'Dess - Uma História Interessante'

'Dess - Uma História Interessante'
AMO ESCREVER

CAPITULO 8 - ACORDEI.





Ele me deixou aqui, em meu apartamento e foi embora. Ele me beijou, fizemos amor e ele foi embora com a promessa de que voltaria. Eu acreditei em cada palavra dele por um bom tempo. Por um bom tempo, deixara mensagens em seu celular. Mensagens sem respostas. Ligações desesperadas por uma palavra dele. Um sinal de que ele estivesse vivo. Um sinal de que o que passamos...o que vivemos não fora um sonho meu. Uma alucinação da minha mente doentia. A preocupação excessiva por pensar em sua morte transformara-se em raiva quando soube que Sweet  esbarrara nele ao sair do "California", e aos berros, exclamou:

"Cara! O que tá fazendo aqui!? Adessa não para de te ligar!"

- E, por que diabos vc faria isso por ela? 

- Porque somos amigas, ué!

- Desde quando, Sweet!?

- Desde sempre, Doc! - Rebate Sweet, enfurecida. - Antes de vc bancar o guarda-costas dela, nós éramos amigas íntimas!

- Amigas de verdade não desejam o homem da outra. - Refuta Doc, claramente contrariado. - Por que não ligou pra ela quando o viu!?

- Eu tentei, caralho! Eu tentei!

- Fala baixo.

- Para, gente. - Peço, confusa. - Como ele estava, Sweet!? Onde!?

- Estranho. 

- Como!? - Exalto-me pensando no pior. - Estranho como!?

- Não sei! Eu tremia de medo porque ele não se afastou de mim, porra! Ele sumiu! Tipo...evaporou!

- Bobagem...- Resmunga Doc enquanto me abraça. - Ela não gosta de vc e vc sabe disso. Quer que fique nervosa.

- Para de ser ridículo! Eu não tô mentindo! Eu 'vi ele'!

- 'Eu o vi'. - Corrijo-a, inconscientemente. Sem perceber, ela continua a falar, parecendo nervosa.

- Vc viu ele também!? Ele te disse alguma coisa!? Seja lá o que ele tenha dito, é mentira!

- Do que tá falando, Sweet? Eu não o vi.

- Fecha a boca antes de se entregar, paspalha. - Alerta Doc, levando-me consigo para o interior do "California". - Viu? Não confie nela.

- Deixa ela, Doc. Ela não é má. Só gosta muito de grana. Precisa...

- Vc também precisa, filha. Eu também preciso, mas nós dois temos princípios que ela não tem. Fica longe dela.

- Ok, Doc. Obrigada por ser meu amigo.

- Ele vai voltar. Fica calma.

- Eu vou. - Minto. 

O depoimento de Sweet só me faz acreditar no que eu já pressentia. Ele não está entre nós. Não nesse mundo. Isso me faz pensar que ele, talvez, esteja morto. Se ele estiver morto, eu morro também. Por que está fazendo isso comigo? Por que não aparece para mim também!? Não se lembra do que fizemos? Do que sentimos juntos? Vc disse que me amava. Disse que não me deixaria nunca. Vc mentiu???

Eu queria tanto tanto tanto te contar a novidade! Vc pode me ouvir de onde estiver? Seu filho tá aqui, dentro de mim

Eu queria tanto tanto tanto te contar a novidade! Vc pode me ouvir de onde estiver? Seu filho está aqui, dentro de mim. É. Seu filho, amor. Ainda está muito pequeno, mas eu já fui à minha médica e ela confirmou. Estou grávida! Fiquei pensando nos nomes, aguardando por sua ligação. Não largo essa porcaria de celular. Aonde eu vou, vou com ele e eu odeio celular, mas como eu vou me comunicar com vc sem ele? 

