'Dess - Uma História Interessante'

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AMO ESCREVER

CAPITULO 5 - RAGNAR E VALKYRIA




Sou um corpo sem alma. Um corpo usado com o único propósito de ganhar e acumular dinheiro para um futuro que, provavelmente, não terei. Não vivendo da forma como tenho vivido.

Toda pureza que havia sentido enquanto meu filho ainda habitava em mim escoara pelo ralo da devassidão na qual mergulhara após ter enterrado o único ser humano que poderia me curar de uma doença que me consome todos os dias, um pouco mais. 

Saio com homens cujos prazeres normalmente me enojariam, no entanto, quase sempre bêbada, finjo não ser eu mesma e me imagino como uma cópia borrada daquela que já fora um dia. Da amiga de  Giulia, 'minha menina', que me chamava de 'tia', sempre sorrindo e confiando em minhas tolas premonições sobre o balcão de sua cafeteria. 




Por vezes, dou graças por ela já não pertencer a esse mundo e não ter de me ver assim, como estou, seca por dentro e me entregando a qualquer um em qualquer festa ansiando por ser salva pelo homem que me machucara de todas as formas possíveis.





Qual a graça, o prazer...o tesão em se deitar entre minhas pernas enquanto urino em seu rosto!?

Gostaria de perguntar a esse cliente de quem acabo de me despedir, mas não consigo. A ânsia de vômito me impede de falar. Lembro-me de quase ter matado um degenerado que me pagara uma pequena fortuna para que eu o sufocasse com minhas mãos em seu pescoço. Usei da raiva que guardo de Vincenzo e, por muito pouco, não tirei a sua vida.

Degenerados. Tenho sido a rainha dessa raça, dessa escória.

- Argh! Por essa eu não esperava. - Penso alto com o convite de aniversário de meu pai a quem não vejo há séculos. Retiro o convite da caixa de correspondências relembrando-me do dia em que ele me expulsara de casa por achar que, aos dezesseis, eu já deveria estar contribuindo com as despesas. Com a conivência de minha mãe, eu parti com minha mochila nas costas, sem rumo. Suas últimas palavras foram premonitórias:

"Vá ser puta! Isso dá dinheiro!"

- Acertou, papai. - Zombo dele enquanto corro na orla. Antes de atravessar a avenida e voltar à minha casa, posso jurar ter sentido seu cheirinho de maçã verde vindo do motociclista que, por centímetros, não me atropela. Eu o xingo na expectativa de ser vista por ele. Sua cabeça, escondida por um capacete se volta para mim. Meu coração dispara. Um sopro de alegria toca meu rosto. Meu sorriso morre quando ele acelera a moto e desaparece entre os carros.

Eu pensei que fosse ele. Era tão parecido com ele! Por que não era vc, meu Vincenzo? Volta e me resgata dessa vida!



Não era ele. Ele não voltou e eu, segui adiante, com a sensação de estar retrocedendo.



Entre os convidados da festa de aniversário de meu pai que, bizarramente, lembrara-se de mim, reencontro o verme que violara meu corpo quando ainda era uma menininha fofa com seus seis aninhos de idade. Ele matou minha infância e destruiu a minha vida emocional e sexual em minutos de distração de meus pais.



Não compreendo como meu pai, de repente, surge em minha vida, ostentando riqueza quando ele me expulsara de casa, alegando pobreza.

- Foda-se. - Penso alto, encarando o monstro pedófilo. Por frações de segundos, imagino-o partindo-se ao meio como Jack Tequilla em seus últimos dias. A figura de Ga'al surge, inesperadamente, em minha mente e me pergunta.

'Quer que a Justiça seja feita?'

- Sim. - Respondo, inconsequentemente. Talvez pelo ódio ou pela bebida em excesso, crio uma conexão indesejada com Ga'al, o que me custaria muito, meses após a morte escandalosa do amigo de meu pai - o pedófilo - encontrado em seu quarto obscuro, com sérias lesões na coluna vertebral e a cabeça degolada. Em seu rosto ainda havia a nefasta expressão de prazer diante de um dos vários vídeos de pedofilia, encontrados pela polícia, em seus arquivos confidenciais. 

Que apodreça no inferno.


Doc, meu grande amigo, percebe meu sofrimento, embora eu nada comente com ele. 

- Não faça isso, por favor. Vc não precisa descer ao nível de Sweet.

- Eu sei, amigo. Não vou fazer. Prometo. Não vou deitar no palco e servir de depósito de esperma àqueles vermes podres que odeio.

- Afaste-se dela, meu anjo. - Pede-me Doc, compadecido. - Ela não quer o seu bem. Eu não sei te explicar como sinto isso, mas eu sinto. Ela tem te levado a agir de uma forma que vc jamais agiu antes.

- Eu sei...- Replico, de cabeça baixa, sentada no banco do bar, no 'California'. A camisa que Vincenzo esquecera em meu apartamento cobre meu corpo seminu enquanto converso com Doc e tomo um gole de cerveja, deixando escapar a fumaça do cigarro pelo canto da boca. Um riso triste e me lembro de seu espanto ao me perguntar: "Isso é maconha!?". Meu Vincenzo. Jamais beijara outros homens, amor. Meus beijos serão seus, idiota. Apareça. - Eu já não me suporto mais, Doc. Eu estou perdida. Eu me perdi de mim mesma. Preciso me reencontrar. Voltar a estudar. Não suporto mais ser o que tenho sido. - Consternado, ele argumenta.

- Vc me disse que havia encontrado um anjo, Adessa. Vc me disse isso no dia em que seu filhinho foi enterrado. Lembra? - Levo minha mão ao ventre, de olhos fechados e me recordo de Miguel, o Arcanjo. Envergonho-me de ter sucumbido às trevas quando ele me orientou a seguir por outro caminho. Parecendo ter me ouvido, Doc pergunta. - Por que não pede a ele que te mostre um caminho? O 'caminho de volta'? Vc não bebia, Adessa. Não fumava. Filha, eu só quero o seu bem. 

- Eu sei...- Repito entre soluços. Reconheço a verdade em suas palavras, porém, não tenho forças para sair desse caos que se tornara a minha vida. Antes havia luz. Meu Enzo. Vincenzo, Giulia. Por que me deixaram sozinha? Por que Jack não me matou no lugar de 'minha menina'? - Me ajuda, Doc. Vc é o meu único amigo. A única luz que ainda resta em minha vida. Sweet não é má, mas não é minha amiga. Eu quero sair da escuridão. Já tenho grana suficiente pra ficar em casa e me desintoxicar de tudo isso. Limpar meu corpo, minha alma. - Choro copiosamente sobre o balcão sob o olhar desorientado do barman que substituíra Jack. Rejeito a garrafa de cerveja que ele acaba de abrir. Sweet a toma de sua mão, suada. Em suas costas, as marcas do piso do palco em madeira onde ela se deixara foder por alguns clientes que assistiram ao seu show vulgar. - Não. Obrigada. - Rejeito a garrafa que ela me oferece. Há desconfiança em seu olhar quando encara Doc e a mim. - Quero que fique com meus clientes, Sweet. Vou precisar de umas férias. - Aviso-a enquanto a vejo sorrir e pedir outra cerveja. Seus olhos gananciosos faíscam. Não a culpo. Tem duas filhas para criar sozinha. Deve ter sofrido muito até se acostumar a uma vida mais desregrada do que a minha. 

- Aonde vai? O padre voltou? - Exalo. Não sei se pela dor em me lembrar de Vincenzo ou por ele ter me deixado e jamais ter mantido contato. Como eu fui me apaixonar por alguém como ele??? Eu, como uma puta, deveria ter tido cuidado, mas seus olhos azuis e plácidos...- Adessa! Quando vai voltar? Vcs estão juntos novamente?

- Não responda, meu anjo. - Interfere Doc, claramente contrariado com o súbito interesse de Sweet em minha vida sentimental. Uma vida que não existe. - Ela não tem nada a ver com isso. - Assevera ele sem desviar os olhos incisivos de Sweet que arrota ao devolver a garrafa vazia ao balcão. Um riso debochado e ela o confronta.

- Vc não gosta de mim. Não é, Doc? Não precisa responder. Eu sei que não. Adessa é a sua predileta. - Em silêncio, ele a encara. - Sempre foi. Não me importo. Eu gosto é de grana e não de amigos. Preciso de homens. Amigos não pagam as minhas contas.



