'Dess - Uma História Interessante'

'Dess - Uma História Interessante'
AMO ESCREVER

CAPÍTULO 38 - DOR

 



Contraditoriamente aos últimos acontecimentos, eu me apego ainda mais ao meu filho. Recuso-me a acreditar na versão de Antoine ouvida por Vincenzo que insiste em me revelar algo sobre o qual não possuo controle. Prefiro enxergar o lado bom de Matteo. Seu carinho, suas risadas inocentes, sua paixão por mim e pela Dança. 
Eu sei que me distancio dos demais quando isso acontece. Mas, o meu coração de mãe não vai mudar. Não vai ceder a um interpretação macabra sobre a morte de um pássaro caçado por um gato em nosso quintal. Não. 
NÃO MESMO!
- Já tomou seus remédios?
- Eu me esqueci.
- Dess, esse é o tipo de remédio que vc não pode se esquecer de tomar!
- EU ME ESQUECI! - Grito, sem necessidade. Agarrada ao meu filho, prendo o choro e peço desculpas. - Minha cabeça não tá boa. Perdão.
- Não pede perdão. - Diz ele, sentando-se ao meu lado nas almofadas da 'brinquedoteca' que montamos para Matteo assim que ele começou a andar. Super aconchegante, colorida e bem distante do 'cercadinho' usado em nossa vida anterior ao retorno da herança de Vincenzo. Isso me faz pensar que, talvez, o dinheiro tenha nos contaminado. - Bobagem, Dess. O dinheiro, quando bem usado, é uma força divina. Não ostentamos nada. Tudo o que temos é usado de maneira consciente. Gastamos com nossos filhos, nossa casa. Com o nosso bem-estar. Vc sente falta da vida que tínhamos antes da herança? Do tanto que trabalhávamos e deixávamos nossos filhos sozinhos?
- Não...- Sussurro. - Para. Eu já entendi. Eu, definitivamente, desisto de pensar com vc ao meu lado. - Observando Matteo alisar seu ursinho com tanto carinho, nego-me a acreditar em qualquer outra versão de meu filho além de uma criança normal, saudável, curiosa. - Não quero tomar os remédios. Eles me deixam 'fora do ar'. E, nesse momento, eu preciso focar em nosso filho e em Antoine.
- Ainda duvida dela?
- Não duvido. Só creio que ela tenha interpretado mal o que viu.
- Dess, ela foi bem clara.
- Chega! Eu não vou ouvir essa história novamente! - Engatinho até Matteo que, sorrindo, me abraça. Eu o aperto em meus braços e, mais uma vez, engulo o choro. - Meu filho é bom.
- Nosso, Dess. Nosso filho é bom. Que mal há em admitir que ele tenha sufocado o pássaro por curiosidade? - Lançando meu olhar de incredulidade a Vincenzo, protesto.
- Curiosidade??? Que tipo de curiosidade uma criança dita 'normal' tem em estrangular um pássaro, Vincenzo??? Não me obrigue a aceitar isso!!! Não me obrigue a pensar que meu filho é um...!!!
- Psicopata!? - Uma gargalhada e ele se joga contra o piso emborrachado e colorido. - Essa é boa, Dess! Eu nunca pensaria isso dele! É o meu filho!
- Nosso, Vincenzo. Nosso. 
- E daí!? - Ergue ele, seu tronco, num repente. - Por que vc descende de um ser das trevas acha que o seu sangue é impuro!? Acha que o nosso filho herdou o sangue daquele filho da puta!? - Perplexa, indago.
- Como sabe disso? Eu havia me esquecido.
- Eu me lembrei do que vc disse no hospital. Do que vc pensou. Sei lá. E, aquele surto à mesa de jantar, foi bastante suspeito. 
- Surto?
- Deixa pra lá. Tá vendo? Vc precisa dos remédios. 
- Me deixa em paz, Vincenzo! 
- Não consigo. - Diz ele, sorrindo. Deitado, ele ergue nosso filho nos braços e ri de sua gargalhada gostosa. - Quem é o filhão do papai!? Quem!? - Brinca ele com voz de criança. Essa cena me devolve a paz. Olhando nos olhos de Matteo, ele afirma. - O sangue do nosso filho é normal. Saudável. É a perfeita mistura do seu sangue com o meu. Ponto final. 
- Vc acha?
- Tenho certeza. - Descansando Matteo em seu tórax, ele prossegue. - Até uma certa idade, crianças tendem a ser cruéis umas com as outras e, principalmente, com animais. 
- De onde tirou isso? - Pergunto deitando-me ao seu lado sobre o piso fofo. Recostando minha cabeça em seu ombro, comento. - Nunca li nada sobre isso.
- Deveria. - Diz ele num tom irônico. - Quem mandou largar a faculdade?
- Eu não larguei! - Protesto erguendo o tronco. - Eu 'tranquei'.
- Isso faz séculos, Dess. Já perdeu a vaga.
- Não me importo. Meu tempo já passou.
- Se tivesse concluído o curso, hoje seria uma ótima psicóloga. Mas, preferiu...
- O quê!? Fala! Joga na cara que eu fui uma puta e perdi os melhores anos da minha vida vendendo o que não tinha preço! - Erguendo seu tronco, ele libera Matteo que corre de um lado ao outro imitando um aviãozinho e, pacientemente, pede.
- Posso concluir?
- Desculpa...
- Eu ia dizer que preferiu se apaixonar por um anjo caído e falido que te fez sofrer demais. - Envergonhada, eu o abraço e sussurro.
- Vc foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida. Vc deveria ter me encontrado antes de eu ter feito tanta merda.
- Esquece. Já passou. Eu já nem me lembro daquela época.
- Eu queria me esquecer...
- De verdade?
- Por que tá me olhando desse jeito?
- De que jeito!? - Recuando, acuso.
- Vincenzo! Tu quer mexer na minha cabeça de novo! Cachorro!
- Não é exatamente isso. - Refuta ele, abrindo um sorriso cafajeste. - Eu poderia retirar todas as lembranças ruins daquela época e, principalmente, do seu relacionamento ridículo com o Aiden. Há alguma problema nisso?
- Nem pense nisso! - Num ligeiro golpe, ele me faz deitar sobre o piso colorido e, prendendo-me entre seus joelhos flexionados, ele me faz cócegas. Enciumado, pergunta.
- Sente falta dele, cachorra?
- Nunca! - Grito entre risos histéricos. - Eu nunca o amei! Eu queria vc, mas vc foi sempre escorregadio!
- Escorregadio??? - Intensificando as cócegas em um ponto abaixo de minhas costelas, rimos juntos quando respondo.
- Escorregadio feito um sabonete!!! Um sabonete safado!!!
- Sabonete safado??? Isso é tão infantil!!! Fingindo lutar com ele para me livrar de seus dedos, simulo golpes em seu rosto e solto gritinhos eufóricos implorando para que ele me solte. - Pede perdão por ter me trocado por ele!!!
- Eu não te troquei, idiota!!! Vc me largou!!! - Estamos nos divertindo como adolescentes quando, repentina e surpreendentemente, Matteo acerta a cabeça de Vincenzo com seu boneco 'Buzz Lightyear', gigantesco e pesado. Rindo, Matteo observa a reação de Vincenzo que, encolhido, recostado ao sofá, leva a mão à cabeça. - Tá sangrando!
- Sem problema. - Diz ele, expressando dor em suas feições. - Isso acontece, Dess. - Ajoelho-me diante de nosso filho e o repreendo, severamente, pela primeira vez. 
- Por que fez isso!? É feio! Fez 'dodói' no papai! Ai ai ai! - Os lábios de Matteo tremulam antes de chorar até soluçar. Apiedo-me dele quando Vincenzo o abraça e, encarando-me, alerta. 
- Tira esses pensamentos da sua cabeça, Dess. Nosso filho é normal. Ele pensou que eu estivesse brigando com vc. Tem ciúmes. Só isso. Para com esse papo de ter de 'limpar' o sangue dele. Ok?
- Quando eu disse isso!?
- No surto, à mesa.
- E, o que mais eu falei?
- Nada de importante, Dess. Esquece. - Levantando-se do chão, ele me estende a mão ao convidar. - Vamos nos arrumar? Hoje é o batizado do filho do João. Como padrinhos, não podemos nos atrasar.
- Não antes de cuidar do ferimento na sua cabeça. 
- Já passou...- Resmunga ele. - Vou lavar a cabeça.
- Senta aqui e fica quieto, idiota. Vou buscar a caixa de 'Primeiros-Socorros'. - Agarrando-me pela cintura, ele confessa.
- Eu não saberia viver sem vc, Dess.
- E nem vai precisar aprender, meu amor, porque, de perto de vc, ninguém me tira. - Um tapa em minha bunda e, feliz, recuo até o banheiro. Um breve olhar a Matteo brincando com seu pai e, enfim, livro-me dos pensamentos intrusivos.
 

