'Tem muita comida aqui e eu me recuso a ouvir um 'não' como resposta, tia! Vamos esquecer o que aconteceu ontem à noite! Hoje é Natal! Meu Sean merece um dia feliz como eu nunca tive antes! E os presentes!? Ainda estão aqui! Além disso, Antoine saiu daqui com fome que eu sei!'
- Tem razão, querida. Tem razão. - Com o coração partido, despeço-me de Cassie e desligo o celular. Vincenzo curva seu tronco, baixando a cabeça, sentado na beira de nossa cama. Sinto sua dor, suas suspeitas ainda não divididas comigo.
- Vc não sente nada, Dess. Eu só não quero ir. Quero ficar em casa, com a nossa família. Não tô com astral pra conversar, rir...
- E se eu te implorar? - Pergunto ajoelhada entre suas pernas abertas. - Não me deixa sozinha, amor. Eu também tô sofrendo.
- Eu não tô sofrendo, porra. Para de tentar ler a minha mente.
- Estúpido...- Ergo-me, magoada. Sou eu quem precisa de forças para enfrentar um futuro sombrio. Sou eu que carreguei Matteo em meu colo e, durante a viagem de volta à nossa casa, revi todos os detalhes...- Fica longe, Vincenzo! E não se atreva a ler meus pensamentos! - Grito enquanto luto para que ele não me abrace. Contendo meus braços com os seus ao redor de minha cintura, ele me prende e ordena.
- Conta tudo o que viu ontem, Dess. Eu sou o pai. Sou forte e, ao seu lado, tenho mais força pra enfrentar tudo.
- Não quero...
- Não chora, amor. Vamos enfrentar tudo juntos.
- É muita coisa pra enfrentar. Muita gente por quem lutar. Doc tá morrendo e, antes de morrer, vai se esquecer de todos nós e dele mesmo e, antes do fim, vai se esquecer de respirar. - Choro tanto que perco as forças em seus braços. Levando-me de volta à cama, ele me cobre e se deita ao meu lado. Permanece parado, observando-me, até que minhas lágrimas sequem e, expirando profundamente, eu reaja. - Para de me olhar, idiota.
- Não dá. Eu não me canso de te olhar e de admirar sua força e compaixão.
- Para com essa merda.
- Vc se preocupa com todos ao seu redor, exceto com vc.
- Eu me cuido muito bem, canalha.
- Já tomou seus remédios hoje? - Reviro os olhos e, irritada, respondo.
- Não! Eu não preciso deles. As vozes se calaram. Aliás, tem tanta gente na minha cabeça que eu já não sei se as vozes são delas ou minhas.
- Dess...
- Doc não pode morrer. Eu preciso correr com ele. Eu prometi. Exercícios físicos retardam os efeitos dessa doença maldita. Ele já se aposentou, logo, deve estar dormindo bem. Bastam os exercícios físicos. Ele quer que Antoine corra com ele. Tadinho...
- Dess!
- O que é!?
- Não tente não pensar no que tá machucando seu coração.
- Não sei do que tá falando.
- Quem matou o gatinho ontem? - Encolho-me. Em posição fetal, sussurro.
- Não sei. Doc confessou.
- Vc tocou em Matteo. Vc sabe o que ele fez. Me conta. - Abraçando-me com força, ele sussurra. - Nada do que me disser vai me fazer amar menos o nosso filho. Entendeu?
- Uh-hum...
- Foi ele. Não foi?
- Opa! Opa! Opa! A porta estava aberta e não tinha nenhum aviso pra eu não entrar! - Anuncia Antoine ao invadir nosso quarto. - Meu maninho tá com fome e eu não sei o que dar pra ele comer! - Da porta, Enrico argumenta, inibido.
- Eu tentei impedir essa entrada teatral, mas, Antoine sendo Antoine é simplesmente 'imparável'.
- Filha, quando a porta estiver fechada, bata antes, mesmo que ela esteja destrancada.
- Pra eu não ver vcs dois fazendo safadeza?
De costas para a porta, ouço os risos de Enrico que a censura.
- Seu pai está correto. Vc não deveria ter entrado.
- Mas entrei e tô 'varada' de fome e meu maninho também! Antes de ir almoçar na casa da Cassie, eu quero tomar café. Pode ser ou tá difícil? - Erguendo-se da cama, Vincenzo responde.
- Tá difícil, filha. Sua mãe e eu estávamos tendo uma conversa séria e vc nos atrapalhou. - Sorrio. Enfim, ele age como um pai que educa Antoine. Erguendo meu tronco coberto por meu lençol, resmungo.
- Vc não dorme não, Antoine?
- Quase nunca. Ontem tivemos uma noite surpreendente. Isso me deixou eletrizada. Já contei ao vovô sobre minhas decisões.
- Não me diga? - Ironizo. Vincenzo se joga no colchão, aos risos. - E quais seriam suas decisões, senhorita?
- Combater o Mal. Vcs não conseguem enxergar, mas ele está cada vez mais perto. - Arquejo, angustiada. - Quero lutar como vc, papai! Vou me matricular, depois dos feriados, lá na academia!
- Filha, vc é pequena demais!
- Eu falei...- Retruca Enrico sob o batente da porta. - Mas ela não me ouve.
- Vovô, eu te amo, mas o senhor já está contaminado. Se eu não lutar contra eles, eles vão te levar e isso eu não vou suportar!
- Para! - Percebendo seu desequilíbrio, eu me levanto da cama e, cobrindo-me com meu roupão, caminho até ela e a abraço com força. - Vc tá muito...muito...
- Faminta?
- Elétrica. Para um pouco e respira.
- Mamãe, eu estou respirando. Caso contrário, eu estaria morta. - Outro riso de Enrico e ela comenta. - Meu avô é hilário. Ri de tudo o que eu falo e faço.
- Senta! - Ordeno a Antoine que, revirando os olhos, joga-se contra a poltrona em couro. - O que vc tem hoje!?
- Fome. Fome e raiva.
- Raiva? - Ajoelho-me diante dela e, curiosa, indago. - Por quê?
- Porque eu não tenho o seu tamanho. Não sei lutar como vc luta. Não posso defender meu maninho. - Ao meu lado, Vincenzo, pergunta.
- De quem vc deveria defender seu maninho, filha?
- De ninguém! - Irritada, ela se ergue e caminha até a porta, de onde avisa. - Vou me vestir. Preciso correr com o tio Doc antes que ele morra.
- Deus do céu...- Arquejo, espantada, levando a mão à boca. - Não fala assim, filha.
- Mãe, vc sabe do que eu tô falando. Vou comer o que tiver na geladeira e o meu avô vai me levar até a casa do tio Doc. Temos pouco tempo.
- Eu???
- Vovô!!! Vai 'amarelar'???
- 'Amarelar'??? - Sem se conter, Vincenzo ri da expressão intrigada de Enrico e explica.
- Recuar, desistir, pai.
- Nunca! - Protesta ele inflando o peito. - Um soldado nunca foge à luta!
- Então me siga, soldado e me prepare um misto quente! Um não! Dois! - Um olhar de incredulidade e Enrico a segue, deixando-nos a sós.
- Como consegue rir, Vincenzo!?
- Foi engraçado, Dess. Bizarro, mas engraçado. Ela tá 'pilhada'.
- E a gente vai deixar rolar!?
- Não, amor.
- Não me toca! - Aviso antes de dar-lhe as costas e correr até o quarto de Matteo. - Não me siga!
- Eu faço o que eu quiser! A casa é minha, o filho é meu e a mãe dele é minha também!
- Idiota. - Sorrio assim que vejo meu filho, de pé, em seu berço. Seu sorriso desfaz todos os maus pensamentos da noite passada. - Vem com a mamãe, meu bebê lindo...
- Dess, vc vai responder à minha pergunta ou vou ter que ler a sua mente?
- Me deixa em paz. - Sentando-me na cadeira de balanço, com Matteo em meu colo, minto. - Ele tá nervoso. Precisa de meu carinho.
- É vc quem está nervosa, Dess. - Em pé, diante de mim, ele insiste. - Eu ouvi a verdade pela metade. Me conta o resto. Como e por que ele fez isso?
Ergo-me da cadeira e, com Matteo em meu colo, sigo até a cozinha.
- Agora não é hora, Vincenzo! Ele precisa se alimentar! Faça algo útil! - Arremessando contra sua barriga uma penca de bananas, ordeno. - Amasse duas! - Antoine e Enrico debruçados sobre a bancada, nos observam, calados. - E não se esqueça da aveia!