- Vc tá vivo? Vc me ouve? Enzo! Me ouça, por favor. Vou enlouquecer se vc tiver morrido e me deixado nesse mundo sozinha! Como eu vou criar nosso filho sem vc? Sem seu sorriso, sem sua alegria? Sem sua ternura que me conquistou pra sempre? Pensei em Antoine. O que acha? Não sei de onde veio a vontade de chamá-lo de Antoine. Foi meio que uma inspiração...sei lá. Eu ouvi e gostei. Antoine. Nosso filho...nosso segundo filho tá aqui, amor. Volta, por favor. Volta.

- É a sua vez. Estão te chamando no palco. - Sussurra Sweet  olhando-me através do espelho do nosso camarim. Ela está suando e, certamente, transou com os caras com quem eu me nego a transar agora que já não sei quem sou. Agora que há uma vida dentro de mim que merece toda minha atenção. Uma segunda chance. Sweet parece cansada. Lidar com filhos e levar a vida que levamos, ou melhor, que eu levava não deve ser nada fácil. - Acorda, Adessa! - Sorrio quando ela imita Vincenzo ao estalar os dedos em frente aos meus olhos perdidos. - Vou retocar sua maquiagem. Tá horrível! 

- Ah tá. - Permito, sem ânimo, enquanto ela me implora para parar de chorar. - Não consigo. Vc tem certeza de que era ele? Poderia ser alguém muito parecido...tipo...um sósia!!!

- Não, meu bem! - Inspirando e expirando profundamente, retocando meu batom 'vermelho puta', ela afirma meio que assustada. - Era ele! Eu reconheceria aquele homem maravilhoso em uma noite chuvosa durante um 'blackout'! - Solto uma risada que morre num suspiro. 

- Ele é lindo, né?

- Sim. Muito. - Afirma ela, puxando-me da cadeira, tentando  me animar. Desde quando Sweet começara a gostar de mim, de verdade!? - Mostre àqueles idiotas lá na plateia quem é Adessa Santoro! A bailarina stripper que se recusa a ficar nua diante deles! 

- Eu deveria ser Adessa Rossi...

- Como????

- Nada.

- Não ouse chorar!!! 

- Ok. - Rimos juntas enquanto ela me abraça e me beija na bochecha, desejando-me sorte. - Não desista dele. Talvez ele goste mesmo de vc. Vai!



Eu deveria abrir as cortinas e surgir do nada como a puta estonteante que costumava ser antes dele. Mas eu não quero abrir as cortinas. Não quero ouvir os urros enlouquecidos ou o coro de panacas me chamando de 'gostosa'. Não quero dançar. Não quero olhar aqueles vermes que, certamente, deixaram suas esposas em casa e vem à procura de algo que preencha o vazio de suas almas. Eles não sabem que estou grávida e que não deveria estar aqui. Sweet Child não sabe também. Somente Antoine, Enzo e eu sabemos. Sim. Eu sei que Vincenzo me ouve. De onde estiver, ele me ouve.

- Dance! - Incentiva-me Doc, meu grande amigo Doc. É ele quem tem cuidado de mim. Ele tem me protegido dos ataques dos insanos que ainda pensam que sou a mesma. Sorte a minha que o dono da boate gosta de mim e do meu jeito de dançar. Não se importa que eu somente dance. Quando me neguei a tirar a roupa e, principalmente, a fazer a tal 'fila indiana' onde eu me deixava foder por muitos, ele meio que reclamou, mas acabou concordando:

"Vai se destacar por ser a mais pura de todas. É. Parece legal. Ok! Tudo bem! Seja feita a sua vontade!"

Apesar de minha barriga ainda não aparecer, uso um top com franjas que vão até a parte debaixo do biquini ainda bem cavado. Meu top é sem bojo já que meus seios estão extremamente volumosos, o que chama a atenção de muitos, inclusive de Sweet  que me olha com estranheza. Ela ainda não pode saber de nada. Gosto dela, mas há algo em seu olhar que me incomoda. Danço "Wuthering Heights", a última música que dançamos juntos antes de partimos daquela casa na praia onde fui feliz. Onde deixara parte de mim, assim como Cathy deixara seu corpo e passara a vagar nos morros dos ventos uivantes atrás de seu único e cruel amor, Heathcliff.



