- Pensei que ficaria feliz!
- Eu fiquei, mas...
- Não precisa aceitar a sugestão de Celeste, filha. Vcs podem fazer o que quiserem com o dinheiro da venda.
- Não fale por mim, Enrico! - Protesta Celeste erguendo seu queixo delicado. Seus olhos astutos incidem sobre mim ao prosseguir. - Eu os quero por perto. São a nossa família. Qual o problema em vivermos todos juntos!?
- Não podemos largar a academia e morar em outro país, Vincenzo! Fala pra ela! Nossa filha tem uma vida aqui! Eu tenho uma vida aqui! Nosso filho vai ter uma vida aqui!
- Não me faça querer acreditar que vc deseja viver nessa país de gente chula, sem futuro!
- Pode se afastar de mim enquanto fala, Celeste? - Rosno diante de seu nariz afilado.
- Dess, fica calma. Eles estão tentando nos ajudar. - Revoltada, encaro Vincenzo e assevero.
- Eu os agradeço por isso, Vincenzo. Mas, uma coisa é comprar o castelo na Itália e nos dar a grana da venda. Outra é impor condições como morar com a gente. Não faz sentido!
- Dess!
- O que foi!? Eu não posso achar estranho que sua mãe queira morar em nossa casa depois de tudo!?
- Tudo o que, filha?
- Nada, Enrico. - Responde Vincenzo.
- Tudo, Enrico! - Refuto. - Tudo! Vc ainda não conhece a esposa que tem e eu, infelizmente, por algum motivo, não me lembro do que deveria te dizer, mas eu sinto que era importante!
- Para, Dess! Vc tá sendo inconveniente!
- Sério??? Não foi o que vc disse há algumas horas atrás antes deles chegarem!!! Cadê o papo de que iríamos vencer tudo juntos e que riríamos de tudo ao final???
- Dess, vc não tá parando pra pensar! Respira!
- Me solta!
- Não vou soltar porra nenhuma! Eles fizeram algo de fantástico pra mudar a nossa vida e vc tá reclamando!? Amor, respira e para pra pensar!
- Não me peça pra respirar, Vincenzo. - Rumino. - Vc muda de lado com muita facilidade.
- Vincenzo...- Diz Enrico francamente incomodado. - Não fale assim com ela. Viemos em uma péssima hora e fomos invasivos. Conversem o tempo que quiserem e, seja qual for a decisão que tomarem, o castelo é de vcs. - Suas bochechas rosadas denunciam seu constrangimento. De súbito, eu o abraço e lhe peço perdão. - Não precisa, filha. Eu te entendo.
- Fui grosseira. Me perdoa. Eu não sei o que fazer. É muita informação de uma só vez. - Negando-me a olhar para Vincenzo, ouço o choro de Matteo. Imediatamente, corro até o quarto. Celeste me segue. Posso sentir sua raiva através de sua respiração ofegante. - Fique aqui fora! - Ordeno antes de entrar no quarto e fechar a porta por dentro. Agarrada ao meu filho, eu o beijo na testinha e o acalmo ninando-o em meu colo. Insegura, mantenho a porta de seu quarto fechada enquanto Vincenzo pede para que eu a abra. - Volte pra lá, Vincenzo! Me deixa em paz com meu filho! Fique com os seus!
- Isso não é justo. - Alega ele sussurrando contra a porta. - Eu não fiz nada. Só quero o nosso bem. Não vai abrir? - Chorando baixinho, embalo Matteo na cadeira de balanço até que ele volte a dormir. Um olhar ao 'Crucificado' na parede e me pergunto se Ele me entende. Não confio em Celeste. Vejo o Mal em seu olhar, em suas atitudes. Há algo de errado nela e eu não consigo explicar o motivo de minha repulsa por ela. O pânico em deixá-la sozinha com meu filho cresce a cada olhar que trocamos. A imagem de Lúcifer ao seu lado se fixa em minha mente atordoada como um cartaz de filme em um cinema. Que diabos está acontecendo comigo? Eu deveria melhorar. Sair dessa maldita depressão, mas eu só pioro. - Dess...
- VÁ PRO INFERNO! - Grito quando tudo o que desejo é o seu abraço. - Vá pra Itália com eles e nos deixe em paz!
- Que bagunça é essa, meu Deus! - Protesta Antoine no corredor. - Será que eu não posso ter um minuto de sossego!? - Prendo o riso enquanto choro. Ela reprova o comportamento de Vincenzo que se desculpa com a filha do outro lado da porta.
- Eu não quero brigar com ela, filha. Pede pra ela abrir e falar comigo.
- Não. Agora não. Deixa meu maninho dormir em paz. Amanhã, eu tenho prova, pai.
- Peça a ela, filha...
- Tá bom. Tá bom. - Sonolenta, ela resmunga. - Mãe, abre a porta pro papai.
- Agora não, filha.
- Vcs parecem duas crianças, mamãe. Papai não vai sair daqui enquanto vc não abrir a porta e eu preciso dormir. Amanhã eu tenho prova. Vcs não.
- Sua mãe precisa abrir a porta! - Exalta-se Celeste. Ainda na cadeira, ouço Antoine dramatizar.
- Vovó, tá na hora de vc e o vovô irem pra casa. Amanhã, a gente conversa.
- Por Deus! Desde quando uma criança manda em vcs!? - Pergunta Celeste, indignada com o comportamento de Antoine. Ergo-me da cadeira. Devolvo Matteo ao seu berço. Acendo a luz do abajur de borboletinhas. Apago a luz do quarto. Próxima à porta, eu os escuto cochichar. - Não permita que sua filha de sete anos o domine, meu filho.
