de mim com seus olhos arregalados e, na mão direita, um papel no formato A4.
- Que porra de papel é esse, Vincenzo!? Fala! - Expirando com força, ele comenta.
- Vc não vai acreditar, Dess.
Continua...