- Sweet, pega leve. - Peço. Não há como negar o quão magoada ela se sente com relação à amizade que me une a Doc. - Ele gosta de vc também, mas de uma maneira diferente. Só isso. - Doc sorri para mim. Eu retribuo seu sorriso. Seu coração é bom e me entende. - Volto daqui a um mês. Enquanto isso, vc pode juntar uma graninha pra comprar os presentes de Natal das meninas.


- Valeu, amiga! - Abraçando-me, ela se despede. De costas para mim, ela me fere ao dizer. - Manda um beijo ao seu padrezinho gostoso. Quem sabe um dia ele me enxerga? 


Quem sabe, um dia, ele me enxergue e veja o quanto eu ainda o amo, Sweet?





Abro a porta da sala de meu apartamento. Meus olhos tristes incidem sobre a mesinha do hall onde ele jogava suas chaves antes de preparar o jantar. Seu cheiro ainda permanece no sofá onde me deito agora, encolhida, em meio à escuridão. Ouço meus soluços enquanto choro agarrada à sua blusa com cheiro de maçã verde. Sinto-me suja, velha, sem vida. 

- Preciso voltar a estudar. - Digo a mim mesma, debaixo da ducha morna. Enrolo-me na mesma toalha em que ele se enxugava quando se demorava aqui em casa, assistindo a algum filme ao meu lado.

"Não posso te deixar sozinha hoje. Ele pode voltar", alegava Vincenzo quando ainda se preocupava comigo. Quando ainda era o pai do meu filho. 

- Quem sou eu? No que eu me transformei? - Pergunto ao meu reflexo no espelho embaçado pelo vapor da água morna...quase quente. Seco meus cabelos com a toalha úmida que jogo no cesto de roupas sujas onde ainda guardo uma de suas camisas em malha para os momentos de extrema dor e saudade. Visto minha camisola longa, branca, com mangas e um decote em "V". Penteio meus fios umedecidos fitando a cama onde nos deitávamos somente para conversarmos sobre o futuro de nosso filho. Por que ele não me queria como mulher? Eu não era desprezível como sou agora. Eu tinha luz dentro de mim. Minha pele era viçosa. Meus seios, fartos. Minha alma era leve. - Vincenzo, onde vc está? Consegue me ouvir, amor? Claro que não. - Concluo, desolada. Recolho os fios do pente de cerdas largas e volto ao banheiro. Jogo os fios na cestinha de lixo e, ao me ver refletida no espelho, grito, horrorizada. 

Há uma mensagem escrita na parte ainda embaçada.

"Sentiu a minha falta?"


- Por que faz isso comigo? Solta as minhas mãos, por favor. Eu não vou fugir.

- Não mesmo. Eu vou te foder até te matar. - Rosna Ga'al dentro de mim. Seu pau insaciável me fere as entranhas enquanto me penetra sem parar. Já perdera as contas dos dias ou horas em que estou aqui, em minha cama, os lençóis sujos pelo meu sangue e seu gozo fétido. São raros os momentos em que eu vejo a luz da lua pelas frestas da janela sempre fechada. Ele as cobriu com lençóis para que eu perca a razão, a lucidez. Talvez seja o melhor a ser feito. Enlouquecer e morrer. - Ainda não, Adessa. Vou te foder bastante antes de acabar com esse corpo que não me serve para mais nada. Vc não pode mais ter filhos.

- Mentira, demônio. Vc não tem como saber disso. - Suas mãos pressionando meu pescoço me deixam sem ar. De olhos abertos, encaro o teto. O mesmo teto que via enquanto sorria ao lado do meu Vincenzo...- Me mata...- Meu pedido escapa de minha garganta enquanto minhas pernas abertas se movem, desesperadamente. Penso em me encontrar com meu filho...Giulia...quando ele, subitamente, me deixa respirar, recuando. Puxo o ar pela boca desmesuradamente aberta. Ele gargalha enquanto me engasgo com a minha própria saliva. Apesar de desejar a morte, eu o odeio quando seu punho forte e pesado me atinge nos olhos. Mais sangue respingado sobre o lençol imundo com resquícios de meus excrementos.

Estou presa, atada à cordas sem noção do tempo. Sou proibida de me levantar e ir ao banheiro. Seu cheiro me causa asco. Meu cheiro me enoja. Gozar enquanto sou invadida repetidas vezes por seu pau...me dá nojo. Nojo de mim mesma. 



Doc não vai sentir minha falta. Eu avisei que me afastaria. Idiota. Eu avisei a todos que me afastaria por algum tempo. Tempo suficiente para que Ga'al me estupre de todas as formas e me espanque enquanto ri de meu sofrimento.

- Por que tanto ódio de mim? - Pergunto num dos raros momentos em que ele se afasta e se senta num dos cantos do meu quarto, agora, claustrofóbico. - O que eu te fiz?

- Tudo, Morgana. Tudo. 

- Não sou a tua Morgana. - Refuto, quase sem vida, estirada no colchão fedendo à urina. Meu corpo todo dói. Por fora e por dentro. Por que não me levam daqui? Quero encontrar com meu pequeno Enzo. - Me dá um pouco de água, por favor. Minha garganta está seca. - Um sorriso satânico se desenha em seu rosto quase humano quando ele vem em minha direção e, mostrando-me seu pau ainda úmido, ele o enfia em minha boca e me obriga a chupá-lo. 

- Vou matar a tua sede, vadia!

Engasgo com seu pau em minha boca. Aflição, horror e dor se misturam em minha mente à beira da loucura. Enfim, ele goza e me deixa livre para vomitar sobre a cama, sem forças para implorar por água. Cerro os olhos, procurando por boas lembranças e não as encontro. Estou me esquecendo de mim mesma e ainda estou viva...presa a esse monstro que, num gesto quase humano, me serve da água da pia do banheiro em meu quarto.

- Obrigada. - Digo num fio de voz. Quase não o enxergo. Meus olhos devem estar inchados. Desatando os nós das cordas em  meus pulsos, ele me liberta. Não consigo mover os braços inertes por tanto tempo. Olho para a porta aberta e desisto de fugir. Não conseguiria sequer andar de tão fraca que me sinto. - Por que estou presa? Por que não me mata logo? Não! Dói! - Num esforço hercúleo, ergo os braços dormentes e o impeço de se deitar sobre mim. - Me deixa descansar um pouco. Por favor, eu te imploro. - Vejo dúvida em seu olhar. Então, prossigo. - Se ainda quiser usar meu corpo com vida, me deixa descansar um pouco.

- Eu já te amei, Valkyria...- Confessa Ga'al recuando até o armário, sentando-se no chão. Minha visão turva ainda enxerga sua expressão de dor ao erguer os olhos vermelhos ao teto. Exaurida e curiosa, pergunto num tom baixo.

- Quem é Valkyria? 



RAGNAR E VALKYRIA - SÉCULO X

Escandinávia 

Nasci livre. Vivi livre até meus quatorze anos. Eu era feliz ao lado de minha mãe que me ensinara Magia. Era ela quem trazia vida à nossa aldeia. Era parteira, benzedeira e curandeira. Enquanto estivera ao seu lado, fora feliz correndo livre pelas relvas verdejantes de nosso vilarejo. Inspirando o vento frio dos penhascos. Livre! Livre até a chegada dos homens cruéis em nossa terra, em uma noite de lua cheia.



Toda a aldeia fora dizimada por seus machados sangrentos. Homens cruelmente mortos. Mulheres violadas. Gritos dos filhos que eu procurei proteger e esconder enquanto assistira a morte lenta de minha mãezinha através dos arbustos, próxima à floresta para onde deveria ter fugido se não me importasse com o destino das crianças.

Poderia ter fugido, mas não consegui...

Voltara para os braços da Mal. Para os braços fortes e rudes do homem mais cruel do que os que ceifaram a vida dos habitantes de nossa terra. Em troca da vida das crianças órfãs, eu me deixei levar por Ragnar Lodbrok, filho de Odin e, por ele, fui brutalmente violentada na noite de nosso casamento.

Chorar eu não podia porque seria severamente castigada. Então, enquanto ele dormia roncando como um porco, eu corria, como a criança que eu era, pelas relvas, agora, em busca da Morte que levara minha mãezinha consigo. 


Durante minhas curtas fugas de sua maldade, converso com fadas, gnomos e borboletas que me enchem de esperança ao sussurrarem que dias melhores estão por vir. Na ponta do penhasco, fitando o horizonte. As ondas do mar gelado, abaixo chocando-se contra as rochas, me contam o contrário. Melhor seria pular e me reencontrar com a minha mãezinha.

"Pule", incentiva-me a voz que vem com o vento. Fadas me rodeiam e, voando, puxam-me pelos meus longos cabelos enquanto, irritadas, me advertem.

"Vc ainda vai ser livre e feliz. Não pule. Não morra!"



Pelas crianças, retorno à aldeia, esperando que Ragnar tenha partido em uma de suas muitas viagens selvagens onde leva o horror e a morte por onde passa.

- Aonde foi? - Pergunta-me ele, desconfiado. Sem olhar em seus olhos lascivos, sigo até o centro da cabana onde mantenho a fogueira acesa e, cuidadosamente, retiro da pesada panela, um ensopado de carne e legumes, fumegante. Sirvo-lhe num prato de barro enquanto tomo um pouco do caldo. - Responda! Aonde foi tão cedo!?

- Já é tarde. Vc dorme demais. - Refuto correndo para lhe servir o pão. Resmungando, ele me causa asco ao tocar na comida com a mão imunda, mastigando-a ruidosamente. Sentada no lado oposto da cabana, observo seu jeito de se portar. Suas feições, apesar de grosseiras, têm um toque de beleza. Uma beleza selvagem. Poderia gostar dele se não fosse por sua índole má e violenta. - Quer mais? - Arrotando após engolir o vinho no caneco num único gole, ele assente com a cabeça. Arrepio-me de medo quando ele toma mais do vinho e, erguendo-se da cama em palha sobre o chão, vem em minha direção, gritando num tom grave. - Quero vc! Depois, como mais!



Esqueço-me de que tentar fugir é pior. Melhor teria sido me entregar a ele sem resistir. Rasgando meu vestido de lã, ele me faz deitar sobre a palha e me sufoca com seu peso. Giro o pescoço para o lado a fim de não encarar seu rosto enquanto me penetra com fúria e prazer. Comprimo os olhos de dor. Ainda estou seca por dentro e seu pau me machuca. Ele ordena que eu fixe meus olhos nos dele. Rejeito sua ordem. Sua mão pesada esbofeteia meu rosto. Chorando de raiva, eu o obedeço. Obedeço ao homem que matara minha mãe com um simples gesto de cortar-lhe a garganta. Ainda me lembro de seu olhar triste antes de partir para o 'Outro Mundo'. Juro por minha mãe que eu o matarei com minhas próprias mãos quando a hora chegar. Por enquanto, serei apenas a sua escrava. - No que está pensando!? - Pergunta-me ele, ressabiado. Vc terá o meu corpo, monstro. Minha alma, jamais! - Fala!

- Em nada. - Respondo, catando os pratos do chão de terra batida. - Vou trazer mais lenha para a fogueira.

- Não demore muito. Amanhã partirei bem cedo. Quero te foder novamente.

A alegria em saber que serei livre por alguns dias é maior do que o nojo em ser usada violentamente por ele que se diverte em socar meu rosto e chutar o meu ventre enquanto me curvo sobre o chão.

- Isso é para vc não se esquecer de que pertence a mim.



Ragnar parte com seus homens barulhentos e fétidos. Aliviada, brinco com as crianças que me amam. Lido com as mulheres que me olham com desprezo e temor por eu ter cabelos loiros, quase brancos. Minha mãezinha dizia ser um sinal de que seria uma poderosa guerreira e feiticeira. Que falaria com os mortos e escolheria aqueles que, junto a mim, encontrariam a paz no 'Outro Mundo'.  Que traria à Terra, centenas de novas vidas e me casaria com um homem gentil e cheio de luz. Dou graças aos deuses por ela não estar aqui e me ver sofrer nas mãos de um demônio brutal. 

Diante de minha árvore predileta, peço que minha mãe me leve daqui antes de Ragnar retornar de sua viagem. Meu corpo ainda frágil não aguentará mais uma de suas selvagerias. Subo em um de seus troncos e, comendo uma maçã, me perco contando as estrelas num céu absolutamente colorido por ondas de luzes de várias cores.



- Algum dia, darão um nome a vcs. - Arregalo os olhos, acuada. Olho para baixo. Seu cavalo tem pelos lisos, brilhosos como seus cabelos soltos ao vento. O homem sobre o cavalo admira as estrelas sem notar a minha presença. Cravo os dentes na maçã. O ruído chama sua atenção. Escondo-me entre os galhos e flores, prendendo o riso. - Tem alguém aí? - Jogo o que sobrara da maçã em sua cabeça e, sem conseguir prender o riso, respondo que não. - Isso não teve graça, senhorita. 

- Como sabe que sou uma mulher!? Eu estou escondida!

- Vc é ainda uma doce jovem. Doce e bela. Aposto.

Um sorriso bobo se desenha em meu rosto enquanto me prendo aos galhos. Nunca sentira nada assim antes. Um frio no estômago que sobe até a minha nuca. Ainda estou sorrindo quando ele, saltando do cavalo, olha para cima e pergunta.

- Pretende ficar aí até o anoitecer? Dizem que esses caminhos são perigosos para mocinhas indefesas. Desça daí.

- Não posso. - De fato, não consigo me mover de tão encantada com o tom de sua voz. É tão suave...- Vá embora! Aqui é mais perigoso para peregrinos como vc! Vá!

- Desça daí agora ou subo para te pegar. - Borboletas. Sinto o farfalhar das asas de borboletas em meu estômago e não sei explicar o porquê. - É fome. Tenho comida em meu farnel. Gosta de bolo de chocolate?

- Chocolate!? O que isso!? É de comer!? - Um descuido ao olhar para baixo e meu corpo escorrega dos troncos. Seus braços me amparam na queda. Confusa com seu olhar meigo e seu riso leve, pergunto. - Como vc consegue cheirar à maçã!? É Magia!?



- Não. - O estranho ri comigo ainda em seu colo quando esclarece. - É banho e um pouco de perfume. Conhece perfume? Vc cheira à lavanda. Sabia? - Percebendo que estou enlaçando meus braços em seu pescoço, ruborizo, pedindo-lhe que me ponha no chão. Diante dele, sinto-me desajeitada, feia. Penso no que ele deve estar pensando de mim, no momento. Um de meus olhos, inchado. Manchas roxas por toda a pele alva. Estranhamente, ele responde sem que eu nada tenha dito. - Penso que vc é a criatura mais bela que já vi em minha vida. És uma fada ou um ser humano de verdade?

Recuando, assustada, questiono.

- Como consegue ler o que penso!? És um mago!?

- Não.

- Um curandeiro!?

- Não! - Diz ele, gargalhando. Gosto da maneira como ele joga a cabeça para trás ao gargalhar e, ao retornar a me olhar, abre um lindo sorriso. - Eu sou apenas um homem comum, viajando pelo mundo.

- O que procura!?

- Uma mulher que me foi muito especial...- Um passo à frente e, curiosa, indago.

- Ela morreu?

- Não. Está viva, pela graça de Deus. 

- Seus olhos brilham quando fala nela. - Observo, um tanto enraivecida. - Era sua esposa?

- Sim. E sempre o será. Vidas e vidas se passam e eu continuo a me casar com ela e a perdê-la para a morte.

- Isso é triste...- Lamento. - Que tipo de deus é o seu que permite que duas pessoas que se amam de verdade se separem tantas vezes?

- O mesmo Deus que permitiu que sua mãezinha morresse nas mãos daquele homem cruel. - Recuo, horrorizada. - Não tenha medo! 

- Não se aproxima! Vc não poderia ter sabido disso! És algo demoníaco! - Agarrando uma pedra com uma das mãos, ameaço. - Te afasta de mim ou vou te matar!



- E vai perder a chance de provar o bolo de chocolate!?

- Posso te matar e, depois, abrir seu farnel e comer do bolo, sentada sobre seu corpo morto. - Mais uma vez, as borboletas no estômago ao vê-lo sorrir para mim como nenhum homem jamais sorriu. - Não faça isso novamente!