- Ela 'tá nos cascos', vovô. - Murmura Antoine de boca cheia. Vincenzo volta a rir enquanto descasca as bananas.
- 'Nos cascos'??? Aposto que foi seu avô quem te ensinou essa!!!
- Vincenzo! Para de rir e amasse as bananas!
- Eu posso amassar as bananas e rir ao mesmo tempo, idiota! Viu como seu escravo é inteligente!? - Encolhendo-se na banqueta, Enrico sussurra, assustado.
- Antoine, meu anjo, termine logo seu café. Estamos atrasados.
- Estamos nada, vovô! - Gargalha ela. - Tio Doc nem sabe que a gente tá indo pra lá e, se souber, já se esqueceu.
- Vincenzo! Não ria da doença de Doc!
- Dess, isso foi hilário! - Diz ele apoiando-se na pia de tanto rir. - Filha, vc hoje tá muito esquisita. - Passando por ele, Antoine o beija e deixa o prato sujo dentro da pia. Um beijo em minha bochecha e na testa de Matteo e, antes de sair da cozinha, ela graceja.
- Vc não viu nada, 'inocente'. - Seguindo-a, Enrico comenta.
- Hoje teremos um dia agitado. Como vcs dizem: 'Fui'!
Sou obrigada a rir da expressão de desespero de Enrico e dos risos de Vincenzo que, enfim, me entrega o prato com as bananas amassadas.
- Um toque de aveia e 'voilà'!
- Gracinha...- Resmungo, sentada na banqueta, com Matteo em meu colo. - Não estou gostando do estado de Antoine. Tem algo errado com ela.
- Eu senti também. Um filho de cada vez, Dess. - Debruçando-se sobre a ilha em meio à cozinha, ele retorna ao assunto do qual tento fugir. - Como ele fez aquilo? - Imitando um aviãozinho com a colherinha, peço ao meu filho.
- Abre a boquinha, meu amor...- Faminto, ele engole tudo e volta a abrir a boquinha à espera de outra colherada. Vincenzo me encara, em silêncio. - Não vou falar. Não agora. Respeite o momento. Estou alimentando nosso filho.
- Ok. Dessa casa não sairemos até que vc me conte tudo, imbecil.
- Aonde vai?
- Tomar meu banho.
- Não antes de lavar a louça na pia. Sua filha 'pilhada' devastou nossa cozinha.
- Se me pedir com educação, talvez eu faça.
- Não faça! Eu faço depois!
- Porra! - Esparramando-se na bancada, ele aperta minhas bochechas com as mãos e, roubando-me um beijo, confessa. - Vc me deixa louco com esse seu jeito estúpido de ser! - Gargalho. Matteo ri de minha gargalhada devorando a última colherada das bananas amassadas. Levanto-me da cadeira e, discretamente, deixo o prato sobre a pia onde Vincenzo ensaboa os copos. Carregando Matteo, caminho, vagarosamente, até a porta quando ele grita. - Não foge, Dess! Agora tu vai me contar!
- Nunca! - Grito antes de correr até o quarto de Matteo e me jogar contra a porta, pelo lado de dentro. Rindo, vou escorregando enquanto ele, com facilidade, empurra a porta contra mim e, sorrindo, se gaba. - Essa foi fácil, Dess. Agora chega.
Tomando Matteo de meus braços, ele o senta sobre o tapete de estrelinhas e, puxando-me pelas mãos, me faz sentar no sofá. Cruzo minhas pernas e, nervosa, inspiro e expiro antes de responder à sua pergunta.
- Ele...- Uma súbita crise de claustrofobia e Vincenzo me ajuda a respirar.
- Inspire em quatro tempos. Prenda por sete tempos e expire em oito, Dess. Isso. Devagar.
- Ok...tô bem.
- Amor, eu já sei que foi ele, mas eu sei que não foi por maldade. Só me diz como foi.
- Maldade nada tem a ver com a verdade. Foi minha culpa. Eu me descuidei e o deixei sozinho.
- Para, Dess. Assim, eu também sou culpado. Criança cega a gente mesmo. Continua.
- A porta da casinha da Medusa estava aberta. Ele queria brincar com ela, mas, arisca, ela o arranhou. Ele chorou e se sentou diante da casinha. O filhote já estava fraco. Meio que rejeitado pela mãe. Rindo, ele o pegou nas mãozinhas e o jogou na meia que ganhou de Cassie. Eu sei que parece horrível, maligno, mas ele se divertiu enquanto o gatinho...- Sufoco um soluço e, cobrindo meu rosto com as mãos, chorando, concluo. - Enquanto o pobrezinho se debatia quase sem forças.
- Calma, Dess. - Fazendo-me sentar em seu colo, ele me abraça e pergunta. - Ele quis fazer com os outros também?
- Não. Ele abriu a meia e brigou com Medusa achando que a culpa era dela. Por isso, ele repetia: "Miau dodói mau". Era com Medusa que ele brigava. Foi ela quem o arranhou. - Agarrando-me à sua cintura, confesso. - Eu tô com medo, Vincenzo. Se isso se repetir, ele pode ter algum tipo de...?
- Psicopatia? Dificilmente, amor. Fica tranquila. Vamos ficar de olho nele. Ok? - Com medo de ouvir minhas próprias palavras, sussurro.
- E, se ele for um psicopata? O que faremos?
- Nosso amor vai curá-lo, Dess.
- Não tem cura!
- Dess! Relaxa! - Fixando seus olhos nos meus, ele afirma. - Nosso filho é saudável. Sem transtornos. Ok? Vamos dar um banho nele?
- Tenho medo de ir ao almoço e sentir que estão desconfiando dele, amor.
- Se pensarem isso de nosso filho, eu vou ouvir e, se ouvir, mando todo mundo tomar no cu! Nosso filho é um bom menino! Mesmo que tenha parte do sangue daquele infeliz, a maior parte é nossa e, sangue não determina personalidade ou caráter. Vc é um exemplo vivo. Tem o sangue do traidor e é a pessoa mais bondosa e compassiva que conheço. Incapaz de fazer mal a quem quer que seja.
- Para...- Ruborizo. - Já fiz muita merda.
- Mas nunca cometeu maldades. Nunca. E olha que eu te conheço, literalmente, há séculos. - Um sorriso e eu o beijo. Matteo, de pé, tenta subir no sofá. Vincenzo o auxilia. Entre mim e o pai, Matteo me beija e, balbuciando, me repreende.
- 'Merda. Mamãe merda. Ai ai ai'.
Deitados no sofá, rimos juntos e em paz.
Apesar do olhar de Liam incidindo sobre Matteo, à mesa, estamos nos divertindo. Cassie tem um coração puro e nos faz rir o tempo todo com seus planos para o futuro de Sean e Matteo, juntos.
- Serão melhores amigos! Estudarão no mesmo colégio!
- Meu maninho vai sempre estar um ano à frente de Sean.
- Mas é a verdade e o tio Liam tá desconfiando do meu maninho.
- Jesus! - Exclama Cassie. - Como assim!? Desconfiar de quê!?
- Da morte do gato.
- Antoine!
- Mãe, eu preciso falar a verdade! A verdade vai nos unir para o momento de ação! Tio Liam vai fazer parte de nosso exército!
- Que exército, pirralha!? Tá me assustando!
- Não liga, 'Little Princess'. Ela é só uma criança.
- Não sou não. - Rebate Antoine. - Tu sabe que eu tô certa. - Diz ela abocanhando uma das coxas do peru. - Hmmmm! Isso aqui tá muito bom!
- Ela acordou esquisita. - Comenta Vincenzo, aos risos. - Culpa da 'Marvel'. Ela se acha uma heroína. Já correu com o Doc pela manhã e ainda arrastou meu pai nessa missão.
- Que fofo...- Elogia Cassie.
- Ele não soube correr, Cassie. Ele se esqueceu de como se corre. Eu tive que ensinar o tio Doc a caminhar.
- Tadinho. Por quê?
- Ele tá doente, Cassie. Vai morrer daqui a algum tempo.
- Putz...
- Antoine, coma e pare de falar. Isso é uma ordem.
- Certo, chefe. - Prestando continência a mim, ela alerta. - Melhor falar o que rolou com o gatinho porque o tio Liam ainda duvida do meu maninho.
- 'Já deu, burro. Já deu', resmunga Vincenzo.