- Ela tem oito. - Esclarece Vincenzo, contrariado. - E ela não me domina. Ela me ensina a viver, Celeste. Ela é muito mais do que seus olhos podem ver.
- Gostei, papai. - Diz Antoine ao bocejar. - Eu quero dormir.
- Eu te levo ao seu quarto, filha. - Digo assim que abro a porta e, diante dos olhos ávidos de Celeste sobre o bercinho de meu filho, eu a tranco por fora. - Vamos.
- Não posso dar um beijo de 'boa noite' em meu neto?
- Não. - Respondo secamente sem olhar para Vincenzo que desiste de falar comigo. Levando Celeste até a sala, ele comenta.
- Ela não está bem. Desculpa, Enrico.
- Nós que pedimos perdão.
- Diga isso por vc, Enrico. Eu não peço nada. - Refuta Celeste, furiosa. - Viajamos centenas de quilômetros, gastamos tudo o que tínhamos e somos tratados assim!? Eu queria ver meu neto...- Choraminga ela. Sentada na cama de Antoine, atenta à conversa, preparo-me para impedi-la de entrar no quarto ao lado. Suspiro aliviada quando ouço Vincenzo argumentar.
- Se a mãe dele não deixou é porque tem motivos, Celeste. Sinto muito. Hoje não. Voltem outro dia. Eu prometo que será melhor do que hoje. Tentem compreender. Ela está com um pequeno transtorno. Vai melhorar.
- Em nome do Criador, ela vai melhorar. - Afirma Enrico. - Vamos, Celeste. Voltaremos outro dia.
- Eu volto. - Diz Celeste num tom ameaçador.
- Podemos conversar?
- Vai dormir.
- Vc tá bebendo vinho?
- Tô. Por quê?
- Preciso dizer, Dess?
- Foi só um gole. Não vou fazer mal ao seu filho. Fique tranquilo. - Debocho com a voz entaramelada. - Já retirei o leite dele do meu peito como uma vaca ordenhada. Tá na geladeira...
- Vc tá infeliz, Dess. Não foi pra isso que eu 'caí'. Não foi pra te ver infeliz. Se eu pudesse voltar no Tempo...- Lamenta ele sentando-se à mesa da cozinha diante de mim. Agarrando-o pela gola de seu pijama, eu o ameaço.
- Se falar essa merda de novo, eu te espanco. Eu juro. Nem vou ligar pra sua dor na cabeça. - Amo seu olhar triste. - Não me olha assim. Eu ainda te odeio.
- O que eu fiz?
- Vc ficou contra mim. - Tomo um gole de vinho no gargalo. Ele segura a garrafa com uma das mãos. - Larga! - Puxando-a para si, ele me faz rir. - Não tô brincando. Eu tô puta. Deixa eu beber.
- E quanto à nossa noite?
- Ah! Aquela que a vaca da sua mãe interrompeu!?
- Ela não é a minha mãe, Dess. Eu já te falei isso.
- E me fez esquecer...- Arranco a garrafa de suas mãos e tomo outro gole do vinho. - Não negue. Eu sei que me contou alguma coisa importante e, depois, me fez esquecer. Mas eu não ligo...- Soluço. - É uma questão de tempo até eu me lembrar. - Umedecendo meus lábios com a língua, repito sua frase. - Sou mais do que seus olhos podem ver.
- Muito mais. Eu sei disso. Quando pretende me contar a sua história, Dess?
- Qual?
- A história de sua primeira vida na Terra. - Um riso histérico e desconverso.
- É sério que vc gostaria de morar com seus pais entre nós?
- Não. - Confessa ele abrindo um sorriso inocente. Amo esse também. - Eu não falei nada pra não magoar Enrico. Ele não merece.
- Ela sim!
- Celeste?
- Sim.
- Celeste é bem diferente de Enrico. Vc sabe. Vc sente.
- Vc a teme também?
- Temo sua presença junto ao nosso filho. - Confessa ele, receoso. - Ele é inocente, puro. Seu sangue é valioso. Não sei até que ponto Celeste está livre de...
- De quem?
- Essa camisola mostrando os bicos de seus seios é pra me instigar? Tá conseguindo.
- Ridículo! Não desconverse!
- Vc desconversou quando falei de sua primeira vida na Terra. Por que eu não posso fazer o mesmo?
- Sua cabeça tá doendo?
- Não.
- Mentira! - Gargalho assim que o toco. - Dói sim. - Lamento. - Onde tá seu remédio? - Ergo-me, cambaleante. - Não me pega! Eu posso andar sozinha! Eu não tô bêbada!
- Não. São os móveis que estão girando ao seu redor. - Um riso bobo e volto a protestar.
- Vincenzo! - Imobilizando-me em seu abraço, sussurro. - Para. Eu preciso achar seu remédio.
- Não quero tomar hoje. Lembra?
- Não. - Emito um gemido de prazer assim que sua boca toca minha nuca. - Lembrar de quê?
- De que eu te amo e que estamos há mais de um mês sem...
- Trepar? Foder?
- Devassa. - Outro riso e me deixo levar em seus braços até nosso quarto.
Algo de bom em relacionamentos longos e estáveis é que não existe a necessidade de se chegar ao clímax de imediato. Tudo se passa de maneira mais lenta e profunda, sem afobação, relembrando fatos de nosso passado. É. Nós temos um passado e eu amo isso!
Estamos deitados em nossa cama há mais de meia hora e, até agora, somente nos beijamos. Beijos longos. Muito longos misturados a risos tolos. Esqueço-me de tudo em seus braços enquanto ele me provoca ao me chamar de 'barraqueira'.
- Por quê? - Indago mordiscando seus lábios com os meus. - De onde tirou isso?