"Gosto dessa música. É bem a sua cara", dissera-me ele enquanto dançávamos juntos na sala sobre o tapete felpudo. "Me perseguir depois de morta só pra me vigiar."

"E vc? Seria capaz de viver sem mim, nesse mundo e eu, no outro?"

"Nunca. Aonde vc for, eu vou."

- Vc mentiu, Vincenzo. Mentiu porque estou aqui, sozinha, rodeada por uma multidão que me quer nua. Por que não me tira daqui?

Conversávamos sobre o livro de Emily Bronte, narrando a história de Cathy e Heathcliff. Um casal bizarro que se amava e se odiava mutuamente. Perderam-se um do outro em meio ao caminho e, quando ela morreu, ele passara a lhe esperar todas as noites, deixando sua janela aberta para que ela o levasse consigo ao seu mundo escuro e frio. Odiei a autora por um bom tempo porque não rolou um beijo sequer entre os dois, do início ao fim do livro. 

NENHUM BEIJO!

"Vc não faria o mesmo por mim!? Porque sou capaz de ir ao inferno atrás de vc, Vincenzo e, mesmo depois de morta, eu não vou deixar de te amar e de te procurar porque sei que vou te achar".

- Eu vou te achar...- Murmuro sem perceber, parada sobre o palco, procurando por ele, implorando que ele surja do nada e me salve...novamente.

Estranhamente, estão me aplaudindo enquanto danço como um fantasma perdido na escuridão em busca de seu amor

Estranhamente, estão me aplaudindo enquanto danço como um fantasma perdido na escuridão em busca de seu amor. Talvez, muitos aqui se amarrem em flashbacks assim como eu.

Rodopio e, agarrando-me ao 'pole dance', de cabeça para baixo, repito o refrão que mais gosto na canção de Kate Bush:

"Ooh, let me have it, let me grab your soul away

You know it's me, Cathy"

"Deixe-me agarrar sua alma

"Deixe-me agarrar sua alma. Deixe-me levar sua alma" porque ela pertence a mim. 

A plateia vai ao delírio ao som das notas do piano minutos antes de Kate Bush voltar a chamar por Heathcliff  em sua canção, enquanto eu solto meus cabelos e, pensando em Vincenzo e no quanto ele me amou da última vez, movo a cabeça deixando os fios de meu cabelo livres, soltos, rebeldes soprados pelo ventilador gigantescos escondido, estrategicamente, entre a plateia e o palco. 

Sou a própria Salma Hayek em "Um drink no inferno"...

Sou a própria Salma Hayek em "Um drink no inferno"

Estranhamente, estão me aplaudindo enquanto danço como um fantasma perdido na escuridão em busca de seu amor. Talvez, muitos aqui se amarrem em flashbacks assim como eu.

Rodopio e, agarrando-me ao 'pole dance', de cabeça para baixo, repito o refrão que mais gosto na canção de Kate Bush:

"Ooh, let me have it, let me grab your soul away

You know it's me, Cathy"

Tô indo

Termino o show, ouvindo aplausos esfuziantes vindos do fundo da boate, próximo às caixas de som. 

- É ele! - Sobre minhas botas até os joelhos, mantenho-me de pé no palco, cobrindo, com minha mão em concha, os olhos semicerrados, ofuscados pelos holofotes que não me deixam vê-lo. - Vincenzo! É vc!? É vc, amor!? - Grito, desorientada. Corro para a lateral do palco e chego a descer os degraus, mas Doc surge à minha frente, e me impede de continuar a andar.

