Reza a lenda que, aquele que tocar na lança forjada pelo fogo do inferno será consumido por ele. Seu coração, antes puro, jamais será o mesmo. Sua alma será tomada pelo desejo de vingança e sua memória, aos poucos, se apagará.
Milhares de homens, séculos após séculos, já foram atingidos pela lança maligna. Milhares de homens se esqueceram, dia após dia, de suas famílias e de quem, um dia, já foram e, enfim, mergulharam na Escuridão. Nunca soubemos de seus destinos. Nunca houve quem os procurasse. Nunca houve quem os amasse com força e coragem suficientes para enfrentar o 'Anjo Caído' que, ao final, contaminara suas almas para sempre.
Os que tocaram na lança, livraram suas famílias de um destino pior do que a Escuridão. Livraram suas famílias da escravidão a um ser diabólico que ousou enfrentar Aquele que o criou.
Ouvira dizer que anjos e arcanjos choraram por sua morte. Cercaram seu corpo e, em um dialeto só deles, rezaram juntos assim que souberam da tragédia. Alguns se revoltaram contra Lúcifer e pediram por Justiça.
O Céu se abriu sobre suas cabeças. As nuvens densas se dissiparam, dando lugar à Luz do Criador.
Do céu, descera o arcanjo que luta contra o Mal. O mais benevolente de todos.
Miguel, o Arcanjo, fora o responsável pelo raio gigantesco que atingira Lúcifer. Sentindo-se vencido, não chegara a tempo de segurar a lança de fogo e impedir a morte de quem amava. Triste, o arcanjo vira o humano chorar e se culpar. Ainda mais triste, Miguel percebeu a revolta nascendo no coração daquele que deveria ter morrido no lugar do querubim. A lança deveria ter atravessado o corpo do homem fracassado, porém, num súbito movimento, o heroico querubim o protegera com seu próprio corpo.
Ouvira dizer que o homem atormentado afastara a todos do querubim, caído sobre a areia e, urrando de dor, ordenou.
"Não toque na lança! Foi por mim que ela morreu! Que eu sofra por isso!"
Ouvira dizer que o pobre homem quase enlouquecera de dor. De sua família, ele se afastou por três longos dias. Ouvira dizer que sua esposa não suportou tamanho sofrimento. Ela vira o corpo da filha se desintegrando como fagulhas de fogo semelhantes à purpurina dourada. Começara nos pés e, antes de chegar aos braços, a menina a encarou com doçura e lhe entregara sua aliança de compromisso.
"Vai te dar sorte, mãe. Te amo pra sempre.", sussurrou a jovem antes de desaparecer e levar consigo, o coração da mãe que, em choque, dormira por três longas noites. Noites de pesadelos intermináveis.
A pobre mulher sonhara que o Mal ainda não havia terminado.
A pobre mulher pensou em se matar ao acordar. Sem a filha amada e sem o apoio do homem revoltado, o que lhe restara na vida?
Hesitou diante da lâmina afiada prestes a cortar seus pulsos. Mergulhada no imenso vazio dentro de si, ouvira o choro da criança desnorteada. O instinto materno falou mais alto. Sentindo-se oca por dentro, ela se lembrou de que havia o pequenino a quem deveria guiar pelo bom caminho. Havia o jovem que sofria em silêncio pela morte de sua amada.
Um amor impossível, mas, ainda assim, um amor.
Ouvira dizer que o pai retornou ao lar despedaçado assim como seu coração. Trancafiado em um pequeno quarto da casa, o pobre homem chorou, urrou, quebrou móveis, socou paredes, assustando o pequenino que, aos pés da cama de sua mãe, avisou.
"Papai dodói".
Havia tanta vida nos olhos do pequenino que a mulher decidiu não ter mais tempo para 'ouvir dizer'.
A hora de reagir ao luto havia chegado.
- Vc nunca mais vai me tocar, né?
- Não. Já não sou o mesmo.
- É sim. - Ironizo. - Continua o mesmo covarde de sempre. Já perdi a conta das vezes em que vc me deixou sozinha com as crianças.
- Dess.
- Não fala comigo.
- Ela partiu.
- Não fala comigo!
- Se vc tocasse na lança...
- NÃO FALA COMIGO!!! SUMA DE NOSSAS VIDAS!!!
Matteo chora com a testinha sobre os braços cruzados à mesa da cozinha. Chora de soluçar. Seca por dentro, eu observo o receio de Vincenzo em tocar no filho. Do que ele tem medo?
- Estou contaminado pelo mal que havia na lança, Dess. - Rosna ele. - Vc jamais vai entender isso.
- Não mesmo! - Com Matteo em meus braços, recuo até a sala de onde ouço vozes. - O que é isso!?
- Tia...- Diz Leo, abatido, de pé, na varanda. - Vem...- Sua voz embarga. Seu tronco se curva para frente. Seu braço se apoia na pilastra em madeira. Chorando, ele aponta seu indicador em direção à areia.
Minhas pernas bambeiam diante do que vejo. Vincenzo, ao meu lado, respira com dificuldade. Seus olhos mais claros do que o normal me encaram ao sussurrar, visivelmente abalado.
- É por Antoine...
- Me ajuda. - Imploro antes de sentir Matteo escorregar de meus braços. Uma forte dor no peito e caio de joelhos e, curvando-me para frente, choro o que ainda não havia chorado.
Sem forças nem vontade para me levantar, agarro-me à pilastra em madeira e observo os jovens erguerem os braços e, em meio à escuridão da noite, ligarem a lanterna de seus celulares em homenagem à minha filha. O rosto angelical de Antoine, estampado em suas camisas, demonstram o respeito e a estima que sentem por ela. Como ela os conhecia? São tantos diante de nossa casa.
- Ela deixou sua marca em cada um desses jovens, tia. - Esclarece Leo ao se ajoelhar à minha frente. Matteo me abraça por trás e recosta seu rostinho em minhas costas. Entre soluços, pergunto.
- Como assim? Ela mal saía de casa e, quando o fazia, era comigo.
A canção que vem de um dos carros, com a porta aberta, me destrói por dentro. A dor é tão forte que não consigo falar. Matteo, aflito, agarra-me pelo pescoço e choraminga um 'neném dodói'. Com os olhos embaçados pelas lágrimas, acolho meu filho em meus braços. Devastada, sento-me no degrau da varanda. Fraca e vazia, seco meu rosto com a barra de minha camisa. Leo me abraça e, chorando, ele revela ao me encarar.
- Enquanto vc trabalhava, ela treinava e, após os treinos, sempre reservava um tempo pra conhecer pessoas e suas histórias. Enquanto estudava, online, ela participava de grupos de apoio à prevenção do suicídio.
- Como?
- Ela fez por mim, tia. Ela disse que se dedicaria aos jovens com essa tendência porque já havia perdido outros amigos e que faria o possível e o impossível pra que outros não morressem. E ela fez. - Com o queixo erguido, ele o aponta para o grupo que permanece diante de nossa casa, trazendo flores e velas acesas, organizando-as junto a uma foto de Antoine, próxima ao jardim. - A maioria desses jovens estão vivos, graças a ela. Inclusive, eu.
- Eu não sabia...- Um abraço forte e ele me surpreende ao sussurrar em meu ouvido.
- Ela sabia, tia. Ela sabia que partiria logo e me pediu pra não deixar que vc fizesse uma besteira. Ela me pediu pra cuidar de vc. - Um longo gemido de dor e curvo-me para frente, abraçando meus joelhos flexionados. Não sei o que fazer sem ela. Não sei que rumo tomar. Era ela quem me guiava. Foi por ela que mudei. Seria por ela que eu venceria todos os obstáculos. Era ela quem me unia a Vincenzo. É por ela que o odeio. Por que a levaram de mim? Engasgando-me com meu próprio choro, aviso, num tom baixo.
- Não vou conseguir. Não sem ela.
- Vc precisa, tia. - Seus lábios tremulam quando ele confessa. - Por ela, eu acordava todas as manhãs, feliz por saber que iria reencontrá-la. Nossa amizade me salvou, me modificou. Eu aprendi a respeitar 'O Criador' que ela tanto amava. Por ela, eu desisti de morrer. Eu decidi viver, lutar. Por ela, eu fiz planos para o nosso futuro, tia, mesmo sabendo que... - Enfio minha cabeça entre as pernas e a cubro com meus braços. Tocando em minhas costas, Leo me pede com a voz embargada.
- Não desista. De onde ela estiver, ela não vai...- Erguendo-se, desastradamente, ele se mistura aos jovens e some.
- Leo?
- Levanta, Dess. Nosso filho precisa de vc.
- Não consigo. Não vou conseguir. Dói tanto...
- Vem.
- Não me toca. - Cambaleio até a sala, ouvindo Matteo gritar por mim. Pálido, Vincenzo abraça nosso filho e o acalenta. - Vai amaldiçoar nosso filho. Larga ele.
- Com ele, é diferente.
- Por quê?
- Vc é humana, Dess. Não iria suportar a dor.
- E o que o meu filho é!?
- NOSSO!
- MEU! MEU FILHO! MEUS FILHOS! MINHA FILHA MORREU, MALDITO! - Atormentada, recosto-me à parede de onde a vejo, à mesa, devorar as duas fatias de pizza enquanto eu a repreendo por falar de boca cheia. Seu riso ecoa pelo cômodo. Inspiro profundamente e ainda posso sentir seu cheirinho de lavanda no ar. Por que eu não a abracei naquele momento? Por que desperdicei tanto tempo com coisas tolas quando poderia ter ficado ao seu lado? Por que não disse que a amava antes do fim? Por que não corri a tempo de ser morta em seu lugar? Puxando o ar pela boca, corro até seu quarto. Deito-me em sua cama e me abraço ao seu ursinho de pelúcia. O primeiro que lhe dei quando ela ainda era a minha menininha. Encolho-me em posição fetal e permito-me urrar de dor. Meu pobre Matteo chora, sentado no chão, confuso, triste, sozinho. Vincenzo chora, em silêncio, de pé, tocando o rosto da filha eternizado em uma foto no porta-retratos, sobre sua escrivaninha. Num ímpeto, abro meus braços. Matteo corre até mim e me destroça ao balbuciar.
- Cadê 'Nininha'? - Muda, movo a cabeça e o beijo na testa. - Mamãe?
- Mamãe 'dodói', filho. Vem com papai.
- Não toca nele!
- Dess. Ele tá assustado. - De pé, eu o confronto permitindo que todo o ódio que sinto por ele seja cuspido em seu rosto.
- NÃO TOCA NELE! POR QUE AINDA TÁ AQUI!?
- DESS! SE CONTROLA!
- ELA MORREU NO SEU LUGAR! ERA VC QUEM DEVERIA TER MORRIDO, DESGRAÇADO!
- E vc acha que não sei disso!? Acha que vou conseguir viver com essa culpa!?
- Foda-se...- Rosno. - Morra. Morra longe de mim. Longe do meu filho.
- Dess...- Encolhida no canto do quarto, choro ao perguntar.
- O que ela sussurrou ao seu ouvido quando te abraçou? - Com o olhar distante, ele, enfim, revela. - 'Não se perca novamente. Não terá uma nova chance. Meu tempo acabou'. - De olhos fixos no teto, ele lamenta. - Foi isso.
- E vc se perdeu novamente, Vincenzo e ainda a tirou de mim.
- Dess! Eu não sabia o que ela iria fazer! Eu não vi a lança! - Um tapa em seu rosto e grito.
- MORRA, MALDITO! - Assustado, ele olha a palma de minha mão arder em chamas. Um forte sopro e eu apago o fogo. - Não sou tão humana quanto pensa, seu anjo de merda.
Tomada por uma uma fúria incontrolável, corro até a varanda e, pulando os degraus, expulso, aos gritos, os jovens com seus celulares e flores e lágrimas e aquela música irritante.
- FORA DAQUI! TODOS! SUMAM DA MINHA VIDA! ELA MORREU! MORREU, PORRA! ELA MORREU! ELA SUMIU! ENTENDERAM!? - Eles recuam quando ergo meus braços e provoco um redemoinho de areia que apaga as velas. Gargalhando histericamente, rasgo a foto de Antoine. Os jovens fogem de pavor. Com os punhos cerrados, atinjo o capô do carro, repetidas vezes. O motorista me olha, apavorado, enquanto dá a ré. Todos se foram. Arrependida, cato os pedaços da foto e as guardo dentro do sutiã. Antes de sentir meu coração doer ao diminuir seus batimentos, blasfemo com toda intensidade de minhas cordas vocais, olhando para o céu estrelado. - DEUS A TOMOU DE MIM! MALDITO SEJA!
Ainda vejo Matteo e seus olhinhos espantados e cheios de lágrimas antes de cair contra a areia e exalar.
Chega de chorar. Parte minha já não existe. A outra, exige cuidados. Eu daria tudo para não ter de me levantar da cama e ter de cuidar dele, mas, eu o amo, embora, a cada vez que olho em seu rostinho fofo, lembro-me do homem que destruiu minha vida, em definitivo. Vincenzo já deveria ter partido...sumido ou ser abduzido, mas continua nessa casa que se tornou claustrofóbica. Com extremo carinho, dobro as roupas de Antoine e as acomodo em sua mala com a estampa das princesas da Disney. Apesar de não aparentar, ela ainda era uma criança. Vivia como uma criança. Pensava como uma criança inocente, pura e altruísta. A garotinha que me ofereceu 'drops' em promoção. 'Um é dez. Dois são vinte'. Meu anjo se foi. Não vou conseguir. Não sem ela. Aspiro o cheirinho de seu pijama preferido. Tenho um idêntico. Engulo o choro e sorrio de olhos fechados. Matteo me arranca de meu momento de total ausência tocando em minhas costas e me chamando de 'mamãe', repetidas vezes. Prestes a explodir de raiva, abro os olhos e vejo uma margarida em sua mãozinha.
- 'Pá' vc. - Diz ele. - Mamãe 'dodói' vai 'ficá' boa.
Tomando a flor, quase sem pétalas, de sua mãozinha suada, eu o abraço com força, beijando sua cabeça, cheirando seus cabelos enquanto ele gargalha, inocentemente. Ele não imagina a dor que sinto por dentro e no quanto estou me apoiando em seu amor. Se não fosse por ele, eu já estaria morta.
- E desperdiçar todo o trabalho que Antoine teve durante sua passagem aqui pela Terra? Ela lutava contra o suicídio, Dess. - Erguendo-me do chão, cerro meus punhos ao perguntar.
- O que ainda faz aqui!? Por que não partiu!?
- Porque não consigo. Tenho medo do que pode acontecer a vcs.
- O pior já aconteceu e foi vc o culpado! Vá pro inferno! Junte-se ao maldito que matou minha filha!
- Se eu tiver que me juntar a alguém, será contra ele. - Rosna Vincenzo com a barba por fazer, os cabelos em desalinho. Consigo sentir o ódio fluindo em suas artérias. - Enquanto não chegar a minha hora, vou proteger vcs, mesmo contra a sua vontade, Dess.
- Assim como protegeu Antoine!? - Sua mão aperta meu braço, por segundos. Arrependido, ele recua, observando a marca de seus dedos em minha pele avermelhada. Arde. Seu toque arde. Meu coração dói por ele. Ainda assim, eu o insulto. - Fala! Qual o plano!? Entregar nosso filho ao seu amigo!? - Seus grandes olhos brilham ao me encarar, expressando repulsa.
- Lúcifer jamais será meu amigo. Quem costumava conversar amistosamente com ele, era vc, Dess! Vc deixou brechas pra que ele entrasse em nossas vidas! Vc pediu ajuda a ele! Vc o invocou! Vc descende dele! Não eu! Vc sempre o tratou como um ser inofensivo! - Abro a boca para refutar. Avançando em minha direção, ele ordena, enfurecido. - CALA A BOCA E ME OUÇA! NÃO MINTA! VC ACHAVA GRAÇA NELE! ELE TE ENGANOU, DESS! ELE ENTROU EM NOSSAS VIDAS PORQUE VC ABRIU A PORTA PRA ELE ENTRAR! - Gotículas de sua saliva tocam meu rosto enquanto ele me magoa, bem próximo a mim. - SATISFEITA COM O RESULTADO DE SUA IMPRUDÊNCIA!? VC O VIU NA PRAIA NAQUELE DIA, DESS! VC OUVIU SUAS PALAVRAS! VC NÃO O EXPULSOU! VC TEM PODERES PRA ISSO, MAS NÃO O EXPULSOU! VC NÃO NOS AVISOU! ELA PODERIA ESTAR ENTRE NÓS, DESS! ELA PODERIA ESTAR ENTRE NÓS! - Agarrada a Matteo que chora com medo do pai, eu o ouço calada...culpada. - Vc não nos avisou, Dess! Quando eu te impedi de me seguir naquela tarde, foi por sentir que corríamos perigo! Mas vc, insuportavelmente, impulsiva, fez o que sempre faz: agir sem pensar! Tudo o que ele precisava era se aproximar de nossa casa e perceber a fraqueza de nossa filha, Dess! Seus dias estavam contados, mas ela não precisava partir daquela forma! Não precisava ser naquele dia, Dess!!! - As veias de seu pescoço latejam. Seus olhos escurecidos se arregalam antes de me culpar, severamente. - Foi vc quem matou nossa filha, Dess! Vc atraiu o assassino e lhe deu a chance de agir no momento certo! Vc é a porra de uma homicida! - Recuando, ele cobre o rosto com as mãos trêmulas e lamenta. - Ela poderia estar aqui...ainda.
- Não fui eu. - Refuto, de olhos fechados. - Foi o Teu Deus.
- Cala a tua boca. - Rosna ele num tom de ameaça. - Miguel desceu à Terra por Antoine. Vc viu.
- Seu Deus não sabia o momento exato em que Lúcifer iria arremessar aquela maldita lança? - Num tom irônico, eu o provoco. - Não é Ele quem sabe de tudo antes de acontecer?
- Vc muda de lado com facilidade, Dess. Até aquele dia, vc acreditava em nosso Deus. Basta que algo te contrarie e vc joga fora sua crença.
- ALGO!? FOI A MORTE DE NOSSA FILHA!
- Ele sabia de tudo sim! Inclusive, Ele te deu a chance de recuar e pensar antes de agir! Antoine ainda estaria entre nós se vc não tivesse deixado Lúcifer se aproximar tanto de nossa casa! De nossas vidas!
- Vc não pode provar isso!
- Posso! - Inflando as narinas, ele explode. - Convivi por séculos com aquele miserável! Conheço seus truques! Ele farejou a fraqueza de nossa filha! Ele soube, enquanto conversava com vc, que nossa Antoine já não pertencia à Terra! Ele farejou a fraqueza do corpo de carne de nossa filha! Ele calculou tudo, Dess! Por que vc acha que ele jamais a feriu antes!? Ele teve várias chances e só não foi adiante porque Antoine ainda não havia cumprido sua missão na Terra! Como todo o covarde, ele se mantinha à distância, à espera do melhor momento, desde sua infância! Vc se lembra da festa dos sete anos!? Ele tinha seu sangue, seu suor, mas jamais a confrontou, Dess! Ela era um querubim com uma missão! Lúcifer jamais a tocaria! Mas, agora, ele conseguiu, Dess! Graças a vc, ele conseguiu! Ele te usou, idiota! Enquanto vc se achava a 'pitonisa do século', ele farejou a morte de nossa filha!
- NÃO ME CHAME DE 'PITONISA'!
- Por que não!? Isso te lembra algum outro pecado!?
- Vincenzo...- Urro de raiva. - Não me provoca.
- Não preciso. Vc sabe o que fez, Dess! Vc matou um homem com a ajuda do 'Rei dos Infernos'! - Defendo-me, aos berros, ouvindo o choro de Matteo em meus braços.
- LIAM NÃO ERA UM HOMEM! ERA UM DEMÔNIO! VC SE ESQUECEU DE QUE ELE MATOU A 'MINHA CASSIE'!?
- ACORDA, DESS! 'SUA CASSIE' SALTOU DA JANELA PORQUE NÃO QUERIA LUTAR CONTRA ELE! NÃO QUERIA LUTAR POR SEU PRÓPRIO FILHO! ELA MATOU A CRIANÇA EM SEU VENTRE! ALÉM DE SUICIDA, 'SUA CASSIE' É A PORRA DE UMA HOMICIDA EGOÍSTA! ELA ERA A PORRA DE UMA GAROTA FRACA! - Cuspo em seu rosto antes de alertar.
- Nunca mais fale assim dela!
- Ou o quê!? Vai invocar seu parceiro!?
- MALDITO!!! - Num tom sarcástico, ele provoca.
- Talvez, prefira se unir ao seu amigo. Semelhantes se atraem. - Um passo adiante e, deixando Matteo de pé, no chão, engulo em seco. Profundamente ferida, sussurro.
- Eu odeio aquele monstro. Infelizmente, eu descendo dele e meu filho também. Dele, eu jamais esperei algo de bom, mas, de vc...- Mordo meus lábios, contendo minhas lágrimas com dificuldade. - De vc, Vincenzo, eu esperava mais. - Passando as mãos em seus cabelos sem corte, ele afirma, magoado.
- Eu te dei o meu melhor, Dess. Depois que nos unimos pra valer, eu te dei o meu melhor. Mas, o meu melhor não foi o suficiente pra vc. Eu jamais cheguei aos pés de seu grande amor.
- Idiota...- Suspiro antes de chorar. - Vc sempre foi o meu grande amor.
- Não fui não. Nossa filha me alertou antes do fim. 'A Fera, no final, conquista a Bela'. Lembra? Sendo assim, melhor que eu desapareça de sua vida.
- Melhor mesmo! Covarde! - Arremessando um dos livros de Antoine contra Vincenzo, acerto no quadro do 'Crucificado' acima de sua cabeça. Cacos da proteção em vidro voam em minha direção. O choro de Matteo me traz de volta ao pouco equilíbrio que me resta. Seu lindo rostinho fora atingido por cacos do vidro. Desesperada pelo sangue que escorre de sua testa, corro, com ele em meu colo, até o banheiro. Vincenzo me segue, angustiado. Estaco assim que percebo o espelho embaçado e, nele, um apelo escrito a dedo.
"Parem de brigar. Eu preciso descansar."
Calados, sentados à mesa, não nos olhamos. Matteo devora seu pão francês com os ovos que fritei. Ele me olha e, sorrindo, comenta, ao tocar no curativo feito por Vincenzo.
- Neném 'dodói'. Pão 'gotoso'. Hmmmm. Muito 'gotoso'!
- 'Gostoso', filho. Repete.
- 'Gootoso'! - Sorrindo ao ver sua boquinha num oval perfeito, pergunto-me de onde os pães vieram. Não ouvi a porta ser aberta. Dormi - ou melhor, me deitei sem dormir - no sofá da sala após nossa briga de ontem à noite.
- Padaria. - Diz Vincenzo, de cabeça baixa. - Estranhamente, lá, eles vendem pães. - Prendendo o riso, engasgo-me com o gole de café quente. - Cuidado com o café. Foi feito por mim.
- Tá explicado porque ele me queimou.
- Humor ácido logo pela manhã, esposa? Parabéns.
- Eu não quis te...
- Quis sim. Quis me machucar e conseguiu. - Refuta ele de olhos fixos em Matteo. - Faz ideia do que é não poder tocar em quem eu amo? - Limpando a mancha de café em meu vestido, respondo.
- Matteo é imune ao seu problema. Vc pode tocar nele quando quiser.
- Retiro o 'esposa'. Perdão. Eu me esqueci.
- De mim? - Com medo de sua resposta, eu o encaro e refaço a pergunta. - Vc se esqueceu de mim? Assinamos o divórcio? Não vi os papéis.
- De repente, voaram com o vento que vc provocou ontem. Aquela bruxaria que apagou as velas. - Como criança, cubro meu rosto com as mãos porque não quero que ele me veja rindo. - O riso faz som, Dess. A gente não vê um riso. A gente o escuta. Deve estar feliz.