- Vc já brigou com dois diretores dos colégios de Antoine, Dess! Tenha dó! - Diz ele beijando meus seios, seguindo em direção aos mamilos. Um gesto meu e ele se defende com um 'Já sei. Já sei. São do nosso filho. Por enquanto'. - Eu tive medo da forma como olhou pra Celeste, amor. - Rindo, confesso.
- Acho que exagerei. Não confio nela. - Afastando minhas pernas com seus joelhos, ele pergunta.
- Por quê?
- Vc deve saber. Vc me contou e me fez esquecer. Qual a graça nisso?
- Não sei do que tá falando. Só quero que nosso filho esteja protegido.
- E Antoine? Vc fala como se ela fosse uma adulta que não precisasse de nossa proteção.
- Ela não precisa, Dess. - Ronrona ele invadindo-me com seu pau duro e suave. - Nossa! - Exclama ele, revirando os olhos.
- O quê!?
- Eu quase me esqueci de como vc é gostosa! - Agarrando-me aos ferros da cabeceira, ameaço, enquanto meu corpo chacoalha.
- Não se atreva a se esquecer disso! Vincenzo Rossi!
- Dess!!! - Urra ele ao mesmo tempo em que tenho um orgasmo. Tombando seu corpo nu contra o meu, ele admite. - Já não sou o mesmo de antes.
- Não. É melhor. Te amo.
- Te amo. - Ele me beija enquanto ainda o sinto dentro de mim, pulsando como o sangue que corre em minhas artérias. - Amor?
- Sim.
- Por que Antoine não precisa de proteção? Ela é uma criança como outra qualquer.
- Não. Ela não é e vc sabe disso. Sabe que, de alguma forma, ela é especial.
- Sei. Mas, ainda assim, é uma criança. Não vou deixá-la perto de sua mãe ou daquele 'anjo falido'.
- Não vamos. Eu juro. Agora para de falar.
- Aaaah tá. - Menos de um minuto de silêncio e eu volto a falar. - Amor?
- O quê?
- Por que demorou tanto tempo pra mostrar que me queria de verdade? Por que não ficou comigo desde o dia em que me salvou daqueles homens ou me encontrou na cafeteria? Teria poupado muito sofrimento.
- Eu sei. Mas, vc não faz ideia do que é ser um anjo puro, sem pecado e 'cair' por uma 'garota de programa' e atriz pornô que se entregava pra qualquer e ainda mostrava isso em vídeos! Nessa vida, vc 'chutou o pau da barraca', Dess! Não gosto e não quero me lembrar do ódio que senti durante o tempo em que tive que ficar longe de vc enquanto te usavam! - Pressionando a cabeça com suas mãos, ele comprime os olhos e sussurra. - Ainda bem que passou...
- Perdão. Se eu soubesse que vc me amava...
- Teria continuado. - Afirma ele num desalento. - Vc demorou muito até mudar de verdade. - Arrependo-me de ter tocado nesse assunto, coloco-me em seu lugar e, sentindo repulsa por tudo o que já fiz, beijo sua bochecha e murmuro.
- Não fala mais nada. Perdão por ter feito vc sofrer.
- Já passou. - Diz ele olhando-me com benevolência. - Agora para de falar, mulher.
- Ok. - Fixando meus olhos no teto, tento respeitar seu silêncio. Percebendo minha inquietação, ele resmunga.
- Fala, Dess.
- Era vc voando em minha direção no penhasco na Itália quando pensei em saltar ou eu dei uma 'surtada'?
- Nossa, Dess! Faz tanto tempo!
- Responde!
- Sim. Era eu. Eu ainda era um anjo e podia te proteger daquele verme. Foi ele quem te fez pular da primeira vez. Ele o faria de novo se eu não te impedisse.
- Uau...- Espreguiço-me jogando minha cabeça para trás. - Vc é tão...tão...tão...
- O quê?
- Fantástico!
Rimos juntos deitados um ao lado do outro, de mãos dadas, absolutamente nus.
- Bobagem. - Diz ele.
- Não mesmo. Vc voou com tanta intensidade que eu pensei estar sonhando. Que mulher pode dizer que tem um anjo como marido?
- Cassie?
- Não vale. - Gargalho. - Ela não sabe que Liam é um anjo.
- Eu já não sou um anjo, Dess...- Subindo em seu corpo, beijo sua boca e, insatisfeita com sua maneira de falar, refuto.
- Vc sempre será o meu anjo. O anjo que me tirou da Escuridão. Depois de vc, eu me achei, amor. Lembra de quem eu fui?
- Muito pouco e não faço questão de lembrar.
- Eu também. Da stripper e 'garota de programa', nada sobrou. - Um riso sacana e ele refuta.
- Sobrou sim. Vc ainda é muito gostosa. - Acariciando sua cabeça dolorida por falta de seus remédios, murmuro.
- Só pra vc, amor. Só com vc. Pra sempre.
- Pra sempre.
- "Um dia vc pula novamente".
- O que é isso, Dess?
- Foi o que a voz me disse naquela tarde, no penhasco, na Itália quando...
- Já sei. - Rosna ele. - Em sua lua-de-mel com aquele irlandês de merda.
- Bobo. - De costas para ele, eu o forço a me abraçar. De conchinhas, indago. - O que Lúcifer quis dizer?
- Me diga vc, Dess. - Arregalo os olhos, prendendo a respiração. Sentindo sua boca em minha nuca, arrependo-me de ter perguntado. - Agora é tarde.
- Para de ler meus pensamentos.
- Por que ele diria aquilo?
- Vc é quem deve saber! Coisa de anjos doidos e 'caídos' como vcs!
- Tem certeza de que não se lembra de nada? De que não quer me dizer nada?