- Isso o quê?

- Sorrir desse jeito!

- Por quê!? - Rindo, ele ainda é pior...ou melhor. Estou confusa e tonta. Meu coração pulsa, descompassado. Um pulsar gostoso. Não é por medo de Ragnar. É diferente. É um pulsar que me  enche de esperança e alegria. Apoio-me no tronco da grande árvore e peço forças à minha mãezinha. Não posso sucumbir ao Mal assim tão facilmente. - Não sou o Mal. - Defende-se ele enquanto arremesso a pedra em sua direção. Ele, de uma maneira muito ágil, desvia-se dela. Há tristeza em seus olhos quando diz. - Tenho um bom coração. Por que tem medo de mim? Não vou te fazer mal. Prometo. Quer provar do chocolate? - Dando um passo à frente, ele estica a mão onde o pedaço do bolo exala um aroma diferente do que costumamos comer. Bem próximo a mim, ele sussurra. - Por favor, não tenha medo de mim. Vc seria a última pessoa a quem eu machucaria nesse e em outro mundo. Come. Vai. 'Mangia che te fa bene!'

- Que língua esquisita! Mas eu gosto dela. De onde vc veio? 

- De um lugar distante.

- Aqui é perigoso para vc. Vc não conhece os homens da minha aldeia. Temo por sua vida.

- Temo pela sua, se não provar o chocolate.

Rimos juntos. Após anos de escuridão, eu me sinto leve...livre. 

- Delicioso...- Cerro os olhos, degustando o pedaço do bolo que se derrete em minha língua. - De onde vc vem, tem muito disso? - Aponto o polegar ao restante do bolo em seu farnel e entusiasmada, comento. - Parece vir do deuses...

- Coma mais um pouco.

- Não posso! Vou tirar de vc quando partir! - Um aperto no peito e, exalando, sussurro. - Aonde vai? Precisa partir ainda hoje?

- Não. Eu não vou partir. - Afirma ele olhando-me nos olhos. Seus olhos azuis me fascinam...- Já encontrei o que tanto procurava. - Hipnotizada pelo tom doce de sua voz, pergunto.

- E o que procurava?

- Pela minha esposa. Minha amada esposa e companheira. 

- Onde!? - Engulo em seco, inflando as narinas. Por que estou com raiva de uma mulher que desconheço? - Talvez eu a conheça!

- Certamente. - Comenta ele, recostado ao largo tronco da árvore. Ao seu lado, eu me sento, despreocupada...segura. Não tenho medo de Ragnar e sua fúria. Ao lado do estranho, eu me sinto, finalmente, em paz. - Ah! - Estendendo-me a mão, ele espera por algo que não compreendo. Um riso tímido e ele esclarece. - Vc precisa me dar a sua mão para que eu a beije quando disser o meu nome. É assim que se faz em meu país. - Sorrindo, eufórica, estendo meu braço. Seus lábios tocam a pele do dorso de minha mão quando descubro seu nome. - Francesco. Francesco Rossi. E o seu, jovem senhorita?

- Valkyria.

- Seu nome é lindo! Tão lindo quanto vc, Valkyria.

Meu nome, em sua voz, parece-me encantador! Percebo, somente agora, que Ragnar jamais dissera meu nome com tranquilidade. Sempre fora aos berros...ou urrando como um porco sendo abatido.

Perco a noção do tempo ao seu lado. Conversamos sobre seu povo e suas tradições. Ele me ouve falar de minha mãe e do quanto ela me ensinara. Deitados sobre a relva, admirando os tons de várias cores que se movem como ondas, ele graceja.

- Então, estou falando com uma poderosa guerreira e feiticeira?

- Quem me dera! - Exalo. - Se eu fosse uma grande guerreira já teria dado fim ao meu destino. Já teria matado Ragnar...

- Quem é Ragnar? - Pergunta-me Francesco, virando-se em minha direção, apoiando os cotovelos na grama úmida. Não quero lhe dizer a verdade porque, certamente, ele vai se afastar de mim. Sou casada com um assassino devasso e impiedoso. Queria ser livre e lhe dizer que ainda sou pura. - Por que pensa tanto, meu anjo? Não confia em Deus? Tudo muda a todo instante. Nada é para sempre.

- E o seu amor por sua esposa? Não é para sempre?

- Sim. Para sempre...

- Por que me olha desse jeito? Dá medo. - Posso morrer aqui, deitada ao seu lado observando cada detalhe de seu sorriso manso. - Preciso ir! - Ergo, subitamente, meu tronco.

- Não! Ainda não! - Puxa-me ele pelo braço. - Quem é Ragnar?

- Meu marido. - Respondo de cabeça baixa, sentada, abraçando meus joelhos flexionados. Há flores por todos os lados, festejando o nosso momento. 



- Vc o ama?

- Nunca! Eu o odeio! Tenho-lhe nojo, asco! 

- Fique calma! - Abraçando-me, ele tenta conter a crise de raiva que me acomete. Jamais me perguntaram sobre a minha união com aquele monstro. É a Francesco que confesso. 

- Prefiro a morte a ser tocada por ele novamente! Não quero voltar! Não quero voltar! - Descontrolo-me, chorando em seu ombro. - Ele é um demônio, Francesco. Ele matou minha mãezinha diante de mim. Eu me escondi para salvar as crianças, mas eu vi em seus olhos que ele sabia que eu a vi morrendo. Ele sabia! Aquele porco imundo sabia!

- Valkyria, te acalma. - Sussurra ele contra meus lábios. - Precisamos curar as tuas feridas, meu anjo.

- Vc precisa ir embora! Ele vai te matar! Eu sei! Eu sinto!

- Que eu morra em teus braços, amor.

- Amor!? E a tua esposa!?

- Está aqui, diante de mim. Ela sempre se esquece de quem eu sou até que eu a beije novamente. Tem sido assim por séculos e, assim será.



- Por favor, vá embora. Ragnar é mau e bárbaro. Não quero que ele te machuque. Não vou aguentar te ver mo...

Seus lábios tocam os meus. Lábios doces, macios. Seu beijo...seu beijo...

- Vc nunca foi beijada antes. - Constata ele.

- Nunca. - Confirmo. - Ragnar usa meu corpo, mas não toca a minha alma. - Voltando aos seus beijos, ouço os sinos das fadas ao nosso redor. Elas comemoram a chegada do meu grande amor. - O que houve? Por que me olha assim? Eu sei. Sou uma vagabunda que beija um forasteiro que acaba de conhecer...

- Não. Vc é a mulher por quem procuro a minha vida inteira. Quando vai parar de me deixar sozinho?



 



- Nunca mais...amor. - Eu o abraço com força e pavor. - Eu nunca mais quero me separar de vc, Francesco. Nunca mais.



Nunca mais. O tempo perfeito para que almas gêmeas vivam juntas e em paz.

Paz que somente encontraríamos após séculos de lutas, erros e acertos.

Cercados por velas acesas, ele me faz deitar e fechar os olhos. "Tenha fé", pede-me ele, serenamente. O tom de sua voz muda ao recitar algum tipo de oração em um idioma que desconheço. Não preciso abrir os olhos para saber que suas mãos passeiam centímetros acima de meu rosto desfigurado e de meu corpo dolorido. Aos poucos, um torpor toma conta de mim. Quando abro meus olhos, eu o vejo sorrir, sentado à minha frente.

- O que fez comigo?

- Magia, amor. Magia.

- Eu me sinto muito melhor!

- O Senhor te curou!

- O teu deus?

- O nosso Deus, Valkyria. - Puxando-me para si, ele repete. - O nosso Deus.

- Obrigada. - Digo abraçada a ele.

- Dança comigo? - Enxugando minhas lágrimas com o dorso de sua mão, ele ri de minha pergunta.

- Sem música!?

- Shhhh. Escuta, amor.

- Não ouço nada. - Cochicho. - Como consegue ouvir música?



- Basta imaginar e o Universo cria! - Exultante, ele gira em torno de si mesmo e, curvando seu tronco para frente, me convida a dançar. Aceito porque desejo sentir seu corpo contra o meu, uma vez mais. - Feche os olhos e ouça a melodia que vem da floresta. 

- Nós costumávamos dançar?

- Sempre. - Sorrio ao fechar os olhos e recostar minha cabeça em seu ombro. Jamais fora tratada com tanta gentileza por um homem. - Ouça a música, Valkyria e se deixe levar...por mim. 

- Eu deixo...

- Do you wanna dance...?- Cantarola ele.

- O que significa isso?

- Que eu te amo...hoje e sempre. Per sempre.




Enquanto Ragnar não retorna de sua viagem, após meus afazeres, volto à floresta onde Francesco se abriga em uma caverna mais aconchegante do que a cabana onde deveria ser o meu lar.



Ele me faz montar em seu cavalo e seguimos rumo aos pequeninos riachos com água naturalmente aquecida. De olhos fechados, ele avisa.

- Pode entrar. Eu não vou olhar.



Mergulho na água, afundando a cabeça, escondendo meu sorriso de felicidade e meu corpo nu. Estamos juntos e a sós. Algo dentro de mim anseia pelo seu beijo, por seu corpo que não vejo. Lá fora, o vento gélido e cortante me avisa num murmúrio.

"Tenha cuidado. Há olhos por todos os lados".


Inconsequente, decido não ouvir o vento e seu sábio conselho. Nossos pés se encostam debaixo d'água. Solto um riso eufórico enquanto ele, sorrindo, me questiona.

- Quanto anos vc tem, Valkyria?

- Dezesseis. Tinha quatorze quando aquele monstro me sequestrou.

- Ei! Não fique triste! Nós dois vamos dar um jeito nisso! Certo?

- Como??? Ele é muito forte e mau! E ainda conta com o apoio de seus amigos tão maus quanto ele!

- Com Magia. - Responde-me ele, acariciando meus cabelos molhados. - Não estou diante de uma grande feiticeira? - Baixo a cabeça e me encolho ao responder.

- Não me recordo de mais nada do que minha mãezinha me ensinou. Havia poções para todos os tipos de doenças...

- Poções para fazer dormir? - Um brilho enigmático perpassa por seus lindos olhos quando ele insinua. - Vc poderia fazê-lo dormir por um tempo?

- Para quê? - Tremendo de frio e temor, continuo. - De que me adiantaria ter Ragnar dormindo se, quando acordasse, ele me espancaria novamente?

Repentinamente, ele se aproxima de mim e, encarando-me com seriedade, promete. 

- Ele nunca mais irá te espancar novamente. Vc vai se lembrar de toda a Magia que sua mãezinha te ensinou e vai usá-la contra a maldade dele. Defenda-se até que possamos fugir daqui...casados. 

- Casados??? Vc e eu??? - Nossas coxas se esbarram. Suas mãos em meu rosto me obrigam a olhar em seus olhos fúlgidos. O vento ruge. A chuva fria cai sobre nossas costas. Ele me abraça forte e sussurra. 

- Vc é minha, Valkyria e sempre será. Seus nomes serão muitos. Seu rosto mudará com o passar dos séculos, mas o seu coração pertence a mim e o meu, a vc. Casa comigo?

- Sim. Eu caso. - Surpreendo-o quando tomo a iniciativa. - Finja que sou pura e me faça tua mulher...agora.

Seus olhos surpresos me fitam com paixão quando monto em seu tronco e sento-me em seu pau ereto. Pela primeira vez, não sinto dor. Estou umedecida por dentro. Livrando-se do pudor, ele me segura pela cintura e se movimenta por baixo da água quente. Seu boca, cuidadosamente, beija meus seios marcados pelos dentes de Ragnar.

- Não! Não os cubra! São lindos!



- Não são...- Choramingo. - Aquele monstro...- Sua mão tapa minha boca quando ele me pede.

- Não fala nele. Fica comigo. - Algo sai de mim, fazendo-me tremer e não é pelo frio. - Vc teve um orgasmo. 

- Orgasmo? O que é isso? - Deitada em seu colo, após ter sido absolutamente sua, ambos cobertos pela água, ouço suas palavras expressando compaixão, ditas bem próximas ao meu ouvido.

- Vc é tão jovem ainda. Sequer conhece seu corpo e já sofre nas mãos daquele ser maligno.

- Vc não me quer mais? - Pergunto a Francesco antes de partir, de volta ao inferno. Sorrio, debaixo da chuva forte quando o ouço proclamar, à distância.

- Te quero ainda mais, meu amor! Amanhã estaremos longe daqui! Não se esqueça do que combinamos!

- Nunca! Ele vai demorar a chegar! - Exclamo, ansiosa. - Amanhã será o dia mais feliz da minha vida! Te amo, Francesco!

- Te amo, minha Valkyria! Te espero antes do amanhecer!

- Não me deixa!

- Nunca!

Num impulso, volto até ele e o beijo uma última vez. Surpreso, ele sorri enquanto corro, saltitante, pela relva. 

Dizem que a Esperança é a última a morrer.

Enganaram-se.

Os esperançosos morrem antes...



Decepção e desespero se misturam dentro de mim. Agradeço à chuva por ter lavado o cheiro de Francesco de meu corpo, embora eu sempre o guardarei em minha memória.

Ragnar aguarda por mim, esfomeado. Há uma festa na aldeia. Amanhã, pela manhã, os homens sairão, novamente, à procura de ouro e escravos no Oeste. Estão exaltados, ansiosos. Cantam e dançam,  reverenciando seu deus. Acreditam-se dignos de Odin, o deus dos deuses. Clamam para que morram e que possam entrar em 'Valhalla', o céu dos homens mortos com dignidade. Em silêncio, eu os sirvo. Levo seus pratos a eles que elogiam meu tempero, exceto Ragnar. Não gosto da maneira como me olha. Sei bem o que ele quer. Corro para dentro de casa quando o vejo se levantar de seu banco ao redor da mesa e vir em minha direção. Há curiosidade em seu olhar maligno. - O que aconteceu com seu rosto? - Pergunta-me ele. 

- Vc me espancou. Não se recorda?

- Claro sim! Ele estava desfigurado e agora, está perfeito! O que aconteceu com seu rosto!? - Não sei responder porque até agora, não me olhei no espelho e, mesmo que o fizesse, pouco reflete a minha imagem de tão fosco que é. - Isso é magia? Coisa da puta de sua mãe?

- Sim! - Imponente, respondo, levando os dedos ao rosto sem dor ou hematomas. - E não ouse chamar minha mãe de puta! Vc não tem esse direito! Vc não a conhecia! Fale o que quiser de mim, mas não ouse tocar em seu nome! Vc é indigno de tocar em seu nome!

- Desde quando vc fala nesse tom comigo!? - Apertando meu braço com força, ele me desafia, mostrando-me seus dentes afiados por ele mesmo com lixas de ferro. Seu rosto é o reflexo de sua alma monstruosa. - No que está pensando!? Fala, puta! Fala! 



Em silêncio, sou brutalmente espancada até cair no chão, sem forças para revidar. Chutes e socos me tiram o ar. De nada adiantaria revidar. Ele me espancaria com mais brutalidade ainda.

- Fala, puta! - Meu silêncio o incomoda e o excita porque ele está sobre mim agora, despido. Com a mão, ele rasga meu vestido ao meio, deixando-me nua. Crava seus dentes em meu pescoço. Grito de dor. Ele gargalha, diabolicamente. - Vou te marcar para que saibam de quem vc é e sempre será até após a sua morte. Infeliz daquele que te olhar com os olhos de homem. Eu o mato diante de ti e, depois, te mato também e, quando eu voltar, quero te encontrar dentro de casa! Entendeu!? - Encarando-o com os olhos cheios de ódio, penso em Francesco e no quanto eu gostaria de estar longe daqui. - Responda!

- Sim. - Rosno, convencida a aceitar a proposta de Francesco. Assim que Ragnar adormece, cato meus poucos pertences e os envolvo em um pano, unindo suas pontas. Escondo a sacola em um dos cantos escuros onde guardo as panelas e canecos. Tento adormecer, mas não consigo.



Francesco e eu nos casamos no dia seguinte. Ele mesmo criara uma coroa de flores para adornar os meus cabelos e cobrira meu corpo com um longo e lindo vestido branco. Irradiante de alegria, diante de seu sorriso meigo, dissera 'Sim' à Cruz de madeira onde Seu Deus fora crucificado. Um Deus de amor, perdão e bondade. Seu Deus passara a ser o Meu também quando, dizendo 'Sim', Francesco unira nossas almas após uma breve leitura de seu livro sagrado. 



Ele repete o ritual de cura em meu rosto e corpo. O mesmo que realizara quando nos conhecemos. Sob os olhos do Crucificado, ele promete a si mesmo.

- Essa foi a última vez em que aquele verme tocou em vc!




Sob a luz das velas bruxuleantes, fizemos amor. Então eu soube o que é ser mulher. Em suas mãos, sentira prazer em ser tocada. Mais umedecida do que no dia anterior, emitia gemidos enquanto sua língua passeava por meu corpo nu.

- Sou tua esposa? - Pergunto, arfando, tendo-o dentro de mim. 

- Sim. Mais uma vez, tu és a minha esposa e para sempre seremos felizes, mesmo após a nossa morte. Eu nasci para vc, e vc, para mim.

Um beijo sela nossa última despedida. O sol está nascendo. Devo voltar à aldeia, despedir-me das crianças e, com a minha sacola, voltar aos seus braços, agora, para sempre.

- Não vá. - Implora-me ele. - Vc não precisa de roupas. Eu as compro para vc na próxima cidade. Vamos fugir agora, Valkyria.

- Por que tem medo, amor? Teu Deus me protegerá. Preciso levar comigo o anel de minha mãezinha, minha única herança e lembrança dela. Deixei na aldeia.

- Eu te imploro. Não vá. - Francesco me abraça forte enquanto ouço seu coração bater em descompasso. Eu nunca o vi  expressar medo em seu lindo rosto. - Tive um sonho. Havia chuva, lama, um punhal e sangue em seu rosto. Fica. Eu te peço.

- Eu fico. - Seu sorriso me faz esquecer de tudo, exceto do anel de minha mãe. Fazemos amor uma vez mais e, deixando que ele adormeça, ergo-me, caminhando silenciosamente até a saída da caverna. Olho para ele e me encho de júbilo. - Meu marido.  - Cochicho, apreciando o meu homem dormindo em paz. - Me espera. Te amo. Volto logo.


Por um anel, cometi o pior erro de minha vida.


Com o anel de minha mãe em meu dedo, procuro pelo saco de pano onde guardara meus poucos pertences. Desesperada, não o encontro. Lembro-me de Francesco a me dizer que eu não precisaria levar nada da vida que pretendo abandonar para sempre. Dou as costas para a fogueira, ainda acesa, onde cozinhava para Ragnar e corro em direção à saída. Por que a fogueira ainda arde se eu a apagara antes de voltar aos braços de Francesco pela madrugada?

Antes de chegar aos arbustos que cercam nossa aldeia, sou atingida, na cabeça, por algo pesado. Tonta, caio contra o chão. Ergo meu tronco ao ouvir a voz soturna da mais velha do clã de Ragnar ao me perguntar.

- Procurava por suas vestes? - Aponta ela para o saco de roupas jogado na lama. - Acaso pensa em fugir?

- Vou lavar minhas roupas no rio. - Rosno, percebendo sua raiva e inveja no brilho de seus olhos escuros. - Me deixa passar.

- Passe, por favor. - Desdenha ela, recuando com um sorriso bizarro em seu rosto enrugado. - Não se atrase. Teremos um dia inesquecível. 



Carregando o saco de roupas em meus braços, sinto os pelos de minha nuca eriçar. O vento frio e cortante açoita meu rosto enquanto me afasto, ligeiramente, das mulheres. Uma das crianças a quem me afeiçoei corre até mim e, puxando-me pela barra de meu vestido, me pede, com lágrimas nos olhos.

- Não vá! Não quero que se machuque! - Agachada, seco suas lágrimas com minha mão e, tentando sorrir, afirmo.

- Eu não vou me machucar, querida. De onde tirou essa ideia?

- Eu ouvi a minha mãe...- Arquejo, espantada, diante da brutalidade com a qual sua mãe a puxa para si e a faz se calar. Outro súbito arrepio e me ergo. - Corre! - Grita a pequenina antes de ser escondida em sua cabana.



"Já não há mais tempo", ruge o vento enquanto corro, subindo a colina, evitando o caminho por onde costumo passar. A chuva constante transforma a terra úmida em lama escorregadia. Levo um tempo até que eu atinja o topo do monte. Coberta pela lama, olho para o céu, deixando que as gotas da chuva fina limpem meu rosto. Pronta para recomeçar a correr, sou impedida por um cavalo que relincha à minha frente. Suas patas dianteiras se erguem enquanto me desvio de seu coice. Atordoada, sem entender de onde surgira o cavalo, arregalo os olhos quando ouço sua voz zombar de mim.

- Vai a algum lugar? Por que a pressa?

Imobilizada de pavor, eu o vejo surgir entre as árvores, montando seu cavalo arisco. Lutando para não perder as forças e desmaiar, reencontro seus olhos medonhos e, num lamento, digo seu nome.

- Ragnar.

- Valkyria?


De volta ao inferno, penso em Francesco que me aguarda em sua caverna. Aflita, procuro por uma maneira de fugir da cabana. Toco no anel de minha mãe e, de olhos fechados, peço que me ajude a salvar Francesco da morte.

De súbito, a figura de Francesco surge diante de mim. Temendo por sua vida, peço que se esconda. Ele abre um sorriso triste e me diz.

- Eu ainda te espero, minha amada. Tenha fé.

- Como conseguiu entrar!? Vá embora! Ele vai te matar!

- Eu vou te encontrar. Nessa ou em outras vidas, eu irei te encontrar. 

- Para de falar e fuja! - Impaciente, caminho em sua direção quando a mão pesada de Ragnar me puxa pelos cabelos. - Pode me matar, mas nele vc não toca!

- Pobrezinha...- Ironiza Ragnar asfixiando-me com sua mão em meu pescoço. - Deve estar enlouquecendo. - Erguendo-me do chão, ele me arremessa contra a parede e, com os olhos flamejantes, insulta-me. - Vagabunda! Puta! Vai ter o que merece!

- Me deixa sair! - Grito contra a porta em madeira. Olho ao redor e, alucinada, procuro por Francesco sem encontrá-lo. Levo a mão ao coração dolorido e me pergunto. - Eu estou ficando louca? Ele estava aqui. Que Seu Deus o tenha levado em segurança.

Acordo, num susto. Caminho até a porta aberta. 



Confusa, ouço tambores ruflando, gritos de vitória, urros de ódio, trovões. Vejo machados manchados de sangue. O céu cinzento, a chuva fria, um homem enorme de costas para mim coberto com manto de pele de carneiro. Música lá fora. Dentro da cabana vazia, a fumaça da fogueira escapa por um buraco no teto. Um homem enorme caminha em minha direção. Sinto medo. Grito quando ele retira o manto e ordena-me que tire meu vestido. Diante da turba ensandecida, recuso-me, lutando contra seus punhos cerrados. Rindo diabolicamente ele confessa ter matado o homem que me tiraria daquele inferno. O homem com quem eu me casara em segredo. 


Meu Francesco...



- Eu o matei nessa vida e o matarei em qualquer outra em que o encontrar! - Grita ele erguendo, como um troféu, a mão de Francesco. Em seu dedo, o anel de arame que selara nossa união.

- Não! Não não não não! Ele estava aqui!

Liberto-me de Ragnar e corro pela relva, gritando por seu nome. Nego-me a acreditar em sua morte.


- Francesco! Apareça! - Imploro, ajoelhada sobre a lama. A chuva forte esconde meu choro, meus urros de dor. Tombo contra a lama, ouvindo sua voz serena a me aconselhar:

"Viva e fuja. Tenha fé, meu amor".

- Não sem vc. - Ergo-me, enlameada. Sem temor, berro, com o coração sangrando, sob os pingos vergastando meu corpo frágil. Encarando as nuvens escuras, grito de dor. - NUNCA SEM VC, MEU AMOR! ME ESPERA! EU VOU TE ENCONTRAR!


Arrasto-me até o centro da aldeia onde todos me aguardam, ansiosos por meu fim. Jamais me sentira tão forte como nesse momento. Ragnar, com um chute, faz rolar a cabeça de Francesco sobre a lama imunda. Ajoelho-me e a recosto em meu peito, imaginando a dor que ele deve ter sentido em suas últimas horas aqui na Terra. Um urro de ódio e fúria escapa de minha boca aberta. Ragnar gargalha vindo em minha direção.



Queimo a mão ao acertar seu rosto com uma pedra de carvão incandescente. Surpreendido, aos berros, ele se joga ao meu lado, esfregando a lama fria em seu rosto. O riso de seus companheiros o irrita. Dominada pela ira, salto sobre ele, golpeando seu corpo com sua faca que roubo de sua cintura. Golpes aleatórios enquanto, de olhos fechados, grito por Francesco. Seu sangue respinga em meu rosto. Sua mão imensa domina a minha. Um simples erguer de tronco e ele pressiona seu corpo contra o meu. Cuspindo sangue, ele me encara, abrindo um sorriso triste. Surpreendendo-me, ele pergunta, num tom baixo.
- Vc o amava?
- Sim. E o amarei pela eternidade.
- Por que nunca me olhou com ternura? 
- Vc sempre foi cruel. - Exalo.

Abro os olhos, desmesuradamente. A dor lancinante me faz sufocar. Os pingos da chuva tocam a pele de meu rosto enquanto me afogo em meu próprio sangue. Minhas mãos se unem a dele sobre o cabo da faca com cerdas afiadas cravada em meu peito. Precisamente, em meu coração. Ainda consigo sorrir ao dizer, com extrema dificuldade. 

- Esse coração é dele, Ragnar. Vou me...encontrar com ele...e minha...mãezinha. - Sufoco um soluço quando ele, abruptamente, retira a faca de meu corpo e, apertando minhas mãos junto às suas, ele me faz perfurar seu peito, profundamente. Horrorizada, eu o vejo tombar sobre mim. Próxima do fim, eu o ouço sussurrar antes de morrer.

- Sem vc, eu não consigo viver.

Desorientada, cerro os olhos...

Definitivamente.




DIAS ATUAIS - CATIVEIRO

- Quem era Valkyria? 
- Vc não é burra, Adessa. Adivinhe! Surpreenda-me! 
- Fique calmo, por favor. Não me bata mais. Não vou suportar...- Imploro, abatida e comovida com a nossa história. - Vc não mudou em nada, Ga'al. - Lamento.
- Mas eu te amei, Morgana. Eu te amei por mais de uma vida e vc sempre me atraiçoando com aquele maldito!
- Não tenho culpa. Eu não sei quem ele é. Não agora.
- Não me faça de tolo, Adessa. Vc o conhece. Vc o ama. - Rosna ele com seus olhos lascivos. 
- Não. Não pode ser o mesmo. Eu não acredito nessa coisa de reencarnação. - Minto. - Francesco não pode ser Vincenzo. Vincenzo não me ama! - Defendo-me, devastada por seus socos e chutes em minha barriga. Sinto que, se permanecer aqui por mais tempo, nunca mais terei um útero para gerar um outro filho. - Não! Por favor! De novo não!
- Eu vou te foder até que vc morra, Adessa! Qual a parte que vc não entendeu!?
- A parte em que vc não me contou. - Refuto num tom baixo, traçando um pentagrama no piso do meu quarto enquanto ele me fode por trás. Já não existe dor no corpo dilacerado. Resta somente a dor na alma por não ser ouvida e salva por Vincenzo. Apago o pentagrama que traçara com meu próprio sangue e, em Latim, rogo por sua ajuda...- A parte em que eu me lembrei de quem eu fui. De quem eu sou, Ga'al.
- Do que está falando, puta!
- De Magia, seu bosta. Magia, seu verme. Vc não é um ser 'não humano'. Vc acaba de me contar seu segredo. Vc me deu a chave da porta que me prende a esse cativeiro, infeliz. Se vc não é um demônio, é um ser humano, como eu, logo, eu posso te ferir.

E eu vou te ferir agora mesmo...


Deixo-me levar pelas lembranças da vida que vivera como Valkyria. Entrego-me às memórias que invadem minha mente intacta. Meu espírito cede lugar a outro que fala por mim. Ouço minha voz, sem entender o que digo em outro idioma. Ga'al se afasta de mim, os olhos arregalados de medo diante da Luz que se espalha pelo quarto escuro. Enfim, eu o vejo com os olhos da alma porque os de meu corpo não se abrem mais de tão inchados e doloridos. 
- Recua! - Ordena Miguel, o Arcanjo. - Basta de tanta covardia! Retorna à Escuridão de onde veio! - Ga'al, revoltado, ainda tenta enfrentar Miguel que, num erguer de sua espada reluzente, o faz se encolher como um rato diante do gato. - Liberta essa mulher de teus desejos impuros e não retornes nunca mais!

- Foi ela quem me invocou. - Resmunga Ga'al, acuado. Os olhos incisivos e puros do Arcanjo incidem sobre os meus, agora, livre do espírito que me possuía. Envergonhada, imunda e sem forças, assinto com a cabeça, confessando meu erro. Eu o invoquei. Mesmo sem perceber, eu o invocara com maus propósitos gerados pelo trauma de um passado remoto. - Assume!

- Perdão. - Peço ao Anjo que me toca na cabeça. Entre soluços, repito. - Perdão. Eu não mereço a sua gloriosa ajuda. Estou cheia de pecados.

- O Mestre não veio curar os puros e sãos. - Ouço sua voz de trovão aliviar o meu coração. Chorando compulsivamente, encolho-me junto à cabeceira, sentindo repulsa por meu próprio cheiro. Cobrindo-me com um lençol, o bom Arcanjo ora por mim e, ao final, avisa. - Vc não está só. Tenta não cometer tantos erros, filha. Eles estão vindo...


- Eles??? Quem???

Pergunto à Luz que se apaga, aos poucos. Miguel partira deixando um cheiro de flores no ar. Ga'al ainda está em um dos cantos do meu quarto, embora tente se mover sem êxito. 
- Eu não vou partir, vagabunda. É uma questão de tempo.
- Seu tempo acabou, meu caro! - Proclama a voz firme e serena após abrir a porta num solavanco.
- Quem tá aqui!? - Pergunto, assustada, sem nada enxergar. - Pelo amor de Deus, não me machuca mais!
- Nunca mais ele vai te machucar, meu anjo.
- Reconheço a tua voz...o teu cheiro...
- Sou eu. Perdão por não ter vindo antes. - Sussurra Vincenzo sentado ao meu lado, sobre o colchão sujo. A vergonha me toma por completo. Não queria que ele me visse assim. Estou suja, fedendo, mergulhada em meus próprios excrementos. Isso não! Isso não! - Fica quieta, Adessa. Ainda não terminamos. Depois, eu cuido de vc, amor.

"Amor!?"
Vincenzo e seu amigo, Padre Pietro, expulsaram Ga'al de minha casa, libertando-me do cativeiro. Chorava de dor, vergonha e alegria quando Vincenzo me levara em seu colo e me dera um banho após...após...

- Dois meses, meu anjo. Vc desapareceu por dois longos meses e eu juro que estive aqui e não te vi. Eu juro! Eu arrombei a porta e te procurei por todos os cômodos desse apartamento e não te encontrei! Eu não te ouvi até agora, quando vc chorou!



- Não chora. - Mergulhada na banheira, observando a cor escura da água, com os resquícios da imundície que havia em meu corpo, escoar pelo ralo, repito, em choque. - Não chora. Eu acredito em vc. Depois de tudo o que vivi durante esses dois meses, eu acredito em tudo. Obrigada por não ter desistido de mim. Eu não suportaria por mais um dia.
- Me perdoa. Eu vou te ajudar a se curar, meu anjo. Eu juro que vou. - Sem conseguir abrir os olhos, movo meu pescoço e, seguindo o som de sua voz, sorrio ao afirmar.
- Eu sei que vai. Vc é bom nisso...Francesco.


Após meses, eu me alimento. Ele me alimenta. Tomo da sopa, em colheradas servidas por Vincenzo. Sentada à mesa, sinto-me limpa, os cabelos úmidos, os olhos ainda fechados. Uma dor absurda por dentro. Meus órgãos genitais estão intocáveis. Mal consigo permanecer sobre a almofada em cima da cadeira acolchoada, em minha cozinha. Sinto a presença do padre a me observar. Minhas lágrimas escorrem sem que eu tenha controle sobre elas. Sei que estou sendo julgada agora. Julgada e condenada por meus atos. Meu trabalho. Por ser quem eu sou. Outra colherada da sopa deliciosa preparada por Vincenzo que me pede para parar de pensar. Abro um sorriso triste. Emito um gemido de dor. Meu rosto...não há um só lugar em meu rosto que não doa. Será que perdi algum dente!? Ouço o riso infantil de Vincenzo que me beija na testa.
- Vc não perdeu nenhum dente, Adessa. - Por que não me chama de 'amor' novamente? É pela presença do padre ou porque se arrependeu de ter mentido? - Para de pensar, Adessa. Para e se alimenta, por favor.
- Pedindo com tanta gentileza...- Ironizo. - Eu paro.
- Vc é formidável, meu anjo. - Diz Padre Pietro. Gostaria de abrir os olhos e enxergar seu rosto. Parece bonito. 
- Nunca me chamaram de 'formidável' nessa vida, padre. Obrigada, mas não sou. Sou um ser das trevas. Mereço morrer. Eu quero morrer...

Volto a chorar copiosamente. Tento me erguer, mas não consigo. Não tenho forças nos braços ou pernas. Estou acabada...devastada. EU QUERO MORRER!

- Nunca mais repita isso, Adessa! - Ordena-me Vincenzo, colérico. - Vc vai viver! Vai viver por muitos anos ainda! Entendeu!?
- Estou cega. Não surda. - Replico em seu colo, sem ter noção de onde ele deseja me levar. Rindo, padre Pietro nos segue e esclarece. 
- Estamos indo em direção ao seu quarto de hóspedes. Vamos precisar de um tempo para reorganizar o seu.
- Puta que pariu! O senhor lê pensamentos também!?

- Ah! Olha aí a velha e boa Adessa de volta! - Exulta Vincenzo. - Eu já tentei 'limpar a boca' dessa garota, padre, mas ela não muda. Adora um palavrão. Desculpa.
- Bobagem. - Aos risos, comenta o padre. - Eu deixo escapar alguns também. Há momentos na vida em que um bom 'Foda-se' é necessário. 
- Concordo. - Retruco entre um riso e um gemido de dor. Por que ele ainda me segura em seus braços se já estamos próximos à cama de hóspedes? - O senhor é um homem bom, padre. Uma pena que tenha que me conhecer assim, em meus piores dias. 
- Melhor assim, filha. - Tocando em minha mão, ele a beija e, num tom de melancólico, argumenta. - É um sinal de que Deus te quer erguida, forte, saudável novamente. 


- Duvido muito.
- Adessa!
- Vc poderia me deitar no colchão!? Ou prefere me ninar no seu colo!?
- Para de me provocar!
- Para de me tratar como uma criança idiota. Eu sou uma mulher. Uma mulher arruinada, mas ainda sou uma mulher.
- Uma garota mimada que não reconhece o que fazem por vc! - Exalta-se ele enquanto afofa os travesseiros, tocando em minha nuca. Inspiro seu perfume de maçã verde e, tudo o que desejo é voltar no Tempo e jamais ter sabido que ele é Francesco. Como eu posso viver com lembranças tão terríveis!? Eu prefiro morrer! - Dá pra parar de pensar em merda!?
- Olha, padre! - Exclamo sentindo dor em todos os ossos, músculos e pele do meu corpo estendido sobre a cama. - Não somos os únicos a falar palavrão! Wooo....hooo...ui. Isso dói.
- Vai parar de doer. Eu prometo.
- O corpo vai. - Assumo. - Mas a alma...- Exalo.
- Sua alma será curada, filha. - Afirma o padre, pousando sua mão sobre a minha. Imagens difusas atingem meu cérebro como dardos. Seu rosto triste. Um belo jovem. Homens encapuzados. - Em nome do Criador, sua alma vai encontrar a paz.
- O senhor encontrou a sua, padre?
- Adessa!!! - Repreende-me Vincenzo. - Pare agora com isso!!! - Sem saber o que dizer, peço desculpas ao padre que, suavemente, pede a Vincenzo que nos deixe a sós. - Mas...padre! Ela tem um dom...
- Uma maldição. - Esclareço cobrindo meu rosto com um lençol cheirando à lavanda. Wow! Eu estou livre! Livre daquele ser maldito! - Padre, não dê ouvidos ao que eu disse. Por favor. Me perdoa.
- Não há o que perdoar. Eu ainda não encontrei a minha paz, filha. Vc poderia ouvir minha confissão?

- EU???


Extremamente contrariado, Vincenzo nos deixa a sós. Apesar de insistir por muito tempo, ele somente conheceria o que me fora confessado por seu grande amigo, após anos de convivência.



- Será que agora que o seu grande amigo foi embora, vc teria um tempo pra me ouvir ou eu não sou digno de 'Sua Majestade'?

- Não me faz rir, idiota. Dói tudo.

- É por isso que estou aqui, imbecil. - Sua voz rouca o denuncia.

- Não dá pra ver, mas, pelo tom de sua voz, vc tá com aquele sorriso.

- Qual!?



- Esse aí! O de cafajeste! Vc sabe o que penso dele! - Ergo o braço, a única parte em mim que se move com uma certa facilidade. - Tira ele do rosto!

- O quê? - Pergunta-me ele, sua boca bem próxima ao meu ouvido. - O que pensa dele?

- Vc sabe. Porém, no momento atual, após sobreviver a um 'tsunami' de dois meses, não sinto mais. Eu não sinto mais nada, Vincenzo. Estou confusa. Não sei quem eu sou. Não sei quem vc é. Só penso em acabar com tudo. Tudo o que tá aqui na minha cabeça. Eu preciso me esquecer de tudo o que vivi e ouvi daquele monstro. Eu preciso morrer e nascer novamente. Aimeudeus. Vou chorar! De novo??? Merda!!!



- Não. - Diz ele, sentando-se ao meu lado, no colchão. Acariciando meus cabelos, com extremo cuidado. - Vc não vai precisar nascer de novo, amor. Vou dar um jeito nisso.

- Amor??? Novamente???

- É. Meu grande amor. Novamente e sempre. Per sempre.

- Não tô te entendendo, Vincenzo! Por que o dedo na minha testa!? Tá me dando medo o tom da tua voz! Fala!

- Vc vai se esquecer, amor. Vc precisa se esquecer de quem eu fui. De quem eu sou. Francesco sou eu, assim como Giovanni.

- Como assim!? Me solta! NÃO TOCA EM MIM!

- Fica calma, meu anjo. Vou curar teu corpo. Vc não pode viver com lembranças de duas vidas. É muito pra vc...

- Como sabe disso, Vincenzo!?

- Quando me chamou de Francesco.

- Então é verdade!? Vc morreu por minha culpa!?

- Eu morri porque eu não conseguiria viver sem vc. Eu nunca vou conseguir. É por isso que te procuro, vida após vida.

- Meu Deus. Isso é loucura.



- Não. É amor. Não vou permitir que vc perca o seu brilho por causa da brutalidade daquele que nunca morre.

- Ga'al?

- Ga'al, Ragnar. Não importa o nome. Ele não desiste de vc, mas vc é minha. Só minha.

- Sou?

- Sempre.

- Sim.

- Agora, vai se esquecer de tudo. Suas lembranças desse momento serão amenas. Não vão tirar a sua vontade de viver. Se esqueça de tudo. Até mesmo de Valkyria. Mas não se esqueça de se lembrar de que me ama assim como eu sempre te amei e vou te amar...per sempre.

- Eu...! - Tento protestar, sonolenta. Não se importando, ele prossegue com a voz aveludada.

- Quando acordar, vc terá se esquecido da dor do corpo e da alma e de tudo o que te fez perder a jovialidade, a graça, o encanto pela vida. Mas não se esqueça de mim...por favor.

- Nunca.

- Nunca. Agora, durma.

Eu o obedeço.



Continua...

























 


















































































































































































































































































  










































CAPÍTULO 35 - INJUSTO

  Na sala de espera do mesmo hospital onde Vincenzo voltara à vida, aguardo, ao lado de Liam e Enrico, ao desenlace da tragédia. Vincenzo, d...