sábado, 23 de março de 2024

CAPÍTULO 47 - PRIMEIRAS GRANDES PERDAS

 



Após aquela noite, tivemos uma trégua. Nada de 'Legião'. Nada de Cassie e Sean. Nada de Lúcifer, Liam ou pactos. Somente assuntos amenos entre nossa família unida. 
Bem unida. 
Antoine e Leo estão mais grudados do que nunca, embora não se toquem como namorados. Ele a beija na bochecha. Ela se aninha em seu colo enquanto assistem 'animes', ambos satisfeitos. Por que diabos ela reclamava de que ele a via somente como sua irmã mais nova se, agora, após o beijo, eles poderiam namorar?
- É assim que eles namoram, Dess. 
- Cacete! Não me assusta! - Rindo, Vincenzo caçoa.
- Viu? Fica espiando pela fresta da porta.
- Não estou espiando. Estou observando. É diferente. - Refuto recostada à parede. Arfando, afirmo. - Eles estão felizes.
- Estão. - Concorda ele apoiando suas mãos na parede. Entre elas, finjo não me abalar com sua proximidade ou com seu cheiro cítrico. - Eles são diferentes de nós, Dess. Antoine não precisa de contato físico mais íntimo e o Leo...- Ronrona ele bem próximo ao meu ouvido.
- O que tem o Leo?
- Ele também é diferente. Antoine me disse que, por ele ter morrido por um certo tempo, durante a tentativa de suicídio, ele  retornou com certas aptidões.
- Aptidões?
- Sim. E que, por amar Antoine, ele tem a proteção dos 'Iluminados'.
- 'Iluminados'!? O que é isso!? Outro time no campeonato!? 'Superiores', 'Iluminados', 'Guardiões', 'Legião'! Todos prontos para disputar a 'Grande Batalha'!? Puta que pariu! Não há humano que aguente isso!
- Fala baixo. Eles vão ouvir.
- Já ouvimos, pai! - Grita Antoine com a boca cheia de pipoca. Abrindo a porta, envergonhada, minto. 
- Eu estava de passagem. Seu pai apareceu, de repente e...
- 'De boas', mãe. Tá tudo certo. - Sorrio. - Por enquanto.
- Como 'por enquanto'!? - Invado a sala de cinema e, num desespero, indago. - Vcs estão me escondendo alguma coisa!?
- Nada, tia. - Diz Leo sugando refrigerante pelo canudinho. - Antoine adora criar um clima de suspense. Em tudo. 'Tá ligada'? Fica tranquila. - Sorrindo, ela sugere. 
- Por que vc e o papai não saem pra jantar fora? Dá pra ver que estão precisando.
- Não entendi.
- Apoio. 
- Ninguém pediu seu apoio, Vincenzo!
- Viu, mãe? Vc tá super tensa. Vão passear. - Leo gargalha diante da insinuação de Antoine. Nada sobrou do menino franzino, sombrio e revoltado que conheci na recepção do 'Round 666', há meses. O amor muda tudo. - Vai por mim, mãe. Vcs precisam de um tempo juntos, longe daqui.
- Era o que me faltava. - Resmungo. - Uma criança me dando conselhos. Sai! - Grito ao empurrar Vincenzo com a lateral de meu corpo enquanto ouço Leo sussurrar um , 'Vai lá, tio' antes de sair do quarto. Vincenzo o obedece e, passando por mim, impedindo-me de entrar em nosso quarto, ele me convida.
- Quer jantar com seu marido, Dess?
- Não. - Olhando em seus olhos, refuto, magoada. - Quando o encontrar, diga que já se passaram três semanas e ele ainda não me tocou. 
- Dess...
- Me solta! - Arremessando-me contra o colchão, ele tranca a porta do nosso quarto. Retirando sua camisa pela cabeça, ele a joga no chão enquanto caminha em minha direção. Ergo-me da cama e corro até a porta. Esperando por seus risos, encontro seu olhar insano. Antes de me arremessar de volta à cama, ele avisa num tom soturno.
- Não me provoca, Dess.
- O que vc tem? - Pergunto antes de ter meu vestido rasgado, minha lingerie arrancada de meu corpo. - Vincenzo. Olha para mim. - Peço antes de ser obrigada, por suas mãos fortes, a ficar de joelhos sobre o colchão, de costas para ele. - Vincenzo! Assim não! - Peço minutos antes de ser penetrada por seu pau ereto. Agarro-me na cabeceira em ferro e, voltando no tempo, penso estar num dos meus filmes adultos.
Pela primeira vez, em anos de convivência, eu sinto dor.
Assim que ele goza em minhas costas, ouço sua voz me perguntar.
- Por que tá chorando, amor?
- Por nada. - Respondo enrolada em meu lençol. Correndo em direção ao banheiro, confusa, abro o chuveiro com pressurizador, multitemperatura, dentre outras funções. Debaixo d'água, choro ao me recordar dos dias felizes em nosso apartamento modesto onde brigava com Vincenzo por não ter água morna. Dias normais em uma vida normal. Vida longe de todo o mal que nos cerca. Dias onde ele jamais me tocou como agora.
- Não, Vincenzo! Fica longe!
- Me perdoa! - Pede-me ele, invadindo o box. - O que eu fiz!? Eu te machuquei, Dess!?
- Sim.
- Onde!?
- No corpo e na alma, Vincenzo. - Enrolada na toalha, peço, secando minhas lágrimas. - Sai daqui. Me espera lá fora. Por favor.
- Ok...- Diz ele, amargurado. - Não sei o que tem acontecido comigo, Dess, mas, não me deixa, por favor.
- Não vou. - Afirmo enquanto procuro por outra camisola. Mostrando-me um de meus vestidos, parecendo arrependido, ele implora.
- Vamos sair daqui?
- Pra onde?
- Pra qualquer lugar, bem longe daqui, Dess. Só vc e eu.
- Vamos.
Sorrio.



Jantamos em uma cantina, longe de tudo e de todos. Somos os únicos clientes em uma madrugada fria e chuvosa. Ainda ressentida, sentada à mesa coberta por uma toalha quadriculada em branco e vermelho, tento não me recordar de nossa última viagem à Itália. Tento não pensar em Cassie e em sua contagiante alegria, em lua-de-mel. Dou graças à música alta que impede Vincenzo de ouvir meus pensamentos voltados a Aiden no dia em que dançamos sob a chuva na Toscana. 
- Uma moeda por seus pensamentos, esposa. - Seus olhos tristes brilham sob a luz da vela acesa. - Com certeza, não pensou em mim.
- Como pode saber? O som tá alto.
- Seu olhar. Ele mudou.
- Não seja patético. Nada mudou.
- Mudou sim. Eu mudei e vc sabe disso. Eu te machuquei hoje. 
- Não quero falar disso.
- Eu preciso falar, Dess. - Implora ele, pousando suas mãos sobre as minhas. - Sinto que minha compulsão está voltando. Eu jamais te machucaria como eu fiz hoje. Vc sabe disso. Não sabe?
- Sei...- Tomando um gole do vinho que o garçom, elegantemente, deixa jorrar sobre a taça, pergunto. - Por que tá me escondendo a verdade? Não confia mais em mim? - Esvaziando a taça, sem rodeios, faço outra pergunta que o deixa abalado. - De onde veio essa violência, marido? De qual época? Antes ou Depois de Cristo? 
- Do que tá falando? - Ergo meu braço. O garçom volta à nossa mesa disposto a encher a minha taça quando eu o interrompo com uma proposta.
- Vamos evitar seu cansaço, querido? Já é tarde. Vc deve estar exausto. Que tal deixar a garrafa aqui? 
- Dess, é o trabalho dele.
- Exato! Trabalho! - Encarando o garçom, prossigo. - É o que eu quero poupar a ele, Vincenzo! Deixa ela aqui! - Agarro-me à garrafa enquanto Vincenzo ri de mim e, delicadamente, num piscar de olhos encantador, faz com que o garçom desista de lutar comigo. - Vc é estranho...- Resmungo enquanto encho minha taça e a esvazio num gole. - Gosta de manipular as pessoas. Eu sou uma completa idiota em suas mãos. Era assim que agia quando 'caiu'? Cara. Vc tá me escondendo alguma coisa que eu não consigo captar quando te toco.

- Vc tá bêbada, Dess. - Tomando a garrafa de minha mão, ele me imita ao esvaziar sua taça. - Eu me recuso a discutir com bêbados e loucos. 
- Não discuta. Só me responda. Em quem mais vc bateu além de Sweet? Quem vc machucou?
- Para. Por que trazer, à tona, um assunto desses quando eu te trouxe aqui pra ficarmos longe de tudo? - Revirando os olhos, resmungo.
- Ok. Por hoje, eu me calo.
- Dança comigo? É a nossa canção.
- Vincenzo! - Gargalho. - Nós temos muitas 'nossas canções' e, essa, com certeza, não é nossa. Eu nem a conheço.
- Vem. - Estendendo-me seu braço, de pé, ele me olha com ternura e me diz. - Eu sou e sempre serei seu grande amor, seu amante. - Afogando minhas suspeitas em outra taça de vinho, deixo-me conduzir por ele na pequena pista de dança. Aspiro o cheiro de maça verde em seu peitoral e sorrio. Lembro-me da primeira vez em que dançamos na casa de praia quando ele dizia fugir de Lúcifer por temer um pacto. Outra mentira. Vincenzo, por que tantas mentiras? - Para de pensar e dança, esposa. - Roubando-me um beijo, ele me faz arfar. - Me perdoa por hoje?
- E, se eu pedir que repita?
- Dess!