- Me deixa! É ele!!! Vai fugir! - Aos solavancos, tento me desvencilhar de Doc que, com cuidado, tenta me deter. - PARA, DOC! É ELE! EU SEI QUE É! - Imobilizada por Doc, solto o ar pela boca e com o ar, vão-se embora todas as minhas esperanças quando vejo um homem estranho vindo em minha direção. Ele me causa asco e eu sequer o conheço. - Me tira daqui, Doc. - Doc me toma em seus braços e, subindo os degraus de volta ao palco, encara o homem que continua a bater palmas ainda que o show tenha terminado e já tenha outra dançarina em meu lugar. Tremendo-me toda, arrisco um olhar por sobre o ombro de Doc que pede para que eu não lhe dê atenção.

"Não é gente boa", avisa-me ele que possui um dom especial: o de sentir o que há no coração dos outros.

Abrindo um sorriso macabro, o estranho para de bater palmas e fixa seu olhar incômodo em mim até que eu desapareça atrás das cortinas do palco e volte a respirar quando Doc me põe de volta ao chão.

- O que foi aquilo!? Vc o conhece!?

- Não! Eu nunca o vi antes! - Minto. Sinto que o conheço de algum lugar e, pela forma que me olhou, ele certamente já me viu antes. De onde o conheço? Por que sinto piedade por ele? Devem ser os hormônios. 

Doc me leva até meu carro, espera que eu entre e me sente no banco do motorista e me aconselha a sair dali o mais rápido possível. 

- Quer carona? Tá chovendo! Vem! Te deixo na rodoviária! 

- Gosto de andar, meu anjo. - Sua voz grave contrasta com seu jeito meigo de lidar comigo. - Gosto de andar e pensar na vida. Agora, liga o carro e vai. - Abrindo um de seus sorrisos encantadoramente iluminados, ele se despede, batendo com a mão gigantesca no capô do meu carro. - Vá pra casa, Adessa. Vá, por favor. Não gosto de te ver aqui, sozinha.

- Tô indo. Tô indo. - Apoio meu queixo no volante e fixo meu olhar em meu grande amigo. Gosto de vê-lo andar vagarosamente com as costas curvadas para frente, mãos nos bolsos do casaco em couro preto. Seu esposa tem sorte. Ele a ama. - Por que alguns amam e são amados e outros, não? - Arquejo, sentindo uma pontada no peito enquanto o vejo sumir, dobrando a esquina. 

Merda!

Volto a chorar e a me lembrar dele. Ele que não me sai da cabeça e me faz pensar em coisas ruins. Não tenho dormido porque penso que ele está morto e, se ele estiver, eu não vou aguentar. Eu me odeio por amar tanto o pai do meu filho. Eu o odeio por não saber que é o pai do meu filho...novamente. Quem me disse que eu não poderia ser mãe novamente? Não me lembro...

- Pega, porra! - Giro a chave na ignição pela terceira vez e nada. - Por que deixei que Doc fosse embora antes de mim? - Olho ao redor e, pela primeira vez, tenho medo de estar aqui, onde sempre estive ao término dos shows, as ruas apinhadas de pessoas perdidas à procura de prazer, diversão...amor. - Tá vazia. Esquisito. PEGA! - Grito com "William Wallace", meu carro, meu fiel companheiro. Giro a chave novamente, enfio o pé no acelerador, mas o truque de injetar gasolina para ele 'pegar', não dá certo. Retiro a chave, com as mãos trêmulas. - Para. Se controla. - Digo a mim mesma, olhando pelo retrovisor. Nada atrás de mim. Nada à esquerda. Nada à minha frente. - Porra...- Praguejo ao deixar a chave cair em algum lugar junto aos meus pés descalços. Largara a bota no banco traseiro. Gosto de dirigir descalça. - Eu sei. Eu sei. Eu já deveria ter consertado a porra da luz interna, mas não consertei. Tá bom assim!? Estúpida! Onde vc tá? Por que eu tô com medo, porra? Cadê a merda da chave??? Como eu posso parar de falar palavrão sob tanta pressão??? Calma, filho. Já já a gente vai pra casa. Calma. Calma...ACHEI! - Mantenho a mão esquerda no volante enquanto a direita tateia na escuridão do interior do meu carro, especificamente, entre a embreagem e freio quando meu coração acelera e eu sinto o incômodo jato de adrenalina percorrendo minha corrente sanguínea. Sem olhar para a mão que acaba de pousar sobre a minha, comprimo a chave entre meus dedos e abro, imediatamente, o porta-luvas de onde tiro meu 'taser' com lanterna para defesa pessoal que comprara em um site quando ouvira histórias de que as meninas do "California" estariam sob a mira de um psicopata.



Eram boatos, mas, de qualquer maneira, eu comprei e, acredito que esse é o momento ideal para testá-lo em um ser humano, pela primeira vez. Em fração de segundos, movo a tecla ON/OFF  e ligo o aparelho. O led está vermelho. Hora de usá-lo no infeliz que mantem sua mão sobre a minha. Meu dom de tocar pessoas e sentir o que sentem e quais são suas intenções está mais forte a cada dia. Queria que Vincenzo estivesse aqui para me ajudar a controlar essa coisa. Queria que ele estivesse aqui, agora, para socar a cara desse verme que me deseja como mulher e não sabe que EU SOU MÃE!


- Tira a porra da mão de mim ou vai se arrepender. - Aviso, entredentes, ao homem que reconheço. O mesmo das palmas ao final do meu show. O 'taser' já está emitindo centelhas em minha mão irritantemente trêmula. Sou capaz de me eletrocutar se eu não me controlar. "Antoine, meu filho, me ajuda". - TIRA A PORRA DA MÃO AGORA!!! - Ouço o ruído da descarga elétrica de alta voltagem ao lado do meu ouvido esquerdo enquanto percebo que ele não move um só músculo, embora eu sinta que ele quer falar. Segundos antes de receber a descarga elétrica que dura um segundo de dor e paralisia no pescoço onde eu o atingi, escuto sua voz grave afirmar, pausadamente. 

- Enfim, eu te encontrei.



Tenho a porra de um segundo para enfiar a chave na ignição e sair daqui. Salvar meu filho é o meu maior objetivo. Não ser estuprada por esse homem, vem logo em seguida. 

- VINCENZO, ME AJUDA! - Grito como se ele pudesse me ouvir. Enfim, o motor ruge como um leão enfurecido. Piso no acelerador, passo a marcha, solto a embreagem e, de longe,  pelo retrovisor, eu o vejo se levantar do chão e acenar para mim como se fossemos amigos de longa data. Desvio de um carro em alta velocidade ao avançar o sinal. Viro à esquerda e já não o vejo mais. - PU-TA-QUE-PA-RIU.

Nunca me sentira tão só no mundo como hoje. Antes, eu lidaria com isso, de boas. Estaria rindo aqui, em casa, tomando um taça de vinho. Agora, depois de vc, Vincenzo, estou chorando, morrendo de medo de que algo aconteça ao nosso filho, sem saber onde vc está ou porque me abandonou. Eu nunca mais vou te perdoar por ter me feito acreditar que a vida valeria a pena ao seu lado. Eu ainda não consigo te odiar porque vc é parte de mim, porque é parte de Antoine, mas nada como o tempo. Eu vou te esquecer.

- Eu vou te esquecer,  amor. - Choro, acariciando a minha barriga, sentada na poltrona reclinável para amamentação que chegara hoje cedo. O quarto de Antoine está quase pronto. Não vou montar o berço. Não mesmo! Meu filho vai nascer perfeito! Ele vai nascer! - ELE VAI NASCER! - Aviso num grito como se houvesse alguém a me escutar. Tomo o chá de camomila misturado às minhas lágrimas incessantes. Estou uma manteiga derretida. - Preciso ser forte. - Suplico, assoando o nariz. - Queria montá-lo com seu pai, Antoine. Mas ele não tá aqui. Então, por precaução, não vou montar seu bercinho, filho. - Cerro os olhos e, de tanto chorar, exausta pelo que acabara de passar, bocejo enquanto declaro. - Seremos vc e eu. Vc e eu, ok?

