- Sweet tinha cauda e chifres?
- Isso. E Vincenzo tinha asas enormes grudadas nas costas. Não ria.
- Perdão. - Pede-me Aiden sorrindo. - É que a sua versão dos fatos é bastante interessante.
- O que tem de tão interessante em saber que eu fui traída por minha melhor amiga e pelo homem que amo!?
- Vc ainda o ama?
- Sim. - Assumo, baixando a cabeça. - Mas vai passar. Tudo passa.
- Espero que sim.
- Por quê?
- Porque agora eu...
- Fala! - Ordeno diante de sua hesitação. - Vc o quê?
- Vc e eu...
- Vc é tímido. - Constato sorrindo. - Que fofo.
- Não é timidez. É medo de ser rejeitado novamente.
- Eu nunca te rejeitei.
- Mas não me ama.
- Isso leva tempo e convivência, né?
- Desde quando vc conviveu com Vincenzo pra amar o cara desse jeito?
- Não sei...- Suspiro deitando-me no sofá. - É estranho.
- Ele está sempre distante e, quando vc está prestes a seguir adiante, ele retorna e te enche de esperanças.
- Eu sei...- Exalo. - Eu vou mudar. Eu preciso.
- Eu te ajudo.
- Como!?
- Calma. Não vou te tocar. Prometo. - Sério??? De novo??? - Quer dar uma volta comigo? - Volta??? - Sim ou não?
- Aonde!? Eu tô de pijama, ordinário!
- Tá bonitinha. - Comenta ele enquanto me observa. Algo que me excita nele é o sorriso que ele esconde. - Se quiser, pode se trocar.
- Não quero sair. Antoine tá dormindo.
- Eu só queria ajudar.
- Não faz essa cara de coitado. - Aviso, esticando-me no sofá, fingindo indiferença diante de seu olhar incisivo. - Quanto vc acha que deve custar essa poltrona onde tá sentado? - Um riso curto e ele comenta.
- Hold your horses, baby!
- Oiii??? Não entendi!!! - Revirando os olhos, ele esclarece.
- É uma gíria irlandesa. Algo como "segura a tua onda" ou "vai com calma".
- Aaaah...tá. - Deito-me de bruços, elevando as pernas. Meio que sensualizando, comento. - Gostei. "Segura a tua onda" é muito antigo. Tu entregou a tua idade agora.
- Vc é boba. - Diz ele, enfim, gargalhando. - Eu não preciso esconder minha idade.
- Não? Quantos anos vc tem?
- Sou mais velho do que vc pode imaginar...
- Aaaah...tá. - Engulo em seco, arrepiando-me com o tom sombrio de sua voz. Pigarreio e desconverso. - O que quis dizer com a coisa do cavalo?
- Hold your horses?
- Isso. Já te disse que gosto de seu sotaque?
- Já.
- Diz!
- Vc não vai precisar vender nada aqui. Ok?
- Sério? - Ironizo. - E como vou pagar as contas? Qual a parte de 'eu fui demitida do California' vc não entendeu?
- A parte em que vc pode contar comigo pra tudo daqui por diante. - Mordo o canto da boca e exalo. - É sério. Vc ainda não entendeu o que sinto por vc?
- Por que tá rindo?
- Vc está ruborizando e, como vc mesma diria, isso é fofo. - Num rompante infantil, cubro meu rosto com uma das almofadas que abafam um riso alto, fruto do meu descontrole. Ele pacientemente me aguarda enquanto tento me recompor, aos poucos. - Adessa, olha pra mim.
- Não quero. - Sussurro contra a almofada onde cravo meus dedos. - Não suporto mais lutar.
- Não lute. Entregue-se. - Sussurra ele, ajoelhado ao meu lado. - Deixa rolar...
- Não posso. - Sento-me, repentinamente. Arfando, confesso. - Eu tenho uma doença e não tenho tomado os medicamentos. - Recuando, ele se senta sobre o tapete e, abraçando os joelhos, indaga, curioso.
- Que doença? Eu posso te ajudar?
- Não! - Rio histericamente. - Não mesmo! Vc só me deixaria pior!
- Como!?
- Não sorria assim. - Ronrono. - Piora tudo.
- Tudo o quê?
- Se afasta, Aiden. Chega por hoje. Eu quero dormir.
- Não seja estúpida.
- Perdão...- Lamento. - Tem muita coisa na minha cabeça. Mais do que eu me lembro e isso me incomoda muito.
- Imagino que sim. - Diz ele de volta à poltrona. Expressando seriedade, ele pergunta. - Como estão os preparativos para a festa de Antoine?
- Um desastre. - Confesso cruzando as pernas. - Eu aceitei a grana de Vincenzo pensando ser de Sweet. Vou devolver tudo e volto a ficar zerada.
- O que falta, baby?
- Vc parar de me chamar de 'baby'. Eu detesto isso.
- Sempre foi assim...
- Aiden...- Alerto. Sorrindo, ele concorda.
- Ok. Amanhã eu passo aqui e levo vc e Antoine às compras. Que tal?
- Que compras???
- Para a festa!
- Não, Aiden. Se eu não posso pagar pela festa, não haverá festa.
- E Antoine será punida?
- Não...- Choramingo, desolada. - Ela tem falado tanto nessa festa. Não é justo que por minha causa, ela fique triste.
- Já pensou em retomar sua vida como...?
- Nunca! - Revolto-me. - Minha vida como garota de programa acabou! Nada de sexo! Eu preciso me curar! Antoine depende de mim!
- Entendi. Então sua doença tem a ver com sexo.
- Ninfomania...
- Transtorno de Desejo Sexual Hiperativo.
- Isso. Eu ainda não estou curada. Eu sequer comecei o tratamento. Eu simplesmente larguei tudo porque Antoine me fortaleceu, mas, agora...
- Agora...- Incentiva-me ele sentando-se ao meu lado no sofá. - Diz.
- Agora eu já não me sinto tão forte assim. A traição de Vincenzo, a falta de grana, a pressão sobre as minhas costas...
- Tudo te leva a querer trepar a fim de fugir dos problemas. - Sufoco um soluço antes de assentir com a cabeça. Em silêncio, ouço sua voz aveludada soprar em meu ouvido. - E vc acha que se trepar com algum homem, vai perder seu frágil equilíbrio?
- Sim.
- Vc tem dormido bem?
- Não entendi...- De olhos fechados, permito que suas mãos massageiem meus ombros tensos. - Dormido?
- Sim. Tem sentido prazer durante os sonhos?
- Sim...- Respondo num gemido. - Na noite...
- Continue.
- Na noite em que eu desliguei o celular...
- E me deixou falando sozinho.
- Não...- Sorrio, relaxada. Suas mãos intensificam a massagem. Meu corpo se excita. Seus dedos estão em meus cabelos, sua boca quente roça em meu pescoço quando ele me incita a falar. - Eu não me lembro. Eu não sei se dormi ou ...
- Vc gostou?
- Sim. Foi gostoso.
- Sonhou com alguém?
- Não. Não foi um sonho. Foi tão real...
- Ele te perturba?
- Sim. Eu não posso permitir que ele retorne.
- Ele tem nome?
- Sim.
- Diga seu nome...
- Não! - Desperto num grito enquanto ele recua. Recostado ao espaldar do sofá, ele me observa, intrigado. - Perdão. Ele me dá medo. Não posso falar em seu nome. É quase que uma invocação. Entende?
- De onde vc o conhece?
- Quem?
- O homem que te fodeu no sonho.
- Não era um homem.
- Um íncubo?
- Vc é direto.
- Sou. Responda.
- Não sei. - Encolho-me no sofá. Ele me observa sem mover um músculo facial. - Parecia mais com um demônio. Não quero me lembrar dessa fase de minha vida. Acabou. Vincenzo o expulsou.
- Tem certeza?
- Acho que sim. Ele não voltou desde então.
- De quem estamos falando?
- De um demônio...- Murmuro. - Um demônio devasso que me machucou por muito tempo.
- Machucou? Tem certeza?
- Não me olhe como se eu gostasse do que ele me fazia.
- Não gostava?
- Aiden!
- Adessa...- Seus olhos incisivos não me permitem mentir, logo, assumo.
- Gostava...
- Vc sentia prazer com o tal demônio?
- Acho que sim. Houve uma época em que éramos somente ele e eu. Não havia Vincenzo, Antoine. Vc acredita em demônios?
- Sim. E vc?
- Eu o vi, Aiden. Ele é real. Não me lembro de como me conectei a ele. Lembro-me de ter me unido a um bando de mulheres malucas que, supostamente, me ajudariam a expulsá-lo de minha vida, mas não funcionou. Fiquei presa a ele por meses. Meses terríveis. Vincenzo me achou e me libertou dele. Talvez, seja por isso, que eu o ame tanto.
- Entendo. - Diz ele, contrariado. - Vincenzo. Sempre Vincenzo. Vc o aceitaria de volta?
- Vincenzo???
- Não. O demônio.
- Não. De maneira alguma. Ele me adoeceu. Sob o seu poder, eu perdi o meu controle. Trepava com todos, sem distinção, incessantemente. Como posso querer algo assim em minha vida novamente? Quero viver em paz.
- E se vc disser o nome dele, vc o estará invocando.
- Isso...
- Entendo. - Replica ele, sorrindo. Erguendo-se do sofá, ele me beija na testa e se despede. Abrindo a porta da sala, ele acena para mim antes de sumir no corredor. Abismada com sua rapidez, eu o sigo até o elevador vazio. Corro até as escadas. Chamo por seu nome. Ouço o eco de minha voz. O celular toca na sala. Corro de volta ao apartamento. Um arrepio percorre meu corpo, agora, tenso. Arquejante, leio a mensagem, estranhando seu súbito desaparecimento.
"Tenha bons sonhos, baby e, nele, se deixe levar..."
Naquela noite, ao lado de Antoine, eu me deito. Leio algumas páginas de um livro qualquer sem memorizar uma letra sequer. As imagens de Aiden, Sweet e Vincenzo se revezam em minha mente exausta de tanto pensar. Um sopro de ar quente invade o quarto, esvoaçando a cortina em 'voil'. Fecho os olhos e inspiro seu cheiro forte. Sonolenta, aviso num sussurro.
- Não me toque...
Movida pelo medo, abraço Antoine. O forte cheiro se desvanece. Talvez, Antoine afaste o ser lascivo de mim. Talvez, por isso, ela seja tão especial.
Pela manhã, antes de Antoine acordar, mergulho em minha banheira e, após meses, eu me toco até gozar. Uma recaída e me deixo levar pela luxúria. O desejo de me expor retorna. Imediatamente, gravo em meu celular meu corpo nu e meus dedos esfregando minhas partes íntimas. Penso em Aiden e em sua boca carnuda quando um outro orgasmo acontece. Impulsiva, envio o vídeo a Aiden que o recebe com uma irritante frieza.
"Obrigado. Sinto-me lisonjeado por te ver assim tão livre, leve, solta. É assim que gosto de te ver, baby".
Frustrada com sua resposta seca, penso em enviar uma resposta ousada, mas desisto. Qualquer palavra escrita e corro o risco de uma recaída desastrosa.
Meus dedos inquietos digitam o nome do site de conteúdo adulto onde eu costumava ser conhecida como 'A Rainha da Putaria'. Prestes a postar o vídeo, penso em Antoine.
Murcho, deletando o meu recém criado perfil.
Quando isso vai passar?
Eu quero ser normal.
Dentro do carro, aguardo, impacientemente, por Antoine. Observo cada criança que cruza o portão de saída de seu colégio contendo minha ânsia em estrangular cada um deles. Sorridente e saltitante, minha princesa surge entre a turba ensandecida. Abro a porta do carona do meu carro, próximo item a ser vendido, e a deixo entrar. Eu a puxo para dentro do carro pela mochila maior do que ela enquanto me divirto, ouvindo sua gargalhada inocente.
- Mamãe!!! - Socorre-me Antoine. - A senhora tá bem?
Observo os traços finos de Luka enquanto ele se diverte ao lado de Antoine. Sentados à minha frente, ambos devoram uma pizza tamanho 'família' sabor muçarela quando, subitamente, Antoine me faz arfar com sua pergunta.
- O Luka pode ir à minha festa, mamãe!?
- Claro! - Respondo sem pensar. Apoiando meus cotovelos sobre a mesa, forço um sorriso ao afirmar. - Claro que pode!
- Já temos muitos convidados, Luka!
- Temos??? - Indago com os olhos estatelados. - Quem???
A cada um dos trinta nomes que Antoine vai enumerando, minhas expressões faciais vão do espanto ao desânimo, passando ao desespero ao perguntar.
- Tem certeza de que todos irão?
- Sim. E ainda tem a tia Sweet, tio Doc e o meu pai.
- Não mesmo! - Protesto.
- Vc tem pai? - Indaga Luka sugando o refrigerante pelo canudinho no canto da boca. - Eu não.
- Tadinho...- Suspira Antoine. - Eu perguntei ao meu tio se ele queria ser meu pai e ele aceitou. Vc tem um tio legal? Talvez ele queira ser seu pai.
- Não tenho não. Só tenho a minha mãe. - Responde ele, amuado.
- Seu pai morreu? - Pergunto numa tentativa de mudar o rumo da conversa. Empurrando o refrigerante sobre a mesa, ele refuta, abatido.
- Não. Ele abandonou a gente. Disse que eu não era o filho que ele queria. Minha mãe me diz isso todos os dias...
- Sua mãe não sabe o que fala e seu pai é um cara idiota. Olha pra mim, Luka. - Peço com gentileza. Olhando em seus olhos, afirmo. - Vc é bom menino. É estudioso, gentil...bonito.
- Bonito!? Eu, tia!? Eu sou gordo, sem jeito, atrapalhado.
- Coisas da puberdade, meu amor. É só uma fase. Tudo isso vai passar. Em breve, vc terá o que corpo que deseja e será feliz com ele. Seja como ele for. O que importa de verdade é o que a gente carrega aqui e aqui. - Aponto o indicador ao coração e à cabeça. - Confia em mim. Essa fase vai passar e, enquanto não passa. Reaja. Não deixe que eles te perturbem. Use a sua força bruta. Seus socos. Sua raiva. Ataque antes de apanhar.
- Ele são muitos, tia.
- Nós também. Estaremos juntos, Luka. Agora, vc faz parte de nossa família. Qualquer problema, liga pra mim. Ok? - Pego seu celular sobre a mesa e digito meu número. - Liga pra mim se esses idiotas te incomodarem novamente.
- Duvido muito. Depois do que vc fez! Foi fantástico! Parecia uma deusa saindo de um dos meus jogos, com superpoderes sobrenaturais!
- Minha mãe é uma feiticeira do bem! - Afirma Antoine, orgulhosa. - Ela luta contra coisas ruins o tempo todo. Não é, mãe?
- Exagero, filho. - Só que não...- Eu detesto covardia. Liga pra mim. Ok? E cuidado com o homem do banheiro.
- Vc 'viu ele'?
- Sim...
- É meu amigo.
- Não é não. - Refuto, preocupada. - Ele não é um cara legal. Acredite em mim. Não o chame mais. Por favor.
- É melhor fazer o que ela fala. - Sugere Antoine alheia ao assunto. - Ela é uma bruxa poderosa...- Diz ela com a voz fantasmagórica. Rindo, ele concorda.
- Tá bom, tia. Eu não vou mais brincar com ele.
- Eu me preocupo com vc.
- Mas eu xinguei a sua filha.
- Sei que não foi por mal. Foi?
- Não. Eu sempre quis ser amigo dela. Ela é super diferente de todos.
- Eu sei. - Assumo, orgulhosa. - Ela é um anjo.
- Sou?
- É. - Afirmo, sorrindo. Voltando meu olhar compassivo ao menino arrependido, eu peço. - Não dê ouvidos aos que te zoam na Internet.
- Como sabe, tia?
- Não importa. - Minha mão pousa sobre a dele quando enfatizo. - E, principalmente, pare de falar com aquela coisa feia que te pede para se machucar enquanto toma banho. - Mostrando-lhe meu pulso, intencionalmente engrosso o tom da voz ao perguntar. - Entende o que eu digo?
- Sim...
Antoine o abraça enquanto ele chora. Enxugo suas lágrimas com guardanapos de papel quando ele me emociona ao declarar.
- Nunca me trataram tão bem como vcs, tia. - A voz embarga quando refuto.
- Porque são uns babacas. De agora em diante, considere-se nosso amigo. Quando quiser, apareça lá em casa. - Enquanto eu tenho uma...- E brinque com Antoine. Vai ser legal.
- Vai sim! Mas antes vai ter a festa! - Puta que pariu. Ela não se esquece. - Vc vai, né?
- Claro!!!
Rimos juntos. Eles, de contentamento. Eu, por puro desespero.
Ainda rindo, recebo a conta do garçom que me sorri, de volta. O irritante pensamento de que, a cada conta paga, menos dinheiro me sobra, atormenta a minha cabeça. Procuro por minha carteira dentro de minha bolsa a tiracolo e não a encontro.
- Um momento, por favor. - Peço ao garçom, impaciente ao me ver derrubar tudo o que há dentro da bolsa sobre a mesa. - Ela estava aqui. Ou será que deixei na mochila?
- Calma, tia. Vc vai achar.
- Vou sim, Luka. - Replico, nervosa. Sorrio ao garçom que já não me corresponde. - Posso ir até o meu carro? Acho que deixei minha carteira lá dentro.
- Não pode, senhora. - Diz ele, lançando-me um olhar de desprezo. - Daqui a senhora não pode sair antes de pagar.
- Vcs costumavam me tratar muito bem quanto eu trazia novos clientes até esse restaurante. O que mudou?
- Nada, senhora. Quem não paga, não sai até pagar. - Ofendida e emotiva, peço.
- Não fale assim comigo diante da minha filha. Seja educado. Vc já foi mais sensível. Terá sido pelas gordas gorjetas que eu te dava?
- Senhora...- Revira eles os olhos impacientes. - Tenho mais o que fazer. - Humilhada, sem saber o que fazer, prendo o choro ao entregar minha identidade a ele e prometer que retornarei.
- Meu carro tá aqui na frente...
- Não insista ou vou chamar o gerente.
Subitamente, ele surge. Engulo meu choro ao vê-lo apertar o pescoço do garçom e, num tom de voz baixo, ameaçar.
- É melhor se desculpar com essa linda jovem antes de perder seu emprego. Sem essa merdinha de salário, vc não sustenta sua mulher vulgar que se deita com seu melhor amigo. - Impactada por sua chegada repentina, imobilizo-me enquanto ele prossegue aos ouvidos do garçom que se treme dos pés à cabeça. - Se correr, ainda os pega na cama, idiota. Vai! Mas, antes, peça desculpas. - Engolindo o orgulho e o medo, o garçom me pede desculpas. Parecendo atormentado, ele deixa a bandeja cair no chão e, num gesto tresloucado, foge do restaurante em direção à rua.
- Gente doida, né?
- O que disse a ele?
- Verdades...- Diz Aiden sentando-se ao meu lado. Tomando a conta de minhas mãos trêmulas, ele comenta. - Eu pago. Detesto gente mal educada. E vc, Antoine?
- Eu também, tio! - Saltando em seu colo, ela o beija no rosto e, apresentando seu novo amiguinho, ela comenta, eufórica. - Ele também vai à minha festa, tio!
- Que bom. - Ainda em choque, eu o vejo sorrir para mim e argumentar. - Por que fugiu de nosso compromisso? Vamos às compras? Melhor a gente se apressar. Faltam poucos dias, não é?
- Woohoo!!! - Vibra Antoine. - Posso levar meu amiguinho, tio?
- Antoine, ele tem horário pra chegar em casa.
- Tenho não, tia. Minha mãe não se importa comigo. Posso ir? Faz tempo que não passeio.
- Pode sim. - Consente Aiden. - Vamos nos divertir.
Aiden se mostrara extremamente encantador no relacionamento com as crianças. Um lado que eu desconhecia por completo. Seu interesse em Luka chegou a me deixar intrigada. Não. Não havia nenhum resquício de malícia ou desejo sexual. Aiden conversara com ele sobre seus problemas e lhe prometera dar um fim à sua dor até que eu os perdesse de vista no shopping.
- Sobre o que conversaram?
- Nada. Coisa de adolescente.
- Aiden! Não me faz de boba!
- Não estou.
- O que fez com ele quando sumiram???
- Eu não sou pedófilo, se é o que está insinuando. - Assevera ele, ofendido. - Vc não me conhece. Creio que nunca me conheceu. - Completamente envergonhada, peço desculpas.
- Eu jamais pensaria isso de vc. É que eu tô confusa. Vcs sumiram e nos deixaram aqui. Antoine queria saber o que havia acontecido com seu amigo.
- Eu conversei com ele. Coisas de homens.
- Coisas de homens!? Ele é um menino!
- Vc me entendeu!
- Não gosto desse olhar. - Assumo. - Dá medo.
- Vc quer que eu te olhe com ternura quando me acusa de um crime tão grave!?
- Eu não te acusei...
- Mas pensou!
- Desculpa, vai...
- Ok. - Diz ele, ao volante, diante do semáforo. Um sorriso se desenha em seu rosto quando volto ao assunto.
- Que tipo de conversa vcs tiveram? - Bufando, ele responde.
- De homens. Entendeu ou preciso desenhar?
- Aiden, não brinca comigo! Esse menino tem um histórico absurdo de sofrimento...
- Como sabe? Vc o conheceu hoje. Não foi?
- Sim! E daí!? Aiden! - Aumento o tom de voz quando ele ameaça abrir a porta de seu carro. Voltando-se para mim, no banco do carona, ele me pergunta num tom irônico.
- Posso abrir a sua porta ou vai brigar comigo por isso também?
Em silêncio, eu o observo caminhar do lado de fora, pelo vidro dianteiro, enquanto me pergunto como ele paga por tanto luxo. Seu carro é super mega mais moderno do que o meu. Suas roupas são de grife e, pelo que eu saiba, ele não passa de um coreógrafo que um dia encontrei, por acaso. Um coreógrafo da Juilliard School, mas, ainda assim, um coreógrafo. Um coreógrafo que não tem trabalhado no momento! Não que eu saiba! Ele, certamente, deve ter outra fonte de renda. Abrindo a porta do meu lado, ele me estende o braço e, num brusco solavanco, me puxa.
- Jamais pense isso de mim. - Rosna ele encarando-me. - Eu nunca faria mal a uma criança. Isso é doentio. - Retraída, eu me calo. Antoine, em seu colo, diz estar com fome. Jesus. Seu estômago não tem fundo. - Isso não é problema, meu anjo. O que deseja comer?
- Cachorro-quente na praia.
- Sua vontade é uma ordem. - Gosto da maneira carinhosa como ele a trata enquanto, após estacionar o carro na orla, ele nos faz sentar em cadeiras de um quiosque e, com as duas mãos ocupadas, nos traz hot dogs suculentos. - Assim está bom?
- Supimpa, tio! - Alega ela, abocanhando o pão sem evitar que o molho se espalhe pelos cantos de sua boca. Rindo, ela comenta. - Esse é dos grandes. Né, mãe?
- É sim. Vai com calma.
- Por que o Luka não veio, tio?
- Ele precisava chegar antes de sua mãe em casa. Caso contrário, ficaria de castigo.
- Por que ele ficou com medo de vc, tio?
- Medo??? De onde tirou isso, Antoine???
- Eu ouvi, mãe...- Lívido, Aiden apoia os cotovelos na frágil mesa dobrável e, encarando-a, indaga num tom de voz sombrio.
- Ouviu como? Estávamos distantes de vc. - Impetuosa, de boca cheia, ela fixa seus olhinhos nos dele ao explicar.
- Eu ouço de longe, tio. Meu pai me ensinou.
- Que pai!?
- Calma, Aiden. Ela é só uma criança.
- Estou calmo, baby. - Afirma ele ainda encarando Antoine que lhe sorri com mostarda nos cantos da boca. - Eu só não sabia que Antoine tinha um pai.
- Tecnicamente, ela não tem. - Resmungo, receosa. Há algo em Aiden que me assusta. - Coisa de criança. Vc não vai comer o seu? Aiden! - Enfim, com um olhar distante, ele se volta para mim enquanto repito a pergunta. - Não vai comer o seu hot dog?
- Não. - Responde-me ele, tristonho. - Pode comer o meu.
- Tio, vc pode trazer o Luka aqui algum dia?
- Posso. Claro. - Forçando um sorriso, ele comenta. - Seria legal. Da próxima vez, ele vem com a gente.
- Jura?
- Prometo.
Um promessa que ele, infelizmente, não poderia cumprir.
- Por que fez questão de deixá-lo na entrada de seu edifício? Eu poderia ter ido. Afinal, ele é amigo da minha filha.
- Sua e de Vincenzo. Suponho. - Rosna ele.
- Não fica assim. - Sorrio ao pousar minha mão sobre a dele. - Foi uma bobagem. Ela pediu. Ele aceitou. Nada de oficial. Coisa de criança.
- Antoine não é uma criança normal. Vc sabe disso.
- E daí? Quem escolhe o pai dela sou eu.
- E vc já o escolheu? - Uma pausa para engolir uma mistura nada saudável de pão, salsicha, maionese, batata palha, palmitos e catchup e, então, respondo.
- Não. Minha filha não precisa de pai.
- Preciso sim. - Refuta ela, indignada. - Meu tio Vincenzo é meu pai.
- Filha! O que eu te ensinei sobre não se meter em conversas de adultos!?
- Desculpa, mãe. Tio...- Choraminga ela acariciando com o dorso de sua mãozinha, o rosto de Aiden. - Eu te amo. Não fica triste não. Vc é o meu segundo pai. Tá bom assim?
- Antoine! - Repreendo-a sem deixar de notar os olhos marejados de Aiden. - Dá pra comer sem falar!?
- Caraca. Eu só queria...
- Não queira! Coma! - Desconcertado, Aiden belisca batatas fritas em um prato sobre a mesa. Casais passeiam pela orla sob a luz da lua. Fixo meus olhos no semáforo. A luz vermelha me distrai...por segundos. Por segundos, penso nele. Onde ele deve estar agora? - Vincenzo?
- Não! - Protesta Aiden, cobrindo o rosto com suas mãos grandes, as artérias e vasos à mostra em seus antebraços másculos. - Ele não está aqui, baby. Sou eu.
- Perdão...
- Vc sempre me machuca e depois pede perdão.
- Pior se não pedisse, né!?
- É. - Ainda intrigada e absolutamente inconveniente, volto a interrogá-lo.
- Por que seu súbito interesse no menino!? Ele é fraco e triste!
- Por isso mesmo! - Rebate ele, impaciente, sentado em sua cadeira minúscula. - Meninos assim precisam de uma figura masculina que os ouçam! For God's Sake! Tudo o que faço é ruim!? É diabólico!? Maligno!?
- Não...- Expiro, de olhos fechados. - Tô exagerando. Desculpa. Tô com muita coisa na cabeça.
- Eu vou te ajudar. - Sussurra ele. - Não tenha medo.
- Obrigada. - Sorrio após gastar dezenas de guardanapos e, enfim, me livrar dos resquícios das centenas de calorias que acabo de ingerir. - Um sorriso no canto de sua boca e ele declara. - Além disso, tenho a certeza de que algo de muito bom vai acontecer na vida de Luka. - Pensando alto, ele deixa escapar. - Ele é o tipo de criança que nos interessa.
- Interessa a quem!? - Indago, desconfiada, prestes a me erguer da cadeira.
- Aos meus amigos psiquiatras. Vai dar tudo certo, baby.
- Por que eu não sinto o mesmo?
- Porque é boba. Vamos dar um passeio?
- Adoraria mergulhar no mar...
- E por que não!?
- Vai molhar o banco do seu carro. Eu não trouxe biquini. - Gargalhando, ele responde ao se levantar.
- Que molhe! Ou mergulhe nua! Ainda me lembro do vídeo...- Ruborizo diante de seu olhar lascivo quando Antoine fatia o clima de sedução, saltando em seus braços e pergunta.
- Posso ir também, tio!?
- Claro que sim, 'My Irish Angel'.
- O que é isso, tio?
- Vc é meu anjo. Meu anjo irlandês.
- Gostei! - Exclama ela enterrando os pés na areia. Eu a sigo. Aiden fica para trás enquanto corremos, eufóricas, até a beira do mar.
- Vem! - Convido-o num grito. Meus cabelos esvoaçam tapando meus olhos e quase não consigo ver seu sorriso tímido. Permito que o vento levante a saia de meu vestido curto enquanto o vejo mover a cabeça, lentamente. Arfando, digo algo patético. - Tá quentinha! Vem!
Ele se anima e corre em minha direção. Quase abro meus braços e me deixo abraçar por ele.
Quase.
A brisa fresca do mar leva para longe a minha alegria quando os vejo de longe. Ao meu lado, Aiden me pergunta se estou bem. Solto um gemido de dor levando a mão ao meu coração.
- O que há, baby? Olha pra mim.
- Não. Isso não. - Lamento, de olhos fechados.
- Não vai mergulhar?
- São eles...- Murmuro angustiada. Aponto meu indicador em direção à calçada enquanto Antoine corre de um lado ao outro, fugindo das ondas. Aiden percebe meu desespero ao me abraçar com força e sussurrar em meus ouvidos.
- Mantenha-se calma. Não reaja. Finja neutralidade.
- Eu não vou conseguir...
- Adessa! Eu estou contigo agora! Entendeu?
- Sim...- Suspiro, devastada. Abro os olhos marejados e, encarando Aiden, suplico. - Não deixa eu me descontrolar. Antoine não merece...
- Estamos juntos. Ok? Confia em mim. - Aperto sua mão com a minha e, vacilante, concordo. - Controle seus impulsos e não dê o show que ela deseja.
- Ok.
Dói muito. Dói muito ver os dois juntos. Um ao lado do outro, Vincenzo e Sweet passeiam na orla conversando animadamente. Quero fugir dali, mas Aiden me prende à areia. De costas para ambos, tento não ser vista quando ouço a voz estridente de Sweet chamar por meu nome.
- Merda.
- Mantenha a calma. - Diz Aiden diante de mim. Ainda de costas para Sweet, movo os lábios e imploro.
- Me ajuda. - Um sorriso cínico e Aiden acena para Sweet. Quero rir e chorar ao mesmo tempo. Sweet se aproxima e antes de ser tocada por ela, eu me viro, dramaticamente. Afetando indiferença, pergunto. - O que faz aqui?
- O que vc faz aqui!? - Pergunta-me, incisivamente, olhando Aiden com seus olhos de cobiça. - Desde quando vcs dois...?
- Somos amigos. - Responde Aiden segurando-me pela cintura. Um outro sorriso e ele insinua. - Ainda...
Uma de suas insuportáveis gargalhadas e Sweet abraça Antoine que a polvilha de areia. Contendo-me para não golpear Sweet com minha perna direita e arremessá-la à distância, solto um riso histérico enquanto a vejo se limpar, irritada.
- Odeio areia. - Resmunga ela. - Vc sabe disso.
- Sei! - Replica Antoine. - Vc é cheia de frescura!
- Antoine! - Eu a repreendo, rindo por dentro. - O que eu te ensinei sobre...?
- A senhora falou isso, mãe! - Sufoco um soluço, mas não a desminto.
- Falou??? - Indaga Sweet, indignada.
- Sim! - Confirma Antoine antes de correr em direção a Vincenzo. - Tia Sweet é cheia de frescura! - Repete ela antes de abraçá-lo e confessar. - Tô com saudades!
- Eu também. - Assume ele ao me olhar com os olhos azuis e cheios de culpa. - Eu ia te ver, mas...
- Não foi! - Retruco. - Vc sempre está indo, mas não vai! Um homem cheio de atitudes! - Ironizo. Aiden aperta minha mão, então me contenho. Num tom menos agressivo, concluo. - Um homem e tanto! É um tipo desses que vc merece, Sweet! Parabéns!
- Não é o que vc pensa. - Defende-se ele.
- Eu não penso nada, cara! Faça da sua vida o que quiser!
- Dess...
- Boa noite pra vc também, Vincenzo.
- Aiden...- Rosna Vincenzo, visivelmente perturbado. - Vc não desiste, né?
- Nunca. E vc?
- Nunca.
- Ui. Que meda. - Ironizo. - Daqui, dá até pra pensar que tá falando a verdade.
- Adessa. - Repreende-me Aiden num sussurro. - Não vale a pena. - Um lampejo de ira nos olhos de Vincenzo e, num impulso de infantilidade, beijo a bochecha de Aiden. Forçando um sorriso, concordo.
- Tem razão. Vamos mergulhar?
- Quando eles forem embora...
- Vcs dois estão...?
- Juntos!? - Provoco. - Imagina! - Outra risada histérica e me calo. A dor não quer parar, logo, corro até a beira do mar e mergulho. Ouvindo o som do silêncio, por instantes, permito-me sentir a dor da perda. De volta à superfície, olhando o céu estrelado, deixo duas lágrimas escorrerem por meu rosto molhado. - Merda. - Acabo de perceber o quão transparente ficara meu vestido após o mergulho. Quem me olhar agora poderá enxergar tudo, inclusive, a etiqueta de minha lingerie. - Não estava quente. Tá super fria. - Comento, evitando o olhar indecifrável de Vincenzo. - Vem, Aiden.
- Posso ir, mãe!? - Pergunta-me Antoine ainda no colo de Vincenzo. Estico meus braços a ela, mas Vincenzo a mantem perto dele.
- Ela quer se molhar. - Rosno.
- Está frio. Ela vai se resfriar.
- Aaah! Agora tá se preocupando com ela!? Tarde demais...
- Por quê?
- Sério???
- Deixa a menina, Vincenzo. - Provoca Aiden.
- Não estou falando contigo. - Rio do riso de Aiden e da expressão furiosa de Vincenzo quando Antoine solta uma de suas pérolas.
- Por que vc tá com a tia, pai?
- Pai??? - Pergunta, ironicamente, Sweet. - Desde quando ele é teu pai, fedelha???
- Desde sempre. Eu a amo. - Vibro ao ouvir a resposta de Vincenzo. Vibro intimamente ao perceber o desapontamento no rosto maquiado de Sweet. - Ela tem nome. É Antoine e não 'fedelha'.
- Nossa. Eu só queria...
- Não queira!
Gargalho, histericamente. Ele acaba de repetir o que dissera há pouco. Ele me encara, sorrindo, o que me faz sofrer ainda mais.
- Não é o que pensa, Dess.
- Vc já disse isso.
- Alguém pode me esclarecer o que tá rolando aqui?
- Posso. - Diz Aiden posicionando-se atrás de mim. Assusto-me com seus braços e minha cintura, seu queixo em meu pescoço. - Adessa, Antoine e eu estávamos tendo uma noite extremamente agradável até vcs chegarem. Não é, baby? - Apesar de odiar ser chamada de 'Baby', assinto com a cabeça enquanto observo tristeza nos olhos de Vincenzo. Isso me faz bem. Vincenzo. Vincenzo. Sempre Vincenzo!!! - Por que não voltam a passear e nos deixam em paz?
- Concordo...
- Dess, vc deixou ele entrar em sua vida novamente?
- É o que parece. - Diz Aiden, triunfante. - Ela me convidou e eu entrei.
- Pai, vamos mergulhar?
- Agora não, filha. - Antoine dá de ombros e comenta.
- Vcs adultos são estranhos.
- Somos. - Concordo. - Vem. - Estendo os braços a ela quando ela nos faz rir.
- Mãe, a senhora tá molhada. Dá pra ver sua calcinha daqui. E o sutiã também.
- Pois é...- Curvo meu tronco para frente, cobrindo meus seios com os braços cruzados. - Eu deveria ter pensado melhor antes de mergulhar.
- Discordo. Vc está estonteante. Instigante.
- Para tudo! Vc não era gay? - Pergunta Sweet, incomodada.
- Nunca fui. Creio que nunca serei. Não agora que encontrei a mulher certa.
- Quem??? Adessa???
- Algum problema nisso, idiota???
- Nenhum, amiga. - Zomba ela. - 'Seje' feliz.
- 'Seja'...- Rumino revirando os olhos. - Eu serei. Ao menos, eu vou tentar.
- Com ele? - Indaga Vincenzo com a voz embargada. - Não faz isso, Dess. Vc não o conhece.
- Aaaah...não liga não. Eu terei tempo pra descobrir. Ele não é o tipo de homem que foge. Ele tá comigo quando eu mais preciso de ajuda. Saca? - Baixando a cabeça, Vincenzo refuta.
- Não é verdade, Dess. Ele é do tipo que se vinga se não conseguir o que deseja. Mas vc se esqueceu...
- Melhor do que fingir ser santo quando já fez um monte de merda.
- Tio!!! - Protesta Antoine. - Palavrão é feio!!!
- Tem razão, meu anjo. - Assume Aiden ajoelhado. - Me perdoa.
- Perdoado. - Diz ela beijando-o na testa. - Vc é legal, tio. Por que vc é o meu pai não podem ser amigos?
- Não sei. - Alega Aiden dando de ombros.
- Eu conheço seus amigos. - Zomba Vincenzo. Aiden se levanta e, confrontando-o, rebate.
- E eu, os seus. Por que não se escondeu debaixo da batina de seu amigo padre? Lá, o outro não chega.
- Que outro?
- Não ouve o que ele fala, Dess.
- Que outro é esse??? - Insisto. - Por que diabos vc deveria se esconder de alguém???
- Ele não te contou? Deveria.
- Cala a boca, Aiden. - Rosna Vincenzo. - Ou deveria te chamar de Ragnar? Como prefere? O nome em gaélico eu não vou pronunciar.
- Para! - Grito, confusa. - Do que estão falando!?
- De nada, Dess... - Recua Vincenzo, evitando um confronto físico. - Vc não precisa saber disso.
- Precisa sim. - Afirma Aiden, francamente disposto a brigar. - Quer saber o porquê de não se lembrar de muita coisa, baby? Porque talvez alguém a tenha feito se esquecer.
- Cala a boca, porra!
- Pai! Isso é palavrão! - Grita Antoine, distante. - Que feio!
- Não se meta com a minha filha. - Ameaça Vincenzo. - Eu sei do que é capaz.
- Ela não é a tua filha, seu anjo de merda.
- Caraaaaca! - Berra Antoine catando conchinhas. - Eu vou lavar a boca de todo mundo!
- E nem sua. - Cochicha Vincenzo. - Se tocar nela, eu te mato.
- Como? - Pergunta Aiden, aos risos. - Vc pode até tentar, mas vai ser difícil. The dead don't die. - Eu os afasto com meus braços e, entre ambos, pergunto, perdida
- Que merda tá acontecendo aqui???
- Isso é o no me de um filme???
- É Sweet. - Retruca Aiden, sarcástico. - Da série: 'Eu sou o mais forte'.
- Melhor pensar assim. Estamos longe do fim. - Alega Vincenzo, inseguro. - Eu não vou desistir.
- Ah! Eu Sei! O velho papo de que vc não 'caiu' à toa...
- Exatamente. E eu sempre venço no final.
- Eu te vi vencer no último final. - |Ironiza Aiden. - Ainda sinto o cheiro do churrasco.
- Porra! Que papo esquisito, mermão! - Exclama Sweet retirando suas botas de cano longo. Recuando, ela avisa. - Eu não fico aqui nem mais um minuto! Em pensar que saí de casa e deixei minhas filhas sozinhas à toa. Que saco! Banco de malucos escrotos!
- E por que saiu de casa!? Não poderiam fazer o que fizeram, em seu quarto!? - Furiosa, ela caminha em minha direção e, movendo os braços, aleatoriamente, reclama.
- Maluca! Eu saí de casa pra escolher a roupa pra tua filha!?
- Minha roupa!? É pra festa, tia!? - Indaga Antoine, exausta de tanto correr. Coberta de areia, eu a tomo em meus braços. - Ela tem asas, tia?
- Sim! - Antoine vibra de volta à areia, alheia ao clima tenso entre os quatro adultos. Voltando-se para mim, Sweet esbraveja. - A gente tá andando há um tempão pra escolher a sua roupa de borboletinha, mas sua mãe aqui tá doidona! Tá surtando!
- Do que estão falando!?
- A verdade, Dess. Eu te disse que nem tudo o que pensa que vê é verdade.
- Baby, vamos embora?
- Só um minuto. - Peço a Aiden enquanto caminho até Vincenzo e o cutuco em seu peitoral. - Vcs querem que eu acredite nessa historinha patética!? Eu vi vcs dois! - Baixando o tom de voz para que Antoine não nos ouça, repito. - Eu vi vcs dois na cama. Eu sei o que fizeram e ainda fazem. - Sweet se afasta em direção ao calçadão ao se despedir ao seu estilo.
- Ih! Fui! Vc vem comigo, Vincenzo? Ou vai ficar ouvindo merda?
- Não. Me espera no carro.
- Uau! Que romântico! - Com o pé direito, chuto areia em seu rosto. De olhos fechados, ele sorri. Ainda amo seu sorriso inocente. - Foi lá que ela te 'pagou um 'boque...'- Levo minha mão à boca antes de concluir. Antoine está de volta, então, cochicho. - Eu vi. Vc gostou muito, Vincenzo! Ou deveria dizer "gozou"? - Atordoado, ele me segura pelo braço e argumenta.
- Vc pensa ter visto, Dess. Vc, infelizmente, tem um problema. Um transtorno que te faz ver coisas que não são reais. Ouve vozes que estão em sua cabeça. Nunca parou pra pensar nisso, caralho?
- Não...- Respondo, insegura. Até então, eu julgava ter um dom e não uma transtorno com alterações da realidade e alucinações. - Pensa bem, Dess. Não se deixa levar por ele. Olha pra mim, amor.
- Não quero...
- Vem comigo, Adessa. Já deu por hoje.
- Deixa ela em paz! - Grita Vincenzo, colérico. - Vc é perverso! Eu não vou permitir que vc a toque novamente!
- Não? - Ironiza Aiden. - Será que vc tem poderes para isso ou vai pedir ajuda aos seus amiguinhos alados?
- Alados???
- O que isso, mãe!?
- Antoine! Vá brincar!
- Eu vou fazer por ela o que vc nunca fez.
- Dess, não vai.
- Pai...
- Filha, fica.
- Deixa Antoine em paz! - Peço, entre soluços. - Vc só aparece quando sua presa tá conseguindo se libertar, Vincenzo! É típico da porcaria do narcisista que tu é!
- Dess, me ouve...
- Não posso. Não suporto mais. - Indecisa, deixo-me levar por Aiden que me puxa pela mão. Caminhando ao meu lado, Vincenzo insiste.
- Ele não é o que vc pensa. Ele vai te usar de todas as formas.
- Vc já fez isso...- Refuto sem olhar em seus olhos. Disposta a me esquecer do que sinto por ele, eu o ignoro enquanto levo Antoine em meu colo. - Lembra do que te falei na sala do teu apartamento? Dess, lembra do que fizemos juntos com aquela cruz!?
- Não! - Aiden protesta ao parar de caminhar e, voltando-se para Vincenzo, num tom de voz ameaçador, alerta.
- Vc não tem permissão para falar sobre mim ou meu passado. Não tente estragar tudo novamente. Entendeu?
- Vc não tem permissão para se intrometer em nossas vidas. Por favor, se vc ama Antoine, não deixe que ele saiba que estou por perto. Vc sabe do que ele é capaz.
- Por ela, talvez eu faça o que me pede. Talvez...
- Ele quem? - Indago, em desequilíbrio. - Eu tô com medo.
- Dess, vem comigo...- Estendendo-me sua mão, Vincenzo sorri e repete o convite. - Vem. Eu vou proteger Antoine e vc.
- Eu quero ficar com o papai. - Protesta Antoine em meu colo. - Deixa, mãe.
- Ele não é teu pai...
- É sim! Ele aceitou! A senhora viu!
- Filha, calma...- Chorando em meu ombro, ela sussurra. - Quero ir pra casa, mãe.
- Vincenzo, para. Tá fazendo Antoine chorar. - Um passo atrás e ele assume.
- Tem razão. Desculpa.
- Vá embora, Vincenzo. Já fez seu show. Comigo elas estarão seguras e vc sabe disso. Ele não tem poder sobre mim, logo, eu posso ser mais útil do que vc, meu caro. Concorda?
- Sim.
- Sério??? Vai desistir assim???
- Dess...
- Ele é um fraco. - Declara Aiden, vitorioso. - Vem. - Impotente, Vincenzo me observa enquanto me afasto dele. Antoine acena para Vincenzo antes de entrar no carro de Aiden e se acomodar no banco traseiro. Aflita e profundamente triste, comento.
- Molhei seu banco.
- Não se preocupa, baby. Vai dar tudo certo. Dessa vez, vai dar tudo certo. - Ele me esqueceu. Ele simplesmente vai me deixar ir sem lutar por mim? - Baby, vc está bem?
- Sim. - Minto.
- Dess! - Grita Vincenzo da areia. - Eu não desisti! Eu não desisti!
- Faz ele calar aquela boca...- Choramingo de olhos fechados. - Eu quero ir pra casa.
- Ok. Eu te levo. Não chora por ele. Ele não merece.
- Não fala assim do meu pai, tio. - Observa Antoine encarando-o pelo retrovisor interno. - Meu tio Miguel disse que tá de olho em vc...- Aiden resmunga algo em irlandês enquanto me entorto no banco do carona e, impressionada, indago.
- Como assim, filha!? Quando falou com ele!?
- Agora. - Diz ela num bocejo. - Na praia. Vcs brigavam e ele falava comigo. Disse que eu não posso falar com meu 'tio Lu'. Por que será?
- Porque ele não existe, Antoine! - Explodo. - Chega de tanto tio, pelo amor de Deus!
- Caraca...- Choraminga ela. Arrependida, salto para o banco traseiro onde lhe peço perdão e a beijo no rostinho. - A gente ainda vai ter festa, mãe?
- Vai sim. Uma festa super bacana. - Afirma Aiden, orgulhoso, aumentando volume do som.
De volta ao meu banco, ao som da música lenta, choro escondida, encolhida, olhando meu reflexo na janela do carro. Vincenzo sofria. Eu senti. Será que senti mesmo ou estou tão doente que já não distingo a realidade da fantasia? VC NÃO É DOENTE. NÃO DEIXE QUE ELE TE CONVENÇA DISSO. Eu não quero mais te ouvir. Não sei quem é vc. É MELHOR NÃO SABER. NÃO POR ENQUANTO...- Oi?
- Eu disse pra não chorar. Tudo passa.
- Aaah...tá. Vc ouviu?
- O quê? A voz?
- Isso!!! Vc a ouviu também??? - Um sorriso no canto de sua boca e ele nega com a cabeça. - Eu devo estar ficando louca mesmo...
- Não necessariamente. Nem todos ouvem vozes. Nem todos veem espíritos. Talvez vc tenha um dom, baby.
- Talvez vc tenha um também...
- Qual?
- O de me irritar com essa porra de 'baby'. - Uma gargalhada escandalosa ao volante e Antoine reclama.
- Me acordou, tio...
- Foi mal, meu anjo. Volte a dormir.
- Vou dormir e sonhar com a minha festa...- Arqueja ela, fechando os olhinhos.
- Não a encha de esperanças, Aiden. E se vc sumir? Eu não tenho condições pra dar essa mega festa pra ela.
- Eu não vou sumir...baby. - Bufo, estirando meu corpo na cadeira reclinável. - Relaxa e deixe tudo comigo.
- Não é justo. Vc não é nada meu. Gastar sua grana comigo não faz sentido.
- Não é com vc que vou gastar. É com a baixinha ali atrás. - Seus olhos brilham quando me encara. - Ela merece. É um ser especial.
- Ser?
- Ser Humano, bobona...
- Aaaah...tá. Chega de seres estranhos em minha vida.
- Eu sou estranho?
- É. Um pouco. Mas é bonito.
- Boba...
- Ruborizou!
- Palhaça...- Rimos juntos até suspirarmos. Pigarreando, ele recomenda, ainda envergonhado. - Melhor é se esquecer dessa noite e focar na festa.
- Aaah...é. A festa.
- Se anima, baby.
- Me chama de 'baby' novamente e eu te acerto um soco no meio do teu pescoço. - Sorrio ao me recordar de Vincenzo estatelado no chão e comento. - Dizem que é mortal... - Diante do semáforo, sorrindo, ele comenta.
- Adoraria lutar com vc.
- Não brinca com quem tá quieta...
- Eu luto bem. - Ruborizo diante de sua boca semiaberta. - Quer provar? - Ui. Que olhar é esse??? Soltando o ar dos pulmões pela boca, abrindo a janela ao meu lado, inspiro a brisa fresca e, me recompondo, desconverso.
- Eu preciso de umas duas garrafas de vinho pra me esquecer dessa noite.
- Seu desejo é uma ordem.
- Vc é fofo. E seu pescoço é másculo.
Sorrio de seu sorriso sacana.
Por mais triste que eu esteja, não posso negar que estou estupidamente atraída por ele...
- Toma comigo?
- Sem dúvida. - Afirma ele, ao meu lado, na pia da cozinha. Encho as taças até a borda e ofereço uma a ele. Engulo metade do vinho da minha taça antes de brindar.
- À festa de Antoine!
- À festa! - Celebra ele. - E ao que vier depois da festa...- Outra golada e, entornando mais vinho em minha taça, concordo, meio tonta.
- E ao que vier após a festa!
Antoine e eu já comemoramos seu aniversário ontem. Há um ano, eu a encontrei na praça. Desde então, ela nascera para mim. Ela contara, àquela época, que estaria com seus seis anos. No entanto, levando em consideração sua pouca idade e sua imaginação mais do que fértil, suponho que esteja correta. Decreto, por conta própria, que ontem, ela, oficialmente, completara sete anos de idade. Sete anos de pura magia, compaixão e amor. Antoine mudara minha vida. Sem ela, eu morro...literalmente.
Dividimos uma lasanha e, após o jantar, ela ainda encontrou espaço em seu estômago para um pacote de pipoca amanteigada enquanto assistíamos a um de seus filmes prediletos: "Valente". Eu já o assisti, ao menos, umas quinze vezes e não me canso de assistir. Antoine diz que Merida se parece comigo, embora meu cabelo não seja 'laranja'.
"É ruivo, filha. O cabelo de Merida é ruivo", explico enquanto ela dá de ombros e afirma, lambendo os dedos engordurados.
"Não importa. A senhora é a Merida e pronto!"
O celular toca por diversas vezes e eu o ignoro. Vincenzo está fora dos meus planos. Ele que siga sua vida com a vaca da Sweet e sejam felizes. Eu vou tentar ser feliz sem ele, embora eu saiba que não vá conseguir.
A campainha toca. Antoine resmunga.
- Justamente na melhor parte do filme, mãe!? - Rindo, eu dou um 'pause' no controle remoto e prometo que volto logo. Caminhando até a porta, rumino.
- Pra que a porra de um interfone se não nos avisam que tem gente subindo!? Quem é!?
- Entrega expressa!
- Aiden! - Abro a porta, ansiosa. Meu coração bate mais forte ao vê-lo sorrir com bolsas penduradas em suas mãos. - O que faz aqui? - Revirando os olhos, ele ironiza.
- Não sei. O que será que eu vim fazer na casa de duas mocinhas lindas sem roupas para a festa?
- FESTA??? - Grita Antoine do quarto de cinema. Em menos de dois segundos, ela surge diante de Aiden que se agacha. Como bola de boliche, Antoine o derruba contra o chão. Cato as bolsas de suas mãos enquanto ele, aos risos, se deixa abraçar por ela. Distancio-me de ambos e chego a pensar que ele seria um bom pai para Antoine que parece ter se esquecido de Vincenzo. Montada sobre ele, ela indaga, aflita. - Tio, o que vc trouxe dentro dessas bolsas!? É pra mim!?
- É sim. - Diz ele corando. Ele ainda não se acostumou aos arroubos de carinho de minha filha. - Me ajuda? - Pede-me ele, estendendo o braço forte. Eu o puxo contra mim. Nossos corpos se unem novamente. Sinto uma corrente elétrica subir dos meus pés até a minha cabeça. Afasto-me, confusa. - As bolsas...
- Ah! - Eu as entrego a ele e me observo, rapidamente, no espelho no hall de entrada. Cabelos desgrenhados, camisola esgarçada, pés e mãos sem esmaltes. Sufoco um soluço ao recuar. Céus! Eu estou um 'bagulho'! - Volto já! Não saia daí! - Aviso antes de correr até meu quarto e me trancar, afoita. Desde quando eu me sinto assim diante de um homem que não seja Vincenzo??? DESDE QUE ACORDOU, IDIOTA! Agora não! Eu tenho pressa! Cala a tua boca! - Um banho rápido e estarei pronta!
Improviso um coque desalinhado no topo da cabeça após o banho. O creme de pentear disfarça a oleosidade. Esfrego, rispidamente, o resto do meu melhor creme hidratante importado em meu corpo, exagerando no pescoço e entre os seios. Diante do espelho, dou um dois tapas em meu rosto pálido e, com a mão trêmula, uso meu batom cor de puta após meses. Retoco o batom duas vezes antes de, enfim, me julgar apta a sair do banheiro e vestir meu vestido curto de alcinhas.
Eu o usei tanto enquanto ainda era garota de programa...
- JÁ VOU! - Grito do quarto enquanto Antoine, histérica, berra na sala. - O que houve??? Antoine! Fique calma!
- MINHA ROUPA É DE FADA, MAMÃE! NÃO É SÓ DE BORBOLETA! É UMA FADA BORBOLETA!
- Não grite, filha. Calma. - Rodopiando pela sala, ela continua a se agitar e a gritar, eufórica.
- EU SOU UMA FADA! MEU TIO COMPROU UMA FADA PRA MIM, MAMÃE! UMA FADA É MELHOR DO QUE UMA BORBOLETA! NÃO É, TIO??? DIZ PRA ELA!!!
- Antoine...
- Mãe! Vc não entende!?
- Entendo, mas fica calma. Fale mais baixo.
- NÃO DÁ! - Gargalha ela, feliz. - EU SOU UMA FADA ROSA! MINHAS ASAS SÃO LINDAS! LINDAS! EU POSSO VOAR, TIO??? - Ajoelhando-se, ele diz que sim. Modelando o tom da voz, ele explica.
- Além de fada, vc é um anjo. Um anjo fada. Anjos que são fadas têm mais poderes do que fadas. Sabia?
- Sério? - Seus olhinhos giram nas órbitas enquanto ela pensa, arquejando, exausta, de tanto pular. - Então eu sou mais poderosa do que uma borboleta fada?
- Sim...- Gosto da maneira como ele a toca no rosto, acariciando seus cabelos. Gosto de suas costas curvadas, seus músculos se movendo aleatoriamente. Gosto...- Anjos são super poderosos, Antoine. E vc, é um deles.
- Sou? - Indaga ela, surpresa. Voltando seus olhinhos para mim, ela comenta num cochicho. - Eu sou um anjo fada borboleta, mamãe. Tenho poderes. Sabia?
- Sim...- Assinto num lamento. - Mais poderes do que eu gostaria. - Um grito de contentamento e ela me assusta. De volta à euforia inicial, ela finge voar até seu quarto onde canta, dança e grita até se cansar. - Vc tá gastando com a gente, Aiden.
- Não se preocupa com isso. - Diz ele, erguendo-se do chão. - Eu já te avisei que a festa é à fantasia?
- HEIM???
- Pois é! Não leu no convite!?
- Que convite, Aiden!? Eu não recebi convite algum!
- Porque é a mãe da aniversariante. Dispensa convites.
- E quantos aos convidados!? Vc não combinou nada comigo!? A festa é amanhã!
- Baby...
- Porra, Aiden! Não me deixa puta com esse 'baby'! Quem vc convidou!?
- Os que estavam na lista. - Responde-me ele, tranquilamente. - Por que não relaxa e experimenta a sua?
- A minha o que, Aiden???
- Fantasia. - Replica ele, rindo de minha impaciência. - Vc não mudou em nada.
- Aaaa...me poupa! Me dá esse pacote! - Rasgando o papel de seda com fúria, perco o ar ao segurar o vestido pelas mangas e observá-lo por inteiro. - Jesus...
- Não. Errou.
- Aiden. Que tipo de fantasia é essa?
- Camponesa. Achei que iria gostar.
- Amei...
- Parece que não.
- Eu eu eu me sinto...eu...
- Vc não gostou?
- Aiden, ele é lindo! Tem espartilho e tudo!
- Sim. Uma camponesa rica que, talvez, tenha se casado com algum duque.
- Aaaah...- Estranho seu argumento enquanto me imagino dentro do vestido. - Já volto!
- Aonde vai!?
- Vestir!!! - Agarrando-me pelo braço, ele meio que ordena.
- Vista-se aqui.
- Não posso, Aiden. Antoine pode chegar...
- Vamos à lavanderia. Eu tranco a porta. - Ui. Amei a ideia de ficar presa com ele em um espaço pequeno. Sua voz rouca quase me convence. - Vamos?
- Não dá.
- Dá sim. - NÃO DÁ! EU NÃO ME DEPILEI, PORRA! - Vem...- Agarrada ao vestido, deixo-me levar por ele até a lavanderia onde ele se recosta à porta fechada e me aguarda. - Tira a roupa.
- Apague a luz.
- Desde quando vc tem vergonha de se despir? - Desde que não me depilo há dias??? - Tem vergonha de mim?
- Não, bobo. Vc é fofo. Eu tiraria a roupa pra vc...de graça. - Um riso patético e complemento. - Isso se eu ainda cobrasse por isso.
- Eu pagaria qualquer quantia pra te ver se despir pra mim...
- APAGA A LUZ! - Ordeno entre excitada e nervosa. - Vc é maluco. Ri de tudo o que faço. Apaga, por favor.
- Ok. - Concorda ele, contrariado. Um toque no interruptor e ele comenta. - Não estou vendo nada.
Em minutos, arranco meu vestido de alcinhas e, cuidadosamente, me visto com seu presente. Um misto de culpa, alegria e saudades de algo que ainda não vivi me toma por completo.
- Vc está chorando, Adessa?
- Acenda a luz...
- Uau...
- Não fica aí parado. Me ajuda. - Peço, fungando. - Não dá pra amarrar esses cadarços nas costas. Que coisa mal feita, né?
Seu diafragma se move rapidamente. Tenho a nítida impressão de que ele está emocionado. Com o quê? Atrás de mim, demonstrando extrema habilidade em manusear os cadarços do espartilho, ele explica.
- Eu sei que é esquisito. Eu nunca aceitei isso.
- O quê?
- Mulheres ricas usavam espartilhos atados nas costas porque possuíam serviçais que as ajudassem. As camponesas pobres usavam corsets com amarração na frente. Como vc mesma diria: Isso é patético.
- Então...eu sou rica e vc é o meu serviçal? - Provoco olhando seu reflexo pela janela fechada. Ele não responde. Apenas sorri. Apertando os cadarços, ele me faz curvar o tronco para frente e arquejar. Apoio-me na máquina de lavar e, intrigada, pergunto.
- E por que comprou um desses pra mim? Sou uma camponesa ou uma dama da corte?
- Uma camponesa. - Sussurra ele ao meu ouvido. Seu tronco se apoia em minhas costas quando elucida. - Uma camponesa ambiciosa, linda e imatura. - Seu pau ereto roça minha bunda quando exalo.
- Aaaah...tá.
- Vire-se. - Um passo para trás e ele me observa. Ajeito meus seios que quase pulam para fora do decote. Aliso a saia com as mãos. Maravilhada e emocionada, agradeço, contendo o choro.
- Não precisava. Deve ter custado muita grana.
- Vc merece muito mais...meu anjo. - Próximo a mim, eu o puxo pela gola de sua camisa social. Seus lábios grossos e rubros se encostam aos meus quando questiono.
- Qual será a sua fantasia?
- Surpresa. - Sussurra ele contra meus lábios.
- Por que tá rindo?
- Estou pensando em te pedir algo...
- Peça. - Ronrono.
- Posso te beijar?
- Deve...
- MÃE!!! - Grita Antoine batendo à porta. Uma descarga elétrica vinda de um fio desencapado sobre um asfalto molhado não nos teria separado com tanta eficiência e rapidez. Recompondo-se, ele me aguarda num dos cantos do cômodo. Engulo o riso diante de seu embaraço e, abrindo a porta, repreendo Antoine.
- O que eu disse sobre bater à porta antes de entrar?
- Mas eu bati, mamãe...
- Ela bateu. - Aiden a defende, beijando-a na testa. Um beijo em minha bochecha e ele sussurra ao se despedir. - Depois da festa. Te pego às sete! - Ainda arfando, consinto.
- Me pega...
- Antoine, vc precisa se acalmar!
- NÃO CONSIGO!!! EU TÔ LINDA!!! EU VOU VOAR!!! EU VOU VOAR!!! - Cassandra e eu rimos de sua histeria no meio da sala de estar enquanto aguardamos Aiden chegar. - VAMOS DESCER, MAMÃE!!!
- Ele ainda não chegou, filha.
- NÃO IMPORTA!!! EU VOU VOAR!!! - Repete ela em seu exuberante vestido rosa púrpura. Uma versão moderna de uma fada com enormes asas de anjo. Embora pareçam pesadas, Antoine as ostenta com orgulho. - ELE CHEGOU???
- Tia, dá Rivotril pra ela. - Sugere Cassandra, sua guardiã, guerreira ao estilo RPG com direito à espada e flechas. Um aperto no peito e me recordo de Luka. Quem o levará à festa? Sua mãe me prometeu... - Não grita, Antoine. Vai ficar rouca antes de chegar à festa. Já imaginou não poder falar com seus amiguinhos? - Arregalando os olhos, ela parece pensar sobre o assunto. Após refletir, Antoine admite, num tom bem mais baixo.
- É verdade. Mãe! Quem vai pegar o Luka!?
- Não sei...- Respondo incomodada. - Vou pedir ao Aiden pra passar na casa dele antes de chegarmos ao salão de festas. - Afasto-me de Antoine e, seguindo minha intuição, ligo para o celular de Luka. Eu mesma comprei sua fantasia de guerreiro viking de RPG e o fiz prometer que não desistiria de ir à festa. - Não atende. - Digo a mim mesma após várias tentativas. Cerro os olhos e pensamentos obscuros me vem à mente. - Para. Isso é ridículo. Eu não vou estragar essa noite com meu suposto dom...ou doença. O interfone toca e Antoine anuncia, eletrizada.
- MEU TIO CHEGOU!!!
Retoco o batom no espelho do elevador enquanto Cassandra desiste de fazer Antoine parar de tagarelar tão alto que chega a atingir nossos tímpanos.
- Vai passar. - Aviso enquanto caminhamos em direção ao carro de Aiden. Antoine, aos pulos, se joga sobre ele que a abraça e afaga seu ego.
- Meu anjo, vc está espetacular!
- Obrigada, tio. O que é espetacular? - Pergunta Antoine a Cassandra no banco traseiro enquanto arquejo tentando não demonstrar minha estranha sensação com relação à sua fantasia. - Tio, vc é o conde Drácula?
- Não! - Rimos juntos dentro do carro. Antoine e Cassandra já pararam de rir enquanto dou continuidade ao meu riso nervoso. - Não gostou?
- De sua fantasia?
- Sim. - Responde ele, ao volante. - Eu te assusto.
- Um pouco. - Assumo ao seu lado, observando o limpador de para-brisa funcionar. Sua longa capa preta sobre seu smoking não me assustam tanto quanto a cicatriz em seu rosto mais bronzeado do que o comum. - Quem é vc? Um vampiro? Um demônio?
- Um ser sombrio à procura de luz.
- Aaaah...tá. E...- Aponto ao seu rosto. - Essa cicatriz? Tem a ver com a fantasia?
- Sim. É maquiagem. Posso tirar se te incomoda.
- Não. Eu gosto.
- Sério? - Engulo em seco diante de seu olhar soturno ao declarar.
- Fica sexy. Se houver um concurso de melhor fantasia, vc certamente fica com primeiro lugar.
- Segura meu chapéu...- Pede-me ele, sorrindo. Um 'top hat' preto que apoio em minhas pernas. Incomodada com as vibrações vindas dele, eu o jogo para trás. Cassandra o acomoda ao seu lado. De esguelha, noto um ligeiro sorriso no rosto de Aiden ao comentar. - Eu só quero que esta noite seja memorável pra vc e Antoine.
- Obrigada. - Atrevo-me a beijar seu rosto sob os olhares curiosos de Antoine e Cassandra. - Nunca me esquecerei disso.
- Não vai mesmo. - Afirma ele, estacionando o carro. - Chegamos.
- Uau! Que lugar é esse!? Vc vai dar carona a algum amigo?
- Não, baby. Chegamos à festa.
- Tá me zoando???
Perco o fôlego diante de tanta beleza e exuberância. Meus olhos não creem no que vejo.
- Aiden! - Exclamo, receosa. - Isso não é um salão de festas! É uma mansão!
- Sim. É a casa de um amigo. Algum problema?
- Amigo??? Tipo quem??? Elon Musk???
Rindo, ele refuta.
- Nem tanto. Não se assuste. Eles viajaram e me emprestaram a casa.
- Quem a decorou!? Quantas luzes têm na fachada!? Cacete! - Saio do carro e, caminhando vagarosamente em direção à escadaria, exclamo. - É incrível!
- Lá dentro é melhor ainda, baby. - Sussurra ele aos meus ouvidos. - Vamos aproveitar?
- Vamos, né! - Diz Cassandra, animada. - Vem Antoine. Antoine!? - De dentro do carro, Cassandra alerta. - Tia, ela não tá aqui!
- AQUI, MÃE!!! - Grita Antoine no último degrau da longa escadaria, aos pulos. - EU POSSO VOAR!!! EU POSSO VOAR!!!
Sufoco um soluço antes de me desvencilhar dos braços de Aiden e correr em sua direção. Desesperada, subo os degraus de dois em dois enquanto, horrorizada, eu a vejo fechar os olhinhos e, num movimento de braços, abrir as grandes asas. O peso da saia de camponesa me impede de chegar antes de seu salto.
- NÃO!!! - Berro, impotente. Seu corpinho flutua no ar segundos após o salto. Jogo-me em sua direção quando meu corpo colide contra algo macio. Um forte empurrão e, meio que inconsciente, vou de encontro ao rebuscado corrimão em mármore de onde, estarrecida, o vejo salvar minha filha. Braços escuros e peludos a acolhem e a impedem de rolar escadaria abaixo. Aos prantos, eu a recebo em meus braços. Atormentada pelo horror de perder minha filha, eu a repreendo com severidade. - NUNCA MAIS FAÇA ISSO! ENTENDEU??? - Choramingando, ela se desculpa. De cabeça baixa, olhos fechados, abraçada a Antoine, eu o agradeço. - Eu não sei como te pagar por isso. Se vc não tivesse chegado...
Sentado ao meu lado, observo suas enormes patas peludas, amarelas. Sem dizer uma palavra, ele move, aleatoriamente, as coxas gordas, o que me faz sorrir.
- Obrigada...- Digo num fio de voz, inerte, em um dos degraus, ainda sentindo o coraçãozinho de minha filha que, desconhecendo o perigo pelo qual acaba de passar, abrindo os olhinhos, exulta.
- CARACA!!! KUNG FU PANDA!!! É VC???
- Quem!?
Enfim, eu o vejo.
Erguendo-se, apressadamente, ele move, exageradamente, o quadril enquanto Antoine gargalha como se nada houvesse acontecido.
- Vc vai ficar na minha festa???
Assentindo com a grande cabeça, alguém vestido de Kung Fu Panda sobe, ligeiramente, os degraus assim que Aiden, desconfiado, o interpela, furioso.
- Quem é vc!?
- Alguém que salvou a vida da minha filha, Aiden!
- Sim. - Assume ele, contrariado. - Retire a máscara pra que eu possa te agradecer. - Novamente, ele me faz rir movimentando os braços como um guarda de trânsito britânico em pleno horário de rush. - Eu quero te recompensar...- Insiste Aiden. Uma reverência forçada e o panda fofo nos dá as costas e some. Arquejo ao sentir Antoine a salvo. Eufórica, ela volta a gritar.
- TIO! EU QUASE VOEI! - Sentando-se ao meu lado, Aiden explica, pacientemente, acariciando o rostinho suado de Antoine.
- Vc é um anjo novo. Anjos novos não podem voar, Antoine. Nunca mais faça isso novamente. Ok? Sua mãe se assustou.
- Desculpa, mamãe. - Pede-me ela dando a mão a Cassandra ainda atordoada. - Vem! - Ordena ela, saltitante. - Vamos dançar com o Kung Fu Panda!
- Vamos...- Resmunga Cassandra, arfando. - Um dia ela me mata, tia...
- Eu já vou. - Aviso. Erguendo-me do degrau, perco o equilíbrio. - Eu tô nervosa. Minhas pernas...
- Eu te levo, baby.
Num solavanco, ele me carrega no colo, subindo a escadaria reluzente. Sob a luz da lua, volto a um passado do qual não me recordo. Uma dor pungente em meu coração e ele me sussurra.
- Me deixa te fazer feliz. Dessa vez, eu não vou errar.
- Jura?
- Sim...
Sorrindo, finjo não ter visto a figura intrigante e curiosa do panda gigante em um dos cantos da sacada.
Ele é tão fofinho...
Levo um tempo até me recuperar do susto. Sem largar a mão de Antoine, caminho pelo interior do imenso salão da mansão. Não há como descrever o fascínio causado por luzes de todas as cores nos lustres, paredes e adereços mágicos como cogumelos, borboletas e fadas que nos cercam à medida em que seguimos adiante por corredores sem fim. O ambiente mágico das estrelas piscando acima de nossas cabeças me faz relaxar. Aiden entrelaça seus dedos aos meus enquanto permito que Cassandra e Antoine sigam sozinhas.
- Nada de ruim irá acontecer a ela. Eu prometo.
- Aiden...- Hesito. - Ela poderia...
- Mas não aconteceu. Venha...- Estende-me ele o braço, convidando-me a dançar enquanto procuro por alguém que conheço dentre os rostos de estranhos e seus risos estridentes. Garçons elegantíssimos carregam bandejas com variadas bebidas. Mesas extremamente bem decoradas ofertam uma diversidade de iguarias. Das mais simples ao mais requintado caviar. - Do que tem medo?
- Do quanto eu vou ter que pagar por esse escândalo de festa, Aiden. Era pra ser uma festa de criança. Não um baile de formandos de Harvard. - Rindo, ele retira seu chapéu e sua longa casaca e os entrega a uma jovem bem vestida que os leva consigo. Ajeitando meu vestido e arranjos florais em meus cabelos, ele me observa com os olhos brilhantes. - O que foi?
- Vc está linda.
- Aaaah tá! Linda e amassada e desmontada. O que é isso Aiden!? - Surpreendo-me com sua reverência formal antes de me conduzir até o centro do salão e me convidar a bailar. - Onde estão os meu convidados, Aiden? - Pergunto enquanto ele me faz rodopiar ao som de uma canção linda, nostálgica e... sombria.
- Estão chegando...- Meus olhos se fixam em sua falsa cicatriz. Sob a luz dos lustres, eu a reconheço. Um susto e afirmo.
- Eu já te vi antes, Aiden! No teatro!
- Eu sei. - Diz ele, com naturalidade, guiando-me com sua mão em minhas costas. Tonta, procuro por Antoine, então, a vejo em uma das muitas salas, cada uma com cores diferentes, expondo uma decoração diferente. Antoine se diverte na sala azul, a de jogos, ao lado de Cassandra. Lembro-me de Luka. Uma pontada no peito e insisto.
- Vc é o homem do quadro, Aiden!!!
- Sou! - Uma súbita parada e, em meio ao salão, ele me questiona. - Algum problema? Vc o conhece? Ele já te fez algum mal? Vai me julgar por ter incorporado uma personagem e eternizado essa paixão em um quadro?
- Não...- Respondo, confusa com seu olhar incisivo. - Eu só...achei...
- O quê? Estranho?
- Sim. Vc não tinha bigode, nem cavanhaque e...- Sorrindo, ele quebra o clima tenso e esclarece.
- Baby. São falsos. Vc, acaso, não fingia ser outra mulher em seus shows? Por que não posso brincar, de vez em quando?
- Tem razão. - Admito roubando uma taça de vinho branco da bandeja de um dos muitos garçons. Num só gole, esvazio a taça. - Quero mais. - Empurrando-o com minhas mãos em seu tórax, caminho até o garçom. - Para. - Voltando-se para mim, ele me sorri. Um sorriso sinistro. Com outra taça na mão, eu recuo. Ele segue adiante.
- Vá devagar. - Avisa-me Aiden enquanto esvazio a segunda taça. - Por que está nervosa?
- Vc viu o garçom?
- Sim. São conhecidos de meus amigos. O que tem?
- Não gostei dele. - Digo sem rodeios. Aiden caminha ao meu lado enquanto sigo até Antoine. Disposta a ir embora, eu a puxo pelo braço quando recebo um abraço que me faz voltar ao normal. - Doc. - Exalo. - Vc veio. Que bom...
- E por que não viria, meu anjo? - Cochichando, ele conclui. - Parece que vc precisa de ajuda. Que lugar é esse!?
- Sim...- Cochicho de volta. Afastado, Aiden nos observa, inquieto. - Tem alguma coisa de errado, Doc. Fica de olho em Antoine e em suas netas. - Ouvindo sua gargalhada inocente, sinto-me patética.
- Nem tanto, meu anjo. Nem tanto. Já estivemos em lugares piores, não é? Esse lugar é fantástico!
- É...- Forço um sorriso. - Isso aqui daria uma ótima casa noturna. Não acha?
- Concordo.
- Sweet! Vc veio! - Meu coração se alegra ao vê-la. Pela primeira vez, estou sendo sincera. Sua presença me faz permanecer em um mundo normal. Não quero enlouquecer em plena festa. ONDE ESTÁ O LUKA??? - Onde estão as crianças?
- Com Antoine, amiga. Vc tá tremendo. - Fingindo uma calma longe de sentir, indago.
- Que porra de fantasia é essa, amiga!?
- Sei lá! Chegou lá em casa sem remetente! - Diz ela, exibindo-se em seu vestido quase transparente decorado com musgos e um par de orelhas de elfo. A dor pungente aumenta. Meu peito quer estourar enquanto ela prossegue. - Eu abri, vesti e gostei! Não é lindo!?
- Sim...- Admito, prestes a surtar. - Preciso ir ao banheiro. - Desorientada, fujo sem saber para onde correr. - Fica com Antoine! - Ordeno a Cassandra. - Me empresta seu celular!
- Tia!
- Agora! - Tomo o celular de sua mão e, vagando por um corredor claustrofóbico, abro uma das muitas portas. A sala verde com musgos em toda parede me faz arfar. Antes de fugir, fios molhados de cabelo ruivo se prendem às pontas de minhas botas. Movo minhas pernas, num desespero ao gritar. - ME DEIXA EM PAZ. - Recuando, esbarro em estranhos com rostos patibulares.
Alcanço o terraço. Sob a luz da lua cheia, inspiro e expiro profundamente. Digito ao celular, o número de Luka.
- ATENDE!!!
- Ele já não está aqui. - Avisa a voz gutural do outro lado da linha. - Tarde demais. Quer deixar recado?
- Quem é???
- Um amigo...
- Eu quero falar com o Luka! A mãe dele me confirmou que o traria à festa!
- Sério? Que pena. Ela ainda não sabe de nada.
- De quê???
Desligam. Imediatamente, começo a chorar. Sinto-me perdida. Perdida em um mundo que não é o meu. Fracassada por não ter ido até a casa de Luka e tê-lo trazido comigo. Arrasada por pensar que, talvez, esteja surtando novamente.
- MERDA! - Atiro o celular de Cassandra contra os arbustos lá embaixo. Arrependida, desço as escadas, elevando minha saia de camponesa que, agora, já não me parece uma fantasia tão atraente. Sweet está muito mais bela e sexy. Talvez, ela mereça ser o centro das atenções. Talvez, eu deva algo a ela. - Que lindo...- Exclamo diante de um rio caudaloso que corre ao lado da mansão. Contenho minha ânsia em tirar minhas roupas e mergulhar nele e me deixar levar pela correnteza.
- Essa porra de saia não me deixa sentar...- Resmungo quando ouço passos atrás de mim. Sem pensar, grito assustada. - KARATÊ KID??? O QUE FAZ AQUI???
Levando as mãos à barriga, ele curva o tronco para frente. Sem nada dizer, ele permanece assim por um tempo, até me irritar.
- VC É MUDO??? NÃO ME ENTENDE??? FALA COMIGO, PORRA!!!
Ainda curvado para frente, ouço o som abafado de sua risada.
- VC TÁ RINDO DE MIM??? TÁ ME ZOANDO???
Apoiando-se no tronco de uma árvore, ele continua a se mover. Irrito-me com sua gargalhada idiota e o chuto com o salto de minha bota de cano alto.
- SEU URSO DE MERDA! EU ATÉ CHEGUEI A GOSTAR DE VC! - Erguendo os braços, ele parece ter parado de rir. Um outro chute e o derrubo no chão. - Meu Deus...- Arrependo-me de meu impulso. O pobre e enorme panda não consegue se erguer sozinho. Um estúpido acesso de riso me impede de ajudá-lo a se levantar. Ele joga a cabeça contra a grama e volto a ouvir seu riso abafado. Montada em sua barriga fofinha, peço desculpas. - Eu sou um pouco impulsiva. Vc me entende? Obrigada por ter salvo minha filha. Me dá sua mão. Ou melhor...sua pata. Venha! - De pé, esforço-me ao puxá-lo por um dos braços quando me desequilibro e caio ao seu lado. Rimos juntos de nosso fracasso até que, num rompante, ele rola o corpo para o lado e, de gatinhas, se levanta. - Espera. - Peço ainda deitada. - Qual o seu nome?
Recuando, ele une suas mãos em sua boca e me envia um beijo, voltando a sumir entre as árvores.
- Filho da puta! Covarde!
- Vc está bêbada, baby.
- Aiden! Que susto! - Estendendo-me o braço, ele me ergue da grama e, desconfiado, indaga.
- Como caiu?
- Aaah...eu...queria entrar no rio e acabei caindo. - Minto. - Essa saia pesa, viu!?
- Vc costumava gostar dela...
- Costumava!? Quando, Aiden!? Eu nunca usei uma dessas!
- Usou sim. - Afirma ele num tom nostálgico. Sua maquiagem, a cicatriz, o olhar sombrio me fazem tremer de medo. - Vamos entrar. Está frio aqui fora.
- Eu tô com medo, Aiden. Não gosto dessa mansão. Tem coisa ruim dentro dela. - Comento, contendo meu choro. - Luka não está bem. Eu liguei pra ele e...
- Impressão sua. Assim que sairmos daqui, iremos à casa dele. Com quem falava?
- Quando!?
- Antes de eu chegar.
- Aaaah...- Rindo, respondo.
- Com o 'Karatê Kid'!
- Com o Kung Fu Panda? - Corrige-me ele. - Ele te seguiu?
- Não. - Minto. - Eu o chamei. Eu acho que ele é surdo...ou mudo. Sei lá. Pode ser uma menina... - Soluço. - Sei lá. Uma menina maluca. - Arranco um sorriso dele enquanto sua mão envolve minha cintura.
- Vem, meu anjo. Antoine quer te ver.
- Espera! - Recuo. - Eu preciso achar o celular de Cassandra!
- Depois, baby.
- Aiden! Não me irrita! - Grito empurrando-o com a lateral de meu corpo. Ele ri. Gosto de seu riso infantil. - Vc é maluco. Tu sabe disso, né?
- E vc está bêbada...
- Me põe no chão, merda!
- Vou lavar sua boca com sabão. - Adverte-me ele olhando-me com malícia. Em seu colo, gargalho de jogar a cabeça para trás.
De volta à mansão, tomo mais duas taças de vinho e vibro ao ouvir minha filha atormentar nossos tímpanos ao anunciar, bem próxima ao microfone, que deseja dançar comigo.
- Tente não cair...- Graceja Aiden enquanto abraço Antoine que ordena, aos gritos, ao DJ.
- SOLTA O SOM!
Dizer que estou dançando seria um eufemismo. Estou movendo braços e pernas aleatória e enlouquecidamente, enquanto Antoine me imita, feliz por esta comigo.
Eis o melhor momento da festa.
Evito pensar em nosso futuro, nas contas não pagas, na falta de emprego, na sinistra sala vermelha trancada à chave, nos rostos medonhos logo atrás de Aiden.
CHEGA! Quero gravar esse momento pelo resto de nossas vidas.
Estamos unidas pela música e pelo nosso amor.
- TE AMO! - Grito uma oitava acima da música.
- EU TAMBÉM TE AMO, MÃE! - Grita ela, duas oitavas acima da minha oitava, aos pulos.
Como duas loucas, extravasamos nossas ansiedades sem nos importarmos com quem nos observa. Doc, Sweet e as crianças batem palmas e se divertem. Aiden conversa com um senhor de cabelos brancos trajando uma fantasia que se assemelha ao Drácula de Bram Stoken.
Desvio meu olhar de Aiden ao notar o mascote panda, de algum time norte-americano, se empolgar, à distância, agitando os braços enquanto tento não cair enquanto rodopio com Antoine. Aceno para ele sem ter certeza de que é para mim que ele acena.
Suada e exausta, eu a beijo na testa e, afastando-me dela, jogo-me em uma das muitas poltronas em couro espalhadas pelo salão e fecho os olhos. Aiden volta a me assustar ao me servir uma outra taça de vinho.
- Está se divertindo?
- Siiiim! Supeeerrr! Obrigada, baby! - Surpreendido por meu selinho em sua boca, ele ruboriza. - Vc é fofo!!!
Gargalho até ouvir Antoine pedir ao DJ uma outra canção. Sem compreender que o microfone serve para amplificar sua voz, ela volta a gritar e causar uma desagradável microfonia. Brigando com seu microfone, ela anuncia.
- ESSA EU QUERO DANÇAR COM MEU CONVIDADO ESPECIAL! O KUNG FU PANDA!!!
As crianças vão ao delírio!
Todas os cercam. Ao som de palmas e gritinhos, eles ocupam a pista de dança e, sem inibição alguma, o ursinho fofo 'bota pra quebrar!'
Enciumado, Aiden caminha em direção à pista de dança. Dançando diante dele, eu o impeço de continuar.
- Não sei...- Rumina ele. Eu o empurro contra a poltrona e, antes de permitir que ele se levante e estrague a felicidade de Antoine, sento-me em seu colo e ronrono. - Ainda me espera após a festa?
- Sempre...- Responde-me ele, massageando meu couro cabeludo, fazendo-me gemer de prazer. De súbito, ele para e, parecendo incomodado, avisa. - Te espero lá fora.
- Ok...- Dou de ombros. Vendo-o sair pelo portal do salão, eu me esparramo na poltrona enquanto aprecio a alegria contagiante do novo amigo de Antoine. Daqui, ele parece uma gracinha. Ou será que é ela? Ambos dançam quase que sincronizados. De mãos dadas, ele a faz sorrir. Antoine, enfim, voa em seus braços que a erguem acima de sua cabeça. - Cuidado! - Grito, cambaleante. Deveria ter comigo algo antes de beber tanto e tentar caminhar. - Ei! Criatura! - Grito em seu ouvido de pano. Com a voz entaramelada, peço. - Dá pra não girar minha filha assim!? - Pondo Antoine no chão, ele cruza os braços mantendo as pernas afastadas.
- Ele tá zangado, mãe! - Explica Antoine absolutamente desconstruída. As asas tortas, cabelos em desalinho e o biquinho demonstrando raiva. - Ele disse que a senhora bebeu muito e não comeu nada. Vai passar mal.
- Tem razão...- Concordo após soluçar. Doc me ampara enquanto me conduz até o buffet. Sweet e suas filhas dançam com Antoine quando, de súbito, solto-me de Doc e, furiosa, vou ao encontro do panda estúpido que ainda me aguarda ao lado de Antoine. Encarando-o indago em voz alta. - FILHA! COMO SABE O QUE ELE PENSA SE ELE NÃO FALA!?
- Sei lá! - Diz ela correndo até a mini montanha-russa ao lado das filhas de Sweet enquanto eu permaneço ali, diante dele.
- Não vai falar nada? - Erguendo os braços, ele dá de ombros. - Não me irrita ou eu arranco a tua cabeça!
Voltando a curvar o tronco para frente, ele me faz acreditar que está rindo. Descontrolada, agarro suas orelhas na tentativa de cumprir minha ameaça. Suas gargalhadas abafadas chegam ao meu ouvido, atormentando minha ideias. É quando, sem o menor sentido, cuspo em seu rosto peludo.
- Seu merda! Fala comigo ou vai se arrepender!
- Adessa, se controla. - Pede-me Doc afastando-me do panda irritante. - O rapaz está trabalhando...
- Ele me irrita, Doc! - Protesto olhando-o pelos ombros de Doc. - Olha! Ele não para de me encarar!
- Não faz isso. - Doc me segura pelos braços e me faz olhar em seus olhos plácidos. Aquieto-me. - Vc sabe o que é ter de 'ralar' pra viver. Imagina o quanto ele deve estar suando ali dentro! - Arrependida, choramingo em seu peito.
- Tem razão. Eu sou um monstro.
- Filha, vem comer alguma coisa. - Um outro rompante de ira e comento, apontando para o urso que me observa à distância.
- Doc, eu conheço esse cara! Ele pode estar atrás da minha filha! Eu vou até lá!
- Adessa, não!
Um outro chute em sua barriga branca e arredondada e ouço o protesto de Antoine.
- Ele é meu amigo, mamãe! Não faz isso!
- Desculpa, filha...- Peço, envergonhada. Ajoelhada, eu a beijo no rosto. - Eu não vou mais brigar com ele. Juro.
- Vem, Adessa. - Ordena-me Doc, compassivo. Arrastando-me pela cintura, ele me distancia do filho da puta do urso que me acena com uma das patas enquanto vocifero, completamente bêbada. - VÁ PRO INFERNO E NÃO SE APROXIMA DA MINHA FILHA!
De volta à poltrona, eu vomito. Imediatamente, uma equipe da limpeza desfaz a imundície que provoquei. Limpo minha boca com lenços umedecidos fornecidos pela equipe que deixa o local, apressadamente. Doc me apoia ao me ver chorar compulsivamente distante das crianças. Cubro o rosto com as mãos quando ele me pergunta, intrigado.
- O que houve, filha? A festa está maravilhosa. Antoine está feliz. Por que esse descontrole?
- Luka não tá bem, Doc. - Confesso, assoando meu nariz com um dos vários guardanapos de pano sobre a mesa de frios. Engulo uma empada de queijo e prossigo. - É o amigo de Antoine. Eu preciso falar com ele, Doc. Eu preciso. Puta que pariu! - Levo a mão à testa e lamento. - Eu perdi o celular de Cassandra! Tá lá fora, Doc! Eu vou buscar!
- Espera! Eu vou contigo! - Diz Doc, desorientado. Antes de chegar à saída do salão, esbarro no ser peludo e preto com bochechas brancas. - Sai da minha frente, idiota! Eu ainda tô com raiva de vc! - Estendendo-me a grande garra, ele me entrega o celular e, caminhando desanimadamente, ele deixa o salão. Cismada, pergunto a Doc. - Como ele sabia que eu queria o celular?
- Não sei...- Diz Doc, assustado.
Após tomar duas taças de vinho tinto, eu o procuro por todos os cantos da mansão e não o encontro. Uma olhadela para trás e agradeço por Antoine estar se divertindo enquanto grita, histérica, na roda gigante, ao lado de Doc que a protege de todo mal. Como um parque de diversões inteiro cabe em uma mansão, eu não sei responder. Minha única pergunta está diante de mim e está pintada de vermelho.