- Eu amo Shrek. - Vibra Cassie, meio que perdida.
- Eu não duvido, Antoine. - Enfim, Liam se pronuncia. - Sei que o gatinho já estava morto quando Matteo o pegou. Crianças são curiosas. Ele achou que era um brinquedo e o colocou na meia. Só isso.
- Perfeito, tio Liam! Posso comer a outra coxa!? Esse peru está simplesmente esplêndido!
- Não. Eu só acordei assim. - Sorrindo, ela anuncia. - Tio Doc bateu na tia Adele de novo.
- Chega! - Exalto-me, horrorizada. - Vá comer na cozinha e, quando chegar à nossa casa, vai ficar de castigo!
- Por que eu falei a verdade!?
- Dess, calma.
- Tia Adele tá muito triste. Pensando em fazer besteira.
- Jesus...- Suspira Cassie. - Pirralha, vc já era esquisita, mas, nunca foi assim, tão direta.
- Eu acordei assim, ué.
- Ela tá febril! - Alerto ao encostar o dorso de minha mão em sua testa. - Tá ardendo em febre!
- É normal...- Comenta Liam num tom sombrio. - Ela 'acordou'.
- Por que as 'aspas', amor?
- Por nada, Cassie. - Um sorriso tímido e ele repete. - Por nada. Corte mais um pedaço do 'Chester' pra mim?
- Depois de pegar um antitérmico pra Antoine, amor.
- Eu tenho na bolsa de Matteo, Cassie. - Adianto-me. - Cuide do seu marido. - Retirando da cartela, um comprimido, eu a medico. Beijando sua testinha, aflita, afirmo. - Vai passar, filha. Descansa. Por favor.
- Eu cuido dela. - Declara Enrico guiando-a até a sala de vídeos. - Pode não parecer, mas, isso não está sendo fácil para ela também. Perdão. - Pede-nos Enrico antes de levar Antoine consigo. Do corredor, ela pergunta a Enrico.
- Podemos assistir à 'Paixão de Cristo'? Aquele filme me inspira.
- Perdão, Cassie e Liam. Ela tá crescendo e...
- Não se desculpe, Adessa. Eu a compreendo mais do que vc pode imaginar.
- Desde quando, 'Coelhinho'??? Vc já teve uma filha pré-adolescente e nunca me disse nada???
Vincenzo segura em minha mão fria debaixo da mesa enquanto Liam beija Cassie e, sorrindo, confessa.
- Meu único filho está aqui, Cassie e eu amarei sua mãe pela Eternidade.
Sensibilizada, ela brinca.
- Aimeudeus! Dá pra não amar esse homem?
- Não. Impossível. - Concordo. - Se eu não amasse o meu, eu iria querer o seu.
- Nem vem, tia! Esse é meu! Só meu! - Aos risos, ela aponta o indicador a Vincenzo e observa. - Olha a cara do tio!
- Tô achando muita graça. Ha...ha...ha.
- Idiota. - Um beijo em sua bochecha e sussurro. - Eu te amo mais do que a mim mesma.
Uma repentina crise de choro e Cassie proclama.
- Vamos abrir os presentes, pelo amor de Jesus! - Enxugando minhas lágrimas, erguendo a taça de vinho, exulto.
- Vamos!
Às vésperas do Reveillon, recebo, pelo celular, fotos de Cassie, Liam e Sean em Nova York, brincando com a neve. Em uma mensagem, ela se ressente por não termos aceitado o convite de viajarmos com eles.
"Sinto sua falta, tia. Espero que Antoine esteja melhor. Voltaremos em breve".
Feliz por eles, digito outra mensagem em resposta.
"Aproveitem! No próximo ano, estaremos aí".
Minto.
Estaciono em frente à casa de Doc e Adele. Com meus tênis de corrida e um conjunto em moletom, toco a campainha ao lado do portão em ferro fundido. A porta da sala range ao abrir. Impressionada, recuo enquanto Doc, com o auxílio de uma bengala, parecendo ter uns dez anos a mais, se aproxima do portão.
- O que quer? - Mordendo os lábios para não chorar, respondo.
- Doc!? Sou eu! Combinamos de correr. Lembra?
- Não. Mas eu me lembro de vc. - Resmunga ele dando-me as costas. - Adessa Love. Era assim que te chamavam. Vc é aquela puta que dançava no 'California'. Deu sorte e encontrou um bosta que te assumiu. Um bobão que acreditava em tudo o que vc contava pra ele. - Um soco em meu queixo não me deixaria mais tonta e dolorida do que suas palavras. Recostando-me na lateral do meu carro, penso no que fazer para trazer meu amigo de volta. Adele o ajuda a entrar em casa e, com hematomas em seu rosto, abre o portão.
- Não sei o que dizer, Adessa. Perdão. Ele tem delirado. A doença tem progredido...- Fraca, ela se escora nas grades do portão enquanto eu a seguro pela cintura e a arrasto até a cadeira na varanda. Adele está destruída por dentro e por fora. Magra, pálida, os olhos perdidos. As flores no jardim estão secas como a pele de Adele. - Já não o reconheço mais. Meu grande amor se foi e eu não vou ficar aqui sem ele.
- Não fala assim. - Ajoelho-me diante dela e, deitando minha cabeça em suas pernas, prometo. - Eu o trarei de volta. Custe o que custar.
- Não há o que ser feito...
- Venham passar o último dia do ano em nossa casa, Adele. Não quero que fique sozinha com ele. E, lá, ele pode conversar com Antoine que ainda tem algum controle sobre ele. - Sem lágrimas para chorar, ela me observa por alguns segundos como se não houvesse entendido uma só palavra. - Adele, eu não vou deixar vcs sozinhos nessa casa. Ela está doente também. Casas adoecem quando seus habitantes sofrem por muito tempo. Venham comigo.
O ar gelado toca em nossos rostos e invade a casa. Sentado no sofá, com o cenho carregado, Doc me encara como se eu fosse sua inimiga. Procuro por um de seus discos de vinil predileto em sua estante e o faço girar na vitrola. Uma antiga canção o toca profundamente. Seus olhos se enchem de lágrimas. Adele se senta ao seu lado e diz que o ama.
- Te amo também, minha velha. O que houve com seu rosto?
- Eu caí, amor. Eu caí.
Choro num dos cantos da sala, encolhida, observando uma leve mudança em seu semblante, implorando que a Magia da Música dure para sempre.
- Eu tenho que ser eu...- Divaga Doc, repetindo o refrão da canção.
- Por que está chorando, meu anjo? Aconteceu algo com as crianças?
- Não, Doc. Nada. - Respondo enquanto me aproximo e o cubro com seu casaco de couro. - Eles estão esperando por vc, lá em casa. Vamos?
- Vai ter festa!?
- Vai! - Enxugando minhas lágrimas com seu lenço em linho, ele indaga, animado.
- Vai ter música como essa? Eu amo essa música. Papai a tocava no Natal. Nós não tínhamos nada para comermos além de feijão e arroz, mas havia tanto amor...- Guiando-o até o meu carro, abro a porta e o acomodo no banco traseiro ao lado de Adele. No aparelho de som do carro, via bluethoot, a mesma canção se repete até que Vincenzo abra os portões da garagem. Um sorriso triste e ele cumprimenta Doc com um abraço apertado.
- Saudades, meu chapa. Saudades.
- Antoine está em casa?
- Tá sim. Vem comigo, meu amigo. Ela tá ansiosa pra te ver.
Logo atrás de Vincenzo, amparo Adele que me agradece por ter tirado Doc de casa.
- Aqui, ele se sente bem.
- E vc, vai descansar um pouco no quarto de hóspedes. Ok? - Preparo um banho com sais em nossa banheira e, tentando sorrir, entrego a Adele uma muda de roupas e toalhas limpas. - Fique o tempo que quiser e, depois, durma um pouco. Hoje, eu cuido de Doc por vc, amiga.
- Eu não sei como...
- Não agradeça. Só relaxa. Ok? Te vejo mais tarde.
Fechando a porta do quarto, eu a deixo sozinha. Antoine conversa com Doc, sentados no amplo sofá na varanda. Por um tempo indeterminado, Doc volta a ser ele mesmo. Parecendo flutuar, caminho pelos corredores de minha casa, observando Matteo, na 'brinquedoteca', montado nas costas de Vincenzo, tratando-o como um cavalinho de estimação. Na sala de estar, Enrico lê um livro e, por vezes, eleva seus olhos ao teto e deixa escapar um longo suspiro. Aposto que pensa em Celeste. Nada parece se encaixar ao normal. Volto ao banheiro vazio. Adele, com os cabelos úmidos, usando um de meus vestidos, sentada à beira da cama, beija minhas mãos unidas e me abençoa.
- Obrigada por cuidar dele.
- Descansa, Adele. Nós vamos vencer tudo isso, juntas. - Afirmo, sem convicção. - Cobrindo-a com um edredom, beijo sua testa e, antes de me afastar, peço que tenha fé.
- Eu tenho...- Diz ela, com os olhos perdidos e fixos no teto. - Ele disse que me ajudaria. Confio nele.
- Em Deus?
Fechando os olhos, ela emudece. Um forte arrepio percorre meu corpo dos pés até a nuca. Recuando, preocupada em preparar a última ceia do ano, deixo escapar um pequeno detalhe que tornaria a noite inesquecível.
- Ela está bem, Dess? - Fechando a porta do quarto de Adele, respondo.
- Ela dormiu. Deve estar exausta.
- Vc tá exausta, amor. O que eu posso fazer pra te ajudar? - Minha voz embarga ao responder.
- Me abraçar...
Poupando-me do trabalho de me preocupar em cozinhar, Vincenzo pede 'fast food' pelo celular.
- Fica com a gente, Dess. Vc não tá bem.
- Eu preciso preparar o peru. Antoine me pediu tanto...
- Ela não vai morrer se não comer peru hoje. Temos o resto de nossas vidas pra comermos peru, Dess. - Afirma ele, de pé, em nosso jardim. - Hoje, agora, eu quero vc aqui, ao nosso lado, admirando os fogos no céu. Vai começar daqui a poucos minutos. Quero estar com vc no primeiro segundo do próximo ano.
- Eu também, amor. - Um sorriso triste e comento. - Estamos com o mesmo pijama. Até Enrico.
- Exatamente! - Exulta Vincenzo. - Família que inicia um novo ano de pijama, unida, permanece unida. Sensibilizada, eu choro. Choro pela dor que nos cerca e nos ameaça. Choro por Doc que pergunta por Adele, assustado com o barulho irritante dos fogos de artifício na beira da praia, um pouco distante de nossa casa. A poucos minutos do próximo ano, em nosso terraço, abraçada a Antoine e com Matteo em meu colo, choro por Enrico que sofre pela ausência de Celeste, seu grande amor. Choro por Antoine e o grande peso de sua missão. Choro por Matteo e pelo mistério que o envolve. Choro por mim mesma e pela impotência em salvar meu grande amigo que chama por Adele.
- Ela está dormindo, Doc. - Avisa Vincenzo. - Daqui a alguns minutos, eu te levo até ela. Ok? O show no céu vai começar! - Tentando me animar, Vincenzo me abraça enquanto nos beijamos e brindamos a entrada de um ano novo. Enrico nos abraça com lágrimas nos olhos. Festejamos unidos, tomados por uma estranha e incômoda sensação de que algo está por acontecer. Matteo bate palminhas admirando o céu colorido enquanto Antoine, saltitante, grita eufórica.
"Feliz Ano Novo. Feliz Ano Novo".
Os fogos cessam. Uma olhadela ao redor e sinto falta de Doc. Uma pontada em meu peito e desço ao segundo andar, pulando os degraus, de dois em dois. Vincenzo me segue pedindo que eu o espere. Antes de chegarmos ao quarto de hóspedes, ouvimos um longo urro de dor que nos paralisa. Encaro Vincenzo que me olha com pavor.
- Fica aqui. Eu vou até lá.
- Nunca.
De mãos dadas a ele, pressentindo o pior, encontramos a porta escancarada. Doc sobre o colchão, sacode Adele enquanto grita por seu nome. Desesperada, aviso.
- Doc, ela vai acordar! Calma!
- Não! Ela tá fria! Ela tá fria! - Desespera-se ele sacolejando o corpo de Adele que não abre os olhos. Enrico e Vincenzo, com dificuldade, afastam Doc de Adele enquanto Antoine ordena.
- Fique calmo, tio Doc! E se afasta!
Estranhamente, ele a obedece e, prostrado na poltrona em couro, ele observa o que faço, calado. Apavorada, tentando não gritar, verifico sua pulsação na artéria carótida. Sufocando um soluço, recuo. Num impulso, ajoelho-me entre suas pernas abertas e, rasgando seu vestido ao meio com a tesoura que guardo no criado-mudo ao lado da cama, realizo as compressões torácicas com extrema intensidade. Vincenzo, atordoado, me auxilia erguendo o queixo de Adele, fechando, com os dedos suas narinas. Em prece, Vincenzo inicia a respiração boca a boca. Doc, sem expressão alguma em seu rosto, murmura.
- Ela partiu sem mim.
Vincenzo, após alguns minutos, pede-me para desistir. Decidida a trazê-la de volta à vida, continuo a comprimir seu peito ouvindo os ossos de suas costelas se partindo ao meio. Vincenzo me arrasta, à força, para longe de Adele, aos gritos.
- Ela está morta! Morta!
Enrico, com Matteo em seu colo, tenta conter a fúria de Antoine que alerta com ódio em sua voz.
- Ele ainda está aqui! Maldito! - Erguendo uma de suas mãos, ela olha para o teto e, do ar, ela materializa um chicote flamejante e, açoitando o chão, ela corre em direção à sala. Vincenzo e eu, confusos e desnorteados, corremos atrás dela. Matteo chora no colo de Enrico que nos segue, em oração. A figura dantesca de um ser feito de água e lodo nos espera próximo à porta da sala. Seu sorriso macabro surge entre os cabelos longos e sujos de lama.
Nunca havia visto nada tão assustador em minha vida.
Antoine, destemida, o açoita, com seu chicote de fogo, por três vezes e, em um dialeto que desconheço, o envia de volta ao inferno. Antes de desmaiar em meu colo, ela avisa. - Foi ele, mamãe. A 'Legião' o enviou.
Jogada sobre o tapete da sala, com Antoine em meu colo, grito de pavor ao ver Doc carregar em seus braços o corpo sem vida de Adele.
- Precisamos ir pra casa. Ela está muito cansada.
- DOC NÃO! FICA! - Berro enquanto Vincenzo abre uma das gavetas da estante e, num gesto ligeiro, finca a seringa em seu braço forte e injeta o líquido que o faz parar e cambalear antes de fechar os olhos e cair de costas, batendo com a cabeça no chão. Em choque, ouço Vincenzo avisar após pressionar o pulso de Doc.
- Ele ainda tá vivo.
Enrico abraçado a Matteo chora em silêncio enquanto me agarro a Antoine sem forças para me mover.
A culpa corrói minha mente por ter me esquecido de esconder meus ansiolíticos de Adele antes de deixá-la sozinha, no banheiro.
Nossos primeiros dias do novo ano foram tristes e pesados. Antoine se recuperou de seu desgaste espiritual, mas sua raiva a impulsiona a lutar contra os seres que ousaram invadir nosso lar por mais de uma vez. Ela não desiste da ideia de frequentar as aulas de boxe tendo como professor o seu pai.
De volta do sepultamento de Adele, Vincenzo e eu visitamos Doc, internado em um hospital especializado em Neurologia e Neurocirurgia. Inconsciente, em um leito do CTI, dependente de aparelhos para respirar, meu grande amigo resiste ao diagnóstico de fratura craniana com sangramento interno. Vincenzo se culpa por tê-lo dopado e não ter tido força suficiente para evitar o impacto de sua cabeça contra o chão de nossa sala. Eu tento dissuadi-lo desse pensamento destrutivo afirmando que, de um jeito ou de outro, haveria uma outra tragédia.
- Se vc não o impedisse de caminhar e, se ele conseguisse alcançar a rua, certamente, seria atropelado. Pelo amor de Deus, Vincenzo, ele carregava a esposa morta no colo! Quem ali, naquela sala, estava raciocinando!?
- Foi o pior dia de minhas vidas, Dess. Eu tentei, mas ele é muito pesado. Pobre Doc. - De pé, ao lado do leito, Vincenzo lamenta. - Se eu ainda fosse um anjo...
- O que faria? O traria de volta a uma vida vegetativa, longe do amor de sua vida? - Enxugando minhas lágrimas, blasfemo. - Melhor que parta logo e se encontre com Adele.
Beijando sua testa, despeço-me de meu amigo. Meu grande e melhor amigo com o maior coração que já conheci...
Pela última vez.
Sepultamos o corpo de Doc ao lado do corpo de Adele. Duas mortes, dois enterros em menos de uma semana. Isso, absolutamente, não é normal.
Não da forma como aconteceu.
Brechas. É por onde o Mal tem encontrado um meio de nos atacar e nos fragilizar a fim de atingir seu alvo: enfraquecer Antoine e tomá-la de nossas mãos.
Como seres tão malignos e cruéis podem ter acesso a uma casa onde dois anjos e um querubim habitam? Mesmo sendo mortal, Vincenzo ainda possui sua fé angelical intacta. Como?
- Enrico???
- Sim, mamãe. Ele abriu as portas de nossa casa. Ele abriu as brechas. Eu tentei esconder isso de vcs, mas...
- Conta, filha. Nós não devemos ter segredos. Lembra?
- Ok, papai. Mas ele vai ficar triste comigo.
- Não vai. Ele já está triste, filha. E não é por sua causa.
- Ok. - Relutante, ela inicia sua narrativa. - Vovô chorava todas as noites com saudades da vovó. No início, ele conseguia se afastar dela, mas, agora...
- O que aconteceu!? Conta!
- Dess, mantenha a calma. Vamos precisar de equilíbrio pra enfrentar o que está por vir.
- Equilíbrio??? Vincenzo, nossa casa tem sido invadida por seres infernais e ninguém nos protege disso!!! Onde está o Seu Deus???
- Nosso Deus, Dess. Nosso Deus. Ele nos protege de um mal maior.
- Como??? Deixando que Adele tomasse todos os meus comprimidos de tarja preta, induzida por algo bizarro que se transmutou na figura de Doc e a convenceu de que se suicidar seria a melhor saída??? Vc acha que Adele se mataria deixando Doc, doente, aqui na Terra???
- Como soube disso?
- Eu a toquei, idiota.
- Dess!
- Eles estão livres pra tudo! Abriram as portas do inferno e a nossa casa virou o 'point' deles, merda!!!
- Dess! Vc não colabora em nada gritando sem controle! - Grita Vincenzo, atordoado. - Se quiser permanecer aqui e ouvir o que Antoine tem a nos dizer, ok! Se continuar assim, eu saio dessa casa e levo Antoine comigo até o shopping e lá, ela me conta tudo! Sem vc por perto! Deu pra entender ou quer que eu desenhe!?
- Caraca. Papai pegou pesado.
- Perdão...- Peço, tentando me conter. - Fiquem aqui. Eu vou ouvir tudo. - Cruzando as pernas, sentada no tapete do quarto de Antoine, mantenho Matteo por perto. Sentados em um círculo, Antoine e Vincenzo me observam quando pergunto. - E, se ele chegar de repente?
- Vou saber. - Afirma Vincenzo. - Agora começo a entender porque tenho ouvido seus pensamentos. Ele já não é um 'intocável'.
- Não vi não, mãe. - Confessa Antoine, rindo. - Mas eu sei que eles se beijaram. Eu vi. Vovô pensou que eu estivesse dormindo. Caminhou, de madrugada, até aquela árvore com folhas amarelas...
- Acácia. - Elucido. - O que ele fez quando chegou lá?
- Esperou até a vovó aparecer. - Dramatizando, ela continua. - Eu me escondi atrás dos arbustos. Não estávamos sozinhos. Além da vovó, havia outros seres da 'Legião'.
- Lúcifer?
- Não. Tio Lu tá zangado com a 'Legião'.
- Por quê? - Indaga Vincenzo, atento.
- Lúcifer não é seu tio. - Esclareço, contrariada. - E Celeste não é sua avó. Ela é uma vaca louca que se bandeou para o 'lado obscuro da Força'.
- Dess...
- Como eu vou falar da vovó sem poder falar 'vovó'? - Irritada, ofereço opções.
- Vaca, traidora, vagabunda, filha da puta...
- Mamãe!
- Ok. Fale como quiser. O que a vaca da sua avó fez? - Um olhar de repreensão de Vincenzo e Antoine prossegue.
- Ele não teve culpa. Ela avançou sobre ele. Ele andou pra trás pedindo que ela não o tocasse. "Eu te amo", disse a 'vovó vaca' com uma voz esquisita. O vovô disse que não trairia a nossa confiança. Que a tarefa dele era proteger a nossa família. Ela disse que amava o meu pai e que jamais faria mal a ele. Ela parecia bem bonita, de longe. Não sei como o vovô não percebeu que os outros estavam cercando a árvore enquanto ela pediu um beijo pra ele!? Eu pensei em gritar, mas fiquei com medo. Eram muitos...
- Nunca faça isso, filha. Eles são perigosos. - Aconselha Vincenzo, abraçando-a com força.
- Pode me chamar se isso acontecer de novo. - Rosno. - Não tenho medo desses bostas...
- Eles são mais do que vc imagina, Dess. Eles são a escória dos que 'caíram' junto a Lúcifer. Ele mesmo não os aceita em seu bando.
- Como assim??? Existem duas 'legiões'???
- Existia um grupo que 'caiu' por insubordinação ao Criador. O primeiro, liderado por Lúcifer. Aqui na Terra, um segundo grupo se formou por não concordar com as ordens de Lúcifer que proibia o contato físico entre seres humanos e 'anjos caídos'. Ele não queria se miscigenar. Queria criar um raça pura.
- Nazista filho da puta. - Rosno.
- Discordo. Ele não queria a destruição dos Seres Humanos. Queria escravizá-los através dos pecados. Os insubordinados passaram a ter relações com Humanos.
- Safadeza???
- É Antoine...- Resmungo, revirando os olhos. - Safadeza. Satisfeita? - Um olhar indignado a Vincenzo e pergunto. - Por que ter relações com humanos se eles nos consideram inferiores?
- Porque desejavam extinguir a Raça Humana, infectando-a com um vírus absolutamente letal.
- Uau. Tipo 'Guerra Mundial Z', pai?
- Isso, filha. A ficção é a cópia da vida real.
- E por que isso ainda não aconteceu!? O que não falta é gente estúpida e doida o suficiente pra se relacionar com essas criaturas nesse mundo!
- Adivinhe quem luta contra o extermínio da Humanidade? - Pergunta-me Vincenzo com um olhar perplexo.
- Não!
- Sim. O próprio. Por incrível que possa parecer, Lúcifer, de certa forma, protege os seres humanos de um final trágico. Seus motivos são indignos, mas sua ação é benigna. Logo, suponho que o Criador ainda o deixe perambular pela Terra porque reconhece algum valor nele.
- 'Eu tô passada!!!' - Retruco, surpreendida. - O rei do Inferno obrigado a lutar por quem ele mais odeia!? Deus escreve certo por linhas tortas...
- Não, Dess. Ele escreve certo. Nós que entortamos as linhas.
- Isso é fofo. - Sorrio.
- Pateta. - Diz ele, ruborizando. Matteo sobe em suas costas, balbuciando.
- 'Babalo, babalo'.
- Agora não, filhão...- Lamenta ele enquanto Antoine, indignada, pergunta.
- Posso terminar minha história ou vão tentar adivinhar???
Rindo de seus ciúmes, respondo.
- Por favor, senhorita, conte-nos tudo.
- Essa é a pior parte. - Diz ela num tom sombrio. - Preparem-se para cenas fortíssimas. Não ria, mamãe. A coisa é séria.
- Ok. - Engulo o riso e me concentro em seu modo dramático de narrar algo assustador. - Como???
- Vovô se afastava dela pedindo que ela voltasse a ser a mulher por quem ele se apaixonou. Chamando pelo nome de Jesus, o pobre do vovô, enxergou o que eu já tinha visto. A vovó não é tão linda como parece. Seus cabelos são espichados pra cima, os olhos são parecidos com os de um crocodilo e seu sorriso parece com o do palhaço 'Pennywise', do 'It'. Foi a coisa mais esquisita que eu já vi.
- E eles te viram!? - Pergunto, assustada. - Tentaram te tocar!
- Não mesmo. - Gaba-se ela. - Eu tenho minha 'capa de invisibilidade'. Tipo a do 'Harry Potter'...
- Aaah...sei...- Encaro Vincenzo e penso que, a cada dia, ela está se mostrando mais. Conhecendo seus poderes e sem medo de usá-los. - Entendi. 'Capa de Invisibilidade'. Aaaah...tá. - Desperto. - E o que fizeram com seu avô!?