- Tenho. - Afirmo de olhos fechados. - Tudo o que sei é que já pulei do penhasco em outras vidas, ainda que não acredite nisso. Sei disso porque vc me contou. E, pra mim, isso basta.
- Então tá. - Concorda ele, beijando meu pescoço.
- Vc acha que eu posso pular novamente? Ele pode me forçar a isso?
- Não se vc se mantiver forte, Dess e bem longe dos penhasco da Itália ou Irlanda. - Bufando, retruco.
- Diante de nossa atual realidade, acho que vai ser fácil não pular.
- Não diga isso. Celeste e Enrico nos convidaram a morar na Itália. Na mesmíssima cidade onde eu te salvei naquela tarde. Vc chegou a pensar em pular.
- Mas não pulei. Não tenho motivos pra querer morrer, amor. Eu quero viver e me curar desse depressão incômoda. Me ajuda?
- Claro. Não tem mais nada que queira me confessar sobre seu passado remoto?
- Não.
- Ok. Vc que sabe. Posso te fazer uma pergunta?
- Qual?
- Qual era o segredo?
- Que segredo??? - Abro os olhos. Ele comprime seus braços em minha cintura. - Eu já disse que não sei de nada...
- O que padre Pietro confessou a vc no dia em que te encontramos no cativeiro de Ga'al??? Por que eu, seu melhor amigo, tive que sair da sala??? - Volto a rir, aliviada. - Não ria! É uma afronta que guardei por longos anos! O que ele viu em vc que não viu em mim???
- Humanidade? - Uma careta e ele assume.
- Pode ser. Eu ainda era um anjo tolo, preconceituoso, jovem...
- Um perfeito idiota que me fez sofrer por muitas vezes.
- Esquece isso, Dess. - Pede-me ele sustentando sua cabeça com seu cotovelo sobre o travesseiro. Arrisco-me a olhar em seus olhos cheios de compaixão. Mordo o canto da boca e penso no quão feliz eu sou por ele estar aqui. - Eu também, amor. Mas...não foge da pergunta.
Gargalho.
- O que ele te disse de tão terrível que eu não poderia saber?
- Não posso! - Dramatizo. - Foi em confissão!
- Desde quando vc é um padre, Dess!? Conta! - Seus dedos provocam-me cócegas nas laterais de minhas costelas enquanto tento parar de rir. - Vai contar ou não!?
- CONTO! CONTO! - Rendo-me às cócegas e ao seu olhar curioso. Exalando, comento.
- Não é nada de mais...
- Conta. - Pede-me ele contra meus lábios. - O que ele poderia ter feito de tão terrível que só contou a vc?
- Ele era gay e mantinha um relacionamento com um dos seminaristas. - Revelo num repente. - Pronto! Falei! Não falo mais nada! Nem sob tortura! - De queixo caído, ele me encara por alguns minutos antes de perguntar.
- Quem???
- Não importa! Eles foram felizes por um tempo e, depois, não rolou mais!
- Mas...
- CHEGA, VINCENZO! - Grito antes de gargalhar de sua expressão confusa.
- Como eu nunca soube disso??? Eu nunca suspeitei!!!
- Porque tu é burro! - Continuando a rir, concluo com ternura. - Burro e inocente, amor. Vc é a coisa mais fofa desse mundo, Vincenzo Rossi. Onde tá seu remédio? Não vou deixar que continue a sentir dor. Não mesmo.
- Dess, esquece...
- Por que tinha medo de que Aiden te matasse se vc ainda era imortal àquela época?
- Oi???
- Vc me disse isso quando te encontrei com Sweet na casa de João! Ou vc mentiu e trepou com aquela vaca morta!?
- Não!
- Fala a verdade! - Pressiono encarando-o incisivamente. - Por que disso isso?
- Porque vc não acreditaria que Aiden era um demônio disposto a tudo para me afastar de vc. Disposto até a matar crianças e eu ainda não tinha provas contra ele. - Em silêncio, suspiro. - Viu? Vc ainda não acredita nisso. Ele era mau. Não no início. Mas, com o tempo, ele passou a sentir prazer em ter prazer com a dor de crianças.
- Para. - Imploro. - Não quero me lembrar dos sofrimentos delas. Não quero me lembrar de Luka, Mimi...Juju...
- Perdão. - Um abraço forte e demorado e permanecemos em silêncio. - Vc ainda gosta...?
- Não. Eu te amo. Sempre te amei. Ele foi apenas alguém que me ajudou a sustentar minha família durante algum tempo. Alguém a quem eu devia algo e que já foi pago. Eu tenho quase certeza de que ele ou seus seguidores mataram os pais de Cassie.
- Jesus!
- Sim. Foi num dos muitos jantares imponentes e repugnantes que ouvi uma de suas insinuações. Nunca toque nesse assunto com ela, amor.
- Nunca.
- Antoine, àquela época, disse que Aiden poderia matar o monstro...
- Que monstro, Dess?
- O que fazia com que as crianças sumissem.
- Isso é óbvio! - Conclui ele, revirando seus lindos olhos. - Ele era o monstro, Dess! Antoine 'mandou essa' pra abrir seus olhos e, pelo que eu me lembro...- Resmunga ele. - Ela não conseguiu. Vc continuou com ele e eu odeio essa parte de nossa história. Pula!
- Eu também. Chega de falar dessa criatura. Ponto final.
- Concordo!
- Seus remédios, amor. Sua dor de cabeça tá piorando.
- Impressão sua.
- ONDE??? - Ergo-me da cama, cobrindo meu corpo nu com um dos lençóis. Ele se ergue sem se cobrir. - Esconde isso! - Uma súbita crise de risos e continuo a apontar o indicador para um ponto específico em seu corpo.