Vejo meus pés descalços pisando na grama fresca. A velha e longa camisola branca dos meus sonhos estranhos. O vento fresco em meu rosto. À minha frente, uma casinha branca, o telhado, coberto por bougainville que se derrama por sobre a janelinha em madeira, pintada de azul. Olho para baixo e vejo uma criança a me puxar em direção à casa. Levo a mão à boca para abafar um soluço.

- Antoine!? 

- Vem, mamãe. - Cochicha meu filho. Como sei que é o meu filho? NÃO SEI. EU O SINTO. - Ele tá aqui e precisa falar com vc. - Devo estar louca ou sonhando acordada porque sinto tudo com tanta intensidade que tenho a impressão de que vou morrer de tanta felicidade. Puxo Antoine que se volta para mim, sorrindo e, agachada, eu o abraço. Um abraço tão forte e demorado que quase o sufoco. Rindo, ele pede para que eu o siga.

- Ele precisa falar com vc, mãe. Vem!

Aos prantos, eu o sigo. Sorrindo e chorando, eu o sigo até a casinha onde ele entra como se já a conhecesse. Como se morasse nela.



- Eu moro aqui, mãe. Nós três moramos aqui. - Rio, hesitante. Meu coração está em minha garganta quando peço ao meu filho que não solte a minha mão. - Não fica com medo não. Vc vai gostar da surpresa.

Deixo-me conduzir pela casa, pelo corredor que se alonga à medida em que andamos. Quanto mais perto estou da porta vermelha, mais longe ela parece estar. Antoine, pequenino e incansável, continua a me puxar. Seus cabelos são escuros como os meus. Os olhos claros e as covinhas ao sorrir são, definitivamente, de Vincenzo. Se eu estiver no Céu, não quero voltar. Há tanta paz aqui...



- Vcs têm pouco tempo. Deixa ele falar tudo, mãe. - Agachada, eu o ouço cochichar como se temesse algo ou alguém que nos interrompesse. - Pode ir.

- Vc não vem? Não vou te deixar sozinho, filho!

- Não estou só. - Soluço ao ver, logo atrás de Antoine, meu amigo...Miguel, o Arcanjo. - Vai, mãe! Ele precisa falar!

- Ele quem!? Filho!

Antoine desaparece. Desespero-me, gritando por seu nome. Olho ao meu redor e sufoco outro soluço. Parada, com a mão na boca e lágrimas nos olhos, eu o vejo acorrentado. Corro em sua direção, ajoelhando-me diante dele. Minhas mãos sangram pelo atrito entre o ferro e minha pele. Por mais que eu tente, não consigo libertá-lo das correntes...

- O que fizeram com vc? Por que tá aqui? Vc tá morto!? Não. Não diz isso! Por favor, diz que não morreu! 

- Não morri. - Diz ele, sorrindo. Um sorriso triste que desconhecia. - Não fala nada. - Ergo-me furiosa, mas eu me calo quando ouço sua voz sair com dificuldade. O mesmo olhar que me acalmava quando eu perdia o controle. - Dess, deixa eu falar.

- Vo vo vo você viu...? - Aponto meu polegar para trás onde, antes, havia nosso filho e o anjo a quem me afeiçoei. Ele não compreende que estou desorientada ou está brincando comigo!? - Você viu ou não viu, Vincenzo Rossi???

Ele me fita de cima a baixo, acorrentado, machucado, os olhos inchados, os lábios secos que umedeço com um beijo longo e cheio de saudades. Beijo seus ferimentos, puxo as correntes. Grito por Miguel, pedindo ajuda. 

- Dess...eles vão chegar. Preciso te falar. Cala a boca, pelo amor de Deus.

- Que Deus é esse que te deixa aqui!?

- DESS! ME OUÇA!

Puxo o ar pela boca e a mantenho aberta enquanto eu, enfim, o ouço.

- Não estou morto. Não consigo ouvir seus pensamentos daqui. Perdão pela dor que te causei. Eu não quis. Não posso me libertar agora. Preciso cumprir as ordens. Preciso sofrer as consequências se eu quiser me libertar e ficar com vc. Preciso. Entenda. Eu não te abandonei. - Assinto com a cabeça enquanto penso em um meio de libertá-lo das correntes. - Dess, não existe um meio. Vc deve voltar e acordar. Seguir com sua vida até que eu volte a te encontrar. Se ainda me quiser...- Paro o que estou fazendo e, fuzilando-o com meus olhos, protesto.

- Idiota. É claro que eu quero. Eu te amo. 

- Te amo também. Mas eles não entendem o que é amor. Não o tipo de amor que há entre nós dois. Eu preciso ficar aqui até que o tempo se cumpra. - Ameaço interrompê-lo. Ele me repreende com seu olhar incisivo. Eu me calo. Engolindo em seco, a voz ficando rouca, eu o deixo continuar ainda que não tenha desistido de arrebentar as correntes que o prendem a uma minúscula cadeira em madeira. - Eu vou te encontrar. Preste atenção ao que vou te dizer. - Beijo sua testa, arrumo seus cabelos sujos e desalinhados. - Dess!

- Tô ouvindo. - Ajoelhada, beijo sua boca com cuidado. - Fala. Vou estancar na porrada quem fez isso contigo!

- Dess! - Reviro os olhos e repito, indignada: "Fala". - Ga'al vai te procurar. - Arquejo, de olhos estatelados. - Não na figura de um demônio. Ele voltou como homem e vai te procurar. Toma cuidado com ele. Não deixe que ele te toque porque, dessa vez, ele vai usar de outras artimanhas. Eles o libertaram. Eles querem testar sua lealdade. Desconfiam de vc, de seu amor por mim. Eles o libertaram. - Rosna Vincenzo, erguendo-se da cadeira, ainda preso às correntes. Vejo, com clareza, seu rosto deformado por socos. Toco em sua pele. Sinto sua raiva, sua impotência. Choro pelos mesmos motivos que os dele. Inspirando e expirando, ele retoma sua calma e me beija com paixão. 

- Não vou te deixar. - Decido. - Vou acabar com esses filhos da puta!

- Vá embora agora. Eles estão voltando.

- Não mesmo! O que tá acontecendo!? Meus pés! Meus pés não saem do chão!!! - Olho para Vincenzo que olha para o lado oposto ao da porta por onde entrei. Há pavor em seu olhar. - Por que eu não consigo andar!? Vou acabar com eles!!! Filhos da Puta!!!

- Adessa, volta!

- NÃO! - Berro com os olhos fixos na poeira crescente que se espalha pelos quatro cantos da sala. Não sei quem são, mas sinto a maldade pairando sobre nossas cabeças. Quero gritar, mas a voz não sai. Quero me mover, mas meus pés estão grudados ao chão imundo feito piche que vai subindo pela barra de minha camisola longa até chegar à minha cintura. Estou perdendo as forças e me entregando ao ódio. Um ódio que não é meu. Que não é de Vincenzo. - Socorro...

- Dess...- Do meu Vincenzo só restara a voz suave, sofrida que me ordena. - Volta e acorda.




Continua...


CAPÍTULO 37 - IMPOTENTE

  Há dois dias, ela não se alimenta. Não fala. Não chora. Não reage de maneira alguma. Há dois dias, eu choro por ela. Por sua dor mal disfa...