- Os seres da 'Legião' não puderam tocar nele porque ele ainda tem poderes, mas a 'vovó monstro', com muita raiva dele, enfiou sua mão no peito do vovô.
- Enfiou como???
- Enfiou, ué! Furou o peito do vovô com a mão e tocou em seu coração!
- Vc fala como se isso fosse normal!!!
- É normal no nosso mundo! Nosso corpo não é como o de vcs! Nossos poderes são maiores...
- Chega, Antoine! Volta! - Imploro. - Eu não quero que vc mergulhe nesse mundo!
- Mas mãe! O vovô foi infectado!
- Vc não tem nada a ver com isso, Antoine! Entendeu!? Isso é coisa de adultos! - Com a voz triste, Vincenzo, argumenta.
- Dess, ela já tem total compreensão de quem é e do que veio fazer aqui. Não podemos lutar contra isso.
- E o que a minha filha veio fazer na Terra além ser a minha filha e crescer e viver como uma menina normal!? - Jogando-se no chão, Vincenzo esconde o rosto com as mãos e murmura.
- Desisto. Vc não quer enxergar...
- Cala a boca, Vincenzo! Chega desse papo! - Protesto, erguendo-me, rompendo o círculo. Tomando Matteo em meus braços, aviso. - Vou dar banho no meu filho e não quero mais ouvir essa história de 'legião', vaca desgrenhada ou coração infectado! Ponto final!
- Mas o vovô precisa ser curado, mãe. Ele tá adoecendo. Perdendo as forças.
- Ele que tome vitaminas! - Grito antes de deixar o quarto. Apontando meu indicador em sua direção, alerto, histérica. - E vc, mocinha, fica longe dessa história ou vai ficar de castigo por uma semana! Entendido!?
- Mas...
- Sem 'mas', Antoine! Vc é uma menina normal que precisa estudar porque amanhã tem prova! Vai crescer e vamos dar uma baita festa em seus...- Minha voz embarga. Escondo meu rosto no ombro de Matteo e, engolindo o choro ao me lembrar do dia em que ela profetizou que não chegaria aos quinze anos, choramingo. - Vou te vestir de princesa no seu 'níver' de quinze anos e vc vai poder escolher seu príncipe!
- Dess, não adianta tapar o sol com a peneira!
- Eu tapo o sol com o que eu quiser, Vincenzo! O sol é meu! A filha é minha! Nem mais um pio sobre esse assunto!
- Que assunto? Cheguei em uma hora ruim? - Pergunta-me Enrico do corredor. Seus olhos que riem estão tristes. Sua voz, mais fraca. Eu não vou perder mais ninguém dos que amo pra porra de monstros de videogames! Chega! - Vc está bem, meu anjo? - Matteo se joga em seu colo. Ele o abraça com força. Sinto seu amor por meu filho. Instintivamente, toco com a mão espalmada, em seu peito. Concentro-me e vejo a cena narrada por Antoine com riqueza de detalhes. Celeste perfura o corpo de Enrico, com seu braço, rompendo pele, músculos e ossos até chegar ao coração bombeando sangue com força. Com suas unhas afiadas, ela o faz sangrar. Caído sob a copa da árvore, sozinho, ele se culpa por ter falhado. Seu coração ainda sangra...- Dess! Vc tá bem!? Acorda! - Recuando, levo a mão ao peito e, comovida, aviso.
- Isso não vai ficar assim, Enrico. Eu vou estancar o ferimento. - Um beijo em sua testa e levo comigo, Matteo. Cantarolando a mesma música que cantarolei para retirar Cassie da depressão, sigo até o banheiro de Matteo e encarando meu reflexo, eu a invoco.
- Posso contar com sua ajuda?
- Sempre. - Rindo, Matteo aponta para a imagem no espelho e balbucia.
- 'Mamãe não. Não não'.
- Não. Eu não sou sua 'mamãe', meu anjo...
Contamos tudo a Cassie e Liam que acabam de retornar de Nova York, absolutamente distantes de nossa realidade. Cassie não acredita em minha versão 'Pixar studios' dos fatos ocorridos desde a morte de Adele onde minto que ela tomou meus comprimidos por estar bêbada e confusa. Ao lado de Doc, resolveu descansar antes da 'queima de fogos', em nossa cama de hóspedes.
- Duas mortes em uma noite, tia!?
- Isso acontece. - Murmuro. - Ela, por ingestão de ansiolíticos. Ele, por um aneurisma do qual jamais suspeitamos.
- Conta outra. - Zomba Cassie, abatida. - Conhecendo o histórico dessa família, algo de muito pior aconteceu.
- Não duvide, dela. - Repreende-a Liam, amorosamente, encarando-me com seus olhos frios. - Se ela diz que foi assim...- Irritada, ela refuta.
- 'Coelhinho', eu vivi com eles durante anos e nada do que acontece nessa família é normal. Eu os conheço. Vc não. Eu vivi o terror pelo qual eles passaram. Vc não.
- Não se exalte, Cassie. - Aconselha Liam, preocupado. - Lembra do que o médico disse?
- Que médico!? O que a Cassie tem, Liam!?
- Calma, Dess.
- Vc não se cansa de me pedir pra ficar calma, Vincenzo!?
- Vou parar no dia em que vc me obedecer.
- Nunca. - Rosno. - O que vc tem, Cassie!?
- Bobagem, tia. - Diz ela diante do berço onde Sean dorme, tranquilamente. - Liam se preocupa demais.
- Somos uma família, Liam. - Confronto-o com meu olhar invasivo. - Vai nos contar ou eu vou precisar usar de meu famoso dom para descobrir?
- Isso é uma ameaça?
- Não. É uma afirmação.
- Liam, ela só quer ajudar. - Defende-me Vincenzo. - Não fique na defensiva.
- Ele não gosta de mim, Vincenzo. Acha que sou culpada por todos os males pelos quais Cassie passou.
- Dess...
- É Verdade! Ele me culpa desde que...- Lembrando-me do aborto, engulo em seco e disfarço. - Desde sempre!
- Tia, foi por sua causa que nós nos encontramos. Ele te ama também. - Tocando em suas mãos, sorrio ao mentir.
- Eu sei. Do jeito dele, ele me ama. - De súbito, recuo, esbarrando em Liam, tropeçando na cadeira de amamentação. Vincenzo, ligeiro, me ampara antes de um tombo.
- Vc tá bem?
- O que viu!? - Indaga Liam, ansioso. - Me diz.
- Ela não te contou? - Desdenho. - Ela não confiou em vc, 'Coelhinho'?
- Dess! Aonde vai!?
- Preciso de ar fresco! E não me siga!
- Pode me xingar, mas me conta o que viu!
- Puta que pariu! - Xingo com os pés descalços sobre a grama no jardim. - Eu quero privacidade!
- Depois! - Agarrando-me pelos braços, Vincenzo ordena. - Fala o que viu! Alguma coisa te assustou!
- Vc se assustaria também se visse o que eu vi!
- Me conta, Dess...
- Aqui não. Em casa.
- Me conta agora. - Pede-me Liam. - Por favor. Eu não te culpo por nada. Eu só não estou sabendo lidar com essa fase de Cassie. Ela confia muito em vc. Vc já a curou uma vez. Pode curá-la de novo.
- Eu???
- Que diabos ela tem!? - Exalta-se Vincenzo. - Parem de pensar ao mesmo tempo! Isso me confunde!
- Bem feito. - Caçoo.
- Que fase, Liam!?
- Cassie está com 'Depressão pós-parto'. - Explica Liam a Vincenzo. - Ela tem rejeitado nosso filho. Eu não sei mais o que fazer. Já fomos a médicos. Ela já foi medicada, mas ainda continua a ver...
- Monstros no rosto de Sean. - Sussurro. - Ela tem visto coisas feias e, por isso, se afasta dele. Ela tem medo de ficar sozinha com ele.
- Putz...- Lamenta Vincenzo. - Dess já teve esse transtorno, mas...
- Não, amor. Não foi nada parecido com o dela. Cassie não tem somente o transtorno. Ela, pra variar, está sendo atacada.
- Por quem!?
- Adivinha, Vincenzo? - Um curta pausa e ele explode.
- Porra! Ela também!? Quando vão desistir!?
- Não somos os únicos, Vincenzo. Há brechas em todas as famílias e, onde houver brechas, lá eles estarão.
- Do que falam?
- Tá desatualizado, hein! - Zombo. - Não tem contatos do 'Outro Lado'. Estamos em meio a uma batalha épica, querido. Portanto, não me culpe por nada. Não me olhe com desprezo. Talvez, eu seja útil em algum momento.
- Dess!!!
- Preciso ficar com a minha amiga. - Informo entredentes. Recuando, aconselho. - Fique com o seu. Fui!
Catando algumas plantas no jardim da casa de Cassie, cantarolo enquanto sou observada por Vincenzo e Liam. Saltitante, sorrio, subindo os degraus da varanda.
- O que vai fazer, Dess!? - Olhando-o fixamente, debaixo da chuva, ela pergunta.
- Me confundindo de novo, Cassiel?
- Confia em mim?
- Sempre, tia. - Rindo, ela comenta. - Vc tá esquisita.
- Feche os olhos e abrace seu filho, meu anjo e não o largue de jeito algum.
- Por que fechou a porta, tia?
- Homens sempre atrapalham tudo. - Rosno.
Macerando alecrim e arruda em uma cubeta que trouxera da cozinha, ela me faz sentar sobre o piso frio, deixando a faca de lado. Escolhendo a música perfeita para o momento, em meu celular, ela aperta o 'play'.
Assustada, Cassie pede-me para abrir os olhos.
- Não, querida. Confie em mim. Os monstros irão embora.
- Como sabe...?
- Shhh. Inspire o cheiro da sálvia, meu anjo. Vai te acalmar.
O quarto esfumaçado me permite ver os espectros escondidos acima de nossas cabeças, grudados no teto, e próximos ao berço de Sean. Com uma das mãos, ela segura o pote onde a sálvia queima com a ajuda de seu sopro. Com a mão livre, vai espalhando a fumaça e invocando os elementais do Bem, em nome do Criador. Percebo a angústia de Cassie que se mantem de olhos fechados. Tossindo, ela pergunta.
- Vai funcionar, tia? Eles vão deixar meu Sean em paz? - Em transe, não respondo. - Tia!?
- Concentre-se, querida. Pense no 'Crucificado'.
- Jesus!?
- Sim...
- Dess! Abra a porta! - Desconcentro-me ao ouvir sua voz desesperada e os murros contra a porta.
"Fique quieto, Vincenzo. Estou fazendo algo muito sério", penso, esperando que ele me ouça. Creio que deu certo. Liam ainda insiste em gritar por Cassie. Vincenzo ordena que ele se cale. Cassie, angustiada, confia em mim e se mantem de pé, agarrada a Sean enquanto vejo meus pés caminhando ao seu redor, cobrindo-os de fumaça.
- Em nome do Criador, eu os expulso daqui para sempre. - Proclama sua voz, confrontando um dos poucos seres sinistros que ainda insistem em permanecer no quarto. Amedrontada, porém, decidida a livrar Cassie e Sean desses covardes, com a faca afiada, permito que ela corte a pele de meu pulso. Um pingo de meu sangue no pote com sálvia e os vejo recuar, horrorizados. Que poder tem o meu sangue? O de Lúcifer?
- Recuem e nunca mais retornem. - Ordena ela, confiante, permitindo que a fumaça escape pelas janelas abertas. Percebendo que estamos a sós, ela sussurra.
- Abra os olhos, Cassie.
- Cheiro de rosas, tia!
- Funcionou. - Sorrio. Antes de lhe entregar um pequeno saco em tecido com um nó na ponta, contendo as ervas que minhas mãos maceraram, ela avisa. - Coloque-o debaixo do colchão do pequenino.
- Isso afasta os monstros, tia?
- Sim. Ah! - Tocando em seu queixo, a voz alerta. - Nunca mais assista a filmes como aqueles e, por favor, jogue fora aquela tábua maldita.
- Não conte ao Liam, tia. Eu queria falar com meus pais. Tenho saudades. - Antes de partir, a voz repete.
- Queime a tábua lá fora. São brechas, filha. Brechas. - Fraca, reviro os olhos e caio contra o piso frio. Vincenzo arromba a porta e me reanima.
- Vc tá bem? Dess? É vc?
- Não. Sou Madre Tereza de Calcutá, idiota. - Rindo, ele me beija ao sussurrar.
- Te amo tanto...
Ao volante, ele tem uma crise de riso.
- O que foi, palhaço? - Um olhar cafajeste e ele zomba.
- Curandeira, Dess!? - Saio do carro e, batendo a porta com força, rosno.
- Ah! Vá pro inferno!
- Os lanches!!! - Grita ele do banco do motorista. Estacionado em nossa garagem, ele sacode os pacotes 'delivery'. - Se esqueceu???
- Dá pra trazer ou tá difícil!? - Grito da varanda. - Vincenzo! Não me irrita ! eu tô morrendo de fome!
- Vem pegar...
- Filho da puta! - Avançando sobre ele, abro sua porta e, lutando para alcançar os lanches, ouço seus risos que me fazem rir. - Me dá, idiota! - Enfurnando seus dedos em meus cabelos molhados, ele beija minha boca com ardor e se pergunta.
- O que seria da minha vida sem vc?
- Nada. - Roubo os pacotes com nossos lanches e, aos gritos, fujo dele. Como dois adolescentes, estamos agarrados na varanda, nos beijando, quando Antoine surge, resmungando.
- Quando pararem com a safadeza, a gente pode comer? Eu tô varada de fome.
- Eu tentei impedir Antoine, mas, ela parece adivinhar os passos de vcs. - Argumenta Enrico, com Matteo em seu colo. - Vc me parece exausta, filha.
- Eu tô. Depois de comer, tudo o que eu quero é dormir...- Gargalhando, Vincenzo graceja.
- Sabe de nada, inocente...
- Mais safadeza, vovô. - Reclama Antoine levando nossos lanches até a cozinha. Observando a figura cansada e abatida de Enrico, decido-me a dar lugar a ela, uma vez mais.
- Por seu pai, amor.
- E, se ela não quiser partir?
- Vc me resgata.
- Sem dúvida alguma.
O Tempo passa. Ele nunca para. Cassie voltou a cuidar de Sean com o amor de sempre e Liam, irritantemente, me envia buquês de flores todas as semanas. Eu o entendo. Introvertido, foi a única maneira que encontrou de me agradecer pelo que fiz. Aliás, pelo que Anahita fez. Desde aquela noite, sinto-me fraca, mas não permito que Vincenzo perceba. Continuo a cuidar da casa, das crianças, dele e voltei às aulas na 'Just Dance' após o longo e terrível feriado de final de ano. Doc e Adele ainda estão vivos em minha mente, coração e, infelizmente, em meus sonhos. Doc, consciente e compassivo, não se cansa de tentar se fazer visível, do 'Outro Lado', a Adele que se recusa a acreditar que está morta.
Mais um problema a ser resolvido em minha lista interminável de 'problemas a serem resolvidos'.
- Posso marcar, Adessa?
- Oiiii???
- Uma nova aluna. Posso marcar uma audição com ela? Já te perguntei pela terceira vez.
- Perdão, Aninha. Tô voltando ao normal agora.
- As festas de final de ano devem ter sido um 'badalo'!
- Super. - Minto. - 'Badalo' em cima de 'badalo'. Vc nem imagina...
- Tenho uma surpresa! - Diz Aninha, animada. Apoiada na bancada da recepção, pergunto, desanimada.
- Qual?
- Seu nome está entre os inscritos no concurso de dança!
- Sem chances...- Abrindo um sorriso triste, comento. - Impossível. A menos que aceitem um casal com uma só pessoa. - Mostrando-me a tela do computador, ela pergunta eufórica.
- Reconhece esse nome aqui??? - Incrédula, nego, veementemente, com a cabeça.
- Impossível.
- O impossível é impossível até que alguém o torne possível, amiga! E, pelo que estou lendo aqui, um tal de Vincenzo Rossi veio até a academia e se inscreveu no concurso e te escolheu como sua parceira!
- Meu Deus...
- Aonde vai!?
- Encher de beijos o meu novo parceiro!!! Já volto!!!
Pulando a catraca da academia de boxe, beijo o rosto de Leo que, numa afrontosa demonstração de repulsa, limpa a pele com o dorso de sua mão. Estou tão feliz que peço desculpas.
- Eu preciso falar com ele. Vc sabe onde ele tá!? - Um ar malicioso e Leo responde.
- No ringue, ele não está. Aliás, ele tem ficado dentro do escritório por horas e horas. Sabe Deus o que ele faz lá dentro...- Compreendendo sua dificuldade em lidar comigo, agradeço e corro até o escritório. Receosa, evito abrir a porta e ver algo que destrua minha felicidade.
- Entra, Dess! - Grita Vincenzo. Abro a porta e diante de seu sorriso inocente, eu o ouço me chamar de 'idiota'. - Achou que eu estava trepando com a ruiva aqui?
- Sei lá! Fiquei com medo! - Respondo sentando-me em seu colo. A cadeira gira e eu gargalho, emocionada. - Vc foi à academia onde trabalho!?
- Sim, imbecil. Já preparou a coreografia? Se for pra competir, eu quero vencer. - Beijo todos os pedacinhos de seu lindo rosto enquanto ele ri de mim. - Para, Dess. Tá maluca?
- Por vc, amor. Obrigada. Eu não sei o que dizer...
- Não diga nada. Só me ajuda a aprender os passos. Vc sabe que eu sou um péssimo dançarino.
- Darei um jeito, amor. - Um beijo casto em sua boca e indago. - O que tá fazendo aqui em seu horário de aula?
- Troquei meu horário com João. Ele chega mais cedo em casa pra cuidar dos filhos e eu fico livre da ruiva e de suas crises de ciúmes, Dess.
- Não!
- Sim.
- Vc fez isso por mim!?
- Não. Foi por Nelson Mandela.
Uma gargalhada e o beijo com voracidade. Sem fôlego, ele me afasta e, aos risos, confessa.
- Se eu soubesse que essas mudanças surtiriam esse efeito em vc, teria mudado tudo antes!
- Te amo, Vincenzo. Vc mudou sua vida por mim.
- E vc, deu sentido à minha vida, Dess. O que mais eu poderia fazer?
- Ensaiar!? - Pergunto, eufórica.
- Dess, não queria ensaiar na 'Just Dance'. Todos vão me ver e eu não vou conseguir...
- Ok. - Interrompo-o, contente. - A gente ensaia aqui, no tatame, depois de todas as aulas. Fechou!?
- Já é!
Rimos do som de nossas mãos se encontrando acima de nossas cabeças, selando nossa união.
Após o nosso primeiro e exaustivo ensaio, sozinhos no ringue, deitados no tatame, encaro o teto, de mãos dadas a Vincenzo.
- Fala, Dess. O que quer saber?
- Vc me disse que viveu com Eileen e que Celeste a amava como a uma filha. Por que, de repente, um ser tão cheio de bondade, se transformou em um monstro? Celeste amava Enrico. Eu tenho essas memórias em minha cabeça.
- Não entendo, Dess. - Confessa ele, deitado ao meu lado. - Juro que não. Já vivi muitas vidas com Celeste que cuidou de mim com o amor de mãe. Quando ela se desvirtuou? Eu não sei te responder. Tampouco, o porquê.
- Mais um item em minha lista...- Suspiro.
- Que lista, Dess!?
- Ah! Deixa pra lá! Vamos pra casa!? Tô morrendo de saudades de nossos filhos!
- Somos dois!
Leo se despede de Vincenzo com admiração em seus olhos cor de mel e me ignora, solenemente. Deixo Vincenzo seguir adiante e, recuando, seguro Leo pela gola de sua camisa preta e pergunto, preocupada.
- Já queimou a porcaria daquela tábua Ouija ou vai esperar que outro amigo morra!?
Perplexo e assombrado, ele indaga.
- Como sabe disso?
- Sabendo. Precisa de ajuda?
- Sim. Começamos uma coisa que não conseguimos deter. Eu tô com medo...- Um forte abraço em Leo e sussurro.
- Vamos dar um jeito nisso. Reúna seus amigos e faremos uma última sessão especial na próxima lua cheia. Ok?
- Ok. - Encabulado e arrependido, ele me pede perdão por ter sido grosseiro. - Eu não tenho dormido bem. - Nem pode. Há dezenas de mortos em seu quarto. - Vc acha que vai dar certo?
- Vai. Sabe rezar?
- Sim. Mas, não curto muito.
- Melhor começar a curtir. Sua mãe mora com vc?
- Sim. Ela é muito fervorosa - Enviando ao seu celular a oração de São Bento, aconselho. - Comece hoje mesmo. Reze com sua mãe. Ok? - Beijando o dorso de minha mão, ele se redime.
- Obrigado por tudo.
- Por nada. - Sorrio. - Ainda nem começamos.
- Dess!!! - Grita Vincenzo próximo ao carro.
- Fui!!!
Chegamos à nossa casa e encontramos Antoine, aos prantos, no portão, com Matteo ao seu lado, à nossa espera. Saltando do carro antes mesmo de Vincenzo estacioná-lo na garagem, corro até ela e, desesperada pergunto.
- O que aconteceu, filha!? - Tomando Matteo em meu colo, verifico sua temperatura. - Ele tá bem.
- Não é o maninho, mamãe. É o vovô.
- O que ele tem!? - Desespera-se Vincenzo. - Onde ele tá!?
- Lá dentro. - Diz ela entre soluços. Corremos até o quarto de Enrico e o encontramos em sua cama e, sobre ele, Celeste sugando sua força através de seu plexo solar. De olhos fechados, Enrico nos pede desculpa e se despede.
- NUNCA!
- Pai! - Horrorizado, Vincenzo se aproxima de Enrico. Celeste, transtornada e desgrenhada, o repele com um erguer de braço. Vendo Vincenzo jogado contra a parede, encho-me de ódio e, sem pensar, salto sobre ela.
- VAGABUNDA! - Grito assim que prendo seu pescoço com meu antebraço, forçando meu corpo para trás. Esse golpe faria qualquer homem cair, porém, tomada por alguma força maligna, ela se torna invencível.
Ou quase...
Antoine, furiosa, a atinge no rosto com seu famoso chicote flamejante. Urrando de ódio, Celeste tem a pele do rosto ferida. Atingida pelo mesmo chicote, minha pele arde e sangra. Filetes de sangue escorrem por meu antebraço. Vincenzo arrasta seu pai da cama enquanto luto com Celeste. Caindo sobre ela no chão do quarto, observo o pavor em seus olhos ao ver meu sangue. Lembrando de quem eu descendo e, contraditoriamente, pedindo ajuda ao Criador, ordeno.
- Volta pro inferno, maldita!
Ela chega a mostrar seus dentes pontiagudos para mim antes de gritar de pavor assim que desenho uma cruz em sua testa com meu sangue.
Outro grito, e ela vai se esvaziando como bola de aniversário até sumir diante de nossos olhos. Exaurida, caio para o lado e, encarando o teto, agradeço, em silêncio, ao 'Crucificado'.
Vincenzo me socorre, levando-me para nossa cama. Inquieta, indago.
- Como está Enrico!? - Com o semblante triste, ele responde.
- Ainda vive...
- Ainda!? Ele não pode morrer! É um anjo! Vincenzo! - Chorando, imploro. - Faz alguma coisa! - Corro até o quarto de hóspedes e meu coração dói ao ver Enrico sorrir quase sem vida. - Seja forte, pai! Seja forte! - Imploro, abraçada ao seu tronco. - Não nos deixe! Por favor! Não nos deixe!
- Ele chegou, mamãe! - Vibra Antoine. - Eu chamei por ele e ele me ouviu!
- Ele quem!? - Pergunto antes de ouvir sua voz fria logo atrás de mim. Vincenzo se ajoelha enquanto ele reclama.
- O que vcs têm de tão especial? Por que estou aqui tendo tantas pessoas para salvar?
Com a voz trêmula, digo seu nome.
- Rafael...
- Arcanjo Rafael. - Corrige-me ele. - Poderia se afastar e me dar espaço para trabalhar?
- Pedindo com tanta delicadeza...
- Dess!
Antoine me puxa para longe de Rafael e, eufórica, comemora.
- Vovô vai viver, mamãe! Ele vai viver! - Uma dor no meu peito e, ajoelhada diante dela, temendo a resposta, pergunto.
- O que prometeu a ele dessa vez, Antoine!? Outra troca!?
Em silêncio, ela se ajoelha ao lado de Vincenzo enquanto corro até o quintal e, debaixo da chuva, peço num sussurro.
- Não a tirem de mim. Eu imploro. Não a tirem de mim.
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