- Como assim, mãe!? Vc caiu e bateu com os olhos no chão!?
- Exato. - Minto. Como dizer à família reunida à mesa de jantar que eu fui usada de maneira violenta pelo pai de meus filhos, com o meu consentimento??? 
- Consentimento não. - Sussurra-me Vincenzo. - Vc pediu. Não eu.
- Pai!
- Oi!
- Explica isso! Tem a ver com a 'Legião'!?
- Não, filha. Foi um tombo da moto. - Minto. - Só isso. - Sorrindo, Leo apazigua.
- Antoine. 'Pega leve'. Eles estão bem. Isso é o que importa.
- Tu tá me zoando?
- Não, 'bebê'.
- 'Bebê'???
- Para, mãe!!! - Gargalho enquanto Antoine cobre o rosto com as mãos. - Isso não tem graça, Leo. Eu te pedi...
- Desculpa. Foi mal. Não fica assim.
- Dess! Para de rir!
- Enrico também riu e ninguém brigou com ele!
- Eu??? - Pergunta-me ele com as bochechas rosadas. - Eu não ri do 'bebê'!!! Eu ri de sua gargalhada!!! - Rimos juntos enquanto Antoine ameaça deixar a mesa. Engulo meu riso e lhe peço desculpas.
- É que me pegou de surpresa, filha. Vc era o meu bebê e...- Meus lábios tremulam antes de prorromper em lágrimas. Entre soluços, protesto. - Agora vc é o bebê do Leo. Isso não é justo.
- Caraca, mãe! A parada é comigo e vc é quem chora!?
- Eu sou sensível, filha.
- Não, Dess. Vc gosta de chorar. Admita.
- Vá à merda.
- Mamãe 'dodói'. Papai feio.
- Eu??? Eu não fiz nada, filhão!!! - Com Matteo em meu colo, eu o faço comer outra colherada de banana amassada e, perdida, repito. - Papai feio. 
- Mãe, não chora. É só um apelido. Ele me chama de 'bebê' porque me acha nova demais. 
- E vc é, filha. - Até hoje não sei quanto anos Antoine tem, ao certo. - Pode ter crescido, mas ainda é inocente como a minha menina. A menina que encontrei no parque.
- Essa história de novo, Dess? - Outra gargalhada de Enrico e Vincenzo graceja. - 'Já deu, burro. Já deu'. Não há ninguém, daqui ao Japão, que não conheça essa história. 
- É bom que saibam mesmo. Foi a mim que ela procurou. Não foi por vc, por Enrico, nem por Celeste. Foi por mim que ela procurou. Devo ter alguma importância.
- Tem muita, tia. - Afirma Leo, engolindo seu café, erguendo-se da cadeira, apressando-se para o trabalho. Quase posso ver a vida que Antoine e ele poderiam ter se...- Não chora, tia. - Um beijo em minha cabeça e ele sussurra. - Vou precisar de sua força. Fica forte.
- Quando!? - Um sorriso triste e ele se despede de todos à mesa. - Volta!
- Fica quieta, mulher. - Ralha Vincenzo, passando manteiga em seu pão. - Vc me confunde. Não sabe se ri ou se chora. Tá sempre querendo saber de alguma coisa...alguma trama sórdida.
- Cala a boca, cretino. Ele é o namorado da nossa filha.
- Não é, mãe. Nós somos amigos. Amigos que se amam muito.
- Interessante. - Comenta Enrico. - E, por que não estão namorando?
- Porque esse tipo de amor me enfraqueceria, vovô. Leo pensa da mesma maneira. Nós dois precisamos estar atentos a qualquer sinal. Ninguém é confiável até que prove o contrário.
- Nossa. Isso me deu medo. - Brinca Celeste, acuada.
- É bom mesmo...- Replica Antoine, num tom de ameaça. O clima tenso é cortado à faca com a pergunta de Matteo.
- Mamãe. Neném 'meguio'? - Abraçando-o com força, respondo num lamento.
- Não, filho. Hoje não tem mergulho. Culpa daquela vaca. Na próxima semana a gente volta às aulas de natação, tá?
- Vaca faz 'muuuh'! - Arrancando risos de todos, ele gargalha enquanto percebo o olhar suspeito de Antoine sobre Celeste. O que houve? O jogo virou no segundo tempo? 
- Menos, Dess. Menos.
- Vá pro inferno.
- Prefiro ir trabalhar. - Um beijo em minha boca e Matteo, enciumado, solta um 'Eca! Que mojo'. - Ajoelhado, rindo de felicidade, Vincenzo o beija na bochecha e, antes de partir, declara.
- Papai te ama, filho. Vc é o presente mais valioso que eu poderia ter recebido de Deus. E eu nem mereço...- Emocionado, ele tenta não chorar quando Matteo volta a nos surpreender com seu crescente vocabulário.
- 'Neném ama papai feio'. - Vincenzo engole em seco. Enrico deixa cair uma lágrima. Antoine e eu encaramos Celeste que, parecendo desconfortável, comenta.
- Nosso neto está cada vez mais parecido com o pai. Não é Enrico?
- Discordo. Ele é lindo e espirituoso como a mãe. - Tocando em sua mão, agradeço.
- Te amo, Enrico, mas ele é a cara do pai. - Uma repentina visão e retiro minha mão num gesto abrupto. Ainda assustada, ergo-me da cadeira e entrego Matteo a Antoine. Catando os cacos dos copos que derrubei da mesa, tento não acreditar no que vi. - Não precisa, Enrico. - Seus olhos que riem me fazem chorar. - Obrigada. Obrigada por tudo. Eu nunca mais vou te esquecer.
- Nem eu, meu anjo. Nem eu.



Entro no quarto de Antoine. Em frente ao computador, ela estuda Matemática, Física e História, ao mesmo tempo. 
- Como consegue, filha?
- Eu já sei de tudo, mãe. Só estou revendo.
- Onde aprendeu, antes?
- Quer mesmo saber? - Uma careta e respondo.
- Melhor não. - Matteo anda de um lado ao outro, chutando sua bola de futebol enquanto me sento ao lado de Antoine e a vejo assistir a um vídeo no celular. Antes mesmo de eu perguntar, ela responde. - 'Linguagem Não Verbal', mãe. Porque preciso analisar exatamente o que algumas pessoas expressam através do corpo. Assim como vc que, agora mesmo, tá me olhando com espanto, certamente, pensando como eu saquei tudo isso. Fácil. Está tudo no seu corpo. Na forma como gesticula, olha, move os lábios.
- Credo! Melhor eu não ficar perto de vc! - Rindo, ela concorda.
- Se não quiser que eu descubra como conseguiu esse olho roxo...
- Antoine! Para! - Movendo meus braços aleatoriamente como um guarda de trânsito britânico na hora 'rush', pergunto. - O que viu em sua avó? Vc suspeita de algo? 
- Ainda é cedo, mãe. Preciso estudar tudo sobre essa linguagem corporal antes de 'fechar o diagnóstico'.
- 'Fechar o diagnóstico'!? Uau! Vc tá levando isso a sério!
- Mais do que imagina, mãe. - Diz ela com os olhos amendoados fixos nos meus. - Eu não vim à Terra a passeio. Preciso terminar minha tarefa.
- Parou! - Protesto, apontando meu indicador ao meu rosto. - Consegue ler minha linguagem não verbal agora!? Não!? Eu explico! Eu não quero mais ouvir vc falar de tarefa, Terra, Iluminados, Illuminatis, Superiores e o 'escambau'!
- 'Escambau'??? - Rindo, ela comenta. - Isso é novo pra mim!!!
- Então estuda aí e continua comigo! Ok!? Não se atreva a me deixar! - Aviso correndo atrás de Matteo. Com ele em meu colo, pergunto, antes de fechar a porta. - Compreendeu!? - Da cadeira giratória, ela responde abrindo um sorriso iluminado.
- Compreendido, chefe! - Entre a brecha da porta, cochicho.
- Quando souber algo sobre o soldado 'C', me avisa. Tenho sérias suspeitas a seu respeito. Copiou? - Rindo de mim, ela responde.
- Copiei. Câmbio. Desligo.