Após o batismo do segundo filho de João, ele nos convida a comemorarmos o evento em um restaurante próximo à sua casa. Apesar de João e Doc não serem tão próximos, eu os convido a participarem do almoço. Doc sempre empático, interage, naturalmente, com a família de João. Adele, introvertida, se mantem calada ao seu lado, à mesa. Trocando de lugar com Antoine, sento-me ao seu lado.
- Sem fome, Adele?
- Dor de cabeça. Vai passar. - Tocando propositadamente em suas mãos, digo que tenho analgésicos em minha bolsa. Enquanto mergulho no interior da imensa bolsa onde levo brinquedos, remédios, fraldas, lenços descartáveis, mudas de roupas, caixa de 'primeiros-socorros' e outros itens infantis, ela ri de mim. Sorrindo, argumento. - Fazer o quê? Vida de mãe é assim. Aonde ele for, eu levo tudo isso comigo. Tenho saudades de minha mochila onde levava minha maquiagem, meus 'headphones' e o celular. Ah! E a carteira com dinheiro e cartões! Merda! Onde tá!? 
- Não reclame. Vc vai sentir falta desse momento de sua vida. Vai desejar que o Tempo volte. Eles crescem muito rápido e...se vão. - Confessa ela num lamento. 
- Achei! - Destacando um comprimido da cartela na palma de sua mão, aviso. - Um desses e vc estará 'novinha em folha'. - Um sorriso triste e ela refuta.
- Vou precisar de algo mais forte do que um desses, mas, ainda assim, muito obrigada. - Um gole de refrigerante, e ela declara. - Vc é uma ótima amiga, querida.
- E vc é uma péssima amiga. - Perplexa, ela me encara arregalando seus lindos olhos castanhos. - É sim. Se fosse minha amiga já teria me procurado pra desabafar. Adele, acha que eu não tenho te notado? Vc tá cada vez mais triste. Cadê aquela mulher engraçada que escandalizou a todos ao revelar o segredo de Doc, o 'parrudinho'!? - Um riso curto e, num ar nostálgico, ela comenta. 
- Eu estava tão feliz naquela noite...
- Podemos repetir! - Incentivo-a. - Vamos jantar lá em casa hoje! Vc e eu preparamos um deliciosa lasanha e os meninos ficam bêbados na sala enquanto conversarmos longe deles! O que acha!? 
- Gostei da ideia.
- Simplesmente esplêndido!
- Podemos mudar o cardápio?
- Claro! O que gostaria de comer!?
- Feijão, arroz, bife e batatas fritas!
- Perfetto! Eu amo feijão com arroz! - Enchendo sua taça com vinho, ergo a minha e, pensando no quanto ela deve estar sofrendo, engulo meu choro e, em voz alta e vibrante, brindo. - Vida longa a todos nessa mesa!
- Auguri! - Brinda Enrico, embriagado e profundamente triste.
As palavras de Antoine na noite do parto de Cassie não me saem da cabeça.

"Alguém aqui vai morrer".

Um olhar ao meu redor e me pergunto, horrorizada.

"Quem???"





A chuva incide contra a ampla janela da cozinha enquanto eu frito as batatas e ela, os bifes. O feijão e o arroz já estão prontos. As saladas estão sobre a bancada. Vincenzo, Doc e Enrico estão na varanda. Daqui, dá para se ouvir suas gargalhadas.
- Do que eles tanto riem?
- De sacanagem. - Rumino. - Só pode ser. Homens só pensam nisso. Minto. Vincenzo só pensa nisso. Enrico já passou desse estágio e Doc...bem...Doc sempre foi o Doc. O cara mais bacana e respeitador que eu já conheci. - Um gole de vinho e volto ao passado. - Já te contei que ele me salvou de várias situações de perigo quando trabalhávamos no 'California'? Ele era meu anjo da guarda.
- Doc é especial...- Um gole de vinho e ela suspira. - Pessoas especiais deveriam ser proibidas de...- Uma pausa e arrependida, ela vira os bifes na caçarola com o auxílio de um garfo e emudece. - Por que está me olhando assim?
- Não vai me contar o que o Doc tem? Pensei que confiasse em mim.
- Confio, querida. É que esse assunto me entristece muito...
- Por isso mesmo. Desabafe. Eu sei o que ele tem, Adele. Ele nunca te contou sobre o meu famoso dom que, para mim, é uma maldição? 
- Não...
- Quando toco em pessoas ou objetos, eu descubro coisas. - Confesso. - Odeio isso. 
- Então...
- Gostaria de ouvir de vc. Gostaria de saber que posso ser útil em algo. - Retirando os bifes da panela e acomodando-os em uma travessa em vidro, ela a leva até a ilha no centro da cozinha e, puxando uma cadeira em ferro, Adele se senta e esvazia, num único gole, sua taça de vinho antes de revelar o que eu já sei.
- Ele tem Alzheimer, Adessa. Meu marido, o companheiro de uma vida inteira, vai se esquecer de mim. - Apoiando os cotovelos sobre a bancada em mármore, ela chora. - O que eu posso fazer? - Do lado oposto da bancada, respondo.
- Não desistir. Doc é um homem forte. 
- Força não tem relação alguma com essa doença, Adessa. Infelizmente, não.
- Em qual estágio ele está?
- No primeiro. Mas...
- 'Mas' nada! Vamos lutar juntas para não deixar essa doença evoluir. Estudei algo sobre isso!
- Como??? Eu te contei agora!!!
- Eu te toquei na noite do jantar na casa de Cassie! Três primeiros passos para retardar esse filho da puta do 'Alzheimer': atividade física, boa alimentação e sono! Até o tempo em que eu trabalhava no California, Doc não praticava esporte e não dormia bem. Afinal, quem dorme bem sendo um segurança noturno de uma boate? Acredito que se alimentava bem porque vc cuida muito bem dele.
- Sempre. Quando está em casa, ele se alimenta muito bem. O que pretende fazer? - Pergunta-me ela, esperançosa. - Eu já tentei...
- Vc tentou! Agora, é a minha vez! Doc precisa, imediatamente, parar de trabalhar! Já deu! Aposentadoria já! - Decreto enquanto ela sorri. - Vem! Traga os bifes! Eu levo o resto! - Deixo Adele seguir até a sala e, escondendo-me no jardim de inverno fora da cozinha, choro por Doc, meu grande amigo. Lembro-me de tudo o que passamos juntos; do quanto ele me ajudou a sair daquela vida e a acreditar no amor de Vincenzo; de sua implicância com Sweet...- O que eu faço? - Fungo, enxugando minhas lágrimas no avental. - Como eu posso lutar contra essa doença que te mata aos poucos? Doc estava presente no dia em que Antoine me disse aquela frase terrível, logo, ele pode ser o alvo. Ou não. 
- Restam várias opções, meu bem. Cassie, Adele, Vincenzo, Liam que, agora sendo pai, perde sua imunidade, além de nosso querido Matteo. Enrico e Antoine podem morrer de uma maneira diferente dos demais, mas, ainda assim, podemos considerar como sendo uma morte.
- Maldito! - Grito alcançando uma faca na bancada.
- Não se atreva a se cortar e a esfregar esse sangue nojento em mim!
- Funciona! - Exulto. - Isso te afasta! Por que será!? Tem algo em meu sangue que te assusta!? - Recuando como uma serpente, Lúcifer lança-me um olhar assustado e desdenha. 
- O que em vc tem que poderia me assustar, doce criança?
- Como vc entra e sai da casa de gente boa com tanta facilidade??? Isso deveria ser proibido!!!
- Fale com o Todo Poderoso, meu bem. Livre arbítrio é ideia dele. Não minha. Por mim, vc já deveria estar morta e ao meu lado, no inferno...- Suas últimas palavras ressoam no ar como o som de um trovão que ruge lá fora.


Lúcifer tem total acesso aos nossos pensamentos e sentimentos. Aprenderia, mais tarde que, o mesmo poder é concedido a alguns membros da 'Legião'. Estaremos todos condenados ao comando desses seres malignos? 
- Não vou deixar que toquem em meus amigos! - Grito empunhando a faca, procurando-o por todos os cantos. Sem encontrá-lo, prossigo. - Tampouco em meus filhos ou em Vincenzo! Porcos imundos!
- Dess? - De pé, agarrada a uma das plantas decorativas, imobilizo-me, deixando a faca cair sobre a terra do vaso. Arquejando, ouço sua voz suave perguntar. - O que viu?
- Nada. - Minto. Abraçando-o com força, peço. - Me tira daqui. 
- Eu vim te ajudar. Adele disse que tinha mais pratos para levar à mesa e...
- Sim. - Puxando-o pelo braço, levo-o de volta à cozinha. Tentando, em vão, esconder o que acabo de ver, peço. - Leva as travessas com arroz e batata frita? Eu levo o feijão. Ok?
- Ok. - Pressionando-me contra a geladeira, ele alerta. - Depois que todos forem embora, vc me conta o que aquele verme te falou e o que Antoine tem a ver com tudo isso. Ok? Chega de sofrer sozinha, Dess. Eu tô contigo. Na alegria e na tristeza. Na saúde e na doença. Na vida e depois da morte. Entendeu? - Sem mãos para enxugar minhas lágrimas, ele beija meu rosto molhado enquanto, sorrindo, agradeço.
- Não me deixa, Vincenzo. Nunca mais.
- Nunca mais.
- Sem querer interromper a safadeza, mas o povo na sala tá com fome. Pode ser ou tá difícil?
Sorrindo, seguimos Antoine até a mesa de jantar. Um olhar ao redor e, em cada rosto, em cada sorriso, penso na dor em perder qualquer um deles.
- Senta, Dess! - Ordena-me Vincenzo à mesa, abrindo outra garrafa de vinho. -  Senta! Para de pensar e come! Pode ser?
- Certo, chefe! - Prestando continência, eu me sento entre Antoine e Matteo e pisco para Vincenzo. - 'Tamo junto'.
- 'E misturado'. - Complementa ele.