- Não entendi. Como eu posso estar feliz depois de tudo, Vincenzo? Olha pra mim.
- Shhhhh! - Repreende-me Matteo com seu indicador encostado nos lábios. - 'Páia', mamãe! - Reativa, olho em seus olhos e esbravejo.
- É 'para'! E não 'páia'! Quando vai começar a falar direito!?
Seus lábios tremulam antes de me olhar, ressentido, e chorar. - Mamãe feia. - Balbucia ele no colo de Vincenzo.
- É sim, filho. Muito. Muito feia. Vamos brincar lá fora? - Beijando sua testa, Vincenzo me lança seu mais novo olhar: o de repulsa. Odeio esse olhar. - Ele ainda não completou dois anos, Dess. Seu desenvolvimento é absolutamente normal. - Erguendo-me da mesa, eu os impeço de alcançarem a porta da sala. Sem argumentos para manter os dois homens que amo juntos a mim, invento. - Tá chovendo lá fora! Se quiser, pode ir, mas deixa meu filho aqui!
- Nosso filho, porra! E não está chovendo!
- Porra! - Repete Matteo franzindo as sobrancelhas. - Mamãe feia sai!
- Não, filho...- Choramingo de braços abertos. - Fica comigo. Sem vc...- Escondo meu rosto, agora, para que Vincenzo não me veja chorar. - Me perdoa, filho. Me perdoa. Eu quero viver em paz.
- Com o nosso filho? - Exausta, sussurro.
- Com os dois. Ainda somos uma família. Não somos?
- Somos?
- Vincenzo. Não dificulta. Vc leu a mensagem de nossa filha. Onde quer que ela esteja, ela nos quer unidos. - Devolvendo Matteo aos meus braços, ele diz ao filho.
- Mamãe 'dodói'. Faz carinho nela. Faz? - Matteo o obedece acariciando meus cabelos, beijando minha bochecha. Um sorriso triste e Vincenzo se afasta de mim. - Vc é uma ótima mãe, Dess.
- Aonde vai? Fica.
- Daqui pra frente, só vai piorar...
- Não me importo. Vamos vencer isso juntos. Por favor.
- 'Favô', pai. - Exulta Matteo batendo palminhas. Ele não faz a menor ideia do que estamos enfrentando. Ou faz? - Papai fica mamãe e neném!? - Seu Pomo-de- Adão se move. Sua voz embarga ao responder.
- Papai fica.
Por algum motivo, decidimos permanecer na casa da praia. O simples pensamento em retomar nossas vidas na cidade me causa aflição. Parece-me com um abandono de Antoine e de seu grande sacrifício por todos nós. Apesar de não termos conversado, imagino que Vincenzo não queira retomar sua vida profissional por motivos óbvios: ele não pode tocar em seres humanos sem provocar queimaduras em suas peles. Somente em Matteo ele pode tocar e, talvez, por esse motivo, nosso filho se afeiçoou muito a ele nesses últimos dias. Matteo praticamente me esqueceu. Isolada, ainda choro pela morte de Antoine que, na verdade, não morreu. Ela ascendeu aos Céus. O mesmo céu que, agora, observo deitada na areia da praia. O mesmo de onde raios escapam, vez por outra. Espero que um deles me atinja e me frite como uma sardinha. O som do trovão, com intervalos cada vez mais curtos, me faz acreditar que teremos uma tempestade, em breve.
Vincenzo organizou tudo. Pediu a João que cuidasse da academia como sendo sua. Alegou que precisaria se ausentar por um período indefinido. Pelo pouco que pude ouvir, escondida no corredor, João hesitou muito antes de aceitar a proposta de gerenciar os bens da família, recebendo metade de tudo.
Família. Ok. Tá bom. Vou acreditar que faço parte dessa família.
O homem tem medo de esbarrar em mim!
Temos dormido todos juntos no mesmo quarto com a desculpa de protegermos Matteo de um outro golpe do maldito, conquanto eu sinta que ele não queira ficar próximo a mim por me repudiar. Aquele olhar de repulsa não me sai da cabeça.
- Uau...- Acabo de receber a descarga elétrica de um raio caído sobre uma árvore distante. Ela explodiu. Com um pouquinho mais de sorte, o próximo raio cairá sobre mim.
- Não. Não vai. Seu tempo ainda não terminou.
- Diabos! - Grito antes de rolar na areia e, de joelhos, observar sua imagem. - Quem é vc!? De onde veio!?
- Já haviam me avisado que vc poderia ser arrogante. - Olhando-me de cima a baixo, ele prossegue. - Agora percebo que não estavam errados. - Em posição de ataque, repito a pergunta.
- Quem é vc!? De onde veio!? Tem muita luz pra ser do time de Lúcifer!
- Lúcifer!? - Uma gargalhada sarcástica e ele desdenha. - Ele jamais ousaria erguer os olhos para mim! Principalmente depois do que fez à nossa amada Hariel.
- Hariel!? Quem é essa aí!?
- Vai continuar de pé, pulando de um lado ao outro? Isso me cansa. Na verdade, me irrita. Estou perdendo meu tempo e, meu tempo, é precioso.
- Seu tempo!? E quem seria vc!? Faz parte da 'Legião'!? Ainda querem levar o meu marido!? - Deixando a fumaça do cigarro escapar de sua boca, ele ri de mim ao esclarecer.
- Errou de novo. Para de pular. Vc não gostaria de me ver nervoso. - Apoiando minhas mãos nos joelhos flexionados, eu o encaro por segundos de silêncio. Ele retira o cigarro da boca e o joga na areia. Displicentemente, ele pisa na guimba enquanto repito a pergunta.
- Quem é Hariel? Eu a conheço?
- Muito. Nós a chamamos assim. Vc a conheceu como Antoine. - Levo a mão ao peito e, arquejante, protesto.
- Minha Antoine não tinha amigos que eu não conhecesse. Vc mente. - Recuo assim que ele ergue um dos braços e guia um dos raios até a árvore mais próxima. Dessa vez, eu me assusto com a explosão. Seus olhos faíscam. Pergunto-me se foi ele quem causou a explosão ou se foi uma mera coincidência.
- Vc pensa demais. Isso me irrita.
- Tudo te irrita. - Afastando-me dele, assustada, alerto, sentindo a ação do vento forte contra meu corpo. - Eu também me irrito. Detesto homens que não se apresentam. Homens sem bom humor e, principalmente, homens que falam de minha filha como se a conhecessem.
- Eu a conheço, bastarda.
- Bastarda!? Isso é patético! Vou chamar meu marido! Melhor ir embora! Ele luta pra cacete!
- Poderia usar palavras menos indignas?
- Não! Fica longe da minha família, porra! Já perdemos muito! Ninguém vai tocar em meu filho ou em meu marido! - Revirando os olhos, ele comenta.
- Não queremos tocar em seu filho. Pode acreditar.
- Por que não!?
- Ele é diferente de tudo o que já vimos. Melhor observarmos antes de agir.
- Meu filho é normal! Não tentem tocar nele ou vão ter que me encarar de frente!
- Vc é mais irritante do que Rafael havia me dito.
- Rafael??? O Rafael do hospital???
- O arcanjo que curou seu marido a pedido de Hariel. - Avanço em sua direção e, num tom ameaçador, aviso.
- Não se refira a Antoine desse jeito! Ela é minha filha! Não conheço essa Hariel!
- Não conhecia mesmo. E ainda está longe de conhecer. Hariel é um dos querubins mais fortes e benevolentes que conheço. Só Deus sabe porque ela te escolheu. Presunçosa, arrogante, impulsiva, repulsiva, devassa. Sabe com quem está falando?
- Claro que não! Já te perguntei e vc não respondeu, porra! - Inflando as narinas, ele se apresenta.
- Gabriel, o Arcanjo.
- Ah tá! - Um riso curto e zombo numa reverência dramática. - Lilith, a deusa!
- Não duvido que tenha o sangue sujo dessa criatura em suas veias imundas. Não admito que ouse duvidar de mim.
- Veias imundas!? Tá pegando pesado! - Um passo adiante e algo me impede de me mover. - O que é isso!? Para! - Um toque de sua mão em minha cabeça e o vejo se transmutar diante de mim. Belas e gigantescas asas escuras, cabelos longos, lisos. Olhos cor de prata. Sua voz num tom metálico revela.
- Eu Sou O Mensageiro do Criador. Anunciei a vinda de João Batista, aquele que batizaria o Messias. Eu estive diante de Maria e anunciei a vindo do Cristo. Sou aquele que ajudou Daniel a entender suas profecias. - Confusa e ajoelhada ouço suas palavras sem entender o sentido delas. Tento me levantar, mas não consigo. Há força em suas palavras, em sua presença. De cabeça baixa, coagida, peço desculpas por meu comportamento. Sob os primeiros pingos da chuva, ouço sua voz suave ordenar. - Levante-se. - Livre da força que me oprimia, ergo-me, desorientada. Cambaleante, percebo um sorriso em seu rosto. - Preciso me lembrar de que vc é humana, apesar de sua descendência.
- Eu descendo de meus pais. Meu filho, Matteo, descende de dois humanos.
- Humanos? - Duvida ele. De olhos fechados, recomeço.
- Ok. Vou explicar. Eu sempre fui humana. Vincenzo se tornou mortal após o nascimento de nosso filho, logo, um humano.
- Uh hum...
- Agora, somos todos mortais e normais e humanos. Entendeu? Eu juro. Vc soube que Vincenzo quase morreu. - Afirmo, insegura. - Rafael te contou. Anjos não podem morrer. Certo? Agora, Vincenzo pode porque é humano. Mas, isso não significa que ele deva morrer porque somos uma família. Uma família feliz. Ele fez merda e eu o perdoei. Eu fiz merda e ele me perdoou. Tá zerado. Vida que segue. Entendeu? Somos uma família. - Um arquejo de dor e lamento. - Antoine era parte dela.
- Disso, eu sei. - Subitamente, ajoelho-me diante dele e, beijando o dorso de sua mão, imploro. - Vc poderia nos ajudar? Sinto que algo de ruim vai acontecer. Precisamos de ajuda. - Num súbito movimento, ele me assusta, cobrindo-me com suas imensas asas, protegendo-me de um raio que, certamente, me mataria. Há muita força dentro de suas asas colossais. Muita paz. Num repente, ele recua. Eu me levanto e, um tanto confusa, prossigo. - Meu marido perdeu tudo por mim, por querer viver como um humano. Dinheiro, poder, asas. Não. Minto. Ele tem asas, mas não sabe como usá-las. Ele era um anjo. Um bom anjo e, então, 'caiu'. Eu jamais pediria isso a ele. Ele caiu por amor. Ele me ama. Vc acredita nisso? Agora, ele sofre. Eu sei. Eu sinto. Ajude-nos, Gabriel, emissário de Deus.
- Vc fala muito.
- É porque estou nervosa.
- Levante-se. - De pé, ouço seu questionamento. - Por que ajudaria uma mulher que não acredita em 'Meu Pai'?
- Porque Vincenzo acredita e é por ele que te peço ajuda. Façam o que quiserem comigo, mas o poupem. Ele vai cuidar bem de nosso filho. Ele se sacrificou por nossa filha. Eu imploro. Ajudem meu Vincenzo. Ele está cada vez mais fraco.
- Se pudesse, eu o faria. Gosto de tua sinceridade. De tua bravura. Vc é divertida. Rafael não me disse nada a respeito.
- Rafael desconhece o significado da palavra 'empatia', meu bem. - Caminhando ao lado do arcanjo, em direção à nossa casa, ironizo. - Isso porque ele cura os humanos. Imagine se pertencesse ao outro lado. Vcs são todos bonitos assim ou eu tive sorte? - Ouço seu riso espontâneo. Sua mão quente toca em meu braço a poucos metros de nosso jardim e me puxa para si.
- Vc se parece com Miguel.
- Por que somos negros?
- Também. Mas...há mais ternura em vc do que gostaria de demonstrar. Tem medo de humanos?
- Medo não. Piedade. Vcs erram o tempo todo.
- Por que paramos? Não vai entrar? Vincenzo adoraria saber que vc veio falar com ele.
- Não vim por ele. - Um longo suspiro e ele esclarece apontando o indicador ao céu nublado. - Vim por vc. Alguém lá em cima me pediu para te trazer uma 'boa nova'.
- Boa nova?
- Sim. Uma boa notícia.
- E qual seria!? - Pergunto, ansiosa. - Estamos livres das punições e da 'Legião'!?
- Não. Vcs terão duas únicas noites de paz antes do início do fim. Aproveitem.
- 'Início do Fim'!? Quando isso começa!?
- Não me lembro! - Corro atrás dele e, segurando-o pelo casaco, assevero.
- Não faz sentido! Vc desceu à Terra pra dizer que teremos duas noites de paz antes do fim e não sabe quando ou que tipo de fim é esse!?
- Tinha mais a ser dito, mas vc não está preparada.
- Estou! Juro! Ele vai se juntar à 'Legião'!? Podemos ir com ele!?
- Seu lugar é aqui, Adessa, com seu filho e com mais alguém que vai chegar.
- Quem??? Espera!!!
- Não tenho tempo. - Diz ele voltando a me dar as costas. - Faça o que puder para que ele não se esqueça de quem é. Até lá, ele será seu.
- Ele não pode me tocar!
- Pode. Ele não vai te queimar. Até o fim da segunda noite.
- ESPERA! - Berro aflita. - VC É O ARCANJO! NÃO EU! ME AJUDA! - Um olhar benevolente e ele esclarece.
- Só trago mensagens. Nada posso fazer por vcs. Continue a ser forte. Existem outros que lutam por vcs.
- Quem???
- Pobres humanos. - Lamenta ele antes de se distanciar. - Quando irão compreender que O Criador os ama?
- Não suma! Volta! Vincenzo precisa de vc! VOLTA!
- Dess?
- Vincenzo!
- Não me toca. - Pede-me ele, recuando. - Vou te queimar.
- Não vai! - Tomada por um sentimento de pavor em perdê-lo, enlaço seu pescoço e, recostando minha cabeça em seu ombro, imploro, aos prantos. - Fica com a gente. Seu filho e eu precisamos de vc. Não vá embora. Por favor. Não vá embora. Não me de deixa. Eu te amo.
- O que houve aqui, Dess? Vc não estava sozinha. Como pode me abraçar sem que eu te queime?
- Milagres acontecem.
- Quem estava aqui, Dess. - Aflito, ele me abraça com força. - Havia alguém aqui e não era Lúcifer.
- Claro que não! Eu o mataria se o visse novamente! - Incrédulo, ele insiste.
- Vc não estava sozinha, Dess.
- Estava. - Minto contra sua camisa, voltando a ouvir seu coração pulsar, acelerado. - Um raio queimou a árvore e eu me assustei.
- Dess! Não minta!
- Não tô mentindo! Olha lá! Ela ainda tá queimando!
- Eu sinto que alguém esteve aqui. Sinto seu cheiro. Cheiro de mirra. Quem foi, Dess?
- Não sei. Não vi. - Afastando-me, ele fixa seus olhos claros nos meus e, por segundos me observa. Volto a enxergar o homem por quem me apaixonei. Por quem daria minha vida. O homem de quem sinto saudades. - Fala alguma coisa, Vincenzo. - Antes de me beijar, ele confessa.
- Eu também te amo, Dess. Mais do que nunca. Não me deixa te esquecer.
- Nunca.
Esforço-me ao máximo para não pensar em Gabriel e no que ele me revelou. Vincenzo me olha desconfiado a todo instante, louco para ouvir meus pensamentos. Apesar de voltarmos a rir e conversar como antes, ainda sentimos algo pesar sobre nossas cabeças. Matteo tem sido o centro de nossas atenções enquanto trocamos olhares tímidos. Depois daquele beijo, nada mais aconteceu. Meu coração chega a parar de bater quando penso que eu poderei perder o homem da minha vida daqui a dois dias ou seja lá o que Gabriel quis dizer com 'duas noites de paz antes do início do fim'.
- Por que a música?
- Matteo dorme. - Lançando-me seu olhar cafajeste, Vincenzo conclui. - Pensei em aproveitar o pouco tempo que tenho com minha esposa.
- Sua esposa? Vc não tinha assinado o divórcio? - Agarrando-me pela cintura, ele sussurra.
- O vento levou os papéis. Ela é uma bruxa muito poderosa. Do nada, criou um pequeno ciclone e lá se foram os papéis...
- Ela é linda, poderosa e impulsiva. Ah...e ciumenta.
- Não tiro sua razão. O marido dela é um 'pedaço de mau caminho'.
- 'Pedaço de mau caminho', Dess??? Tem certeza de que tem menos de setenta anos???
- Não tenho certeza de mais nada, amor. Estamos dançando?
- Parece-me que sim. - Recostando seu rosto ao meu, ele murmura. - Não fala nada. Continue a dançar e a me conduzir. Vamos fingir que estamos em nosso baile de formatura e que temos um futuro brilhante à nossa frente. - Tentando não chorar, indago.
- Com dois filhos e uma casa na praia?
- Sim. Nossos filhos vão se formar na faculdade. Um deles será veterinário.
- O que matou o gatinho na noite de Natal? - Gargalhamos ainda mais próximos. - Tem certeza?
- Sim. Foi um acidente. Ele ama animais. E a mais velha, será uma fantástica e poderosa cardiologista. - Lágrimas escorrem de meus olhos enquanto sua voz embarga ao comentar. - Dizem que ela curou a própria mãe. Hoje, vivem felizes, distantes da cidade. No Natal, eles se reúnem em torno da grande mesa farta e oram pelo pai dos jovens que morreu...
- Para. - Agarrando-o pelo pescoço, imploro. - Para. O pai deles vai morrer de velhice ao lado da mãe, Vincenzo. Fim da história.
- Tem razão. - Diz ele, secando o rosto com as mãos trêmulas. - Os filhos, já adultos, casados e felizes, enterrarão os pais em solo santo e em suas lápides vai estar escrito:
"Nunca houve um homem que amasse tanto sua esposa. Nunca houve mulher que lutasse tanto por ele". - Aos prantos, comento.
- Vai ser uma lápide imensa, amor. Vão ter que nos enterrar em uma cova larga onde caibam dois caixões.
- Tomara. Assim, ficaremos juntos pra sempre.
- Pra sempre...- Suspiro. É assim que deve ser, Vincenzo Rossi.
- É assim que será A...Ei...- Demonstrando incerteza em seu olhar, ele se afasta. Aguardo minutos angustiantes até que ele me olhe nos olhos e, forçando um sorriso, conclua a frase. - Adessa Rossi.
Pego sua mão e o conduzo até o nosso quarto. Como criança, ele permite que eu retire sua camisa, erguendo seus braços. Seus olhos tímidos me encaram. Meus lábios tocam os dele. Com receio, ele toca meus seios e beija minha boca. Em seus braços, ele me leva até a cama e me deita sobre os lençóis. De seus olhos, escapam duas lágrimas antes de me penetrar com suavidade. Curvando o tronco, ele sussurra aos meus ouvidos.
- Haja o que houver, jamais se esqueça de mim.
- Nunca. - Suspiro sentindo o medo que ele sente. Dentro de mim, ele se move com leveza. Ele me beija como se fosse a nossa primeira vez. A primeira vez entre o astro de futebol e a 'cheerleader' abobalhada. A lareira acesa, num dos cantos do quarto, confere ao nosso reencontro um ar nostálgico. As chamas se movem lentamente como nossos corpos sobre a cama. Antes de Vincenzo chegar ao clímax, eu o abraço com tanta força que o assusta. Há música no quarto, logo, ele não consegue ouvir meus pensamentos, meu desespero. O desespero de quem perde o homem por quem tanto lutou, aos poucos. - Fica quieto. - Peço assim que ele descansa seu corpo nu sobre o meu, recostando seu queixo em meu ombro. - Deixa eu ouvir seu coração, amor.
- Por que tanto medo, Dess? O que Gabriel te contou? - Erguendo a cabeça, ele me encara e abre seu lindo sorriso infantil. - Pensou que eu não reconheceria os rastros de um arcanjo como Gabriel?
- Idiota! Me abraça! - Ele me obedece e ficamos em silêncio por segundos até ele se jogar para o lado e se deitar, cobrindo-nos com o lençol. - Eu não sabia o que dizer. Eu queria que ele falasse com vc, mas...
- Mas?
- Ele estava muito ocupado. Sei lá. Distribuindo 'boas novas' por aí.
- Por que a ironia, Dess?
- Porque ele só trouxe notícia ruim. - Merda. Falei. - Não exatamente ruim.
- Qual, Dess? - Apoiando sua cabeça em seu travesseiro dobrado ao meio, ele insiste. - Qual, Dess? Por que tá chorando?
- Não estou. - Minto. - Gabriel se parece muito com Miguel. Vc não acha?
- É sério que vc quer me enganar com essa pergunta idiota? - Cubro meu rosto com as mãos e deixo escapar um 'merda'. - Dess, olha pra mim.
- Não quero...- Suavemente, ele, com suas mãos, retira as minhas de meu rosto e volta a me pedir.
- Olha pra mim. - Eu o obedeço. - Esqueça o que ele te disse. Arcanjos são diretos. Por vezes, cruéis. E, talvez, ele tenha dito algo que não vá acontecer exatamente da forma como vc compreendeu. Ok?
- Ok. - Sorrio ao enxergar os raios de sol invadindo nosso quarto. - Vamos correr na praia!? Comprar comida!? Qualquer coisa que nos torne normais!? - Erguendo-se da cama, ele afirma, com os olhos marejados e o corpo nu.
- Nós somos normais, Dess! Olha pra mim!
- Tô olhando.
- Nunca se esqueça desse homem diante de vc. Nunca se esqueça de que eu te amo. De que eu amo nossa família. De nossos filhos e da mãe deles. Mesmo que tudo...todos digam o contrário, sempre haverá um espaço em minha memória onde vcs ficarão intactos. Quando a escuridão vier, é lá que eu vou me refugiar, ainda que eu me esqueça de quem eu sou...
- Vincenzo! Não! - Enrolando-me no lençol, salto da cama sobre seus braços e me agarro a ele como um náufrago a um toco de madeira boiando no oceano. Chorando, imploro. - Para. Não quero ouvir mais nada sobre isso. Para. Essa porra de maldição da lança não existe. Para. Por favor.
- Ok. Já parei. - Sussurra-me ele enquanto me mantenho agarrada a ele, recostando meu rosto em seu peito nu. - Respira fundo, Dess. Fica calma.
- Mamãe 'dodói'!?
- Filho!? - Entre assustada, devastada e feliz, corro até Matteo, de pé, sob o batente da porta. Com ele em meu colo, eu o vejo apontar o indicador a Vincenzo e perguntar, inocentemente.
- 'Qué ixo'? Papai tem 'pintinho'? - Aos risos, Vincenzo veste a calça de seu pijama e, à distância, esclarece, envaidecido.
- Papai tem 'pintão', filho. 'Pintão'. - Mostrando-nos seus dentinhos, Matteo repete, animado.
- Papai tem 'pintão'!
Não me lembro de ter me divertido tanto quanto hoje. Vincenzo nos levou a uma reserva florestal distante da cidade. Matteo se encantou com as múltiplas flores com suas cores vívidas e com os coelhos saltitantes. Sentindo falta de Antoine, eu o vejo correr entre a relva e vibrar diante do penhasco de onde avistamos nossa casa. Em meu colo, eu o afasto do perigo de cair, sentindo um aperto no peito. Vincenzo nos abraça por trás e me sussurra.
- Fica tranquila. Nada vai acontecer ao nosso filho, Dess.
- Não gosto desse lugar. Me faz lembrar de coisas ruins.
- Eu entendo... - Meus cabelos esvoaçam sob a ação do vento enquanto Matteo ri de mim tentando conter os fios com seus dedinhos. Sigo os passos de Vincenzo que nos afasta do penhasco murmurando, de cabeça baixa.
- Nunca mais volte a pular. Suicidas geralmente não vão para o céu. - Apressando meus passos, eu o ultrapasso e contendo-o com minha mão em seu peito, assustada, indago.
- O que disse!?
- Eu?
- Vincenzo! - Pondo Matteo na grama, refuto. - Vc disse algo sobre suicidas que pulam de penhascos! - Um sorriso triste e ele esclarece.
- Não me lembro, Dess, mas, se vc tentasse pular, eu ainda poderia usar minhas asas. Lembra? - Menos angustiada, pergunto.
- Será que ainda funcionam? - Rindo ele se curva para frente e indaga.
- Quer que eu te mostre?
- Não! - Gargalhando, movo os braços aleatoriamente e imploro. - Não me mostra isso! É assustador!
- Mamãe! - Grita Matteo, aos prantos. Um outro aperto no peito e corremos em sua direção. Sentado, quase coberto pela relva, ele mostra as mãozinhas sujas de sangue. Vincenzo passa por mim e estaca diante dele. Um olhar de pavor e ele me impede de me aproximar de meu filho.
- Fica calma. Não pensa bobagem. Ok? - Irritada, grito.
- Me solta! Ele se machucou!?
Levo minutos até assimilar o que vejo. Há sangue ao redor de Matteo. Ajoelhada diante dele, apalpo seu corpinho sem vestígios de feridas. - De onde vem o sangue? - Sussurro. Vincenzo o ergue em seus braços. Um grito escapa de minha garganta. Com uma das mãos, Vincenzo tenta me afastar da grama. Atordoada, desvencilho-me de sua mão e volto a me ajoelhar ao lado do coelho manchado de vermelho. Um filhote com o pescoço quebrado. Lentamente, olho para Matteo que, mostrando-me as mãozinhas ensanguentadas, balbucia um 'cueio mau, mamãe. Quis modê neném'.
- Dess. Não pensa nada de ruim sobre ele. Por favor.
- Como não, Vincenzo? - No banco do carona, evitando olhar para Matteo sentado no banco traseiro do carro, ofegante, pergunto. - Como acha que aquele coelho morreu?
- Não sei! Não foi o nosso filho!
- Quem foi então!? - Retirando-o do carro, Vincenzo o leva em seu colo até a varanda de nossa casa e, de lá, insinua.
- Temos inimigos, Dess! Talvez um deles tenha matado o coelho só pra que pensássemos coisas ruins sobre nosso filho! Isso não passou por sua cabeça!?
- Não. - Respondo ao passar por ele e seguir até a cozinha onde esvazio a garrafa com um litro de água. - Lúcifer não estava ali. Eu o sentiria se estivesse. - Enxugo minha boca com um pano de prato e, subitamente, começo a chorar. Apoiando-me na pia, confesso. - Não vou suportar ter um filho com transtornos de personalidade, Vincenzo. Não vou. - Lavando suas mãozinhas na pia, ouço Vincenzo apaziguar.
- Ele não tem nada de errado, Dess. Talvez o coelho já estivesse morto e ele, curioso, o tocou.
- Mamãe?
- Não. - Afasto-me de Matteo com medo de conhecer a verdade assim que tocar nele. - Fica com ele, Vincenzo. Preciso respirar sozinha. - Recuando, observo o sorriso de meu filho e chego a duvidar de sua pureza. Corro, desorientada, até a porta da sala após ouvir Vincenzo me repreender severamente.
- Vc precisa crescer! Seus dias de adolescente mimada por sua tia se foram! Volta! - Da porta da sala, encaro Vincenzo com seus olhos mais escuros do que o normal e pergunto num tom de voz baixo.
- Tia? Que tia, Vincenzo? - Confuso, ele responde.
- Não sei.
Mergulho no mar sem retirar minha roupa. A água está morna. Prendo a respiração e, submersa, ouço o som do silêncio e me acalmo. Talvez, Vincenzo esteja certo. O coelho já deveria estar morto. Matteo não teria força e habilidade para quebrar seu pescoço.
Ele precisa de um banho!
Voltando à superfície, semicerrando os olhos, enxergo alguém, de pé, na areia. Daqui, parece-me um homem. Alcançando a zona de arrebentação, cruzo meus braços na altura dos meus seios e desvio meu olhar do homem alto, com longos cabelos escuros cobrindo seu rosto. Um forte arrepio e caminho em direção à casa. O vento traz consigo o cheiro do homem que parece me seguir. Um cheiro forte, fétido, repulsivo, cada vez mais intenso. Antes de ser tocada por ele, eu me viro e o encaro. Arquejo de espanto ao fixar meus olhos em seu rosto pálido, nos olhos onde não há diferença entre pupila e íris. Seus olhos são duas grandes bolas pretas e vívidas. Um sorriso sombrio e ele ergue o braço coberto por tatuagens sinistras. Em uma delas, a caveira parece me observar com seus olhos amarelados. Recuando, pergunto.
- O que veio fazer aqui?
- Rever um amigo. - Responde-me ele olhando fixamente em direção à casa logo atrás de mim. Inspirando profundamente, ele me ofende. - Vc ainda cheira à luxúria. - Catando um galho da árvore queimada pelo raio, eu o cutuco na altura do peito e aviso num rosnado.
- Fora de nossa propriedade. Vc não é bem-vindo. Para de olhar pra nossa casa. - Um longo assobio e ele ergue o braço num aceno. Voltando-me para trás, enxergo Vincenzo na varanda, imóvel, sem expressão em seu rosto. Matteo corre em minha direção. O homem abre seus braços e, de joelhos, aguarda por meu filho. Acerto o galho em sua cabeça e resgato Matteo minutos antes de ser tocado pelo homem fedido. Enfurecido, ele deixa escapar um ruído agudo da garganta enquanto sua mão com unhas imensas e sujas tentam tocar em meu pescoço. De súbito, ele recua, assombrado. Pendurado em minha corrente de ouro, o anel de Antoine reluz intensamente, ferindo os olhos do verme que, antes de fugir, rosna.
- Nós voltaremos.
Enquanto lavo os cabelos de Matteo na banheira, tremo de pavor ao me lembrar do som estridente saindo da boca desmesuradamente aberta daquela criatura. Seco as lágrimas de meu rosto com o dorso da mão ao me recordar da falta de atitude de Vincenzo diante dele. Vincenzo não nos defendeu.
Desde que o vira de pé, na varanda, ele nada falou. Não respondeu às minhas perguntas. Não olhou em meus olhos. Nada fez além de se sentar no sofá da varanda, com um olhar distante e o rosário de padre Pietro entre os dedos. Seria isso o 'início do fim'? O que mais pode acontecer? Enxaguando a cabecinha de Matteo, sinto o calor do anel de Antoine em minha pele. Ele tem poder. Ele é um pedacinho dela perto de mim.
- Mamãe dodói? - Com ele em meu colo, murmuro.
- Tô, filho. Eu não vou suportar outra perda. - Beijando o anel, peço num sussurro. - De onde estiver, filha, não deixe que tirem seu pai de mim. - Deitada na cama ao lado de Matteo, toco em sua mãozinha e sou levada de volta ao penhasco, mergulhando em suas memórias.
De onde estou, eu o vejo se afastar de mim enquanto brinco com Matteo. Dentro de minha visão, eu o acompanho ouvindo-o reclamar do que ele chama de 'bichinhos insuportavelmente alegres'. Num movimento brusco, ele agarra um dos coelhos pelo pescoço com uma das mãos e com a outra, torce sua cabeça. Um estalo de ossos e deixo escapar um grito de pavor ao recuar. Ele ouve meu grito e me procura ao seu redor. De volta ao meu corpo, de olhos abertos, abraço Matteo e, chorando, horrorizada, peço-lhe desculpas.
- Não foi vc, meu amor. Não foi.
Devastada, caminho até a varanda onde Vincenzo, sentado no sofá, reza compulsivamente, movendo o tronco para frente e para trás. Diante dele, pergunto, sem rodeios.
- Por que matou o coelho?
- Não sei, Dess. - Com os olhos cheios de medo, ele confessa. - Eu já não sei quem sou. - Ajoelhando-me entre suas pernas, afirmo.
- Vc é Vincenzo Rossi, meu marido. Não nos deixe. - Seu olhar distante me aflige. - Vincenzo! Olha pra mim!
- Ele iria machucar nosso filho.
- Ele quem, Vincenzo!? Olha para mim! - Matteo sentado ao seu lado, amuado, constata.
- Papai 'dodói'. - Um forte abraço no filho e Vincenzo me encara com os olhos úmidos. Um beijo no topo da cabeça de Matteo e ele lamenta.
- Talvez seja o último abraço, Dess.
- Nunca! - Enlaçando-os em meus braços, descanso minha cabeça nas coxas de Vincenzo e, chorando, afirmo, sem convicção. - Ninguém vai tirar vc de mim! Eu te prometo!
- Dess, eu errei. - Confessa ele. - Eu devo ser punido.
- Não! - Ergo-me, dando um passo para trás. Entre desesperada e enfurecida, volto a blasfemar. - Eu proíbo o Seu Deus de tirar vc de mim! Ele não percebe que temos uma criança pra cuidar!?
- Ele me deu mais do que eu merecia...- Divaga Vincenzo com seus lindos olhos azuis e tristes fixos no céu nublado. - Um amor. Filhos. Uma família. Eu fui feliz, Dess. Eu fui...
- Para! - Um tapa em seu rosto e consigo sua atenção. - VOLTA PRA MIM! VC É MEU! SÓ MEU! ENTENDEU!? - Movendo a cabeça, tentando sorrir, ele diz.
- Sim. Pra sempre.
Posso sentir o medo em cada célula de seu corpo ao me tocar enquanto tento trazer um pouco de música à nossa segunda noite 'antes do fim'. Agora, abraçando o pai de meus filhos, o homem por quem tanto lutei, chego a odiar Gabriel, o Arcanjo. Por que descer à Terra a fim de anunciar o fim de algo tão bom quanto o nosso relacionamento!? Quanto nossas vidas!? Que merda é essa de 'antes do fim'!? Seria o Apocalipse!? Lembro-me de apreciar, especificamente, esse livro da Bíblia, sempre presente nas noites melancólicas de minha mãe. Amava e vibrava ao ler as citações sobre anjos demoníacos, cavalos, bestas, trombetas, sangue, fogo, granizo, gafanhotos, anjos do abismo, o julgamento final, sem dar muita importância ao que lia. Eu tinha pouco mais de dez anos. Jamais imaginaria que perderia grande parte de minha vida vendendo meu corpo, tampouco que, seria liberta dessa vida por um anjo atormentado e apaixonado por mim. Um anjo por quem eu daria minha própria vida se assim me fosse concedida a escolha.
Não me concederam escolha alguma. Tudo me fora imposto, justo no fim quando eu mais precisava de ajuda. Ajuda do Céu. Do Deus de meu grande amor.
Do Deus que aprenderia a amar após anos de dor.
Velas acesas por todos os cantos da sala conferem ao ambiente um tom místico. Um calor a mais. Um calor que não vem de suas mãos frias. Sentindo dificuldade em conduzir meu marido em uma valsa sombria, engulo o choro e tento compreender o que seus olhos escuros escondem.
Quase sem se mover, Vincenzo beija minha cabeça e sussurra, com a voz entaramelada.
- Não me esqueça...Dess.
- Nunca.
Assustada, abro os olhos. Matteo, de pé, ao lado da cama, faz 'beicinho' ao avisar.
- Papai lá 'fóia'. Homem mau.
- Começou...- Sussurro antes de correr até a varanda de onde o vejo caminhar na areia. De cabeça baixa, os ombros curvados para frente, ele se arrasta em direção a um grupo de três homens envoltos em uma névoa densa e escura. - VINCENZO! - Grito antes de pular os degraus e correr em sua direção. Eu o alcanço e, diante dele, imploro.
- Olha pra mim, amor! Olha! - Expressando confusão nos olhos escuros, ele me fere ao perguntar.
- Eileen? É vc? - Agarrando-o pelos braços, eu o chacoalho ao sussurrar.
- Sou eu, amor. Sua Dess. Lembra? Lembra de mim.
- Ele já está perdendo a memória. - Protegendo Vincenzo com meu corpo, rosno ao ser com o olhar reptiliano.
- Fica longe dele! Seu merda! Ele é um anjo!
- Já foi. - Refuta o outro com os cabelos desgrenhados, esvoaçados pelo vento. - Não é mais. Agora ele é nosso. - Impulsiva, chuto areia em seu rosto deformado por cicatrizes antes de atingi-lo com um chute no diafragma. Sorrindo, mostrando seus dentes afiados, com um leve erguer de braços, ele me lança à distância. - Vc é humana. Lembre-se disso.
- NÃO SOU! - Apavorada, ajoelhada, traço, com o indicador, símbolos cabalísticos na areia, murmurando palavras de poder, pela segunda vez em minha vida. Pela segunda vez, a lembrança de Padre Pietro invade minha mente confusa ao me avisar sobre o risco em invocar meu poder.
"Use seu poder uma única vez. Ele vai sugar sua energia vital por completo e, talvez, vc nunca mais se recupere".
- É por Vincenzo! - Grito de olhos fixos no céu coberto por nuvens densas. - É por Vincenzo, padre Pietro! Me ajuda!
Repetindo as palavras de força, movo meu tronco para frente e para trás, quase em transe, percebo temor nos olhos da criatura com cabelos longos. Vincenzo me olha, indiferente. Um enorme redemoinho de areia se forma ao meu redor quando grito por seu nome. De mim, escapa energia sugada pelo vórtice. Um portal se abre. Vincenzo chega a dar um passo em minha direção quando ouço a voz de Matteo, assustado, chamar por mim.
Pela segunda vez, desisto. Desisto por meu filho. Ele precisa de mim. Não posso morrer.
Ainda...
O ciclone se desfaz levando, consigo, minhas esperanças. O portal se fecha. Abraçada a Matteo, tento impedir Vincenzo de se juntar ao grupo ao suplicar.
- Olha pra gente, amor! Somos sua família! Não vá! Vc é forte! Vc pode lutar contra isso!
- Quem são vcs? - Alucinada, choro em seu peito. Sua mão toca em meu braço. Seu toque volta a arder. Não me importo com a dor. Matteo em meu colo, balbucia.
- Papai fica. - Sendo empurrada por Vincenzo, volto a implorar tropeçando ao seu lado.
- Não me deixa! Vc não é obrigado a se juntar à 'Legião'! - Encarando-me com os olhos mais sombrios que jamais havia visto, ele estraçalha meu coração ao declarar com a voz grave.
- Eu não sou obrigado. Eu quero. Eu preciso deles pra enfrentar aquele que matou Hariel. Ele merece sofrer.
- Não por suas mãos! Não nos deixe! Hariel era a minha filha!
- Nunca foi!
- Vincenzo! Ela era nossa Antoine! Por ela, fica!
- Hariel era um querubim. Jamais se deixaria tocar por uma humana suja como vc.
- Vincenzo. - Humilhada, insisto. - Não me deixa. Somos sua família. - Lançando um olhar frio a Matteo, ele nos dá as costas e segue com o grupo enquanto choro, ajoelhada. Matteo, ao meu lado, me abraça. De cabeça baixa, peço ajuda ao Deus do homem que já não conheço. - Não o deixe ir...Senhor.
Suas mãos tocam meu rosto. Seus olhos clareiam por segundos antes de voltarem a escurecer. Sua voz embargada e baixa, suplica.
- Não...me esqueça. - Um cuspe em seu rosto e rosno.
- Nunca. Eu vou te odiar pra sempre, Vincenzo.
De volta à 'Legião', ele desaparece de nossas vidas. Sem forças para me erguer da areia, ouço o choro de Matteo, sentado, ao meu lado. Meu coração se contrai. Uma dor aguda dentro do peito e sinto que vou morrer. Puxo meu filho e o deito junto a mim. De olhos fixos no céu, peço.
- Ajudem meu filho. Quem vai cuidar dele se eu...?
Antes de sucumbir à dor, ouço sua voz suave e triste afirmar.
- Vc não está só. Eu vou cuidar de vcs, filha.
Continua...








.jpg)