Recostada à parede, fora do quarto, puxo o ar pela boca enquanto deixo Matteo livre para correr até a 'brinquedoteca'. Por que eu sinto que estou perdendo, aos poucos, todos os que amo?
- Meu celular! - Grito enquanto o procuro nos cômodos da casa. Eu o odeio. Eu o largo em qualquer lugar. Não quero...não desejo receber notícias do exterior dessa casa, porra! - Achei!
- 'Alô mamãe'!? - Frenética, confirmo.
- Achei 'alô, mamãe', filho! - Deitando-me no chão da 'brinquedoteca', olhando para o teto estrelado, aguardo a voz de Aninha, do outro lado da linha. Matteo se deita ao meu lado como se soubesse que preciso de companhia.
- Aninha! Fala!
- Adessa...- Sua voz fraca me arrepia. - Fiz merda. Me ajuda?
Desligo o celular. Com as  mãos na cabeça, xingo.
- Porra. De novo não. - Imitando meu gesto, Matteo, dramatiza.
- 'Porra de movo não'.
Ainda rindo da nova fase de Matteo dirijo até a casa de Aninha. Imagens da noite passada me vem à mente. O prazer em sentir dor causada por Vincenzo me faz morder os lábios. Antoine não poderia me ver assim. Certamente, 'fecharia meu diagnóstico' como 'pervertida' por tirar seu pai do 'Bom Caminho'. Seus beijos, mordidas, chupões. Seu apetite voraz. Seus gestos bruscos seguidos de carinho. Nunca o vira tão selvagem, bruto, quase que diabólico e...eu gostei. 
Estaciono o carro diante do prédio antigo. Subo os degraus até o quinto andar. Toco a campainha. Bato à porta. Nada. Encosto minha orelha na madeira da porta. Ouço a voz de Aninha, fraca, distante. Afasto-me e, com a perna mais forte, eu a arrombo. Dou quatro passos e, horrorizada, sigo a trilha de sangue respingado no chão em tacos de madeira antiga. Corro até seu quarto. Antes de cruzar o batente da porta, sou empurrada contra a parede do corredor. Um menino carrancudo avisa num rosnado.
- Não toque nela. Deixa a vadia morrer. - Entre irritada e confusa, avanço em sua direção. Uma olhadela no pequeno banheiro lavado de sangue e arquejo de pavor. - Não entra!
- Sai! - Revido, empurrando-o com a lateral de meu corpo. Encarando-o, alerto. - Se me tocar novamente, vai levar porrada!
- Com quem tá falando...amiga?
- Com o menino. - Respondo antes de sufocar um grito ao retirar o lençol manchado de vermelho do corpo encolhido de Aninha sobre sua cama. - O que fez, Aninha? - Indago num tom de lamento. - Eu disse que te ajudaria. - Erguendo-a com dificuldade, eu a amparo com meu ombro enquanto caminhamos, vagarosamente, até a porta da sala. - Vai dar tudo certo. Fica calma. - Minto. 
- Ela precisa ficar! 
- Sai da frente, garoto! Isso não é hora pra brigar, brincar...sei lá o que tu quer! Vaza! 
Diante do olhar curioso e maledicente de uma das vizinhas, peço ajuda.
- Liga pra emergência! São cinco andares! Não vou conseguir descer sozinha com ela! O elevador tá quebrado!
- Isso não é problema meu. - Refuta a mulher azeda ao fechar a porta.
- Filha da puta covarde. - Rosno enquanto ajudo Aninha a descer o primeiro degrau do quinto andar. Suas pernas pinceladas pelo sangue que escorre, me deixam ainda mais nervosa. O corpinho ainda em formação de seu bebê morto dentro do vaso sanitário não sai da minha cabeça. - Calma, querida. Não chora. Vou te levar pro hospital.
- Não vai dar...tempo. Eu...fiz...
- Não fala. Vc tá muito fraca. - Assusto-me com o garoto carrancudo assim que alcançamos o quarto andar. - Porra! Como tu conseguiu!?
- Ela não pode ir. - Rosna ele com ódio. - Ela me deve isso.
- Deve o que, garoto!? - Antes de chutá-lo com a perna esquerda, ele some. Olho ao redor e pergunto, intrigada. - Pra onde ele foi!?
- Quem?
- Vc não o viu!?
- Posso ajudar?
Sorrio ao jovem que se apressa em levar Aninha em seu colo. Sem perguntas ou julgamentos, ele parece não se importar com o sangue ensopando sua camisola. Eu o sigo até meu carro onde ele a deita no banco traseiro. Reparo em seu macacão sujo de graça. Suponho que seja mecânico de carro, morador do mesmo prédio.
- Nossa. Muito obrigada. Não sei o que seria dela sem vc. - Antes de entrar no carro, eu o cumprimento, apertando sua mão. Ele me sorri ao replicar.
- Não me agradeça. Estamos aqui para ajudar. Não desista de lutar pelo que é certo, Adessa.
- Vc me conhece!?
Um gemido de Aninha e volto meu olhar a ela. - Aguenta firme, amiga! 
Sentada ao volante, pergunto-me pelo homem com macacão que desapareceu, em fração de segundos. Meu coração dispara ao perceber, pelo retrovisor interno, a imagem do menino carrancudo ao lado de Aninha. Um forte arrepio e, sem lhe dar atenção, piso fundo no acelerador, rumo ao hospital mais próximo.

Apesar de ser contra, o corpo é dela. Não meu. Quieta, ao seu lado, no leito do hospital, sinto a frieza com que o médico a trata após sofrer uma curetagem e ainda estar sentindo cólicas. Contenho minha impulsividade em discutir com o homem de jaleco branco porque algo me incomoda mais do que sua falta de tato: o menino carrancudo, de pé, ao lado de Aninha.



- Por que não a deixa em paz?

- Por que ela não me deixa em paz!? Eu só queria uma chance de voltar! É a terceira vez que tento e ela me mata! Isso é justo!?

- Não. - Lamento. - Não sei o que dizer.

- Não precisa. Agora, vou ficar aqui e me vingar.

- Por que não tenta seguir adiante?

- Porque não quero. Ela precisa sofrer o que eu sofri. Sentir a dor que eu senti. - Antes de correr pelo longo corredor do hospital, ele grita. - Me deixa em paz!

Eu a levo à casa de sua namorada após a 'alta hospitalar'. Desconhecendo a verdadeira causa de sua internação, a namorada a recebe com carinho. Despeço-me de Aninha e, angustiada, revejo o menino carrancudo sentado no sofá da sala. Minha intuição me diz que devo permanecer distante.

Por enquanto.


- Aonde foi, Dess?

- Ajudar uma amiga. - Respondo com o olhar distante. - Por que chegou cedo em casa?

- Antoine me ligou. Disse que meu pai estava estranho.

- Enrico!?

- Espera, Dess! - Caminho até o quarto de Enrico. Vincenzo me segue. Deitado ao seu lado, Matteo faz carinho no rosto do avô e revela.

- 'Bobô dodói'.

- Não, meu anjo. - Refuta Enrico, pálido, estirado sobre o colchão. - Vovô tá bem. Sem 'dodói'.

- O que houve, Enrico? - Sentando-me na beirada da cama, encosto o dorso de minha mão em sua testa. - Vc tá frio. Muito frio. - Assustada, olho para Vincenzo e indago. - O que ele tem!?

- Não sei. - Responde-me ele, impotente. - Ele não quer dizer.

- Enrico! O que houve!? - Insisto. - Quem drenou sua energia!?

- Ninguém, querida. De onde tirou essa coisa de 'drenar energia'? - Erguendo-me da cama, encaro Celeste que surge, repentinamente, no quarto, e a confronto.

- Vc já fez isso uma vez. Não seria novidade se fizesse de novo.

- Dess! Ela já pediu desculpas!

- Vincenzo! Eu não confio em sua mãe!

- Ela não é a minha mãe. - Rosna ele. - Vc sabe disso.

- Não sei! Tá complicado de entender! Por que Enrico é seu pai, casado com Celeste, e ela não é a sua mãe!? Explica!

- Porque meu pai reconhece a Escuridão quando a vê, mãe. Simples. Copiou?

- Não! Não 'copiei', filha! - Puxando-a pelo braço, eu a arrasto para fora do quarto de Enrico e, num tom baixo, pergunto. - O que vc quer dizer com isso!?

- Que suas suspeitas não são infundadas, porém, ainda não são comprovadas.

- Cacete! Vc quer dizer que Celeste pode ser nociva à nossa família!? - Horrorizada, penso alto. - Ela cuida do meu filho! Do seu irmão!

- Calma, mãe. - Cochicha ela. - Não é tão ruim quanto parece. Eu ainda não tenho certeza das intenções da vovó. Mas...que ela esconde algo, esconde.

- Por que diz isso!?

- Olha pro vovô, mãe! Ele tá tenso! Ele a ama e não quer que ela sofra! - Impulsiva e descontrolada, declaro.

- Eu amo o seu avô e não quero que ele sofra!

- Espera! - Antoine me impede de voltar ao quarto de Enrico ao segurar meu braço e pedir. - Me deixa entender o que tá acontecendo, mãe. Ninguém, mais do que eu, precisa desvendar esse mistério. Eles me cobram isso. - De joelhos, agarrando-a pelos braços, indago, assustada.

- Eles quem?

- Vc não quer ouvir. - Revela ela, desanimada. - Já me falou isso hoje de manhã.

- Agora eu quero! Quem!?

- Filha. Agora não.

- Mas...pai...- Aflita, protesto.

- Que porra de domínio vc tem sobre ela, Vincenzo! - Um olhar sombrio e ele responde.

- Algo que vc jamais será capaz de compreender e aceitar, Dess. - Fixo meus olhos nos dele quando Matteo se prende à minha perna e avisa.

- 'Papai dodói. Bobô dodói. Bobó mau. Ai ai ai. Neném qué nanana'.

Carregando-o em meu colo, insegura, sigo até a cozinha. Sem tempo para chorar, descasco duas bananas com meu filho em um de meus braços. Sua segurança é minha prioridade. Eu nunca acreditei naquela história idiota de que Celeste teria proposto a Liam sua rendição em troca da vida de meu filho ou na bosta da teoria de que a 'Legião' teria o poder e a inteligência capaz de criar um ser vivo ou um vírus letal com o sangue de Sean e Matteo. Isso é patético. Já passou em algum filme de zumbis que, agora, não me lembro do nome.

- Vagabunda. - Penso alto enquanto me sento na banqueta com Matteo em meu colo. - Eu acabo com ela, com Liam e o resto da porra dessa 'Legião' de merda.

- Merda. - Repete Matteo ansioso por sua banana com aveia. - 'Mamãe dodói'?

- Não, filho. - Um beijo em sua bochecha e agradeço. - Vc tá sempre preocupado comigo. Vc é o único, filho. Ninguém...nada vai me separar de vc. Eu juro.

- Eu tenho certeza.

- Sai, Vincenzo! Volta pra sua amiga, mãe, amante...sei lá! Volta pra vaca da Celeste enquanto ela suga a vida do teu pai! - Sentando-se na banqueta atrás de mim, ele nos abraça com força e demoradamente. Matteo reclama com um 'Nanana, papai' enquanto eu choro recostando minha testa no ombrinho de nosso filho. - Quando vai me contar a verdade, marido? - Sussurrando em meu ouvido, ele responde com sofreguidão.

- Tô tentando, Dess. Tô tentando. Não me deixa, por favor. Não me deixa na escuridão. Tenho medo de nunca mais ver vcs.



Aninha ainda não retornou ao trabalho. Há uma recepcionista provisória em seu lugar. Enquanto tento seguir minha vida com uma certa estabilidade, envio mensagens a ela. Mensagens sem respostas. Vincenzo me pediu para que me afastasse dela, temendo por minha saúde. Mais uma vez, tive de ouvir que não sou a porra de uma heroína. Disso, eu já sei! Eu não quero ser a heroína da história. Tudo o que desejo é viver em paz com a minha família. Já passei por muita coisa ruim até chegar onde estou. Vincenzo deveria ter visto, com seus próprios olhos, o que é ter seu corpo usado por estranhos, dia após dia, sem ter esperanças de que algo iria mudar.
- Talvez tenha visto.
- Quem falou!? - Assustada, olho ao meu redor e vejo pessoas escolhendo frutas e verduras, mergulhadas em seus mundinhos secretos e obscuros. Assim como eu, todos têm a escuridão dentro de si. Ninguém parece ter falado comigo. As vozes não voltaram, logo, só há uma opção a ser considerada. Quem se atreveria a me desorientar em um supermercado? - É vc, maldito? - Sussurro enquanto escolho os iogurtes próximos às frutas. - Eu sei que está aqui. Sinto seu cheiro.
- Ao menos, eu não me escondo por trás de aromas cítricos. 
- Não posso ficar falando com os iogurtes, idiota. Vão pensar que sou louca.
- E não é? Louca e cega por um amor fadado à tragédia. 
- Tragédia!? - Chamando a atenção de alguns clientes do mercado, finjo brincar com Matteo que, dentro do carrinho, 'fazendo cara de mau', aponta seu dedinho a um ponto atrás de mim. Um forte arrepio percorre minha coluna vertebral enquanto finjo falar ao celular. - Suma de nossas vidas, maldito. Tudo o que vc deseja é semear a discórdia entre nós. - Rosno. - Te afastas do meu filho.
- Estou longe, meu bem. O que o meu 'tatatatatatataraneto' vê atrás de vc é algo bem menor e menos poderoso do que eu. - Um risinho sarcástico e Lúcifer me pergunta. - Quer que eu o afaste ou pretende lutar contra um dos famosos e idiotas componentes da 'Legião'?
- Acabe com ele. - Ordeno enchendo-me de ódio. - Não deixe que eles toquem em minha família.
Um grito de dor e percebo o ar se movimentar atrás de mim, eriçando os pelos de minha nuca. Matteo, sorrindo, avisa. 
- 'Dodói sumiu'.
- Não pense que vou agradecer por isso. 
- Vc me pediu. Eu matei um deles antes que tocasse na linda criança. Creio que me deve um favor.
- Não. Nunca. - Rosno ao celular desligado. - Vc não vai me comprar. Não vou ter qualquer tipo de pacto com vc. Esqueça.
- Uma pena. - Zomba Lúcifer se materializando diante de mim. Arrancando Matteo do carrinho, eu o agarro em meus braços e escuto o 'Anjo Caído', entre assustada e enraivecida. - Se ouvisse minha versão dos fatos, pouparia muita dor em um futuro próximo. 
- Que versão!? Do que tá falando!?
- De Vincenzo, Enrico, Celeste...- Tocando em uma das maçãs na gôndola, ele a faz apodrecer em segundos. Olhando-me de esguelha, ele ressalta. - Poderia te contar uma história intrigante de como se conheceram há alguns séculos. Milhares de séculos. Vc, certamente, adoraria saber que seu príncipe é um sapo. E dos mais fedidos. Mas...agora não. Depois. Nesse momento, creio que vc vai se meter em outra encrenca. Só pra variar. - Outra risada e ele avisa. - Estarei lá antes de tudo terminar, 'darling'.
- Não entendi! Volta!
- Tia? - Voltando-me em sua direção, deixo escapar um 'aimeudeus' num tom de lamento. - Eu sei. - Assume ela, baixando a cabeça. - Estou feia, abatida. - Mostrando-me seu sorriso ingênuo, ela prossegue. - Aposto que não me reconheceria se eu não te chamasse de 'tia'.
- Eu te reconheceria dentre milhões de pessoas em uma noite escura, Cassie. 
- Vc sumiu. 
- Eu...- Pensando em várias mentiras, conto a verdade. - Eu tive que sumir. Me perdoa. Se eu me aproximasse de vc ou de Sean, as vidas de meus filhos e de Vincenzo estariam em risco. - Um olhar incrédulo e ela questiona.
- Como assim!? Desde quando Sean e eu oferecemos riscos a vcs!? - Ela não se lembra. Ela não se lembra de nada. Não estrague tudo. Ela estava drogada, dominada por Liam e, pelo visto, ainda está. - Tia!? Tá ouvindo as vozes!?
- Não. - Minto. - Elas sumiram. 
- Tem tomado os remédios? - Voltando no tempo, revejo nossos momentos. Bons momentos em que ela cuidava de Antoine e de mim. Por que não se pode voltar no Tempo? - Tia! Acorda!
- Vc ainda usa o crucifixo...- Sorrio ao tocar no pingente em seu pescoço. Sem olhar em seus olhos, peço. - Nunca o tire. Ele te protege de todo o Mal.
- Tenho saudades, tia. Posso visitar a 'pirralha'? - Hesitante, digo que sim. - Vc tem medo de mim, tia?
- Não. Nunca. - Deixando Matteo no carrinho, afirmo. - Jamais teria medo de vc. Eu te amo, Cassie. Vc é como uma filha pra mim. Não posso lidar com o homem que vc escolheu. Não dá. Nossa convivência se tornou impossível.
- Eu sei. - Seus olhos lacrimejam ao revelar. - Eu me lembro da briga, tia. Eu não posso viver com ele. E não posso viver sem ele. Não sei explicar. - Um olhar ao redor e ela cochicha. - Ele não é bom como imaginei, tia. Tenho medo de fugir novamente e ele matar meu filho. Sei que parece loucura, mas...
- Não parece, Cassie. Ele...- Não posso falar. Por que não? Que mal isso faria a Vincenzo? Que porra Vincenzo me esconde? Medo de Liam!? Fala sério! - Liam não serve pra vc, Cassie. Quando quiser se livrar dele, de verdade, me liga. 
- Se livrar de quem, 'Little Princess'? - Minhas narinas inflam assim que eu o encaro e me despeço de Cassie. - Já vai? Tão cedo? Que tal um café?
- Liam, pegue o café e enfie no seu cu. Verme.
- Nossa! - Um sorriso irônico e ele comenta com uma das mãos no ombro de Cassie, acuada como uma presa. - Vc continua a ter a classe de sempre.
- E a força também, 'Liam da Irlanda'. Algo me diz que, da próxima vez que nos encontrarmos, vc não vai sorrir. 
- Tia! - Num arroubo de coragem, ela se desvencilha da mão pesada de Liam e me abraça forte. - Te amo! Eu nunca mais vou me esquecer daqueles dias antes da escuridão! - Puxada por Liam, Cassie se afasta sem olhar para trás. Meu coração volta a doer de tristeza. Acabo de me lembrar de que me esqueci dos remédios. Chorando, debruço-me sobre o carrinho, abrindo minha bolsa. Enquanto procuro por meus comprimidos, Matteo abre sua mãozinha direita e, em seu dialeto, pergunta. 
- 'Neném chuta boia'?
- Que papel é esse, filho!? - Tomando de sua mão a pequena bola de papel, afoita, eu o desamasso. Inspirando e expirando com dificuldade, identifico a letra de Cassie em um pedido sombrio.
"Cuida do meu filho, tia?"


- Não vai.
- Tenta me impedir.
- Eu te pedi pra ficar longe deles, Dess.
- Vc vai deixar a Cassie sofrer porque tem medo do Liam!?
- Não tenho medo dele! Não quero que eles voltem às nossas vidas!
- Ela tá doente! Esquálida! Não deve tomar um banho há dias! O que quer que eu faça!? Lute no ringue como vc!? Escute música enquanto dá aulas, tranquilamente!? O que houve com o homem bondoso com quem me casei, Vincenzo!?
- Isso não é hora pra discussão. - Rosna ele. - Estamos no meu trabalho. Vá pra casa.
- Não. - Insisto num tom baixo sobre o tatame. - Não vou deixar minha Cassie fazer besteira. Vc não estava lá. Vc não a viu.

Repentinamente, sinto-me enjoada. A música que vem dos alto-falantes me atormenta. 
Por quê? Não me lembro. Levo a mão ao rosto enquanto ele continua a falar.
- Ela voltou pra ele, Dess. Voltou porque gosta do que ele faz com ela. - Descontrolada, avanço em sua direção ao indagar.
- E o que ele faz, Vincenzo!? Diz!? Vc sabe mais do que eu!? Tá me escondendo o quê!? Seu passado!? Como vc me encontrou naquela festa!? Na maldita festa onde me machucaram!? Que porra de música é essa!? EU A ODEIO! - Exalto-me, comprimindo minha cabeça com as mãos. De joelhos, imploro. - Faz parar...por favor. - Flashes de rostos e risos. Corpos nus. Dor, asfixia... - Vincenzo. 
- Vou te levar pra casa, amor.
- Não. Eu preciso...- Em seus braços, ouço a voz de João ao se defender.
- Eu não mexi no som! Juro! A música começou a tocar do nada!
- Deixa pra lá. - Resmunga Vincenzo carregando-me em seu colo. Sentindo seus passos apressados, ouço o sinal sonoro da porta do carro sendo aberta. Ainda tonta e enjoada, pergunto, sentada no banco do carona.
- Aonde vamos?
- Pra casa. Vc não está bem.
- Eu estava. Aquela música. Eu sei que já a ouvi em algum momento ruim da minha vida. Mas não me lembro quando. Por que eu sinto dor e nojo? Por que tá me olhando assim? - Um toque de seu indicador entre minhas sobrancelhas e ele ordena, modulando o tom de voz.
- Esqueça, Dess. Esqueça.

- Dói, Vincenzo. Para.
- Não. Vc gosta. Eu sei que gosta. Eu vi.
- Não. Para. Por favor.
- Shhh. Deixa eu gozar.
Uma dor excruciante em meu queixo e penso ter quebrado um dente antes de desmaiar.
Abro os olhos e, encarando o teto de nosso quarto, me pergunto: 'Quem é o homem que dorme ao meu lado?'






- Por que essa mesa farta?
- Porque vc merece, Dess. - Em meu ouvido, ele sussurra. - Me perdoa?
- Perdoar? 
- Senta, mãe! 
- Estamos te esperando, filha. 
- Enrico, vc tá tão pálido...
- Impressão sua. - Refuta ele à mesa do café da manhã. - Estou melhor do que ontem. Sente-se ao meu lado. Por favor. - Atendendo ao seu pedido, encaro Celeste que desvia seu olhar do meu. - Café?
- Não. Vai doer.
- O que dói, tia? - Movendo minha mandíbula, tento responder à pergunta de Leo e não consigo. - Tia?
- Não sei. Acho que caí.
- De novo, mãe? 
-Não me olha assim. - Protesto. - Eu não me lembro mesmo. Consegue entender minha 'linguagem não verbal'?
- Consigo. - Responde-me Antoine lançando um olhar indecifrável ao pai. - Mais um desses tombos e vc dorme comigo. Ok? - Confusa, demoro a responder. Vincenzo, praticamente, joga Matteo em meu colo ao declarar.
- Ele tá morrendo de saudades da mãe.
- Por quê? Eu viajei? Eu me lembro de ter chegado aqui, ontem, à noite.
- É uma brincadeira, Dess. Relaxa.
- Tô tentando, mas, a dor não deixa. 
- Tome um desses.
- Não aceito nada vindo de vc, Celeste.
- Jesus...- Dramatiza ela. - Eu acabei de retirar da cartela. É tão somente um analgésico. Juro que não tem magia sobre ele.
- Tome, filha. - Pede-me Enrico num sussurro. - Vai te fazer bem. - Recusando o comprimido, decido-me.
- Quando eu voltar, quero falar com vc, Enrico! Me espere acordado! Antoine!?
- Sim, chefe!
- Fique com seu irmão! Não deixe que ninguém se aproxime dele! 'Copiou'!?
- Nem mesmo o papai!?
- Ele pode. - Apontando o indicador a Celeste, alerto. - Ela não.
- Por que isso agora, Dess?
- Eu acordei, Vincenzo. - Rosno. - Eu estou despertando, aos poucos. Não toca em mim.
- Tia, vc tá bem?
- Tô, Leo. Fica com Antoine hoje? Preciso de seu apoio.
- Fico! Claro que fico!
- Dess. Aonde vai? - Erguendo-me da cadeira, ainda sentindo dor na mandíbula, eu o confronto.
- Fazer o que deveria ter feito ontem antes de vc me trazer pra casa e...sei lá o que fez comigo. - Um olhar a Antoine e me contenho. - Não tenta me impedir. - Aviso antes de ser tocada por ele. - Quando voltar, vamos conversar, marido.  - Beijo Matteo na bochecha e cheiro seu pescocinho antes de entregá-lo à irmã. - Cuida dele, filha. - Cochicho. - Fica de olho no soldado 'C'. 'Copiou'?
- 'Copiei'. Câmbio. Aonde vai, mãe? - Próxima à porta da sala, devastada por dentro, respondo fixando meu olhar magoado em Vincenzo.
- Evitar uma tragédia. 'Câmbio. Over'.


Levo mais tempo do que o normal até chegar à sua mansão. Encontrando os portões suntuosos, abertos, entro. Ressabiada, observo tudo ao meu redor. Nada. Nenhum ser de outro mundo. Nada de 'Legião'. Nada além de uma voz a me incitar: "Não desista. Ela precisa de vc".
Cobrindo minha cabeça com o capuz de meu casaco, invado a casa pela porta da frente. Temendo um possível ataque, aguardo por alguns minutos antes de subir os degraus que me levam ao segundo andar. Ainda me lembro do brilho do mármore assim que eles se casaram. Assim que Cassie, absolutamente feliz, disse ter realizado seu desejo: "Enfim, tenho minha própria casa, tia. Minha família. Meu amor".
Encarando o mofo, a cada degrau que subo, tento não surtar. As luzes que vinham dos lustres pendentes, em cristal, se apagaram. Resta apenas a penumbra vinda da lareira acesa. A chuva vergasta a fachada em vidro da grande sala de estar enquanto subo, receosa. Esgueirando-me pelo longo corredor, sigo até o quarto de Sean. Eu o encontro dormindo, em seu berço. Atordoada, verifico sua respiração com o dorso de minha mão em sua boquinha. Ele respira. Graças ao Criador. Ele cresceu. 
- Como cresceu! 
- Não é incrível!?
- Liam!?
- Não! Papai Noel! - Um riso curto e ele refuta. - O que pensava encontrar aqui quando invadiu nossa casa, Adessa Love!? - Acuada, penso antes de responder.
- Gostaria de ver a minha Cassie.
- Vc não é bem-vinda. Sabe disso.
- Sei. Deixe que eu a veja e sumo de suas vidas. Prometo. - Um sorriso macabro e ele afirma.
- Vai sumir. De um jeito ou de outro.
- Tia!!! - Ouço seu grito vindo de um outro cômodo. Atordoada, corro até a porta do quarto de Sean. Liam tenta me impedir de passar. Um soco em seu pescoço e, mais uma vez, tenho a sorte de nocauteá-lo. No chão, ele luta por voltar a respirar enquanto sigo a voz de Cassie até o quarto de hóspedes. Próxima à grande janela, ela me sorri como no dia em que a vi, pela primeira vez. Um sorriso triste e puro. Ela havia perdido os pais de maneira sombria e inexplicável. Entrou em nossas vidas, de mansinho, como baby-sitter e, com o tempo, nos conquistou. Antoine a acolhera em seus braços e me ensinou a amar Cassie como uma segunda filha. Algo em seu olhar me aflige. - Recebi seu bilhete. Vem comigo. Vc ainda pode ser feliz com seu filho. Longe daquele verme.
- De mim?
- Fica longe dela! - Aviso, entre enfurecida e acuada. Afastando-me dele, imploro. - Ela precisa sair daqui! Vc já tem o quer! - Desdenhando, ele indaga.
- E o que eu tenho, 'grande pitonisa'? O que eu quero?
- Não posso falar. Ela não merece ouvir. Liam. Não se aproxime.
- Graças a vc, eu não tenho nada. Nada além de uma pequena parte do que me cabe. O que eu desejo vai além de sua compreensão, humana medíocre.
- Ok. Não quero brigar. - Ergo as mãos num ato de rendição. - Só quero levar Cassie e Sean daqui. Não vou me meter em seus assuntos com relação àquele grupo. Prometo.
- Quem disse que preciso de sua promessa?
- Ninguém, 'Coelhinho'. Parem de brigar. Eu tô tão cansada. - Desabafa Cassie sentando-se no peitoril da janela. - Eu só queria rever aquele sorriso lindo do dia em que nos conhecemos no mercadinho da praia. Queria que vc fosse pobre e bom. Queria que amasse nosso filho como um pai normal. Queria que não trouxesse aqueles homens horríveis à nossa casa e que não machucasse nosso filho. Ele é tão pequeno e tão indefeso. - Cantarolando a canção que os uniu em minha casa, ela prossegue. - Queria não te amar tanto, Liam. Isso dói...
- Cassie...- Um passo adiante e ela grita.
- Fique onde está, tia! Nem um passo a mais! - Voltando seu olhar insano a Liam, ela pede. - Não maltrate nosso Sean. Metade dele é Luz.
- Cassie! Olha pra mim! - Peço enquanto ela retira o colar com o crucifixo bento de Vincenzo e o atira em minhas mãos trêmulas. 
Solto um grito de pavor assim que ela, de pé, sorri e ergue os braços paralelos aos ombros. 
- Enfim, eu vou ter paz, tia. Te amo.

Segundos me separam dela.

Um baque surdo contra as pedras do jardim e eu a perco.

Para sempre.

Minha Cassie. Minha pobre Cassie.

A primeira de minhas grandes perdas.

Em choque, debruço-me sobre a janela e fico ali, aguardando Cassie se levantar e rir de mim quando sinto o peso de sua mão em minha nuca, empurrando-me contra o peitoril de onde sua esposa acaba de pular. Cedendo à pressão, agarro as laterais da janela com minhas mãos e me arrisco a cair ao flexionar minhas pernas e dar um coice nos colhões de Liam. Urrando de dor, ele se afasta enquanto eu me recosto à parede e procuro organizar meus pensamentos. Desorientada, ainda acredito que Cassie possa estar viva, à espera de socorro. Levanto-me e caminho até a porta. Ainda no chão, Liam puxa minha perna com força. Caio de bruços, batendo com o queixo no piso em madeira. Volto a sentir a dor na mandíbula enquanto chuto seu braço, ouvindo seus risos diabólicos.
- Sua amiga está morta, Adessa Love. Aceite. É melhor assim.
- Maldito! - Grito antes de acertar um chute em seu abdômen e me libertar. Engatinho até o corredor. Ouço o choro de Sean. Meu coração aperta dentro do peito. Tonta, apoio-me na parede. Respirando com dificuldade, entro em seu quarto. Volto a gritar ao perceber a imagem do ser demoníaco, que vira durante o ritual, ao lado do berço. Recuo, assustada. Com o crucifixo de Vincenzo nas mãos, fecho os olhos e peço por ajuda ao 'Crucificado'. O ser avança em minha direção.  Ainda enxergo pavor em seus olhos vermelhos com uma fenda no meio. Algo o faz recuar e desaparecer. Desesperada, debruço-me sobre o berço e, antes de tomar Sean em meus braços, eu a vejo reluzir, pulsante como as artérias em meu pescoço. A pressão em minha cabeça aumenta quando a toco. Um desejo descomunal de vingança percorre todo meu corpo até chegar à mão que a segura pelo cabo. 

- Eu não pedi por sua ajuda. 
- Não é hora de bancar a boa moça, meu bem. Termine o que já começou.
- Não posso.
- Ele está vindo. Quer perder o pobre órfão? Sabe o que Liam deseja fazer ao próprio filho que, aliás, não é dele?
- Te afasta, Lúcifer. - Peço, quase sem forças. - Me deixa sair daqui. - Erguendo os braços, ele alega.
- Não estou te impedindo, ingrata. Só vim porque vc pediu por ajuda. - Confusa e puxando o ar pela boca aberta, refuto.
- Não foi a vc que pedi. 
- O 'Crucificado' não está disponível no momento, criança. Não perca tempo. O monstro está chegando.
 

Liam caminha em minha direção, com os olhos cheios de fúria. Sean continua a chorar. Nas mãos de Liam, um taco de baseball longo e pesado. Agacho-me e escapo do primeiro golpe. Decidido a me acertar com o taco, ele erra novamente enquanto rolo no tapete e, cambaleante, eu me ergo. Perco a voz ao ser atingida nas costas. Caio de joelhos contra o piso frio. Meu coração 'queima'.
- Vai deixar ele vencer? - Indaga-me Lúcifer, de cócoras, ao meu lado. A dor no peito se espalha pelas costas, o que me impede de respirar. - Não me decepcione. - Pondo a adaga no chão, diante de mim, ele sugere. - Um golpe em seu tornozelo e ele cai, meu bem. 




Instintivamente, rolo meu corpo para a esquerda. Escapo de outro golpe. Seu taco destrói um dos brinquedos de Sean. De costas para mim, ele gargalha, histericamente. Sem tempo de raciocinar, volto a sentir a pulsação da adaga em minha mão direita cortar, profundamente, a pele de seu tornozelo esquerdo, atingindo o 'Tendão de Aquiles'. Outro urro de dor e ele tomba, de joelhos. Arrastando-se, ele ainda tenta me atingir com o taco. Sem perceber, estou sorrindo de prazer ao cravar o punhal em suas costas, próximo aos pulmões. Ouço palmas ao retirar a adaga de seu corpo com a facilidade de um açougueiro experiente.
- Termine o que já começou. Ele é o líder daqueles seres que ameaçam a sua família. 

Exausta, com arritmia e sem respirar, sob pressão, deixo de seguir minha intuição e, sentando-me em suas costas, penso em puxar sua cabeça pelos cabelos e deslizar, lentamente a navalha em seu pescoço. A voz em minha cabeça grita: "NÃO!". Horrorizada, recuo, largando a adaga sobre o tapete manchado de sangue. Trôpega, alcanço o berço. 
- Tola! Por que não terminou!?
- Porque era isso o que vc queria. - Exalo. - Não sou assassina, maldito.
- Seu coração vai falhar a qualquer momento, idiota. Será que alguém virá te salvar?
- Volta pro inferno...
 - Não agora. Não sem a alma da maluquinha lá embaixo.
- NÃO! 
- Ela é minha. Suicídio. Lembra?
- Nunca!
Reunindo todas as forças que me restam, desço os degraus, agarrando-me no corrimão. Cambaleio até o jardim. Quase sem ar, jogo-me sobre o corpo sem vida da mãe de Sean e, antes de ceder à imensa dor em meu tórax e perder os sentidos, imploro.
- Arcanjo Miguel, leva a alma da minha Cassie.

A última imagem que tenho é a de Lúcifer sorrindo.

Cassie desceu ao túmulo e e eu não estava presente. Internada, às pressas, submeteram-me a um cateterismo cardíaco de emergência. Minha cardiopatia tem um nome pomposo: 'Cardiomiopatia de Takotsubo' ou 'Síndrome do Coração Partido', facilmente confundida com um infarto. Não poderiam definir melhor o que sinto. Meu coração está partido em vários pedaços, embora eu já esteja cansada desse quarto claustrofóbico com paredes tão pálidas quanto meu rosto. Com quatro costelas fraturadas, permaneço, em observação. 
- Não reclame. Tem gente morrendo nos corredores de hospitais públicos, sem atendimento.
- Eu sei. Não estou reclamando. Quero ir pra casa.
- Sério!? Não pensou nisso quando invadiu a casa de Liam e lutou com ele!? 
- Ele tentou me matar! Queria que eu não resistisse!?
- Calma, Dess!
- Lúcifer estava lá! Ele me incitou a matar Liam! Era o que eu deveria ter feito e não fiz! Quem vc acha que fraturou minhas costelas, Vincenzo! Liam se empenhou em me aniquilar!
- Se não se acalmar, vou chamar a enfermeira e ela vai te sedar.
- Por que não me ouve, Vincenzo!? Ele tentou me matar e ainda riu da morte de Cassie! Eu tentei salvar Sean, mas havia um demônio ao lado do berço e...de repente...ele...sumiu...e Lúcifer me deu a adaga e eu...- Sentindo-me enjoada, contenho a ânsia de vômito. Movendo meu tronco para o lado, vejo uma cuba inox em uma das mãos de Vincenzo que, ao segurar meus cabelos com a mão livre, me avisa que posso vomitar, se eu quiser. De volta ao travesseiro, confesso. - Eu enfiei uma faca nas costas dele, Vincenzo. Era duro. Eu senti a lâmina penetrar a pele, romper os músculos, quebrar os ossos. Foi horrível e, ainda assim, continuei. Eu queria matar aquele verme. Matar a sede de vingança que ardia dentro de mim. Então, ouvi a voz gritar em minha cabeça. Não sei quem era, mas eu a atendi e não cortei seu pescoço. 
- Jesus...
- Não. Ele não estava lá, marido. Lúcifer estava. Por causa dele, eu quase matei um homem. Um homem mau. A porra de um anjo falido do mal, mas, ainda assim, um homem. Não quero me lembrar.
- Não se lembre. Não toque em Liam. Por favor.
- Por quê? - Indago, curiosa e intrigada. - O que acontece se ele morrer? - Hesitante, ele responde.
- Não sei. Não quero que se aproxime dele, Dess.
- E se eu o tivesse matado?
- Para.
- Por quê!? Tem medo!?
- Não! Não quero que cometa um ato contra Deus! Só isso!
- Vc não sabe mentir, marido. - Lamento. - Não sabe.
- Dess. Acabou. Vc está aqui. É tudo o que importa. Ok?
- Ok. - Concordo, contrariada. - Tá tudo certo.
- Fala, Dess...- Resmunga ele, abrindo um sorriso.
- Ele riu de mim. De Cassie.
- Isso é horrível, amor. Vc viu tudo?
- Sim...- Respondo de olhos fechados. Lágrimas escorrem pelo meu rosto enquanto me recordo de seu sorriso antes do fim. - Ela não morreria deixando o filho sozinho, Vincenzo. Não a minha Cassie. Ele a induziu à morte.
- Não pensa nisso, amor. Não chora. Vc não pode se emocionar.- Sentando-se na beira do leito, ele me abraça forte e me pede perdão. - Por que não me disse a verdade? Poderíamos ter ido juntos.
- Vc já não é o homem que eu conheço. - Choro contra seu peito. - Não sei se posso confiar em vc.
- Eu sei que tenho feito coisas estranhas, mas eu jamais jamais vou te machucar novamente. Prometo. Vc precisa me ajudar, Dess. Sem vc, eu fico perdido.
- Sem vc, eu não vou suportar, marido. Não me esconda nada. Por pior que seja, não me esconda nada. - Afastando-me com as mãos em meus braços, ele me olha nos olhos e promete num tom sombrio.
- Quando voltarmos pra casa, eu te conto tudo.
- Tudo mesmo? Inclusive o que te prende a Liam?
- Tudo. - Mente ele. 
- Jura não se meter em encrencas novamente, Dess? Seu coração não pode sofrer grandes emoções. Vc ouviu o médico.
- Não são as grandes emoções que me deixam fraca. São a decepções, Vincenzo. Posso enfrentar legiões, furacões, erupções vulcânicas, mas não vou suportar outra perda. Não permita que o mal toque em nossos filhos. Afasta Celeste de nossas vidas, marido. Por favor. Eu não confio nela.
- Eu também não. - Observando, pelo monitor, meus batimentos cardíacos acelerados, ele me pede com ternura. - Descansa, Dess. Amanhã, eu te levo pra casa. Seu filho tá morrendo de saudades. - Volto a chorar enquanto confesso.
- Eu também. Não deixe que toquem nele, Vincenzo. Não deixa.
- Não vou. Mesmo que custe a minha vida, ninguém toca nele. - Um abraço nos une enquanto penso em Antoine. - Ela sabe se defender, Dess. Não se preocupa. Por favor. Volta pra casa. Aquele lugar não tem vida sem vc.

Sorrio ao exalar.






Demoro minutos ao abraçar Matteo que, feliz em me ver, faz sua clássica pergunta.
- Mamãe 'dodói de movo'?
- Não, filho. - Aos prantos, recostando minha testa na dele, respondo. - Não. Mamãe não tá 'dodói'. Ok?
- Ok? - Repete ele expressando incredulidade em seu lindo rostinho.
- Ok. - Rindo, com ele em meu colo, olho ao redor e revejo minha família reunida, talvez, pela última vez. Vincenzo revira os olhos e, antes de ralhar comigo, resmungo. - Ok. Não vou mais pensar em coisas ruins. Prometo.
- É bom mesmo, Sra. Takotsubo! - Leo gargalha enquanto Antoine, cuidadosamente, me encaminha até a mesa de jantar e, eufórica, avisa. - Hoje teremos uma noite especial!
- Não me diga? - Brinco. - O que tem nessa cabecinha de minhoca?
- Surpresa! - Um arquejo e ela me me olha com seus olhos arregalados. - Calma! É uma ótima surpresa! Simplesmente esplendida! - Abraçando-a, sussurro, emocionada.
- Vc é simplesmente esplêndida, meu anjo. Vc.

Após o jantar preparado por Enrico, Antoine e Leo, sinto-me impulsionada a rezar. Todos concordam e, de mãos dadas, ao redor da mesa, agradeço ao Criador por ter uma família mais do que especial. 
- Não sou digna de tanta alegria. Tenho um passado pesado, cheio de pecados e, agora, estou aqui, com os que mais amo nesse mundo. O que mais posso querer? - Meus lábios tremulam enquanto Matteo deixa escapar um insensato 'Meguio, mamãe? Neném meguio? - Mordo o canto da boca e a custo, mantenho-me firme até Vincenzo provocar.
- Não chora. 
- Cretino. Estou rezando...
Lágrimas voltam a molhar meu rosto enquanto Antoine, ao meu lado, sussurra.
- Te amo, mãe. Pode chorar. Faz bem.
Escondendo meu rosto com o guardanapo de pano, choro de soluçar. Matteo, em meu colo, puxa o guardanapo de meu rosto e, inocentemente, faz 'Boo'. Sorrindo, ouço as gargalhadas de todos ao redor, exceto de Celeste que me encara ao comentar.
- Vc chora à toa. - Como faca afiada, refuto.
- Sou humana. Vc não sabe o que é isso. 
- Nem quero saber.
- Não pode, Celeste. - Corrijo-a, secando meu rosto com o dorso de minha mão. - Vc não pode mais ser humana e também não consegue voltar a ser um anjo. O que diabos vc vem a ser, meu bem?
- Dess. Agora não. 
Um de seus sorrisos puros e desisto de arrancar a verdade da mulher ao lado de Enrico, cada vez mais fraco e pálido. - Vamos comemorar seu retorno ao nosso lar.
- Concordo. 
- Woohoo! - Exulta Antoine como nos velhos tempos. - Vem, mãe! Temos surpresas!
- Filha! Devagar! - Repreende-a Vincenzo, com doçura. - As costelas...
- Estou perfeita, marido. - Mordendo o canto da boca, encantada com sua preocupação, insinuo. - Os médicos me liberaram para qualquer atividade física. 'Copiou'?
- 'Copiei'! - Diz ele, rindo, jogando sua cabeça para trás, como nos velhos tempos. Fixando seus olhos nos meus, ruborizado, ele graceja. - Hj à noite,  testaremos. Câmbio!? - Rindo, concordo.
- 'Câmbio. Over'.
- Vem, mãe! Para de safadeza! - Imediatamente, o rosto de Cassie surge em minha mente. Minha 'Cassie, a  safada'. Puxando-me pelo braço, Antoine resmunga.
- Vc chora muito. - Escondendo suas lágrimas, ela me leva até o quarto onde costumo ensaiar minhas coreografias. Arquejo, deslumbrada, ao ver balões coloridos por todos os lados. Presos no teto e soltos sobre o piso. Num dos cantos da sala, um painel com estrelinhas em neon e um bolo de aniversário sobre a mesa decorada.
- Mas...meu aniversário tá longe.
- E daí!? - Pergunta-me ela, indignada. - Quem disse que é proibido ter dois aniversários em um ano!? - Encantada, observo Leo que comenta.
- Coisas de Antoine, tia.
- Vc merece, meu anjo. - Sussurra-me Enrico. - Nasceu de novo. Vamos comemorar.
- Vamos...pai. 
- Se chorar de novo, vai desidratar. - Gargalho, contendo minhas lágrimas. Vincenzo deixa Matteo, ensandecido, correr atrás das bolas que brilham, enquanto faz girar o globo espelhado acima de nossas cabeças. Matteo pula de alegria. Antoine avisa.
- Tem mais!




Apagando a luz no interruptor, ela faz surgir corações em neon, de vários tamanhos, colados às paredes. 
- Todos são seus, mãe. - Agora são os lábios dela que tremulam. - Todos os nossos corações pertencem a vc. Pra sempre.
- Puta que pariu...- Resmungo, aos prantos. - Como eu posso não chorar?
- Dançando. Vem, Dess...
- Putz...- Revirando os olhos inchados,  pergunto. - Vc quer que eu me controle com uma canção como essa?
- Vem, mulher. - Abraçando-me com cuidado, ele murmura. - Bem-vinda ao lar, meu grande e único amor. Minha 'Cathy'.
- Heathcliff.
- Como vc me fez jurar, um dia, mesmo depois de morto, eu irei ao seu encontro.
- Digo o mesmo, amor. Deixe as janelas abertas...








Recostando minha cabeça em seu ombro, observo Antoine e Leo, juntinhos, embalados ao som da canção tão sombria quanto minha vida. Tão forte quanto meu amor por Vincenzo. Num dos cantos do cômodo, Enrico, sentado em uma poltrona, brinca com Matteo quando poderia estar dançando com Celeste. Ambos amavam dançar. O que os distancia agora? 
- Amor, posso dançar com seu pai?
- Deve...- Responde-me Vincenzo, levando-me até ele. - Concedo-te minha dama, pai. Mas não se acostume. É só por hoje. - Engolindo em seco, com os olhos lacrimejando sob a luz fragmentada do globo espelhado, ele repete, desanimado.
- Só por hoje.

Enquanto danço com Enrico, tento, com todas as minhas forças, captar o que ele sente, sem sucesso. Arcanjos não são acessíveis nem mesmo aos anjos. 
- Enrico, vc não tá bem. Por que não me conta? Eu quero te ajudar.
- Depois, meu anjo. Depois. Por enquanto, deixa-me aproveitar esse momento de paz. - Em seu ouvido, imploro.
- Não nos deixe, Enrico. 
- Não pretendo, filha. Não pretendo. Minha missão ainda não acabou.
- Te amo.
-  Te amo ainda mais, meu anjo. Não deixe meu filho se perder.
A música cessa. Meu coração se comprime ao deixar Enrico partir. De cabeça baixa, ele caminha até a porta, de onde acena forçando um sorriso.
Parada sob as luzes em neon, tento espantar os pensamentos intrusivos enquanto Leo e Antoine dançam como se não houvesse amanhã.
E, talvez, não haja. Adoraria me juntar a eles e gritar: "Selvagem!!!"
Mas não acho que seja prudente. Não depois do que passei.


- Vincenzo! Me põe no chão!
- Chega de pensar em bobagens, Dess. Hora de descansar.
- E Antoine...?
- São jovens, Dess. Pra eles, 'a noite é uma criança'
- Mas...e o bolo?
- A gente come amanhã.
- Mas...
- Quer ficar aqui ou matar as minhas saudades em nosso quarto? Em nossa cama?
- Vc não vai me...?
- Não. Nunca mais eu vou te machucar novamente, esposa.
- Te amo, marido.
Declaro-me antes de fazer amor com ele e sorrir antes de dormir, 'de conchinhas'.
Enfim, ele voltou a ser o 'meu Vincenzo'.
- Dorme, Dess. - Ordena-me ele, num bocejo. - Para de pensar e dorme.
Antes de adormecer, repito o refrão do maior poeta de todos os tempos:

"Não tenho medo do escuro. Mas, deixe as luzes acesas, agora".

Penso estar sonhando ao ouvir seu lamento. Seu grito de pavor. Acordo com o movimento brusco de Vincenzo que se levanta da cama e, sem me ouvir, veste a calça de seu pijama e caminha até o corredor. Confusa, mas consciente do que ouvira, cubro-me com meu roupão e o sigo, resfolegando. 
- Vincenzo...
- VOVÔ!!!
- Antoine!? - Recupero meu fôlego e corro até o quarto de Enrico. Da porta, arquejo, horrorizada. Vincenzo vem em minha direção e tenta me impedir  de ver o que já vi. - ENRICO! - Como uma bola de boliche enlouquecida, arremesso para longe, Vincenzo e Leo que tentam me impedir de chegar até o corpo estirado na cama. - ACORDA! - Ordeno ao mesmo tempo em que o esbofeteio no rosto sempre corado, agora, pálido como cera. Frio como o inverno. Mudo como Vincenzo e Antoine que me observam, atônitos. - Acorda, Enrico! Não tem graça! Acorda! Sua missão ainda não acabou!
- Mãe!
- Cala a boca, Antoine! Me ajuda! Seu avô precisa de sua ajuda!
- Dess!
- CALA A BOCA, VINCENZO!!!
Um olhar ao teto e suplico por ajuda enquanto realizo as manobras de 'RCP'. Esforço-me ao máximo enquanto a ouço rir de mim. 
- Não adianta, querida. Ele já se foi.


- Tira ela daqui. - Aviso, entredentes. - Tira-ela-daqui. - São minhas últimas palavras antes de avançar em sua direção e, com os punhos cerrados, acertar seu rosto com 'jabs' sem intervalos. Recuando, ela mantem seu sorriso maquiavélico. 
- Foi vc a culpada. Eu não precisaria aniquilar meu amante se vc não tivesse interferido no curso dos acontecimentos. - Cuspindo sangue, ela me provoca. -  Vc é a culpada pela morte de Enrico. Vc enfureceu Liam. Ele me entregaria a Lúcifer. Eu me recuso a retornar àquele inferno de ser possuída pelo 'Anjo Caído' novamente. 
- Cala a boca. - Um último soco em seu nariz e ela se apoia na parede salpicada por seu sangue, rindo histericamente.
- Eu precisava me proteger já que Enrico só tinha olhos para vcs. Eu suguei suas energias por algum tempo e ele, tolo, me irritava com seu amor incondicional. Odeio homens fracos.
- Cala a boca! Para! - Grito enquanto sou arrastada por Vincenzo. Distante dela, revelo. - Eu nunca confiei em vc! - Ajeitando os cabelos com as mãos sujas de sangue, ela confessa.
- E eu nunca gostei de vc, 'macaca'. Vc mesma me deu a resposta que eu precisava ao me perguntar o que eu sou. Se não sou um anjo ou uma humana, o que eu devo ser? Vc decretou a morte de Enrico. Se eu não o matasse, estaria nas mãos de Lúcifer novamente. Sem ajuda da 'Legião', seria alvo fácil nas mãos dele. Eu precisei escolher já que, nem mesmo Vincenzo, meu filho, amigo e amante, poderia me ajudar.
- Amante??? Vc disse 'amante'??? 
- Sim. - Responde ela, lançando um olhar de lascívia ao meu marido. - Nós, anjos falidos, temos um passado, querida.
- PODRE!!!

Luto contra Vincenzo que me prende a ele gritando.
- Não lhe dê ouvidos! Ela enlouqueceu!
- Que morra!!!
- Que morra. - Repete Antoine, antes de revirar os olhos flamejantes. Sua aura se expande, seus cabelos se eletrizam, seu corpo todo treme. Leo devolve Matteo ao chão. Matteo, com medo, corre em minha direção. Vincenzo o abraça e implora. 
- Filha! Não! - Arrepio-me com a voz gutural de Antoine ao encarar Vincenzo e perguntar.
- Quer que eu deixe esse ser imundo vivo? - Vincenzo infla as narinas ao olhar para Celeste e, num rosnado, responder.
- Não. Prossiga.
O ar pesado faz o quarto diminuir de tamanho. Algo de estranho está prestes a acontecer. Livre, devastada, cambaleio até o corpo de Enrico. Sem lágrimas, deito minha cabeça em seu tronco enquanto assisto à ira de Antoine contra Celeste, em sua forma demoníaca. Vincenzo cobre os olhos de Matteo e se agacha num dos cantos do quarto. 




De súbito, uma espada reluz nas mãos de Antoine que a manuseia com a habilidade de uma guerreira medieval. Encurralada, Celeste pede por clemência segundos antes de ter a cabeça decapitada, rápida e violentamente. A cabeça rola sobre o chão. Leo a faz parar com um dos pés e, sem demonstrar emoção, aceita a espada das mãos de Antoine. Erguendo-a, ele faz o fogo surgir de uma extremidade a outra da lâmina de metal. Em segundos, o corpo de Celeste é incinerado junto à sua cabeça, diante de nossos olhos incrédulos. 
Afasto-me do corpo de Enrico enquanto Antoine volta à sua forma humana. Dois passos em sua direção e, sem palavras, eu a encaro. Leo, num gesto ligeiro, impede Antoine de cair contra o chão, ao desmaiar. Leo a leva ao seu quarto enquanto meu pé direito toca nas fuligens do que restara do corpo da avó de meu filho. 
- Isso não é real. - Digo a mim mesma, confusa, tonta, enojada. - Não é.
- Dess...

- Não me toca. - Aviso puxando o ar pela boca. - Fica longe. Verme imundo. Vc matou seu pai. 
- Não, Dess. Não foi assim. Respira. Olha pra mim.
- Me dá meu filho...
Estendo os braços tentando alcançar Matteo no colo do pai, mas não consigo.
Um ruído agudo ao respirar e, mais uma vez, enxergando a vergonha no rosto de Vincenzo, apago.
 
Em agonia, entre dois mundos, ouço sua doce voz me avisar.

"Ainda não terminei minha missão".


Continua...







EPÍLOGO

  Abro os olhos. Encaro o teto do quarto, tentando não me recordar do sonho. Um sonho ruim. Chove lá fora. Dentro do quarto, faz frio. Meu c...