- Isso o quê??? Meu pau??? - Pergunta-me ele, indignado. - Até bem pouco tempo, vc estava apreciando ele!!!
- Ele estava duro! - Esclareço cobrindo meu rosto com as mãos. Não acredito que estou com vergonha. Eu! Uma stripper, atriz de filmes adultos e 'garota de programa' com vergonha de encarar um pau mole! - Cobre! - Rimos juntos. Ele se aproxima de mim e, num golpe rápido, ele me imobiliza, prendendo-me pelos braços nas costas. Irritada e ainda rindo, grito. - Não tem graça, Vincenzo Rossi! Me solta!
- Diz que gosta do meu pau mole. - Outra crise de risos me faz perder as forças enquanto ele insiste ao apertar meus braços. - Diz!
- Para, amor. Dói!
- Diz!
- Eu amo seu pau mole! Pronto! - Libertando-me, excitado, ele me joga contra o colchão e, antes de me penetrar uma segunda vez, ele se vinga ao ronronar.
- Onde tem pau mole aqui, mocinha?
Pancadas na porta e, de súbito, nós nos separamos. Rimos baixinho ao ouvirmos os protestos de Antoine. Do corredor, ela grita.
- EU PRECISO DORMIR! TENHO PROVA AMANHÃ! ALIÁS! HOJE! DO QUE VCS ESTÃO BRINCANDO!?
- NADA, FILHA! DESCULPA! - Respondo após inspirar e me concentrar. Afastando-me de Vincenzo que continua a rir debaixo do travesseiro, explico. - Seu pai perdeu os remédios! Estamos procurando por eles! Vá dormir! Não vamos mais fazer barulho!
- Prometo. - Diz Vincenzo, ruborizando. - Vá dormir, filha.
- Abram a porta! Eu sei onde os remédios ficam!
- Puta que pariu. - Sussurro.
- Eu ouvi, mamãe! Eu ouvi! - Revirando os olhos, ele veste a calça do pijama enquanto me cubro com uma longa e comportada camisola. Antes de abrir a porta, ele me lança um de seus encantadores e gentis olhares ao me perguntar num tom bem baixo.
- Posso?
Antes de responder, exalo de felicidade. Vincenzo abre a porta. Antoine surge à nossa frente carregando Matteo em seu colo. Engulo o choro de emoção e agradeço ao Criador.
Tudo com o que sempre sonhei está, agora, aqui, diante de mim.
Dormimos os quatro em nossa cama. Matteo e Antoine entre mim e Vincenzo que cruza os dedos de sua mão aos da minha sobre as cabeças de nossos filhos. Antes de dormir, imploro.
"Se eu estiver sonhando, não me acordem. Por favor."
Decidimos não aceitar o dinheiro da venda do castelo na Itália já que Celeste continuou a impor a condição de termos de aceitá-la em nossa casa, em nossa família, em nossa vida.
Mesmo necessitando do valor da venda do imóvel, somos obrigados a desistir dele. Vincenzo, assim como eu, resiste à ideia de ter Celeste próxima aos nossos filhos.
Deus sabe do quanto precisamos da grana. Vincenzo luta bravamente contra sua doença que, infelizmente, tem tomado conta de seu corpo, amargurando sua alma. Raramente eu vejo o homem divertido, alegre, sedutor e insaciável por quem me apaixonei. As dores na cabeça e tremores nas mãos têm aumentado, embora ele tente, de todas as formas, esconder. Seu humor oscila entre a euforia e o silêncio profundo onde sequer Antoine consegue penetrar. Nesses momentos, eu odeio Celeste ou devo chamá-la por seu nome angelical? 'Suriel, o Anjo da Cura'? Curioso, não? ELA TEM A PORRA DO PODER DE CURAR O PRÓPRIO FILHO E NÃO O FAZ POR UM SIMPLES CAPRICHO!
Eu te odeio, Suriel. Se não puder curar seu filho, eu o farei. Ainda que me custe muito caro, eu o farei.
Impressiono-me com o poder que ela exerce sobre o doce Enrico que não se opõe a ela ainda que o deseje. É notória sua insatisfação quanto ao fato de não doar ao filho o dinheiro que lhe é devido.
"Deveria ser um presente, Celeste! Não se lembra disso!?", ouvira-o contestar antes de se afastar. Vendo-o solitário em meio ao parque de diversões, eu o assusto ao me aproximar e, de braços dados a ele, perguntar.
- No que pensa, Enrico?
- Em meu coração. - Graceja ele. - Graças a Deus, o meu é forte e não corro o risco de morrer de um ataque cardíaco. - Gargalho sob o olhar atento de Celeste próxima à roda gigante onde, do alto, Antoine acena para todos como se fosse uma 'digital influencer' conhecidíssima, com milhões de seguidores. - Vc me assustou.
- Perdão. - Peço ainda rindo. - Não foi minha intenção e, cá pra nós, vcs não morrem, logo, não se preocupe.
- Há várias maneiras de se morrer, filha. - Divaga ele sorrindo com os olhos. - Várias.
- Fala de Celeste? - Baixando a cabeça, ele se cala. Sentindo sua tristeza, insisto.
- Eu sei que sim. Desculpa. Não quero invadir sua privacidade, mas tenho um...
- Dom. Um dom de sentir o que outros sentem através do toque.
- Como sabe?
- Digamos que, em nossa comunidade, as notícias 'andam a cavalo'.
- Digamos que essa comunidade carece de um vocabulário mais atual. - Volto a rir ao repetir o que ele disse. - "Andam a cavalo" é do século XV!!! - Animada por ter arrancado dele um riso tímido, eu o ouço perguntar.
- E como eu deveria dizer nos dias atuais?
- Sei lá! - Dou de ombros. Sentindo a brisa fria em meu rosto, arrisco. - Tipo 'viralizar'. A notícia sobre o meu dom 'viralizou' em sua comunidade. Sacou?
- Saquei! - Diz ele rindo de mim. - Alguém aqui precisa se atualizar também! "Sacou"??? Isso é do tempo de "Elvis, The Pelvis!"
- "Elvis! The Pelvis???" - Repito num tom alto antes de gargalhar. Rimos juntos por minutos o que, definitivamente, incomoda Celeste grudada a Vincenzo e Matteo. Penso que um dos bancos vazios da roda gigante poderia se desprender e, por acaso, atingi-la em cheio. Movo a cabeça com rapidez, espantando esse pensamento.
- Assim como eu, ela é imortal, filha. O banco só iria causar alguns estragos em seu belo rosto.
- Puta que pariu! - Lastimo. - Vc lê pensamentos!
- Parece que sim. - Diz ele antes de explodir em outra gargalhada. Rindo de seu modo de rir, chamamos a atenção de Antoine que, em terra firme, corre em nossa direção. Esfuziante, ela nos abraça na altura da cintura ao declarar.
- Vcs precisam andar naquilo! É simplesmente esplêndido! Vovô! De lá de cima, dá pra ver a nossa casa!
- Como assim, filha!? Nossa casa está a quilômetros de distância daqui!
- Não é a nossa casa, mãe! - Explica-me ela ainda ofegante. - É a minha casa e a do vovô! Lá no céu! - Engulo em seco e, forçando um sorriso, deixo escapar um 'Aaah tá' desanimado. No colo de Enrico, ela cochicha. - Minha mãe não gosta de falar nisso, vovô. - Cochichando, ele aconselha.
- Então, não vamos falar disso. Ok?
- Ok! - Grita ela, retumbante. - Vamos andar na 'Montanha-Russa', vovô!?
- Menos, Antoine! Menos! - Volto a rir ao comentar. - Seu avô vai surtar naquela coisa!
- Talvez, eu 'viralize' assim que eu despencar do banco de cabeça para baixo! - Uma piscadela e ele se deixa puxar por Antoine até a grande fila de espera pela 'maior montanha-russa do mundo'. Só que nunca! - Vem! - Convida-me ele.
- NUNCA!!! - Grito, entusiasmada com sua súbita mudança de humor. - EU NÃO FAÇO PARTE DA SUA COMUNIDADE! SE ESQUECEU???
De onde estou, eu o vejo gargalhar abraçado a Antoine que demonstra seu enorme amor pelo avô, contrariando as expectativas da avó que, como uma pantera prestes a atacar, se aproxima de mim. Ouço os ossos de meu pescoço estalando assim que escuto seu sorriso sempre falsamente doce.
- Por que não foi, querida? Estavam tão unidos e contentes.
- 'Estavam'. - Rosno. - No passado. Do verbo 'Já não estamos mais'. Preciso ver meu filho.
- Espere. - Ordena-me ela tocando num ponto entre meus seios. - Vamos conversar. Precisamos esclarecer alguns pontos obscuros. - Um tapa em seu indicador e esclareço.
- Obscuro aqui é a sua estranha vontade em morar com a gente.
- Gostei. - Diz ela abrindo um sorriso soberbo. - Direta e precisa. Gosto de humanos assim. - Inspiro e expiro e, antes de tentar me distanciar, alerto.
- E eu odeio anjos do seu tipo. Anjos que me fazem lembrar de um outro anjo ainda mais poderoso e conhecido aqui, na Terra. Creio que vc já deva ter ouvido seu nome.
- Não sei do que fala, meu bem.
- Lúcifer! - Pronuncio seu nome em um tom alto. Prendo o riso diante de sua expressão de surpresa misturada ao pavor. - Uau. Já vi que o conhece. - Debocho. - Talvez algum pagamento não feito. Contas a pagar. Ajustes. Pactos. Possessões? Quem sabe?
- Primata! Como se atreve a me ameaçar!?
- 'Primata'??? - Forço uma gargalhada cheia de pausas. - Já me chamaram de muita coisa, mas, de 'primata', é a primeira vez!!! Eu tenho cara de macaco??? - Afasto-me, dando-lhe as costas. Num rosnado, ela comenta.
- Burra como um deles. - Dou meia-volta e, então, eu a vejo me olhar de cima a baixo. Desistindo da possibilidade de sermos amigas, refuto.
- Os primatas estão entre os animais mais inteligentes de seu reino. Um reino criado por Aquele que te criou e que, certamente, se arrependeu. Ainda se lembra d'Ele, Celeste? Ou melhor, Suriel? De onde Ele estiver, Ele te vê, meu bem. E enxerga o mal que tem feito ao teu filho que, na verdade, não é teu filho. Vincenzo é aquele que te salvou das mãos de um outro filho rebelde. Desse aí, vc não escapa.
- Pare de falar. - Pede-me ela, amedrontada. - Ele não sabe onde estou. - Uma gargalhada sonora e chamo a atenção de Vincenzo com Matteo em seu colo. Antes de seguir ao encontro deles, aviso.
- Lúcifer acompanha cada passo que dou, meu bem. Engana-se redondamente ao pensar que ele não sabe onde se esconde. Mesmo que seja sob a luz que se irradia de Enrico, estúpida. Vc não é invisível aos olhos daquele a quem chamavam de 'Estrela da Manhã'.
- Algum problema, Dess?
- Nenhum. - Forço um sorriso ao tomar Matteo de seus braços. - Celeste e eu estávamos comentando sobre esse parque. Ele é tão revigorante. - Lançando a ela um olhar penetrante, indago. - Não é mesmo, Suriel? - Gaguejando, ela responde.
- Si sim. Muito.
- Vc tá pálida, Celeste. - Constata Vincenzo. - O que sente?
- Melhor não perguntar, amor. - Desdenho puxando-o para longe dela. Esbarro em Enrico que jura, com os olhos estatelados.
- Nunca mais eu ando naquilo!
- Foi simplesmente esplêndido, mamãe! Eu gritei muito! Vc ouviu!?
- Claro! - Minto. Estava enfiando uma faca no centro do coração oco de sua avó. - Por que seu avô não gritou!?
- Gritou sim! Vc que não ouviu! - Um de seus gritinhos agudos e ela corre até Celeste e a arrasta até o 'Trem Fantasma".
- Perfeito...- Deixo escapar. - Cuidado pra não esquecer sua avó lá dentro! - Grito antes de observar o desprezo no rosto de Celeste sentada ao lado de Antoine em um banquinho tosco antes de sumir de nossas vistas, túnel a dentro. - É sério! - Comento diante do olhar de reprovação de Vincenzo. - Lá dentro só tem assombração. Vai que...
- Dess!
- Nossa música! - Olhando ao redor, ele me pergunta.
- Que música, Dess?
- Essa! - Afirmo entregando Matteo ao avô. - Vem! Dança comigo! Como nos bons e velhos tempos! - Requebro.
- Eu não danço, Dess. - Alega ele. Envergonhado, ele resiste. - Vc sabe que não danço.
- Dança sim! - Afirma Antoine enlouquecida de tanto berrar no ouvido da avó. Celeste, despenteada, me faz rir de curvar meu tronco para frente. Vincenzo ri do meu riso enquanto Celeste volta a afofar seus cabelos com os cachos sempre perfeitos. Antoine me faz engolir o riso assim que revela. - Ele dançou com a 'outra', mamãe!
- Antoine!!! - Protesta Vincenzo, levando a mão ao peito. - Não é verdade!!!
- É sim! Ele dançou num concurso com a 'outra'! E eles venceram!
- Isso é verdade. - Destila Celeste, venenosa. - Eileen e Vincenzo sempre se deram muito bem.
- Cala a boca, Celeste. - Ordena Vincenzo, desorientado. - Eu fiz porque...
- Porque vc a amava, meu filho. Ela não queria que vc dançasse. Ela disse não e vc insistiu. Disso eu me lembro.
- Celeste! - Adverte Enrico. - Pare com isso agora mesmo!
- Eu não estou fazendo nada...- Dramatiza ela, erguendo uma das sobrancelhas. O ódio procura espaço em meu coração enquanto penso em Vincenzo e na 'outra', juntinhos, ensaiando passos...- Não disse nada além de ratificar o que Antoine falou.
- Eu não disse isso, vovó. - Choraminga Antoine. - Eu não queria deixar minha mãe triste.
- Não estou, filha. - Minto, ajoelhada à sua frente. - Não me importo se a 'outra' dançou com seu pai. Ele era meu e sempre será.
- Sério, mamãe?
- Sim. - Minto outra vez. Estou me rasgando por dentro. - Ele dançou em um concurso?
- Sim. - Responde Antoine, insegura.
- ANTOINE! - Desespera-se Vincenzo. - Não foi assim!
- Desculpa, papai...
- Ei! - Exclama Enrico num tom conciliador. - Qual o problema nisso!? Sendo uma ou a outra, todas são vc, meu anjo! Em breve, vc vai se encontrar e dominar todas! No momento, aceite a si mesma e seja feliz!
- Ele tem razão. - Diz Vincenzo sem convicção. - Eu te amo, Dess. Vc sabe disso.
- Dança com ela, papai.
- Eileen não precisou implorar.
- Se disser mais uma palavra, Celeste. - Rosno, magoada. - É vc quem vai implorar por ajuda. - Calada, ela me lança um olhar de desdém. Longe de me deixar vencer por Celeste, ouço Vincenzo se defender.
- Era vc, amor. Era vc. - Um chute em sua perna e cochicho, raivosa.
- Depois a gente conversa. Vem.
Em meio à multidão que se diverte em família, sob as luzes coloridas dos brinquedos e postes, agarro meu homem e, lançando um olhar de triunfo a Celeste, ordeno a Vincenzo.
- Dança comigo, filho da puta.
- Pedindo com esse jeitinho, como eu posso rejeitar?
Guiando meus passos, ele sorri de minha expressão de raiva que, aos poucos, vai cedendo lugar à alegria em ver meu Vincenzo de volta. Sem dores, sorrindo, requebrando os quadris, fazendo-me arfar.
- Te amo. - Sussurra ele ao meu ouvido, abraçando-me pela cintura. Rodopiando, guiada por seu braço, rosno, após sorrir.
- Não pense que eu me esqueci. Vai ter volta, bastardo.
Ele e eu nos entregamos ao ritmo contagiante da canção. Dançamos como se estivéssemos sozinhos em nossa sala. Improviso passos mais ousados enquanto ele continua a requebrar e a me excitar. Roubo um beijo dele. De quebra, ganho um de seus sorrisos encantadores: o de cafajeste. Pulo em seus braços. Ele me faz girar de braços abertos, jogando a cabeça para trás, enquanto aprecio as cores dos brinquedos que rodam assim como eu. As estrelas no céu parecem ainda mais acesas, todas brilhando e torcendo por nosso amor.
A música termina. Ouvimos palmas tímidas dos que passam por ali, naquele momento. Vincenzo ruboriza. Eu os reverencio com um 'pliê'.
- Eles são iguais a Cassie, vovô. - Grita Antoine enquanto bate palmas, eufórica. Adivinhando seus pensamentos, eu a escuto proclamar ao responder a pergunta do avô. - São todos safados!
Rindo, abraçada a Vincenzo, os pelos de minha nuca se eriçam diante do olhar macabro de Celeste onde ciúmes, raiva e um sentimento ainda mais terrível se misturam.
Um dos sete pecados capitais.
Não. Eu não posso pensar nisso. Ela não sentiria isso por ele. Não. Não mesmo. Esquece. Não.
Absolutamente não!
Assim que chegamos ao nosso apartamento, eu demonstro o que guardei durante toda a noite. Com nojo de Vincenzo, não permito que ele me toque. Tomo um banho demorado debaixo da ducha fria porque não suporto a água escaldante. Já deveríamos ter trocado esse chuveiro com duas únicas temperaturas, mas, isso, no momento, é o que menos me aflige. Saber que Celeste estragou um dos melhores momentos que poderíamos ter tido me faz ter ânsia de vômito. Imaginar o que ela sente por Vincenzo me faz vomitar no box. Levo tempo lavando tudo, inclusive meus cabelos longos cujos fios têm caído aos tufos.
"São os hormônios", diz o ginecologista da clínica próxima à nossa casa. Um médico que sequer me olha nos olhos.
Quem disse que dinheiro não traz felicidade??? Só não traz quando é pouco!!!
Se eu tivesse grana, não estaria lavando o banheiro de madrugada enquanto todos dormem, inclusive Matteo a quem amamentei antes de me limpar. Sou uma escrava dentro dessa casa, dentro desse corpo que é usado por mais de uma pessoa além de mim mesma. Adoraria olhar para esse espelho embaçado e declarar ao meu reflexo:
ESSE CORPO É MEU! O MARIDO É MEU! OS FILHOS SÃO MEUS! O DINHEIRO DA VENDA DO CASTELO É NOSSO!
Vincenzo era o dono do castelo!!! Cadê a vaca da outra personalidade que viveu com ele àquela época que não surge, diante de Celeste, e a confronta???
- O QUE É??? TÔ SAINDO, PORRA!!!
- Perdão. - Diz Vincenzo, de cabeça baixa, ao lado de Antoine, assim que abro a porta. - Nossa filha queria falar com vc antes de dormir. - Cubro meu rosto com as mãos e choro feito criança. Vincenzo me conduz até a cadeira de balanço. Desorientada, aguardo por Matteo em meus braços esticados. - Ele já dormiu faz tempo, Dess. - Avisa Vincenzo, condoído. Continuo a chorar sem coragem de encarar Antoine. - Fala, filha. - Incentiva Vincenzo. - Mamãe vai gostar de ouvir.
- Mãe?
- Desculpa, filha. - Peço escondendo meu rosto e a vergonha. - Eu tô tão cansada...
- Eu trouxe um presente, mamãe. - Engulo o choro e, inspirando e expirando profundamente, eu procuro sorrir ao perguntar.
- Sério? Um presente? Qual?
- Toma. - Diz ela entregando-me algo em um formato arredondado, embrulhado em um papel dourado onde a fita durex reluz mais do que o próprio papel. - Eu que embrulhei o presente, mãe. - Avisa ela, envaidecida. - Não ficou muito bom, mas eu não quis que meu pai me ajudasse porque eu já sou bem crescida. Vou fazer nove anos. Já sou uma moça. Né?
- É. - Sorrio. - Uma linda moça. - Afirmo abrindo, cuidadosamente o embrulho. Assim que vejo parte dele, baixo a cabeça, tentando esconder a decepção. Continuo a desembrulhar o presente e, fingindo surpresa e contentamento, minto. - Que lindo! Um chuveiro novo! Eu vou poder tomar banho morno!
- Sim! Foi isso que eu disse ao meu pai quando quebrei meu cofrinho! Mamãe precisa tomar um banho morno! Assim, ela vai ficar mais calma! - Minha voz embarga quando pergunto.
- Vc quebrou seu cofrinho, filha?
- Sim! Era pra uma emergência! - Engulo em seco. Meu coração dói. Vincenzo parece me compreender ao comentar.
- Nossa filha é única, Dess. Ela aprendeu a ser assim com vc.
- Não. - Refuto enxugando minhas lágrimas com parte da toalha enrolada em minha cabeça. - Ela já era assim antes de mim. Antes de vc. Ela é um anjo.
- Gostou, mamãe!? - Encarando-me à espera de minha confirmação, ela sorri. Meus lábios tremem de emoção, decepção e sei lá mais o quê quando tudo o que consigo dizer é:
- Amei, filha! Um banho morno! É disso que preciso pra mudar a minha vida! - Longe de entender a ironia de um ser humano sujo como eu, ela celebra, saltitando e batendo palmas. Nego-me a encarar Vincenzo que, certamente, já lera meus pensamentos.
- Isso é só parte dos presentes, Dess. Tem mais um...- Diz ele, receoso. - Olha pra mim, amor. Eu te entendo.
- Não consigo. Eu sou um monstro.
- Não. - Ajoelha-se ele diante de mim. - Vc é mais uma de milhares de mães que sofrem por amar seus filhos e lutar contra um transtorno que poucos estudam. Queria te dar muito mais, mas, tudo o que posso te dar no momento é isso. - Entregando-me um número de celular escrito em um papel, ele me olha com ternura ao explicar. - É de um lugar que vai te fazer feliz, Dess. Eu sei que vai. Jura que vai ligar?
- É de algum médico?
- Não. Mas vai ajudar a te curar. - Seu sorriso inocente me faz chorar ainda mais. