Chegamos ao castelo ao escurecer. Celeste nos recebera de braços abertos e o coração consternado por nosso sofrimento. Antoine se encarrega de narrar o que parece ser o fim de minha união com Ga'al, embora eu ainda nutra esperanças em reconquistá-lo. No interior de meu quarto, retiro o vestido com que ele me presenteou no inesquecível dia em que dançamos sob a chuva.
- Ela mente...- Afirmo entre soluços enquanto tento lavar, num gesto insano, a mancha de sangue no tecido fino e branco, com a água da banheira onde devo me limpar. - Isabella vai me pagar por tudo. Eu juro.
- Cuidado. As palavras têm força.
- Diabos! Tu não podes entrar assim em meus aposentos ainda que eles estejam dentro dos teus aposentos! - Contendo um riso inconveniente, Giovanni se desculpa enquanto cubro meu corpo nu com o vestido ensopado. - Isso é inadequado.
- Eu sei. Perdão se te assustei. Estou preocupado com a tua saúde e a do bebê. Notei...- Aponta ele o indicador ao interior de minhas coxas tingidas pelo sangue seco. Parecendo constrangido, ele indaga. - Nosso filho ainda vive?
- Não existe 'nosso filho', Giovanni. - Esclareço, num fio de voz. - Esse filho é e sempre será de Ga'al. E não. Ele não morreu. Ainda vive dentro de mim. Eu, no entanto, estou morrendo por dentro. Não sei se terei ânimo para cuidar dele e de Antoine. Sem Ga'al, não vou conseguir.
- Vais sim. - Assegura-me ele dando um passo à frente. - Estarei ao teu lado. Sempre.
- Te afastas. - Alerto, recuando. - Por tua causa, perdi meu marido. - Sentindo um jato de um líquido quente escapar de minhas entranhas, eu o ouço reclamar, amparando-me na queda.
- E se eu não te ajudar, perderás o filho dele, cazzo.
- Salva nosso filho...- Suspiro. Antes de desmaiar, ouço sua voz suave afirmar.
- Salvarei, meu anjo. Salvarei.
Giovanni cuidara de mim e do filho em meu ventre demonstrando a mesma habilidade em Magia que Ga'al. Dera-me um banho com ervas frescas em sua banheira luxuosa, cercada por velas aromáticas. Enquanto estivera sob seus cuidados, ele não me lançou um olhar de lascívia sequer. Eu estava nua e carente e ele não me olhou como mulher. Ele não me quer. Eis a verdade. Ga'al me expulsara de casa por nada. Cazzo! Sua indiferença me irrita e me incita a testar sua capacidade em não me enxergar como mulher. Penso em Ga'al e no quão solitário ele deve estar e uma onda de remorso me engole. Então, eu paro de desejar o impossível. Sinto falta do sorriso tímido de meu marido que contrasta com os risos irritantemente alegres de Giovanni. Seus risos demonstram sua alegria em viver e a intensa e legítima vontade em ajudar aos que o rodeiam. Até mesmo aos que trabalham em sua propriedade. Para ele, cada dia é um novo recomeço enquanto que, para mim, é o início do fim.
- De onde tirastes esses pensamentos negativos?
- Certamente de minha vida repleta de alegrias e festividades.
- Não seja irônica. Tua vida começa agora. Deixa-me fazer parte dela. Teu marido já não te quer mais. - Em uma reverência forçada, uso de sarcasmo.
- Aaaah...agora eu me sinto muito melhor, duque. Obrigada por me manter atualizada. - Deixo a bandeja com seu desjejum sobre sua cama sempre em desalinho. Com quem ele se deitou ontem? Esse homem não se cansa de tantas mulheres!? - Inferno! - Enciumada, abro, num rompante de fúria, as cortinas permitindo que o sol clareie seu quarto.
Sem notar sua presença logo atrás de mim, arquejo. - Diabos. Mais um susto desses e vou parir em suas mãos.
- Será um prazer trazer nosso filho à vida.
- Ele não é nosso filho. Giovanni...não... - Arfando com o toque de suas mãos em meu rosto não consigo formular algo de racional. Perco-me em seus olhos de um azul intenso enquanto me deixo acariciar por ele. - Tu estás sem camisa.
- Eu sei. Eu durmo sem roupas.
- Nenhuma?
- Nada...
- Por Baco! - Desperto de seu encantamento e corro até a porta. - Deverias ter mais pudor!
- E tu deverias me aceitar como sou. - Diz ele entre a porta e eu. - Há tempos que não me deito com mulher alguma porque só desejo uma em especial e ela parece me desejar também. Estou certo? - Por Deus! Essas covinhas em suas bochechas e as pintas geometricamente alinhadas são coisas do demônio! - Não são não...- De olhos arregalados, exclamo.
- Tu ouves o que eu penso! Como!?
- Do mesmo jeito que tu sentes quando toca em algo ou alguém.
- Como sabes que carrego essa maldição!?
- Não é uma maldição. É um dom e eu a ouvi quando tocastes em minha cama.
- Que inferno! Agora vou ter que me preocupar com meus pensamentos diante de ti!? Saia da minha frente, Giovanni! Quero sair desse quarto! Ele me me me...
- Atrai?
- Sufoca! Saia! - Rindo, ele se afasta da porta que abro num desespero. Isabella surge diante de mim, lívida como cera. - Tu estavas a me espionar!? Falas! - Ordeno empurrando-a contra a parede, pressionando seu pescoço com meu antebraço. Enxergo medo em seus olhos esbugalhados e um leve traço de triunfo na boca entreaberta. - Vagabunda! Já não estais satisfeita em ter acabado com o meu casamento!? Ficas com teu amante idiota e não te aproximas de mim porque eu vou te matar!
- Eu não sou idiota...- Defende-se Giovanni, puxando-me pela cintura, afastando-me de Isabella que despenca no chão como fruta madura. - Tampouco amante dela. Eu não a desejo.
- Esse é um problema seu! Não meu! Me soltas, verme imundo!
- Como permites que ela te chames desse jeito!? - Pergunta Isabella, indignada. Vagabunda. Esse homem é meu. Perdestes! - Ela é uma de suas serviçais! - Encaro Giovanni que a ignora ao afirmar.
- Sou mesmo. Sou todo seu. - Ruborizo instantes antes de berrar e correr pelo longo corredor da ala norte, fugindo de meus sentimentos a cada dia mais fortes e incontroláveis.
- INFERNO! PARAS DE LER O QUE PENSO E FICAS COM ESSA PUTTANA SEM VALOR!
Ouvindo sua adorável gargalhada, imagino que terei um futuro feliz ao seu lado.
Estúpida!
Os dias se passam, tranquilos, durante nossa estada no castelo. Antoine e Celeste estão ainda mais unidos, o que me traz uma paz profunda quando pensara que sentiria ciúmes. Talvez eu tema que algo de ruim me aconteça após o nascimento de meu filho e a ideia de que Antoine não ficará desamparado me acalme. Afastara-me de Giovanni desde que vira Isabella escapar de seu quarto, de madrugada, como um rato imundo sai de sua toca. Ele nega que ainda a tenha como amante, mas eu não acredito em uma só palavra dita. Evito me concentrar ao tocar em suas roupas de cama quando as troco, porém, não me abstenho de, secretamente, aspirar seu cheirinho de fruta cítrica impregnado nos tecidos. Eu amo seu cheiro, suas gargalhadas, seus sorrisos, sua maneira delicada ao lidar com quem quer que seja. O carinho com que trata Antoine.
Eu o amo.
- Eu o amo...- Repito, distraída.
- Isso é bom, meu anjo, porque terás de permanecer dentro dele, comprimida, até o final do baile.
- Não fará mal ao meu bebê, Celeste? - Indago diante do espelho ovalado dentro do vestido mais belo que já vira em minha vida. - Minha barriga cresceu...
- Estás mais bela do que nunca, filha. - Diz ela ao meu reflexo. Seu sorriso é tão belo quanto o de seu filho. Seus lábios delicados beijam minha bochecha após apertar os cadarços do espartilho, em minhas costas. - E se não te sentires bem, poderás se ausentar.
- Não antes de dançar comigo, mamãe...- Ele a beija no rosto enquanto solto o ar dos pulmões pela boca, lembrando-me de respirar. Ele está simplesmente divino...radiante como o sol. INFERNO! ESTOU CORANDO! NÃO NÃO NÃO FALES COMIGO! Sorrindo, ele caminha em minha direção. Imobilizada, eu não me oponho ao seu beijo casto em minha boca. Tonta, umedeço meus lábios tentando me manter de pé. Repentinamente, ele me toma em seus braços e graceja. - Mocinha, estás radiante como o sol. - ELE OUVIU! ELE OUVIU! INFERNO! - Como consegues?
- Ponha-me no chão, Giovanni. Estou grávida. Não doente. - Sorrindo, ele me desobedece. Celeste me faz arquejar de espanto quando sugere.
- Hoje seria uma ótima oportunidade para que tu oficializes essa união, filho!
- Que união, Celeste!? - Protesto em seu colo. - Ponhas-me no chão, Giovanni! Eu ainda sou casada! Meu marido não morreu!
- Para mim, já morreu. - Refuta Celeste, aos risos, ajeitando seu coque diante do espelho. - Um homem que bate em mulheres não merece viver - Não me digas??? Acaso conheces a fama de teu filhinho??? - O que me diz, Giovanni?
- Concordo, mamãe. - Em meu ouvido, ele cochicha. - Não bato em mulheres. Eu apenas as ensino a me obedecerem. Contigo será diferente. Prometo. - Num impulso de lascívia, beijo seu pescoço e, num tom de voz baixo, ameaço.
- Solta-me ou arranco-te a orelha agora mesmo. - Ele me faz gargalhar ao refutar, no mesmo tom.
- Antes a orelha do que outra parte do meu corpo.
Bailara a noite inteira com Giovanni. Dentre todas as mulheres da nobreza, ele me escolhera e me exibira como se eu fosse uma delas. Há tanta luz ao nosso redor que me esqueço da realidade e mergulho no sonho que é ser cortejada por ele. Os lustres acima de nossas cabeças são fantásticos! As tochas, o vinho, a prataria, os vestidos que farfalham enquanto rodopio pelo salão guiada por ele me fazem sorrir como uma adolescente em seu primeiro baile! Seria isso a felicidade!? Giovanni só tem olhos para mim e eu, estou absolutamente apaixonada por ele. Antoine e Celeste deslizam pelo salão ao som da maravilhosa canção tocada por músicos em seus trajes de luxo e seus instrumentos dourados como o sol. Giovanni é o meu sol!
Meu sol de verão na Toscana!!!
- Preciso respirar! - Aviso, extasiada. - Volto logo!
- Espera-me! Vou contigo!
- Não! - Beijo seu rosto, num ímpeto de paixão e, ao seu ouvido, sussurro. - Danças com tua mãe. Não tardará e irão dizer que somos um casal.
- E somos! - Afirma Giovanni enquanto, aos pulos, sigo até a imensa varanda. Recosto-me à sacada em mármore e, observando as estrelas no céu, agradeço por estar viva, sem deixar de notar que me observam.
Havia três presenças no jardim naquela noite. Tivera contato com duas dela.
A terceira permaneceria em segredo... por pouco tempo.
Percebo Isabella atrás dos arbustos, mas não me incomodo. Afinal, fora ela mesma quem me empurrara para os braços de Giovanni quando se intrometera em meu casamento com Ga'al. A segunda presença se aproxima, leve como uma gazela.
- Uma bela noite, não é mesmo?
- Sim. Belíssima. - Respondo num suspiro, sem desviar os olhos do céu. - Espero que ela nunca termine...
- Mas vai terminar, meu bem. Estou aqui para tratarmos desse assunto. - Um forte arrepio na nuca e, assustada, olho para o lado. Incomodada com seu sorriso cínico, indago.
- Eu te conheço!? Qual o teu nome!?
- Tenho muitos. Vou direto ao assunto antes que o teu príncipe encantado retorne.
- Eu te conheço. - Afirmo, recuando. - Eu sei. Eu sinto.
- Que bom. Tens uma escolha. Um trato comigo ou um mergulho na Escuridão. O que vai ser?
- Do que falas!?
- Ai....- Revira ele os olhos claros. - Humanos me cansam. Estou tentando te ajudar, querida! Desista dele e me siga! Os dias atuais não são muito bons para mulheres com teus poderes!
- Não grite comigo. Eu não te conheço.
- Conheces, mas não te lembras. Não importa. Gostas do fogo?
- Como assim!?
- Desistas de Giovanni. Ele não é quem parece ser. É falso. Desleal. Vai te abandonar no teu pior momento, assim como fizera a mim.
- Nunca! Ele é um bom homem! Tu não o conheces! És algum convidado!?
- Não. Ele não me convidaria. - Gargalha ele. - Digamos que sejamos amigos desde o princípio dos Tempos.
- Não compreendo!
- Tempo esgotado, Morgana! Assinas o papel ou assumas as consequências!
- Que papel, seu louco! - Num truque bizarro de mágica, ele faz surgir um pergaminho em uma de suas mãos delicadas. A mão livre, ajeita seus cabelos lisos e bem cuidados. - Como fez isso!? De onde tu viestes!?
- Perguntas ao teu príncipe. Ele conhece o lugar. - Agitando o papel, impacientemente, ele ordena retirando do bolso de sua calça, uma caneta-tinteiro. - Assinas o papel e te livras do pior!
- Não! Saias daqui! Eu tenho medo! - Afastando-me dele, grito por Giovanni. - Te afastas do meu filho!
- O bebê...- Lamenta ele. - Uma pena.
- SUMA DAQUI, VERME! VÁ PARA O INFERNO! - Berro, desnorteada. Um outro sorriso cínico e, dando de ombros, ele assente.
- Eu irei, mas, depois não digas que não tentei ser útil.
- GIOVANNI!
- Ciao, bella. - Despede-se o homem sombrio. - Mande lembranças ao meu amigo, ou melhor, ao príncipe. Diga que estarei com ele no fim e vou gargalhar por ter 'caído' por ti, Morgana. Uma péssima escolha. Vocês nunca chegam vivos e unidos ao final do jogo. Ah! Tenha cuidado com a moça!
- Que jogo!? Que moça!?
- Morgana! - Grita Giovanni à minha procura. Ergo os braços a fim de ser vista por ele. Aos prantos, eu me jogo em seus braços. - O que tens? Estás tremendo!
- Aquele homem...- Aponto o indicador ao local de onde acabo de sair. - Ele disse...
- Que homem, meu anjo? Não há ninguém ali.
- Ele disse...- Encostando o dorso de sua mão em minha testa, ele comenta, preocupado.
- Tu estás febril. Vou te levar para cama.
- NÃO! - Reajo, empurrando-o com a lateral de meu corpo. Desço as escadas, aos gritos. - NÃO POSSO! EU VOU ENCONTRAR O HOMEM! ELE DISSE QUE TE CONHECIA!
- Morgana, volta! - Grita Giovanni, seguindo-me, desorientado. Alcançando-me, ele me puxa pelos braços, ele me olha com ternura ao indagar.
- Quem tu procuras, amor?
- Amor? - Exalo.
- Amor!? - Repete Isabella. - Tu a amas, Giovanni!? - Sob a luz da lua cheia, algo brilha em sua mão. Tarde demais, entendo ser um punhal tocando a pele fina do pescoço de Giovanni que se mantem calmo e imóvel. Ensandecida pelo ciúme, ela repete a pergunta num grito. - Tu a amas, Giovanni!? Tu a amas!?
Nada ouvira a partir de então. Nada vira. Tudo não passa de um borrão em minhas lembranças. Lembro-me de minhas mãos contra seus seios e do baque surdo de sua cabeça contra a pedra. Lembro-me do sangue sobre a pedra e dos olhos esbugalhados de Giovanni fixos nos meus. Sua voz metálica repete incansáveis vezes enquanto carrega o corpo sem vida da pobre jovem em seu ombro.
- Foi um acidente, amor. Um acidente. - Eu o sigo, aflita.
- Não. Eu a matei. Eu...eu matei Isabella. Eu sou culpada.
Jogando o corpo contra a relva, ele pressiona minhas têmporas com suas mãos geladas e argumenta num tom soturno. Seus olhos refletem a luz da lua.
- Não. Tu ficarás calada. A correnteza a levará para outra cidade. Ela deve ter bebido, como de costume. Concluirão que ela escorregou no musgo e sofrera um acidente. Uma fatalidade. Entendeu!? Morgana! Olhas para mim! Entendestes!? Tu não tivestes culpa! Tu salvastes a minha vida, amor.
Unimos nossos corpos e corações num abraço demorado. Em meio ao caos, sinto que ele quer me proteger e, se quer me proteger deve ser porque sente algo por mim. Algo forte.
- Morgana, eu sempre te amei. Eu sempre te perdi. Eu não vou suportar te perder novamente, amor. Faças o que digo e vamos sair dessa situação. Olhas para mim!
- Ela não merecia morrer...
- Não, mas ele procurou por caminhos obscuros. Dessa vez, eu vou me casar contigo, criar nossos filhos, ao lado de minha mãe...até a morte.
- Casar? Promete? - Indago sem raciocinar. Dentre todas as cenas que vivera hoje, opto, agora, por me concentrar nos bons momentos que tivera no baile. - Me leva daqui...amor.
- A febre aumentou, meu Deus. Venha! - Descanso em seus braços e me deixo levar por ele. - Vai dar tudo certo. Confia em mim.
- Confio.
Percebera que as palavras têm força. Tanta força quanto as águas do rio que arrastam o corpo de Isabella para longe sob escuridão da noite.
Na escuridão da noite, alguém nos espiona.
Alguém que conhece a verdade que tentamos esconder pelo pouco tempo em que vivemos felizes.
Giovanni e eu nos casamos em uma cerimônia simples realizada pelo padre Pietro, amigo da família, contrariando a vontade de Celeste que ansiava abrir as portas do castelo aos nobres e ao povo do vilarejo a fim de celebrar a união de seu único filho, meu grande amor e...cúmplice.
- Melhor assim, Celeste. - Considera padre Pietro. - Melhor não afrontarmos o homem com quem Morgana se casara e por quem fora expulsa de casa. Ademais, o dia está belíssimo, assim como a noiva e o filhinho em seu ventre está saudável. Em breve, seu herdeiro terá nascido e, então, celebraremos como tu o desejas.
- Tens razão, padre! Tu tens sempre razão! Vamos celebrar! - Exulta Celeste aos risos. Antoine toca em minha mão e, sensível, pergunta.
- Tu estás bem, mamãe?
- Estou sim, filho.
- Não está não.
- Filho...- Eu o abraço e beijo o topo de sua cabeça. Ajeitando seus cabelos sem corte, afirmo. - Estou bem sim. Só estou cansada. Essa barriga pesa, sabias? Estamos todos juntos. E isso me faz feliz. - Minto. Temo algo que não consigo identificar. O fantasma de Isabella vaga pelos corredores do castelo, atormentada. Apiedo-me dela todas as noites sem que ela consiga me ver. Seus olhos estão à procura de Giovanni que me cochicha algo.
- De hoje tu não me escapas, esposa. Chega de me expulsar de seu quarto. Sei o que vês porque te ouço. Vamos vencer isso juntos. Entendeu? Os mortos partiram, amor. Deixa-me te fazer feliz.
- Eu já sou, Giovanni. Já sou feliz. - Sorrio ao jogar o buquê de flores ao alto. Um grupo histérico de serviçais do castelo se mistura a Celeste que, eufórica, comemora sua vitória com o buquê em suas mãos. - Serás a próxima, Celeste.
- Duvido muito. - Cochicha-me ela. - O homem que amei morreu há tempos. - Distante de todos, indago, curiosa.
- O pai de Giovanni!? - Esvaziando sua terceira taça de vinho, ela confessa.
- Sim. Éramos jovens e apaixonados. Ele cuidava dos jardins da mansão. Um homem bom assim como Giovanni. Ele sorria com os olhos...
- O que aconteceu a ele?
- Assim que soube de nosso romance, meu pai, um homem maligno, o afastou de mim e, logo em seguida, o matou em uma emboscada. Enrico jamais tivera a chance de saber que era pai de um filho meu. As almas aflitas de quem tu me libertastes tiveram um fim trágico nas mãos sujas de sangue de meu pai que morrera antes de conhecer o neto. - Aos prantos, eu a abraço e sussurro.
- Sinto muito. Cuida de meu neto quando ele nascer?
- Por que faria isso, filha!? - Indaga ela abrindo um sorriso triste. - Tu estás saudável e feliz! Tu e Giovanni cuidarão de meu neto até que eu parta e me reencontre com Enrico! Por que choras!?
- Por nada. - Minto. Meu coração se comprime ao pensar em nosso futuro. - Tu estás certa. Nada de ruim vai nos acontecer.
- Posso roubar a minha esposa, mamãe? - Um de seus sorrisos plácidos e Celeste replica.
- É claro, meu filho amado. É claro. - Dessa vez, não reclamo de Giovanni que me carrega em seu colo, subindo as escadas até o topo de onde se despede de nossos poucos convidados.
- A partir de hoje, seremos uma família feliz! Minha esposa, nossos filhos, mamãe e eu! Obrigado por terem vindo...- Procuro afastar os pensamentos sombrios, aspirando seu cheirinho de maçã verde. Recosto-me ao seu ombro enquanto o ouço vibrar de alegria ao gracejar. - Creio que Morgana e eu temos assuntos particulares a tratar!
Ao som de palmas e risos, afasto-me do salão. Giovanni beija meus lábios com ardor enquanto caminha pelos corredores em direção ao seu quarto.
- Nosso. - Observa ele. - Nosso quarto, Duquesa de Bourbon.
- Duquesa!? Eu!?
- Sim. - Afirma ele arremessando-me contra sua cama macia. Espanto a angústia crescente ao ouvir sua voz rouca ronronar. - És a esposa de um duque. Um duque extremamente excitado que irá te devorar lentamente...- De olhos fechados, gargalho a cada movimento afobado de suas mãos lutando contra os cadarços de meu espartilho. Dançamos juntos e emocionados antes de retirarmos minha camisola que cai aos meus pés.
Ruborizo diante de seu espanto ao comentar num fio de voz.
- Tu és perfeita, meu amor. Em cada detalhe. - Abro os olhos e encontro os deles, fixos nos meus. - Te amo, Morgana. Sempre te amei e sempre vou te amar. Nunca te esqueças disso.
- Na saúde e na doença?
- Na riqueza e na pobreza...- Diz ele, beijando meus seios.
- Até o fim? - Arquejo tendo-o dentro de mim. Agarro-me aos seus cabelos lisos e sem corte enquanto o ouço urrar de prazer. Beijo sua boca com meu gosto quando repito a pergunta. - Até o fim?
- Até o fim...
Cerro os olhos antes de fazermos amor uma vez mais. Cerro meus olhos porque não desejo continuar a ver o espectro bizarro de Isabella em decomposição, no canto do quarto. Procuro me concentrar nas carícias do homem que amo e disfarçar o horror que as palavras impactantes de Isabella me causam.
"Aproveitas, puttana. É a única noite que terão juntos".
Sentados à mesa posta, desfrutamos das iguarias do café da manhã enquanto Celeste, aos risos, nos pergunta se tivemos uma boa noite de sono. Ruborizo diante de Antoine que, inocentemente, não compreende a inconveniente resposta de Giovanni.
- Não, mamãe! Não pregamos os olhos a noite toda! A noite toda!
Rimos juntos...pela última vez.
Ergo-me da cadeira, desfilando com minha camisola de núpcias branca com mangas longas e bufantes enquanto Giovanni se farta de pão, queijo e bolos.
- Precisas se alimentar, esposa. Tivestes muito trabalho na noite passada.
- Por que, tio? - Questiona Antoine. - Aonde foram? - Rindo, respondo ao seu ouvido.
- Seu tio não está bem da 'caixola'. Não ligues para ele.
- É a felicidade, meu bem. É a felicidade. - Explica Celeste, eufórica. - Por que entristecestes repentinamente, filha?
- Minha mãe dizia que não é bom agouro rir muito.
- Bobagem! - Surpreende-me Giovanni, erguendo-me do chão com seus braços fortes. - Sua mãe era louca e triste. Por isso, dizia sandices. Estou feliz. Mais feliz do que nunca e nada irá estragar os nossos dias. - Afirma ele ao rodopiar pelo salão vazio. Tonta e rindo, peço.
- Ponha-me no chão, marido, ou irei manchar tua blusa nova!
- Manchas! - Provoca-me ele. - Já estou prestes a retirá-la e ficar nu...novamente.
O riso estridente de Celeste é o último som feliz do qual me recordo.
Seu grito de horror o precede enquanto Antoine corre em minha direção. De volta ao chão, eu o abraço forte. Giovanni esbraveja diante da invasão de homens truculentos em sua propriedade. Os empregados são os primeiros a serem atingidos por toras de paus e adagas afiadas.
Há sangue sobre o piso branco e escorregadio por onde corro atrás de Giovanni, enlouquecido pelos gritos de socorro.
- Ficas! - Imploro agarrando-o pela camisa rasgada. - Eles não querem te machucar! Eles querem a mim!
- Calas a tua boca. - Murmura ele, num recuo. Percebendo minhas intenções, ele me abraça com força e me pede com a voz trêmula. - Jamais menciones algo sobre aquele incidente. Compreendestes?
- De qual incidente falas, Duque de Bourbon?
Reconheço, de imediato, a voz sarcástica soando logo atrás de mim. Volto-me em sua direção e o vejo sair dentre os homens selvagens que lhe dão espaço.
- O que fazes em minha casa!?
- Uma visita. - Responde Ga'al, encarando-me com seu olhar sombrio. Ao seu lado, a criatura demoníaca lhe sopra algo aos ouvidos. - Gostaria de conhecer a nova duquesa de Bourbon. Dizem que ela é belíssima e, pelo que vejo, estão corretos.
- Saia da minha casa. - Ordena Giovanni, receoso. Protegendo-me com seu corpo, ele parece ouvir os pensamentos tortuosos de Ga'al . - Não és bem-vindo. Tiras os teus comparsas daqui antes que os mande prender a todos.
Uma risada diabólica e Ga'al refuta.
- Estúpido! Sou eu quem os mandarei prender por assassinato! - Arquejo de pavor expondo-me diante dele. Inconscientemente, protejo Giovanni com meu corpo quando enxergo dor no olhar incisivo de Ga'al. - Não aguardaram sequer o reconhecimento do corpo da pobre moça jogada no rio para se unirem em pecado. Eu não te reconheço, esposa.
- Não sou tua esposa desde que me expulsastes de nossa casa. Até aquele dia, eu te fui fiel, Ga'al. Deixa-nos em paz.
- Papai...
- Filho. - Sussurra a voz embargada de Ga'al que cede ao carinho de Antoine abraçado à sua cintura. - Quanta falta tu me fizestes...
- Leva-me de volta, papai. Vamos viver juntos e felizes.
Ajoelhado, Ga'al vacila. Por milésimos de segundos, revejo a bondade no rosto do homem com quem me casei. Reativa, num gesto tolo, desperdiço minha última chance de não mergulhar no inferno ao protestar.
- Nunca! Antoine é meu filho! Não poderia viver ao lado de um ser louco e maligno como tu. - Afastando-se subitamente de Antoine, Ga'al se liga ao ser demoníaco e, contraindo as feições, ele argumenta, voltando os olhos flamejantes de ódio a mim.
- Tens razão. Deixei de ser um homem de paz por tua causa. Agora, tudo o que desejo é vingança. E eu a terei.
- Não...- Imploro, de joelhos.
- Vadia! - Grita Ga'al estapeando meu rosto. Giovanni salta sobre ele. Ensandecido, ele golpeia o rosto de Ga'al que, estendido sobre o piso, mantem um sorriso de triunfo em sua face ensanguentada. Celeste, abraçada a Antoine, suplica ao filho que pare. Giovanni não a ouve. Montado sobre Ga'al, ele o golpeia sem parar. Eu o arrasto pelo tronco, distanciando-o de Ga'al que ainda sorri ao erguer um braço e ordenar. - Homens! Cumpram o seu dever!
Aos berros, sou arrastada até a varanda enquanto assisto Giovanni ser surrado, covardemente, pelos comparsas de Ga'al que me joga contra seu ombro sem o menor cuidado com nosso filho em meu ventre. Posso sentir seu ódio e seus pensamentos perversos em contato com seu corpo.
Em nada se parece com o homem que um dia amei...
Pela janela de uma carruagem sombria, eu os vejo cheia de temor. Antoine chora agarrado a Celeste. Giovanni luta contra seus agressores gritando por mim. Ga'al, dentro da cabine, ao meu lado, me observa calado enquanto eu me distancio dos que mais amo na Terra.
- Deixe Giovanni livre. Eu te imploro. Não machuques Antoine ou Celeste. Leve a mim. Fui eu a culpada pela morte de Isabella.
- Eu sei. Eu vi. Eu estava lá na noite em que os dois pombinhos a jogaram no rio.
- Então vistes que eu a empurrei e que Giovanni somente tentou me livrar da culpa! - Num repente, tomo sua mão e a beijo em seu dorso. Desesperada, volto a implorar. - Não faças mal a eles. Sou eu a culpada. Por nosso filho, Ga'al, deixe-os em paz.
- Não tenho filhos contigo, vagabunda. Não sabes com quem falas?
- Sei. Tu não és o pai dessa criança em meu ventre. Ga'al jamais faria tanto mal se não fosse por tua intervenção, demônio maldito. Deixa-me falar com ele. Ga'al! Acorda! - Grito socando seu peito. - Acordas e falas comigo! Deixa-me retornar! Antoine sofre!
- Antoine não será afetado por teus erros, esposa. Dou-lhe minha palavra. - A carruagem para. Os cavalos relincham lá fora. Tochas iluminam a escuridão que nos cerca quando Ga'al, num chute violento, escancara a porta da cabine e, num gesto brusco, empurra-me para fora. Caio contra o chão pedregoso. De bruços, sinto o gosto da terra em minha boca que, há pouco, beijava os lábios de Giovanni. Como tudo pudera mudar tão dramaticamente? Por que tanto ódio? Eu tentei ser tua até o fim.
- Dói, Ga'al. Tenho cólicas. Não deixas nosso filho morrer.
- Erga-te, bruxa. - Ordena-me Ga'al, insensível à minha dor, diante de homens com túnicas pretas e tochas nas mãos. Em círculo, eles me observam enquanto tento me levantar. Um chute em minha barriga com seu coturno e Ga'al os incita a gargalhar. Golfadas de sangue escapam de minha boca semiaberta. Caio de joelhos. O sangue se mistura à terra escura onde desenho, sem esperanças, uma cruz com meu indicador. Em silêncio, oro por auxílio do 'Crucificado'. O fogo próximo ao meu rosto me faz enxergar o desenho. Assusto-me com os gritos enfurecidos dos homens de preto que me acusam de bruxaria.
- A cruz está invertida! - Esbraveja um deles enquanto procuro me manter de pé. Cambaleante, jogada de um lado ao outro por mãos grotescas, volto ao chão onde choro, encolhida de pavor. - És uma serva de Satã!
- Não...- Exalo enquanto me arrastam pelos braços. Desorientada, percebo sangue em minha camisola de mangas bufantes. A mesma que usara antes de ser despida e amada. Giovanni me tocara com tanta ternura em nossa única noite. Não é justo que não tenhamos outra. Nós teremos outra. Eu sei que teremos. - Não sou uma bruxa... - Murmuro arregalando os olhos sem poder respirar. Minhas costas queimam contra os degraus da escada por onde me puxam. Meu corpo é jogado contra o piso frio de um salão escuro. Sinto dor ao respirar e suplicar. - Ga'al, me ajuda. - Lampiões clareiam o ambiente. Meus olhos embaçados pela poeira enxergam vultos ao meu redor. Ouço gritos distantes. Gritos de dor e lamento. - Onde estou?
- No inferno. - Responde-me ele antes de chutar minhas costas. Urro de dor antes de desfalecer.
Caminho sob a chuva fina e fria. Sorrio ao pisar na grama úmida com os pés descalços. A barra de minha camisola branca e longa se arrasta sobre as raízes altas das árvores retorcidas da floresta cheia de vida. A brisa refresca meu rosto. A chuva esconde as lágrimas de saudades que sinto de meu Antoine e de nossos cavalos. Sinto falta do outro, mas não me recordo de seu nome.
- Giovanni?
- Sim. Giovanni. Tu o conheces?
- Sim. Eu o conheço.
- Como?
- Não importa, querida. Não há tempo. Tu precisas voltar.
- Não quero. Senhor, me ajuda. Eu não quero voltar. Lá é feio, frio, sujo e os homens são maus.
- Eu sei, filha.
- Por que choras?
- Porque eu não quero que sofras...
- Como conheces Giovanni? Ele é meu marido. Nós nos casamos há muito muito tempo, mas...eu...eu....eu não me lembro...
- Eu o amo muito, assim como tu o amas. Eu estarei contigo, filha.
- Por que tu o amas?
- Um pai deve amar seu filho. Não é assim que deve ser?
- Enrico!? És o Enrico de Celeste!?
- Sim. - Eufórica, replico.
- Eu preciso contar a ela! Ela te espera! Ela o ama! Giovanni precisa saber que tu estás vivo! Vivo!
- Filha, escutas o que tenho a te dizer.
- Não posso! Preciso encontrar Giovanni e Celeste...e Antoine. Antoine...- Choro copiosamente nos braços do homem que ri com os olhos. Ele acaricia meus cabelos molhados e com extrema ternura na voz, explica.
- Tempos difíceis virão. Tu precisas ser forte. Muito forte. Antoine estará a salvo. Celeste vai cuidar dele. Lembra-te disso quando acordar. Não te esqueças de que estarei contigo nessa e em outra vida. Não sucumbas ao Mal. Ele vai te tentar.
- Ele quem?
- O Anjo Caído.
- Quem!?
- Acorda, Morgana.
- Não quero acordar, senhor! Me salva!
- Não posso, filha...
- Tens os olhos do homem que amo. Segura na minha mão?
- Sempre.
- És um anjo?
- Não. Quem me dera. - Diz ele sorrindo. - Sou teu amigo e tenho como tarefa, te acompanhar. Descansas um pouco antes de partir. Nunca perca a fé. - Aconselha-me ele oferecendo-me uma maçã que devoro, faminta. Deveria ter me sentado ao lado de Giovanni e comido do pão...do bolo.
- Giovanni e eu estamos casados.
- Eu sei, filha. Eu sei.
- Onde estamos? Aqui é tão calmo.
- Estamos em casa. Tu precisas voltar.
- Não! Deixa-me aqui! - Um abraço forte e me sinto renovada. Ele beija minha testa e, com lágrimas nos olhos, sussurra.
- Seja forte. Giovanni vai te encontrar.
- Vai?
- Sim. E serão felizes para sempre.
- Quando?
- Em breve.
Sorrio, esperançosa.
- Acordas, vagabunda!
- Enrico!?
- Outro homem!? És uma puttana!
- Deixa-me te olhar, Ga'al. - Peço sem nada enxergar. Seus dedos tocam meus cabelos antes de desatarem o nó do pano que cobre meus olhos. Eu o sinto receoso, amargurado...quase arrependido. Seu coração dispara assim que o encaro. - Onde estamos?
- Em um cela. - Pisco antes de observar tudo ao redor. Sufoco um soluço ao descobrir.
- Eu já estive aqui em teus pensamentos! Tu te lembras do dia do guisado!? Eu vi esse mesmo lugar! Tu pensastes nesse lugar! Tu já estivestes aqui antes!? - Indago, decepcionada. - Tu planejavas me trancar aqui antes, Ga'al!? Quando ainda era tua esposa e fiel a ti!? Por quê!? Que mal eu te fiz!? - Recuando, ele se arrasta no chão imundo e se recosta à parede. Envergonhado, ele evita meus olhos. Compreendendo tudo, insisto. - Por que, Ga'al? Eu não te fazia feliz? Eu tentei. Juro que tentei. Liberta as minhas mãos. Meus pulsos doem...
- Não posso. - Lamenta ele. Por instantes, seus olhos se enchem de compaixão. - És uma prisioneira da igreja. Por que desenhastes a cruz, Morgana!? Eu não a queria aqui!
- Tu mentes. Viestes aqui antes.
- Estás certa. Num impulso de ciúmes, eu queria te punir, mas depois, eu desisti. Tu desenhastes a cruz invertida e agora...
- Eu não enxergava o que desenhava! - Defendo-me.
- O que fazias!? Um feitiço!
- Não! Uma oração ao teu Deus!
- Morgana...- Diz ele num tom de lamento. Levando as mãos ao rosto, ele chora. - Eu não queria...- Apiedo-me de seu sofrimento sem poder usar minhas mãos atadas. De cabeça baixa, ele se aproxima de mim e liberta meus pulsos da corda. Enxugo seu rosto com o dorso de minha mão. Ele repete meu gesto, em silêncio. Choramos juntos. Elevo os olhos e, perturbada, alerto.
- As sombras voltaram. Resista, Ga'al. Tira-me daqui. Salva nosso filho.
- Não posso. - Diz ele abrindo um sorriso macabro. Erguendo-se, Ga'al se afasta de mim e num tom irônico, avisa. - Ele está chegando.
- Quem!? - Indago horrorizada. Ainda estampando o mesmo sorriso em seu rosto, Ga'al abre a porta da cela. A imagem de um homem enorme, duas vezes maior do que Ga'al, e medonho, surge à minha frente. Seus olhos faíscam de desejo. Sua boca se abre num esgar. Antes de entender o motivo de sua presença, imploro num grito. - Não me deixes aqui, Ga'al!
- Sinto muito. Ga'al está dormindo. - Diz o ser demoníaco dando-me as costas.
A porta se fecha e o que vivera dentro daquela cela ficaria gravado em minha memória pela eternidade.
A dor lancinante dos socos em meu rosto enquanto o homem me dilacera por dentro com seu membro gigantesco me faz abandonar a cela...por segundos. Por segundos, estou de volta ao nosso quarto. Estou de volta aos braços quentes de Giovanni onde me aninho.
- Desde quando tu me amas?
- Desde sempre. - Rindo, beijo sua boca e insisto.
- Falas a verdade. Tu me vistes, pela primeira vez, na praça onde vendia as maçãs.
- Não, esposa. Eu te procuro há séculos. Eu te reencontrei na praça, onde vendias maçãs e, a partir de então, meu amor, que antes dormia, acordou com força. Eu 'caí' por tua casa, Morgana e não me arrependo disso.
- De onde caístes, marido? Explicas. - Peço, acariciando seus cabelos em desalinho. Inspiro seu cheiro. Beijo seu pescoço onde repouso minha cabeça. - Não é a primeira vez que tu te referes a essa queda. De onde caístes? Do céu?
- Não. Mas eu não sou mau, esposa. Te juro. Tomas cuidado. Talvez ele te procure e te conte mentiras.
- Ele quem?
- O homem que me odeia por ter 'caído'...
- Quem!?
Com um beijo lento e demorado, ele me faz calar e me esquecer do que procurava entender.
Volto ao meu corpo sujo, dolorido, jogado num canto fétido da cela. Estou sozinha, sangrando, chorando de dor e saudades quando ouço sua voz doce e sibilante.
- Podes te livrar de tudo o que ainda vai te acontecer, meu bem. Basta que tu assines o papel.
- Quem está aqui? Não consigo abrir meus olhos. - Sussurro. A garganta arde. Quase sem voz, insisto. - Digas o teu nome. Estou morta?
- Ainda não...- Lamenta a voz. - Meu bem. O que fizeram contigo? Estás um trapo humano. - Soprando em meu rosto, ele ordena. - Abra teus olhos. - Sufoco um soluço. Assustada, comento.
- Eu te conheço. Estavas na festa.
- Eu tentei te ajudar e tu negastes a minha ajuda. Não precisarias passar por isso. Tu sangras, Morgana. - Avisa-me ele apontando o queixo delicado ao interior de minhas pernas. Sentindo o sangue escapar de minhas entranhas, eu o encaro e, num desespero, suplico.
- Tira-me daqui antes que o monstro retorne. Salvas a vida do meu filho.
- Assinas o papel e terás tudo isso e muito mais. Tu és poderosa, Morgana. Por que te deixas abater por esses vermes? Assina e te vinga! - Desconfiada, diante do papel em branco, pergunto.
- Como conseguistes entrar? Eles trancam a porta. - De cócoras, ele sorri ao declarar.
- Não preciso de portas, meu bem. Não te recordas de quem eu sou? Teus cabelos estão uma bagunça...
- Tu não gostas de Giovanni. - Acuso. - Queres o mal dele. Dissestes que ririas ao fim. Do que falavas?
- De tudo o que está acontecendo, Morgana! - Responde-me ele, impaciente. - Assinas antes que eu não te possa tirar daqui! Eles estão voltando! Assinas!
- Por que tens interesse em mim!?
- Porque tu tens um imenso potencial! Não é justo que te percas nesta cela fedida, infestada por ratos e baratas!
- Não vou morrer aqui...- Contesto. - Ga'al está arrependido. Um demônio o possui. Ele vai me tirar daqui. Digas a ele que nosso filho está morrendo. - Seu rosto se aproxima do meu. Seus olhos de fogo se arregalam quando, enfurecido, ele refuta.
- Ga'al e o tal demônio são um só, tola! Eles se unirão pela eternidade até que tu o libertes! Esqueças dele! Salvas a tua vida! Assinas o papel!
- Salva meu filho...- Peço enquanto tento parar a hemorragia com a barra de minha camisola longa. As mangas bufantes estão rasgadas, imundas...- Salva.
- Ele é morto, Morgana! Acordas!
- Não...- Protesto num longo gemido. - Ele ainda está em mim.
- Basta! - Grita ele, erguendo-se. Em seu terno preto alinhado, ele me olha com desprezo e, antes de sumir, deixa cair uma garrafinha ao meu lado. - Beba antes de ser retirada dessa cela imunda e me poupe de ver mais uma de minhas colaboradoras ser reduzida a pó. Giovanni não vale o teu esforço. - De joelhos, arquejo ao indagar, enchendo-me de esperança.
- Tens notícias dele!? Ele está a salvo!? Diga-me que sim! - Uma gargalhada diabólica e ele me deixa ouvir suas últimas palavras.
- Digamos que ele merece sofrer mais do que tem sofrido...
Ele some. O monstro retorna. Em um profundo abatimento, não luto contra ele como da primeira vez em que fora violentada.
O monstro se foi. Abro os olhos. Engulo minha saliva com gosto de sangue. Arrasto-me sobre o piso viscoso. Afasto os ratos com as mãos marcadas por hematomas. Com o que restara do pano da camisola, limpo seu corpinho. Sorrio recostada à parede enquanto aconchego nosso filho em meus braços e suspiro, aliviada.
- Eu o salvei, Giovanni. Eu o salvei.
Agarrada ao seu corpo, eu não luto. Acorrentada pelos punhos, deixo-me conduzir pelo corredor com forte odor de excrementos humanos e tochas acesas acima de minha cabeça. Caminho com os pés feridos ao som de gritos, risadas. Braços estendidos das celas tentam me alcançar...tirar meu filho de mim.
- Malditos. - Rosno. Instantaneamente, cerro os olhos em contato com a luz do dia. Empurram-me pelas costas para que eu continue a andar. Abro, lentamente, meus olhos já adaptados à claridade. Diante de mim, homens com túnicas vermelhas, sentados em cadeiras, formam um semicírculo. Enxergo bondade no olhar de um deles. Nos demais, existe ódio, luxúria, ganância. Dirigindo-me ao bom homem, eu peço.
- Podes lavar meu filho? Ele está sujo. - O homem se espanta. Levando aos mãos ao rosto, ele o cobre. Estranhando seu comportamento, prossigo, dando um passo adiante. - Senhor, por favor, ajuda meu filho. Não me importo com meu destino, mas com o dele sim. Entrega-o ao pai dele. O Duque de Bourbon. Acaso o conheces? - Enxugando o rosto com um lenço branco, ele assente com a cabeça. Sorrio, confiante, enquanto gargalham ao meu redor. Percebo, então, que há vários homens do vilarejo entre os presentes. Homens que compravam das maçãs que vendia. Homens que me ofendiam com suas propostas indecentes. Homens que apontam seus dedos em direção à porta. Meus olhos seguem seus dedos quando arquejo, horrorizada. - Giovanni!
Caminho, apressada, até ele. Correntes o prendem nos punhos e tornozelos. Suas roupas estão em farrapos. Seu corpo esquálido se curva para frente. Seus lindos olhos azuis se enchem d'água quando encontram os meus. Alheia a todos, sorrio, compadecida, acariciando seu rosto ferido.
- O que fizeram contigo, amor?
- Eu falhei novamente...- Diz ele, chorando copiosamente. - Perdão, esposa. Perdão.
- Estás vivo. Em breve, estaremos de volta ao nosso lar. Nosso filho nasceu. Vês!? - Comprimindo os olhos, ele se joga de joelhos aos meus pés. Ainda chorando, ele volta a me pedir perdão. Não o compreendo. Deveria estar feliz por nosso filho. - Ele não quer se alimentar, marido. Erga-te e me ajuda. Ele precisa se alimentar.
- Morgana...- Emite ele um gemido de dor.
- Giovanni! Levanta! - Ordeno, histérica. - Tu precisas fazer o nosso filho se alimentar! Me soltem! - Berro, distanciando-me dele, sendo arrastada até o centro da sala. Volto meu olhar desesperado aos homens de túnica e, num grito, imploro. - Libertem Giovanni! Ele não tem culpa de nada! Ele precisa cuidar de nosso filho!
- Teu filho está morto. - Esclarece Ga'al, ao meu lado. Seus olhos avermelhados me fitam com misericórdia. Suas mãos acariciam meu filho quando sua voz embargada me pede. - Deixas que eu cuide dele. Ele não sofre mais...
- Tu prometes? - Indago antes de acomodar o corpo de nosso filho em seus braços estendidos. Mergulhando na Escuridão, encarando a verdade, sem lágrimas para chorar, aviso. - Tu tens que enterrá-lo em solo sagrado. Nosso filho é um anjo. Nada fez de errado. - Uma lágrima escorregue de seus olhos quando ele promete num tom baixo.
- Ele será enterrado em solo santo. Entrega-o.
Ga'al abraça o corpo de nosso filho e o retira da sala claustrofóbica. Um trovão ruge do lado de fora. Corro até Giovanni, abraçando-o com força.
- Tenho medo. - Confesso aos seus ouvidos.
- Não tenhas. Eu vou te libertar.
Entendo suas palavras tarde demais. Giovanni assume a culpa pela morte de Isabella enquanto eu o refuto, aos berros. Luto por me libertar das correntes enquanto os homens do vilarejo o espancam até que ele perca a consciência. Ao lado de seu corpo, amaldiçoo aqueles que me viram crescer, procurando por uma boa desculpa que salve a vida do homem que amo.
- Sou uma bruxa! Eu usei de sortilégios a fim de conquistar o duque e me livrar de sua amante!
- Ela mente! - Contesta Ga'al num súbito retorno. - Eu retiro minhas acusações, Vossa Excelência! - Tomada pelo espanto, desnutrida e fraca, cambaleio. Ele me toma em seus braços e, aos prantos, me pede perdão. Dirigindo-se à bancada, ele prossegue. - Peço clemência. Eles nada fizeram além de aguçar meus ciúmes doentio e, por isso, eu os acusei. Liberta-os. Eu vos peço. - De volta ao chão, sussurro.
- Gratidão...
- Tarde demais, homem tolo! - Alerta o bispo erguendo-se de seu trono. - Encontramos provas de bruxaria. Que a mulher e o homem sejam queimados vivos e que todos possam assistir ao fim desses hereges!
- Que provas!? - Refuta Ga'al, destemido.
- Uma cruz invertida! A bruxa a desenhou invocando Satã diante de todos! - Do chão, eu o vejo me defender...em vão.
- A pobre mulher não enxergava!
- Cala-te ou terás o mesmo fim dela!
Ga'al luta contra os homens que me acorrentam, ainda clamando por justiça. Antes de ser expulso do salão de julgamentos, eu peço.
- Cuida de Antoine.
- Cuidarei...- Diz ele, consternado. - Perdoa-me, esposa. Eu não deixarei que sofras na fogueira. Eu te prometo.
Arrastam-me de volta à cela. Meu coração acelera ao rever o espectro de Isabella ao lado do corpo de Giovanni ainda inconsciente.
Ela cumprira sua promessa de gargalhar antes do meu fim.
Arrependo-me de ter jogado fora o veneno dentro do frasco e não ter feito Giovanni beber dele. Evitaria um imenso sofrimento.
Abro os olhos embaçados. Pisco por diversas vezes até enxergar a multidão que nos cerca. Ao meu lado, Giovanni me pede perdão. Levo um tempo até assimilar a realidade. Meus punhos doem tanto quanto a minha cabeça. Filamentos de um líquido quente escorrem pelas laterais de meu rosto.
- É sangue. - Esclarece Giovanni atado a um tronco. Abaixo de seus pés descalços, há palha úmida. - Eles te machucaram muito, amor. Tu não o merecias. Fui eu quem te trouxe a esse mundo sombrio. Perdão. - O vento sopra em sua direção. Os fios de meu cabelo imundo cobrem meu rosto quando olho em seus olhos e, num sopro de voz, o refuto.
- Tu me trouxestes a luz. Desde que te vi pela primeira vez, eu soube o que era ter esperança em ser feliz. Nossa noite de núpcias foi a mais feliz de minha vida...
- Eu vou te reencontrar, esposa. Eu juro.
- Tenho medo! - Confesso ao som do burburinho causado pela bizarra euforia do povo do meu vilarejo. Chorando, repito. - Tenho medo do fogo! Não quero morrer! Não quero tu morras!
"Queimem a bruxa!", clamam homens, mulheres e crianças com quem vivera por anos enquanto tochas se aproximam de mim e de Giovanni, o primeiro a ser tocado pelas labaredas. Debato-me contra o tronco, berrando por ajuda. Giovanni mantem uma estranha calma ao ordenar.
- Olhe para os meus olhos, Morgana! Para os meus olhos!
- Vai doer! Faz parar! Somos inocentes! - Grito de olhos fechados. Penso em Antoine. Abro os olhos temendo que ele esteja presente. Meus olhos atordoados e ardidos pela ação da fumaça ainda o procuram. Não o encontro entre a multidão ensandecida. Tomada pelo horror, ergo meus olhos aos céus e suplico. - Mata-nos de uma vez.
- Olha para mim...- Pede-me Giovanni esforçando-se por sorrir enquanto o fogo se alastra de seus pés até os joelhos. Ateiam fogo na palha onde piso. Sem esperanças, cerro os olhos. O som do trovão acima de nossas cabeças abafa um ruído peculiar. O calor insuportável antecede a dor excruciante das primeiras línguas do fogo lambendo meus pés. Prestes a enlouquecer, grito por Giovanni, consumido pelas chamas, em silêncio, sem reação. Sua cabeça pende para frente.
Lembro-me de agradecer por ele ter morrido antes de ser queimado vivo. Estranho o sangue escorrendo de sua testa quando sou atraída por uma voz que destoa dentre as outras.
- Perdão, esposa! Eu não queria isso! Te amo!
Grita Ga'al antes de apontar seu mosquete em minha direção e disparar.
DIAS ATUAIS
- Adessa...
- O que houve, Aiden?
- Vc dormiu? - Pergunta-me ele deitando-me no tapete da sala.
- Dormi?
- Não sei. Estávamos dançando e...- Atordoada, agarro-me em seu pescoço e, num grito histérico, imploro.
- Apaga o fogo da lareira, por favor!!!
Continua...