Lembro-me de alguns episódios do jantar e tento não desanimar. Debruçada sobre a banheira de Matteo, sorrio ao ouvi-lo imitar o som de seu
 patinho barulhento e pedir 'mais água'. Inebriada, eu o obedeço torcendo a toalha de rosto, úmida, acima de sua cabecinha. De olhinhos fechados, ele sopra a água com um biquinho lindo, fofo de mais. Ensaboo seus cabelos enquanto volto ao jantar, mais especificamente, aos momentos onde Adele, sutilmente, corrigira Doc que se esquecia, constantemente, do nome de Enrico, chamando-o de Vincenzo. Em alguns desses lapsos, Doc se irritava com Adele que, imediatamente se calava. Li em um artigo que esses são sintomas do primeiro estágio da doença. Perda de memória recente e irritabilidade, podendo chegar à agressões verbais e físicas. 
- Mamãe! Olha o rostinho dele! - Arquejo, assustada. Uma entrada súbita no banheiro e, rindo, Antoine assume o comando e retira, com água, o excesso de espuma do rostinho de seu irmão e, com a mesma espuma, constrói um chapéu em sua cabeça. - Um chapéu de nuvem para o meu anjinho! - Celebra ela enquanto Matteo, eufórico, bate palminhas e, movendo as perninhas, molha todo o piso do banheiro. De bumbum para cima, ele bate as perninhas como nas aulas de natação. Parecendo gostar da plateia que o aplaude, eufórica, ele se apoia na barra em metal ao redor da banheira e, mergulhando a cabecinha, sopra bolhas debaixo d'água. Preocupada e extasiada, eu o retiro da banheira com o rostinho coberto por espuma. Beijando sua boquinha, ele me abraça enquanto o levo até seu quarto. Antoine me segue fazendo-o rir de suas caretas. Deitado em sua cama, ele se esparrama. Antoine comenta algo que me faz rir.
- O 'piu-piu' dele é grande, mamãe! - 'Puxou ao pai', penso ao enxugá-lo. - São todos desse tamanho? Vai crescer mais? 
- Com certeza. - Afirma Vincenzo, orgulhoso. - 'Puxou ao pai'. 
- Vc me ouviu, idiota?
- Claro, imbecil. Eu sempre ouço seus pensamentos devassos. - Debruçando-se  sobre a cama, ele beija a testinha de Matteo que o chama de 'papá'. - Não faz isso, filhão. Sua mãe vai me bater depois.
- O que o senhor quis dizer com 'puxou ao pai', papai?
- Responda essa, Vincenzo. - Debocho salpicando talco no corpo seco e nu de Matteo. - Fala!
- Nada de mais, filha. Eu quis dizer que ele vai...
- Ficar tão inteligente quanto o pai e lindo quanto a mãe. - Interage Enrico, salvando Vincenzo. - Não que a mãe não seja inteligente.
- Mas o pai é burro. - Afirmo após vestir Matteo com seu pijama com a estampa do 'Homem-Aranha'. - Se fosse inteligente, teria deixado Doc trocar os nomes sem corrigi-lo. - Jogando-se sobre o tapete estampado por estrelas, relaxado, ele indaga. - E, por que eu faria isso? Ele errou o nome. Bebeu demais. Eu disse que não era meu pai, ué!
- Faz sentido, mãe.
- Faz sentido vc tomar banho agora, Antoine.
- Por que eu nunca posso conversar quando vcs estão conversando!? Eu já tenho nove anos! Sou representante de turma e a primeira bailarina na sua academia, mãe!
- Parabéns! Daqui a uns cinco anos, vc volta e todos conversaremos sobre todos os assuntos, juntos! Agora, vá tomar um banho, bailarina!
- Deixa ela, Dess. - Atirando-se sobre Vincenzo, ela dramatiza.
- Quero ficar com vcs. Eu gosto de quando a gente fica juntos.
- Eu também. - Murmura Enrico. - São tão raros esses momentos. Momentos que jamais me esquecerei...
- Que papo brabo, pai! Vc vai ficar pra sempre com a gente!
- Eu não disse nada...- Defende-se Enrico.
- Mas pensou!
- Desde quando vc lê os pensamentos dele, Vincenzo!?
- Sei lá. - Estranha Vincenzo. - Eu li...- Sem jeito, Enrico coça a cabeça e comenta, ao se sentar na 'cama sofá'
- Estranho, né? Deve ser o vinho.
- Ou outra coisa...- Sugere Antoine abraçada ao pai.
- Que coisa, filha?
- Antoine. Não estaria na hora de tomar o seu banho?
- Ok, vovô. Ok. - Erguendo-se do chão, ela o abraça e cochicha algo em seu ouvido. Ele sorri e a beija na bochecha.
- Eu sei, filha. Eu sei. Eu vou fazer. - Aguardo Antoine sair do quarto e, carregando Matteo no colo, eu o acomodo em seu berço onde ele, exausto, boceja. Beijo sua testa e encaro Enrico ao questionar.
- Fazer o que, Enrico? - Desligo um  interruptor e acendo o outro. O ambiente muda radicalmente. Imersos na luz azul, vislumbramos estrelas em todos os cantos do quarto. Do tapete onde Vincenzo está deitado até o teto, onde elas brilham. Encantado, Enrico fixa seus olhos no teto enquanto volto a perguntar, num tom baixo. - Fazer o que, Enrico? O que Antoine lhe disse? Por que Vincenzo consegue ler seus pensamentos se vc é um anjo e ele não? Por que tá com medo de me encarar, Enrico?
- Dess. - Segura-me Vincenzo pelo braço. Sussurrando, ele pede. - Deixa meu pai em paz. Vamos deixar nosso filho dormir. Deixando-me levar por Vincenzo, arquejo ao ouvir Matteo pronunciar nitidamente a palavra 'vovó'. Baixando a  cabeça, Vincenzo resmunga. - Merda...
- Me solta. - Rosno. - Onde ela tá? - Pergunto a Enrico retirando Matteo, de pé, de seu berço. - Ela tá aqui!?
- Não, filha. Eu vou te explicar. Fique calma.
- Saiam os dois. Meu filho precisa dormir e eu, rezar. - Revoltada e assustada, recuso o beijo de Vincenzo que avisa.
- Te espero lá fora, amor. - De costas para ele, eu me calo. - Dess, não é o que vc tá pensando.
- Sai daqui. - Volto a rosnar, ninando Matteo em meu colo. - Seu filho precisa dormir.
- Ok. - Ouvindo a porta do quarto se fechar, aperto meu filho contra meus braços e aviso, num fio de voz.
- Nada, ninguém toca em meus filhos. Em nome do Criador, ninguém toca em meus filhos.




- Como vc pôde me esconder isso, Vincenzo!?
- Eu não escondi. Eu omiti. - Catando uma das pedras na grama do quintal, eu a arremesso contra a parede da varanda, próxima ao sofá onde ele se senta ao lado de Antoine. Assustado, ele se encolhe e aconselha. - Dess, vc precisa se controlar. Poderia ter machucado nossa filha.
- Eu errei de propósito, Vincenzo! Era pra ter acertado a tua testa, covarde!
- Ele não tem culpa, filha. Sou eu o culpado. - Lamenta Enrico sentado no primeiro degrau da varanda, ao lado do canteiro de flores. - Eu a vi, ali, debaixo daquela árvore. Ela estava tão linda... - Suspira ele. - Linda como no dia em que nos conhecemos. - Um olhar distante e lágrimas escorrem por seu rosto rosado. Longe de me irritar, eu me apiedo de Enrico que se deixou tocar por Celeste, mais tóxica do que cocaína. - Ela me disse que havia mudado. E eu...eu acreditei. - Agacho-me diante dele e, preocupada, indago.
- Eles te tocaram, Enrico? A 'Legião' te tocou? - Pousando minha mão sobre a dele, insisto. - Enrico!? Eles te tocaram!?
- Eu não deixei, mãe. - Responde-me Antoine, imponente. - Eles cercaram o vovô, mas eu não tive medo. Ergui minha espada flamejante e caminhei até eles. 
- Desde quando vc tem espada flamejante? - Confusa, pergunto. Sem responder, passando por mim, ela prossegue, dramaticamente.
- A luz era intensa. Todos fugiram. Vovó ainda tentou levar o vovô, mas eu a feri, nas mãos, com a ponta da espada: 'Nós não te amamos mais, vovó', eu disse. Ela riu de mim, mamãe. Foi esquisito. Ela não riu pra mim como antes. Ela riu de mim.
- Ela já não é a sua avó, filha. 
- Não diga isso...- Pede-me Enrico, abatido. - Ela está perdida. Eu preciso ajudar a mulher que ainda amo. - Erguendo-me, de súbito, alerto.
- Se tentar ajudar Celeste, será tragado pelas forças que a acompanham, Enrico! Eles são muitos e poderosos! Vc vai se perder e nos perder também! É isso o que deseja!? - De cabeça baixa, ele se cala. - É isso que deseja, Enrico!? Largar nossa família!? 
- Dess! Menos! 
- 'Menos' é o cacete! Seu pai vai se tornar um deles e vc quer que eu me cale! Seu pai nos ama! Ele nos protege desses vermes! Essa é a missão dele! Proteger nossos filhos da 'Legião' e de Lúcifer! Se ele se for, estaremos sozinhos, Vincenzo! Sozinhos! E seu pai, perdido pra sempre! Quer que eu me cale!?
- Quero! Tá piorando tudo! - Sentando-se ao lado de Enrico, Vincenzo o abraça e me ignora. - Vai dar tudo certo, pai. Eu sei que vai.
- Estúpido. - Rosno, recuando. - Vc diz isso pra tudo e nada dá certo. Percebeu? 
- Isso não é verdade. Estamos juntos e seguros.
- Graças a mim, idiota. Se fosse por vc, essa casa seria a sucursal do inferno. Sua mãe, a 'Legião' e Isabella já teriam tomado conta de tudo e de todos, inclusive de nosso filho ou vc pensa que ele tá imune à maldade de sua mãe, aquela vaca?
- Para, Dess. - Diz ele num tom de ameaça. Erguendo-se do degrau, ele vem em minha direção. Recuando pelo caminho de pedras, continuo a dizer o que penso.
- Eles querem enfraquecer Antoine e dominar nosso filho, Vincenzo. Eles sabem que nosso Matteo não tem quem o proteja além de mim, de Antoine e Enrico. 
- Fica quieta, Dess...- Seus olhos brilham sob a luz da lua cheia. - Não quero brigar.
- Vai me espancar como fez com Isabella? - Provoco. - Não é isso que te dá prazer?
- Parem os dois! - Ordena Enrico, de pé, logo atrás de Vincenzo. - Não estamos sozinhos! Há algo no ar! - Elevando nossos olhos para o céu, percebemos um redemoinho de poeira formando-se acima de nossas cabeças. Um rosto assustador surge dentro dele. Um rosto medonho, pálido, cabelos longos e encaracolados e dentes pontiagudos. Olhos profundamente ameaçadores e amarelados me encaram. Abrindo um sorriso macabro, o ser de vento avança sobre Antoine que, assustada, grita por mim. Salto sobre ela, impedindo-o de tocá-la. Um gesto ligeiro e ele me arranha com suas garras imensas. Grito de dor. Cubro Antoine com meu corpo quando vejo o redemoinho avançar em direção à nossa casa. 
- Nosso filho! - Berro, erguendo-me com dificuldade. Vincenzo corre o mais rápido que pode. Chega a alcançar o ser que gira ao redor de si mesmo incessantemente. Um golpe e Vincenzo é arremessado contra a coluna de madeira na varanda. Enrico abraça Antoine enquanto corro até Vincenzo. Juntos, desesperados, ouvimos o choro de Matteo assim que a densa fumaça encontra espaço entre as brechas na soleira da porta e desparece. Um chute forte e Vincenzo arromba a porta do quarto de Matteo. Horrorizados e perplexos, observamos, imobilizados, o controle que nosso bebê exerce sobre o ser medonho que tenta, com todas as suas forças, tocar em sua pele delicada e é impedido por sua mãozinha erguida.
- 'Dodói. Não não. Dódoi'. - Balbucia Matteo agarrado ao seu ursinho de pelúcia. O ser levita sobre seu berço prestes a investir contra Matteo quando Vincenzo, tomado por uma fúria descontrolada, salta sobre ele com um de seus crucifixos bentos na mão. 
Uma gargalhada diabólica e o ciclone sinistro, de súbito, desaparece. Vincenzo cai contra o tapete enquanto abraço meu filho e o retiro do berço. 

- Ele se foi, Vincenzo.
- Como? - Aos prantos, respondo, incrédula.
- Não sei.
- Olha, Dess! - Seu indicador aponta para os meus braços e costas lanhados pelas unhas imundas de um dos seres elementais da 'Legião'. - Temos que desinfectar isso! Vem!
- Antoine! Cadê ela!?
- Tô aqui, mãe. - Diz ela, apreensiva. Apavorada com o sangue que verte de minhas feridas, ela chora ao declarar com raiva em cada palavra.
- Eu vou acabar com eles. Eu juro que vou. 
Um urro de ódio e ela caminha pelo corredor. Pela primeira vez, enxergo um sentimento ruim em minha filha. Cuidando das feridas abertas em minhas costas, Vincenzo murmura.
- A cada dia aqui na Terra, ela vai perdendo sua pureza e se tornando mais humana.
- A morte de Gabriel abriu brechas em seu coraçãozinho puro. - Elucida Enrico com Matteo em seus braços enquanto Antoine luta contra o 'punch' na área de musculação. Com luvas de boxe, ela se exaure de tanto pular e socar o 'saco de pancadas'. Há fúria em seus olhos antes, sempre serenos. - Agora, ela acordou.

Sentindo os braços e costas ardendo, pergunto, atordoada.
- E o que podemos fazer pra voltar atrás? Não quero que minha filha sofra. - Envolvendo meus braços com ataduras limpas, Vincenzo responde. 
- Mais nada, Dess. Mais nada. Ela precisa cumprir o que está escrito.
- Não. - Suplico. - Não deixa.
- Vire de costas, amor. Como vc mesmo disse, eu não faço nada. Eu, infelizmente, não posso fazer nada além de te livrar de uma baita infecção por bactérias de outro mundo.
- Perdão. Eu me exaltei.
- Deixa pra lá, Dess. Vamos dormir e esquecer o que aconteceu aqui, hoje. Amanhã, a gente resolve tudo.


Os dias se passaram e tentamos não falar sobre o que aconteceu naquela noite. Aproveito o tempo livre após a aula de dança na 'Just Dance' e, na cafeteria ao lado, sempre grudada a Matteo, pesquiso na internet sobre seres que compõe a 'Legião' formada por 'anjos caídos'. Incrivelmente, encontro algumas informações interessantes de fontes anônimas. Ao contrário do que imaginava, Lúcifer não é o líder deles. Os anjos que 'caíram' junto a Lúcifer  lutam, entre si, pelo poder. Um gole em meu Cappuccino e os pelos de minha nuca se eriçam. Uma olhadela ao redor e nada vejo além de um casal discutindo em uma das mesas e o rapaz atrás do balcão de olho em seu celular. Incomodada, retiro Matteo de seu carrinho e o sento em meu colo. Sorrio quando seus olhinhos brilham diante da tela do notebook aberto em uma página com imagens diabólicas. Fecho a 'guia' de pesquisa e me atenho aos textos. Relatos de ataques a humanos por seres do fogo, da água, da terra e do ar são raros. 
- Seres do ar? Aquilo que nos atacou em nossa casa era formado pelo ar. Desde quando elementais são maus?
- Desde que o Homem se corrompeu e começou a manipular as forças da Natureza a seu favor. - Erguendo-me, repentinamente, da cadeira, com Matteo em meu colo, derrubo a xícara na mesa e borro, com o Cappuccino, minhas anotações no caderno. Dois passos para trás e, inflando as narinas, pergunto.
- Quem é vc? O que quer de mim? 
- Nada. Só ouvi sua pergunta e a respondi. Sou um curioso nesses assuntos. - Sua longa capa preta cobre sua calça jeans até abaixo dos joelhos. Seus tênis surrados me fazem crer que ele anda muito ou usa o mesmo par há anos por não ter grana para comprar outros novos. Sentado em um banquinho em madeira próximo ao balcão, ele devora um 'cheeseburger' como se fosse o último de sua vida. Seus cabelos encaracolados e loiros me lembram anjos desenhados nas histórias que lia para Antoine quando ainda era pequena.

"Por que não existem anjos negros, mamãe", perguntava-me ela, indignada. Foi quando Miguel, o Arcanjo, surgira em nossas vidas. 
- Nossa! Como vc pensa! - Comenta ele, de boca cheia. - Deve ser cansativo!
- Co como sabe que estou pensando?
Sem tirar os olhos do pão, ele argumenta.
- Se vc não estiver pensando em alguma coisa enquanto me observa, calada,  comendo meu segundo 'cheeseburguer', o que faz então? 
- Não lhe devo satisfações. - Levando a bolsa de Matteo a tiracolo, eu o acomodo em seu carrinho. Desligo o notebook e lançando ao estranho um olhar de desconfiança, alerto. - Fique longe de mim e de minha família. - Limpando a boca com guardanapo de papel, ele sorri. Seus dentes reluzem como em uma propaganda de creme dental. Estranhamente, não me sinto mal diante dele. Ainda assim, eu o ameaço num tom baixo. - Se eu te vir novamente por perto, eu te estanco na porrada. Entendeu?
- Claramente. Mas, é melhor rever seu posicionamento. - Adverte-me ele, saltando do banquinho, ajeitando sua capa. - É sempre bom ter amigos por perto quando a Escuridão chegar. 
- Que porra de Escuridão é essa!? - Pergunto enquanto empurro o carrinho de Matteo, seguindo-o até a saída da cafeteria onde ele, literalmente, some. Intrigada, retorno até o rapaz do balcão e pergunto sobre o homem da capa preta que devorou dois 'cheeseburgers'.
- 'Cheeseburgers', senhora!? Nós não vendemos esse tipo de comida aqui. Só cafés, brioches e bolos. E, a única cliente que entrou aqui, além daquele casal, foi a senhora e o seu bebê.
- Vc não viu...??? - Diante do olhar exausto do pobre rapaz, desisto. - Deixa pra lá. Quando te devo?

Procurando pela minha carteira, vejo algo reluzir dentro de minha bolsa. Curiosa, eu a esvazio sobre uma das mesas e, perplexa, encontro uma pedra azul clara que aquece a palma de minha mão. 

A imagem do homem com cabelos cacheados me vem à mente assim que retorno ao nosso lar e, curiosa, pergunto a Enrico.
- Já viu uma dessa antes? - Seus olhos brilham, encantados ao tocar na pedra e sussurrar algo que não compreendo. - Enrico!? O que disse!? -
- 'Angelita'. A pedra dos anjos. - Emocionado, ele esclarece sorrindo com seus olhos azuis e inocentes. - Já não estamos sozinhos, filha. Eles estão entre nós. - Eufórico, ele repete. - Eles estão entre nós!
- Eles quem, Enrico!? - Seguindo-o até o jardim, reclamo. - Enrico! Fala comigo!
- Deixa ele, Dess. Deixa ele comemorar. Depois, ele explica tudo.
- Seu pai está dançando em nosso quintal, Vincenzo! Vc acha isso normal!?
- Desde quando coisas normais acontecem em nossas vidas, Dess? 
- Tem razão. - Resmungo.  Jogando-me sobre o sofá redondo e aconchegante, encolho-me. Vincenzo me observa, calado. - O que é? Nunca me viu?
- Não precisa ficar com medo do cara na cafeteria, Dess. Ele é um dos 'nossos'.
- Que 'nossos', Vincenzo!? - Protesto. - Vc já não é um anjo faz tempo e, pelo que eu saiba, eu nunca fui um anjo e nunca serei!
- Por que tá sendo grosseira comigo? - Salto do sofá e, arrependida, peço perdão. Enlaçando-o pelo pescoço, na ponta dos pés, beijando suas bochechas, confesso.
- Odeio quando vai trabalhar. Sei que vai se encontrar com ela.
- Idiota. Ela não vai hoje. Para de ouvir essas vozes, Dess. Toma os remédios.
- Não! Prefiro as vozes do que 'dar mole' e te perder! - Rindo, ele beija minha testa e me chama de 'maluquinha'. - Vai pensando assim. - Digo num tom de ameaça. - A qualquer momento, posso dar uma 'incerta' no galpão de boxe e...
- Não vai ver nada além de um bando de macho suado e fedido, falando merda. - Arregalando os lindos olhos azuis, ele hesita antes de perguntar. - Essa porra na tua boca é o que eu tô pensando!?
- Sei lá o que tu tá pensando, 'bro'. Quem lê mentes aqui é vc. Não eu.
- Dess! Isso faz mal, porra! Mata teus neurônios!?
- 'Cannabis Sativa'
- Me dá! - Erguendo minha perna direita, eu o golpeio no abdômen e reclamo. - Me deixa em paz. Preciso relaxar...- Baforando rodelas de fumaça, sorrio. - Meu dia foi tenso.
- Dess! - Furioso, ele ordena. - Apaga isso, porra! Antoine está no quarto!
- Nunca...- Recuso-me de olhos fechados. - Seu pai pode realizar um ritual xamânico no nosso quintal, mas eu não posso fumar meu 'beck'? - Um tapa em minha mão e, abrindo meus olhos, protesto. - Porra! Por que fez isso!? - Rolando do sofá, caio contra o chão. Rindo de mim mesma, super relaxada, eu me levanto. Irritada, eu o empurro com a lateral de meu corpo e desço os degraus da varanda. Descalça, sobre a grama úmida, choramingo ao ver o cigarro encharcado. - Acabou. Vc estragou tudo, filho da puta.
- Melhor assim, Dess. Vc precisa ficar alerta.
- Sempre eu! Não é justo!
- Quando eu voltar, eu assumo o comando e vc descansa. Ok? - Ajoelhada sobre a grama, não desisto de salvar a guimba que se desmancha em minhas mãos. Puxando-me pela cintura, ele avisa. - Eu vou me atrasar, Dess! Para de ser infantil!
- Me solta!
- Dess! Para!
- Me solta! É sério! Tem alguma coisa ali no canto, perto das flores! - Os últimos raios do sol da tarde incidem sobre a face dourada da moeda que retiro da terra adubada após escavá-la com minhas mãos imundas. Um olhar apavorado a Vincenzo e indago. - Que porra é essa?
- Uma moeda antiga? - Esfregando-a com a barra do meu vestido, ele a limpa e, após observá-la, cuidadosamente, ele me encara e recita. - 'Vincit qui se vincit'. - Uma pausa irritante e rosno.
- Que porra é essa em nosso quintal?
- 'Vence aquele que se vence', traduz ele. - É uma mensagem, Dess.
- De quem pra quem!?
- Do céu, Dess...
- Duas mensagens no mesmo dia? Isso me assusta. - Abraçando-me com força, sob a ação da brisa fria que esvoaça nossos cabelos, ele confessa.
- A mim também.

- Eu quero entrar!
- Não pode. - Afirma o recepcionista do galpão de boxe. - Somente os autorizados pelo mestre podem entrar.
- Mestre em que, garoto!? Meu marido é o dono desse galpão e não é mestre de ninguém! - Olhando-me com desprezo, o jovem adverte. 
- Ninguém entra aqui se não for autorizado por Vincenzo, senhora. Quer deixar algum recado? - Recado eu vou deixar na tua cara, filha da puta! - Não pule a catraca!
- Perdão, meu bem. - Peço entredentes. - Ainda não nos conhecemos. Sou Adessa Rossi. Esposa de Vincenzo Rossi que, provavelmente, vem a ser o seu 'mestre'. Ou será o João? Enfim...- Caminhando em direção ao ringue, pergunto. - Qual seria o nome do belo recepcionista do 'Round 666'?
- Meu nome é Leo e a senhora não pode entrar! - Afirma ele, parado, à minha frente, impedindo-me de passar. - Eu fui instruído a...
- Leo, querido, saia da minha frente. - Aviso. Seu rosto delicado e os trejeitos efeminados me fazem acreditar que ele gosta de meninos. Apontando meu indicador ao ringue, ironizo. - Tá vendo aquele homem maravilhoso, musculoso, suado, gostoso com os olhos mais encantadores da face da Terra? - Inflando as narinas, ele me fuzila com seus olhos amendoados. - Então. É o meu marido. Meu homem. Sendo assim, como esposa dele, eu posso entrar aqui quando quiser. Entendeu ou quer que eu desenhe? - Estou sendo grosseira sem necessidade. Eu me arrependeria disso mais tarde. - Sai. - Rosno. 
- Não posso.
- VINCENZO! - Berro de onde estou, assustando o pobre garoto. Se o tivesse tocado antes, não o teria tratado dessa forma. - DÁ PRA VIR AQUI, POR FAVOR!?


Sorrindo, Vincenzo, com um molejo de tirar o fôlego, caminha em nossa direção e lançando-me um olhar de incredulidade, pergunta.
- O que houve agora, Dess? Eu estava trabalhando.
- Eu disse a ela. - Resmunga o fedelho.
- Mentira! - Protesto. - Eu te atrapalhei porque o menininho aqui não queria me deixar entrar! Só por isso!
- Eu tenho nome.
- Leo, essa é a minha esposa. Dess, esse é o sobrinho do João. - Explica Vincenzo. - Ela tem livre acesso. Ok?
- Eu não sabia, mestre.
- Mestre??? - Rindo, Vincenzo exala sedução ao comentar.
- Eu já pedi pra ele não me chamar assim, mas ele insiste.
- É um sinal de respeito. 
- Respeito ou adoração? - Indago, intrigada. Puxando-me para longe de Leo, Vincenzo me repreende num tom baixo.
- Deixa o garoto em paz. 
- Foi ele quem começou! Que ideia foi essa de contratar um 'emo' como recepcionista!?
- Se eu contratasse uma mulher, vc iria me matar, porra!
- Não grite comigo. - Choramingo. - Eu passei aqui pra te dar um beijo e é isso que recebo?
- Dess. Fala a verdade.
- Não ria. Eu estava voltando pra casa quando pensei que vc poderia estar em perigo. Daí, em vim aqui e...
- Ver se a ruiva estava lutando comigo?
- Ridículo! Com tantas coisas pra fazer, eu ocuparia meu tempo com tamanha infantilidade!?
- Com certeza. - Diz ele, com naturalidade. - Amor, para com isso. Será que eu ainda não te provei que vc é e sempre será a única.
- Já parou pra pensar que esse 'emo' irritante pode ser um deles?
- 'Deles' quem!?
- Da 'Legião'. - Cochicho. - Ele é bem esquisitinho...
- Puta que pariu, Dess. Não delira. Ele é um bom menino. João disse que ele tá meio perdido na vida, daí, achei legal oferecer um emprego pra ele.
- Sabe que vc é o 'crush' dele, né?
- 'Crush'!? Que merda é essa!? - Revirando os olhos, resmungo.
- Odeio falar com gente velha. 'Crush'! Ele tá totalmente apaixonado por vc, idiota! - Uma de suas gargalhadas escandalosas e ele me chama de louca. - Vcs homens são burros e cegos e idiotas. 
- O garoto pode ser meu filho, Dess!
- E daí!? Eu já me apaixonei por meu professor no Ensino Fundamental! Olha só! Vou te dizer uma coisa! - Toco meu indicador em seu peitoral deslizando-o até o abdômen 'trincado' e penso que poderia levá-lo ao banheiro e 'pagar um boquete' nele, mas, infelizmente, não tenho tempo para isso. 
- Que pena...- Lamenta ele com seu olhar insano. Excitada e irritada, aviso. - Tenho um convite pra te fazer e vc não pode recusar, caso contrário, deixo de falar contigo pra sempre.
- Caralho. Eu já aceitei então.
- Sua aluna chegou, mestre. - Anuncia Leo, triunfante. - Faltam quatro minutos para o início de sua aula.
O sorriso amarelo de Vincenzo me diz tudo. Voltando-me para trás, vejo a ruiva com mais uns quatro mililitros de ácido hialurônico nos lábios e os cílios tão espessos que sinto frio quando ela abre e fecha seus olhos. Vincenzo gargalha por ter ouvido meus pensamentos, pedindo desculpas à ruiva com um top decotado e calça 'flare' colada ao corpo. Pigarreando, ele cochicha em meu ouvido.
- Não era botox nos lábios?- Errei. - Assumo. Ao seu lado, o sorriso vingativo de Leo me faz perder o controle.
- Olá, querida. Que prazer te ver de novo. - Minto. - Mas, eu preciso te alertar sobre o uniforme admitido nesse estabelecimento.
- Dess...- Sorrindo, eu o interrompo.
- Meu marido é distraído e, provavelmente, nunca te falou sobre isso.
- Ai. Me fala. - Escandaliza-se a ruiva com as unhas tão longas que me fazem pensar em como ela limpa suas partes íntimas sem se mutilar. - O que tem de errado com a minha roupa!?
- Tudo, meu bem. - Um sorriso falso e prossigo. Vincenzo, de braços cruzados, não ousa me interromper. - Essa academia é de boxe. Eu trabalho em uma academia onde esse modelito lindo seria muito bem aceito, mas, aqui, o esquema é outro. Entende? Muitos homens, testosterona por todos os lados e muita tensão no ar. Vc, com seu corpinho lindo...- Engulo em seco contendo minha vontade de dizer que aqui não é lugar de puta, prossigo. - Certamente vai tirar a concentração dos outros alunos e, talvez, atrair problemas para si mesma. Logo, sugiro que jogue um blusão sobre o top e tente ser menos deslumbrante. - Boquiaberta, ela me ouve até o fim. - Vc me compreende, linda?
- Super. - Diz ela, visivelmente envergonhada. - Não foi essa a minha intenção. - Dramatizando, junto minhas mãos à dela e minto outra vez.
- Longe de mim te envergonhar, meu anjo. É que o teu professor não saca dos estatutos dessa academia. Isso é comigo. Entende? Sou eu que trato de assuntos pertinentes aos alunos e ao funcionamento dessa academia.
- Eu vou voltar outro dia então...- Não volte nunca mais. - Com uma roupa mais adequada. - Um olhar de esguelha a Vincenzo e o vejo de cabeça baixa. Péssimo sinal. Ele está puto comigo.
- De maneira alguma! Temos camisas fantásticas com a marca da 'Round 666'! Vou te dar uma de presente e vc pode usar hoje mesmo!
- Wow! Obrigada! - Corro até a recepção e, arrancando da vitrine a maior delas, faço questão de esperar que ela a vista. - Ficou ótima! 
- Divina! - Concordo, eufórica. - Cobriu tudo!
- Desnecessário...- Resmunga Leo. Próxima ao seu ouvido, rosno. 
- Desnecessário será o seu salário ao final do mês.
- Podemos começar? - Pergunta Vincenzo guiando a ruiva até o ringue, com sua mão direita nas costas dela. Filho da puta! Ele está me punindo! Olhando para trás, ele diz.
- Acertou. Te vejo em casa, baby.
- Verme...- Rosno, sozinha. Leo me ignora assim que pulo a catraca. Antes de pisar na calçada, recuo. Arrependida, peço desculpas por meu comportamento. Seus olhos tristes me encaram. - Começamos mal. Sou muito impulsiva e ciumenta. Vc ainda é muito novo. Eu deveria ter 'segurado a minha onda'
- Tudo bem. 'Tô de boas'. Eu também fui grosseiro. - Um sorriso sincero e, estendendo minha mão a ele, pergunto.
- Amigos? - Ele revira os olhos. Eu me corrijo. - Colegas?
- Pode ser...
Assim que toco sua mão gelada, um forte abalo em  meu corpo e vejo tudo com extrema nitidez.
Brigas entre seus pais. Bullying no colégio. Surras covardes. Mensagens de ódio em perfis de mulheres nas redes sociais, automutilação nos braços e pernas. A foto de Vincenzo em seu celular. Um tabuleiro 'Ouija' em seu quarto escuro. Dois amigos tão sombrios e solitários quanto ele. Seus olhos assustados com o que lê no tabuleiro...
- Solta! - Desconectando-me dele, caio contra o piso frio. Horrorizada, ergo-me sem o seu auxílio e, antes de partir, arfando, sussurro.
- Leo, o que vc leu no tabuleiro não é verdade. Vc ainda vai viver muito.


- Vc não tem o direito de ir ao meu ambiente de trabalho e ditar regras, Dess.
- Eu não fui lá pra isso, Vincenzo!
- Foi pra me vigiar! Eu não mereço isso!
- Fala sério! Se eu não tivesse ido, vc teria permitido que aquela vaca ruiva treinasse com aquela calça enfiada no cu!
- Me respeita!
- Respeite o local do seu trabalho! Aquilo não é roupa pra treinar boxe, porra! Lá tá cheio de homem! Se ela quiser te ferrar, ela filma um simples olhar teu pra bunda dela e faz um escândalo nas redes sociais e ainda te processa! E tu vai perder uma grana absurda pra deixar de ser otário!
- Para de delirar, Dess!
- Ela tá certa, papai. - Ratifica Antoine ao chegar do colégio. Jogando sua mochila sobre o tapete, ela nos beija no rosto e, deitando-se no sofá, comenta. - Tá cheio de vídeos como esse na internet. O pai da minha amiga estava treinando na academia. Daí, venho uma mulher com o short menor do que a calcinha da mamãe e começou a se agachar na frente dele. Ele olhou pra bunda dela com cara de espanto. Um amigo dele aparece no vídeo mostrando o celular dela direcionado pra ele. Ela gritou, acusou o pai da minha amiga de assédio sexual, mas não rolou...- Uma gargalhada e ela conclui. - Graças ao amigo dele.
- Sério?
- Não, Vincenzo. Ela tá inventando.
- O mundo tá difícil pra vcs homens, pai. Abre o olho. É golpe em cima golpe. Ainda bem que minha mãe cuida de vc. - Cruzando as mãos na nuca, ela sorri. Salto sobre ela e beijo todas as partes de seu rostinho lindo. - Argh, mãe. Que nojo.
- Desde quando vc deixou de gostar dos meus beijos?
- Desde que ela cresceu e mudou...- Divaga Vincenzo sentando-se sobre o tapete felpudo, acariciando os cachinhos de Antoine. - Nossa filhinha cresceu e a gente não percebeu, Dess.
- Não fale comigo. - Sentada no sofá, cruzo minha pernas e evito seu olhar arrependido. - Vc duvidou de mim.
- Não duvidei, amor. Eu tenho certeza de que vc foi lá por causa da ruiva. Mas, de repente, vc já estava falando de regras da academia e 'tals'.
- 'Tals'!? - Antoine e eu rimos juntas quando comento.
- Seu pai tentando ser jovem
- E vc é muito mais nova do que eu, né? - Zomba ele. - Tenho quatro anos a mais que vc, 'novinha'.
- Fora os anteriores à vinda de Cristo! - Rimos juntos. Seu olhar apaixonado se fixa em mim. Inspiro e, retornando ao meu estado de ofendida, aviso. - Não fala comigo.
- Vcs são fofos. - Diz Antoine. Vão ficar lindos no palco.
- Palco??? - Arregalo meus olhos e, aproveitando a 'deixa' de Antoine, exalto-me ao comentar. 
- Então! Foi por isso que eu te procurei no trabalho! Eu me inscrevi no campeonato de dança que vai rolar na minha academia!
- Que bom, Dess! Vai vencer, com certeza!
- Vamos! - Afirmo, eufórica. - Porque vc é o meu parceiro!
- Nunca! - Refuta ele, recuando. - Desiste! Eu não sei dançar!
- Sabe sim, pai. Vc dançou com a 'outra' e venceu o concurso.
- Antoine! O que sua mãe te ensinou sobre não se meter em conversa de adultos!? - Rindo, ela responde.
- Sei lá. Eu me esqueci.
- Se não dançar comigo, eu danço com outro! A fila tá grande! - Ameaço. Dando de ombros, ele diz.
- Ok. - Engulo em seco. Meus olhos se enchem d'água. Seguro o choro. - Dess, não precisa...- Erguendo-me do sofá, magoada com seu desinteresse e falta de ciúmes, aviso num tom baixo.
- Não fala mais comigo.
- Dess! Só por causa disso!? - Dando-lhe as costa ainda ouço Antoine aconselhar.
- Deixa, pai. Vai dar tudo certo. Confia em mim. - Ressentida, retorno à sala e, com a voz embargando, explico.
- Não é só por isso, Vincenzo. É pela humilhação que me fez passar. É pela mãozinha na cintura da ruiva. Vc a guiou sabendo que eu estava ali, sozinha, arrasada, enciumada, diminuída diante do menino que tem mais problemas do que vc pode imaginar. Diante de mim mesma. Vc a guiou até o salão, Vincenzo, pensando que me daria uma lição, mas, sabe o que pode ter acontecido, Vincenzo? Ela pode ter filmado tudo e depois, num toque em seu celular, convencer milhões de imbecis nas redes sociais, de que vc a assediou e tirar uma fortuna de nossa família, de nossos filhos. Tudo porque vc quis me dar uma lição de moral. Porque vc quis me punir, Vincenzo. Eu deveria saber que anjos não têm coração. Anjos se acham superiores aos Homens mesmo depois de deixarem de ser anjos. Mas eu não sabia. Até hoje, eu não sei quem é vc, Vincenzo. E é por isso que eu choro e me calo. De agora em diante, eu me calo. Um aviso de quem ainda te ama: fica atento às mulheres que te rodeiam. Nem todas querem o teu bem.
- Mamãe...- Lamenta Antoine ao me abraçar. - Fica com a gente.
- Agora não, filha. Depois. Te amo.


Cancelo minha inscrição no campeonato da 'Just Dance'. Aninha se entristece.
- Vcs, com certeza venceriam. Não tá certo.
- Vincenzo tá com uma entorse no tornozelo. - Minto. - Não vai rolar. Deixa pra próxima.
- Dance com outro! - Insiste ela. - Vc tem potencial pra vencer! - Vestindo meu casaco, enxugo uma lágrima e, antes de me despedir de Aninha, confesso.
- Sem ele, não tem graça. Nada em minha vida, sem ele, tem graça.

O vento frio gela meu rosto assim que alcanço a calçada. Há luzes piscando por todos os lados, em todas as árvores da avenida por onde passeio, solitária, pensando nos natais anteriores e no quanto fomos felizes com o pouco que tínhamos. Nada de 'Chester' ou peru à mesa. Um galeto com arroz, feijão e batata frita e a nossa ceia estava pronta. Não. Eu não quero voltar a ser pobre. Seria muita hipocrisia de minha parte, mas, eu queria Vincenzo mais próximo como na época em que ele estava doente. Deus me perdoe. Não quero que ele adoeça somente para se aproximar de mim. Não. Eu quero meu Vincenzo mais atento, mais dependente de mim como sou dele. É pedir demais!?
Extremamente emotiva, tento não chorar assim que entro em uma loja esportiva e ouço uma daquelas músicas de Natal que invadem nossas almas e a dilaceram.

Peço ao vendedor que me aguarde enquanto tento parar de chorar. 
- Essa música tocou no enterro do meu tio. - Minto. 
- Posso te ajudar em algo? - Apontando para a vitrine enfeitada com motivos natalinos, peço.
- Aquele ali. O maior número que tiver. Meu amigo é enorme. - Sorrio ao sair da loja com meu presente na sacola que jogo no banco traseiro do carro. O celular vibra no bolso do meu casaco. Vincenzo enviando sua décima nona mensagem:
'Fala comigo, amor. Onde vc está? Não me deixa louco'.
Chorando, eu rio. Já não nos falamos há dias. Beijo sua foto na tela de bloqueio e o desligo. Decidida, dirijo até a casa de Doc. Encontro Adele de óculos escuros...à noite.
- Que surpresa boa. - Diz ela num tom mais triste do que a música que ouvi na loja. De súbito, retiro seus óculos e, pergunto.
- Quando isso começou? 
- Ele não fez por querer, Adessa. - Com a voz embargando, sussurro.
- Eu sei.
Um abraço forte nos une por minutos. Quando, enfim, consigo falar, aviso.
- Nós vamos vencer juntas.
- O quê!? Algum campeonato!?
- Doc!!! - Salto em seus braços, agarrando-me em seu largo pescoço. Mergulhando em seu olhar doce jamais poderia imaginar que ele seria capaz de machucar alguém. Principalmente, Adele. Maldita doença que o fez dar um soco em seu rosto! - Que saudades!!!
- Pra mim???
- Sim, senhor! Experimente logo porque já vamos começar a correr amanhã! Vc precisa de exercícios físicos, 'parrudinho'! - Rindo como criança, ele se encanta com o par de tênis novos dentro da caixa. - São feitos para corrida.
- Eu não quero correr...- Resmunga ele fazendo biquinho. - Cansa muito e tá frio lá fora.
- Tenho meias novas e um casaco também! - Adele abre um sorriso triste quando brinco. - Aham! Não contavam com a minha astúcia!
- Amor...- Choraminga meu melhor amigo como se fosse criança. Mal o reconheço. O homem que me salvou de tantos perigos e da morte por tantas vezes, agora, é um ser perdido dentro de si mesmo. Ergo-me, repentinamente e, inspirando o ar frio vindo da janela da sala, contenho meu choro. - Eu não quero sair de casa. Tá frio.
- Vc precisa, meu velho. - Diz Adele, pacientemente. Acariciando seu rosto, ela o incentiva. - Se quiser, vou com vcs.
- Perfeito! - Vibro, histérica. - Vamos correr todos juntos! 
- Antoine vai também? Ela é minha melhor amiga. Ela precisa ir. - Antes de fugir e me trancar no banheiro e me debulhar sobre a pia com a torneira aberta, afirmo.
- Claro que vai! Amanhã, pela manhã, estaremos todos aqui! Inclusive, Matteo!
- Vou te esperar...- Diz ele recostado ao portão, agarrado aos tênis e às meias que lhe dei de presente. Piso fundo no acelerador antes de voltar a chorar quando ele me pede. - Não se esqueça de mim, Antoine...

- Tia, vc tá triste. O tio também. O que houve?
- Nada. - Minto. - Melhor colocar o peru dentro do forno. Ele demora pra assar.
- O que há com todos aqui? Vc, Vincenzo, Doc, Adele. Todos estão estranhos. É Natal...- Lágrimas brotam dos olhos de Cassie enquanto tento ser forte. -  Nosso primeiro Natal em família, com Sean, e todos parecem tristes. - Afastando-a do forno quente, esclareço. 
- Tá tudo certo. Doc não tá bem e vc já sabe disso. Vamos nos concentrar nele.
- Tia! Vc não fala com  Vincenzo desde que chegaram! Ele contou tudo pro Liam! Como posso ficar feliz se vc não estiver!?
- Ficando! Vc tem o Liam e o Sean, egoísta! - Brinco. - E ainda tem uma gatinha que acabou de parir quatro filhotes! O que mais quer da sua vida!?
- Alguém que acolha esses filhotes! - Lamenta ela. - Liam detesta gatos em casa!
- Ele tem razão. - Confesso. - Apesar de extremamente protetores num sentido espiritual, eles podem transmitir doenças, Cassie. Sean é ainda muito novo. Dá medo.
- Mas eu amo a mãe deles. Medusa sempre nos protegeu do Mal. Ela sabe onde ele habita.
- Medusa??? Para!!! Tá falando como eu, louca!!!
Rimos juntas debruçadas sobre a ilha em meio à sua cozinha 'gourmet' recém reformada. Após a segunda garrafa de vinho, ela confessa.
- Tia, tem algo de especial em Liam. Ele não é um humano normal. - Gargalho de jogar a cabeça para trás. Por pouco, não caio da banqueta alta junto à bancada. - Sério, tia!
- Não me diga!? E o que vc acha que ele é!?
- Não sei. - Seus olhinhos astutos me observam antes de perguntar. - Vc acredita em anjos vivendo na Terra? - Merda. Mesmo sorrindo eu, choro.
- Total. Eles existem e estão entre nós, Cassie. Talvez, seu Liam seja um deles e tenha 'caído' por vc.
- 'Caído'???
- Do céu, meu amor. Do céu...- Saltando do banco, cambaleante, abraço meu pequeno Matteo com suas mãozinhas sujas de purpurina vermelha. - De onde vc veio, meu amor? - Indago lavando suas mãos sob a água da pia do banheiro social. - Filho, o que vc fez?
- 'Miau dodói'.
- Miau? O gatinho?
- 'Miau dodói é mau. Ai ai ai!' - Mostrando-me seus braços, enxergo arranhões em sua pele fina e delicada e, imediatamente, procuro por antissépticos nos armários do imenso banheiro de Cassie. Algo em seu olhar me assusta. Ainda assim, sentindo-me sozinha, beijo sua cabecinha e peço. - Me ajudem.
- Posso ajudar, Dess? - Seu reflexo atrás de mim me emociona. Tento conter as saudades de seu toque e de seu companheirismo e respondo num sussurro.
- Não. Eu dou um jeito sozinha.
- Para com essa merda e me deixa voltar à sua vida, porra.
- Não...
- O que ele tem? - Indaga Vincenzo examinando  braços, pernas e rosto de Matteo que repete. 
- 'Miau dodói. Miau é mau'.
- Ele deve ter brincado com Medusa e ela o arranhou. Gatas que acabam de parir são agressivas. Dess? Olha  pra mim.
- Oi?
- Para de pensar merda e me ajuda a limpar essas feridas. Ok?
- Ok. - Com Matteo em seu colo, Vincenzo me pede perdão por tudo e implora para que eu volte a falar com ele. - Para de falar.
- Eu não suporto mais sua mudez, Dess. Se quiser se separar de mim por não me amar mais...
- Cala a boca! - Ordeno antes de beijar sua boca. - Não fala mais nada, merda!
- 'Merda'. - Repete Matteo.
- Parabéns por ensinar o primeiro palavrão ao seu filho, irresponsável. - Matteo gargalha em seu colo enquanto ele o deita na cama de hóspedes. Cercando-o com almofadas, Vincenzo se aproxima de mim, inseguro. Observando Matteo, temendo que ele caia da cama, sinto meu coração bater na garganta quando sua mão toca em meu rosto e sua voz vacilante pergunta. 
- Vc pensa em me deixar, Dess?
Antes de responder à pergunta de Vincenzo, Matteo desce da cama e corre atravessando a porta aberta. Rindo, nós dois o seguimos. Nossas mãos se unem durante o percurso. Um sorriso idiota brota em meu rosto até chegarmos à sala onde Antoine tenta acalmar Doc em mais uma de suas crises. Liam protege Sean e Cassie num canto da sala. No outro, a árvore de natal quase destruída me apavora. Doc está piorando a passos largos.
- Eu não sei quem é ela! - Grita Doc, apontando para Adele. - Tira ela daqui!
- Tio, eu vou te ajudar se vc me ajudar. - Amparada por Enrico, Antoine faz Doc se sentar no sofá da sala de estar. Longe de Doc, Adele chora. Cassie a abraça. Liam, confuso, segura Sean em seu colo. Antoine me procura com seus olhos sábios. Curvo meu tronco e a ouço sussurrar uma ordem.
- Ok. 
- O que ela disse, Dess?
- Música. - Respondo ainda desorientada. - Fica ao lado dela, amor. Doc é um bom homem, mas pode ser violento.
- Ok.
Minhas mãos trêmulas procuram em minha 'playlist' a música perfeita para trazer Doc de volta ao nosso mundo. Apontando o celular à torre de som, deixo a canção tocar seu coração. Aguardando por algo profundo e romântico, assim que ouço os primeiros acordes da canção, resmungo.
- Fala sério...
- É a música deles, mamãe. - Elucida Antoine, entusiasmada.


Como se nada houvesse acontecido, Doc se ergue do sofá e, requebrando os quadris, segue em direção a Adele que, devastada e envergonhada pela atitude violenta de seu marido, agora, aceita seu convite para dançar. 
A Música tem o dom de trazer ao Presente os que sofrem com essa doença. A canção termina. 
Adele, ao meu lado, implora.
- Peça um 'uber', por favor. Eu preciso medicar Doc. Eu não suporto mais tanto sofrimento.
- Espere pela ceia, por favor. Ele não vai surtar novamente. Prometo.
- Por vc, eu fico. - Antoine e Cassie ajeitam a árvore de Natal enquanto observo se o peru já está no ponto. Assusto-me com Vincenzo, de pé, em meio à cozinha. Da sala, ouço a mesma canção triste e comovente  que ouvira na loja de calçados. 
- Coisas de Antoine. - Comenta ele, encabulado. - Ela me pediu pra vir aqui e desfazer a bagunça que eu fiz. - Com as mãos escondidas nas costas, ele conclui. - E, aqui estou. - Limpando meu rosto molhado por lágrimas com um pano de prato limpo, indago.
- E como pretende fazer isso? O que tá escondendo aí atrás? - Vindo em minha direção, com os olhos marejados, ele pergunta.
- Vc é capaz de perdoar um idiota insensível, burro, cego que não enxerga a mulher maravilhosa que ainda tem ao seu lado?
- Cadê ele? - Brinco. - Por que 'ainda'?
- Tenho medo de vc me abandonar, Dess. Eu não vou suportar viver sem vc.
- Isso é um problema porque, agora, vc já pode morrer.
- Morreria por vc, Dess. Me perdoa?
- Essa música não me deixa parar de chorar...
- Obrigado por cuidar de mim, meu grande amor. - Diz ele contra meus lábios com gosto de sal. Com um dos joelhos no chão, ele me surpreende ao me mostrar o que escondia entre as mãos. 
- Vincenzo. - Encantada, argumento. - Nós já somos casados. Vc não vai me pedir pela segunda vez, né? - Abrindo a caixinha em  veludo vermelho, um anel reluz sob a luz da luminária. - Isso é...?
- O diamante verdadeiro que eu não pude te dar em nosso casamento, amor. Me aceita como seu marido e companheiro pelo resto de nossas vidas? - Assinto com a cabeça por não conseguir falar de tanta emoção. Deslizando o anel em meu dedo, ele me faz outro pedido ainda mais fascinante. - Quer ser minha parceira no concurso de dança? Não encontrei ninguém melhor por aí. - Ele ri enquanto choro, na ponta dos pés, em seu ombro. - Isso é um 'sim'?
- Sim...- Um beijo sela nossa reconciliação. Feliz, beijo todas as partes de seu rosto lindo e sussurro. - Te amo pra sempre. 
Abraçado a mim, ele me faz girar de braços abertos. 
Mais um daqueles momentos que levarei comigo pela Eternidade.

De súbito, o encanto se desfaz. O grito de Cassie me faz estremecer. Vincenzo me puxa pela mão até a sala onde ela, aos prantos, agarrada a Liam, repete.
- Não é justo. Não é justo. Era tão pequeno e indefeso...
- O que houve!? - Pergunto com um aperto no peito. Cassie! O que houve!? - Liam expressando preocupação, responde.
- Nos fundos da casa.

Corro até lá. Vincenzo me segue com Matteo em seu colo. Antoine e Enrico nos aguardam com olhares suspeitos. Passo por eles e o que vejo me faz gelar o sangue.
Ao lado de Medusa, dentro de uma meia de pendurar, decorada com rostinhos de Papai Noel e purpurina vermelha, um dos quatro filhotes, está morto.
- Não toca, Dess. - Diz Vincenzo, estranhamente constrangido. - Deixa comigo. - Rejeitado pela mãe, o pobre gatinho é recolhido por Vincenzo que o leva até o quintal e, cavando com as próprias mãos, nervosamente, um buraco na terra úmida, enterra o gato e lava as mãos na mangueira com água gelada. - Acabou. - Um olhar a Antoine e Enrico e ele alerta. - Conversamos em casa.

De volta à sala, Cassie nos pede desculpas por seu descontrole. 
- Não vamos estragar o nosso Natal. Isso acontece. Eu li que mães rejeitam filhotes. O pobrezinho morreu de fome. - Abraçada a Liam, ela volta a chorar com Sean em seu colo quando Doc nos impacta ao declarar.
- Fui eu. Detesto gatos. Parecem crianças chorando à noite. Me dão medo.


Deixamos Doc e Adele em casa. Despedaçada, ela me abraça e me pede perdão.
- Ainda não acabou, amiga. - Sem forças, afirmo. - Vamos vencer essa doença e trazer Doc de volta.

No carro, um silêncio profundo e incômodo. Nem mesmo Antoine tem ânimo para falar. Assim que estacionamos o carro em nossa garagem, Matteo, em meu colo, parte o silêncio ao meio ao balbuciar, sorrindo.
- 'Miau dodói mau acabou'.
Abraçada a ele, rezo. 
Longe de todos, penso que somente meu filho e eu conhecemos a verdade.


Continua...




CAPÍTULO 38 - DOR

  Contraditoriamente aos últimos acontecimentos, eu me apego ainda mais ao meu filho. Recuso-me a acreditar na versão de Antoine ouvida por ...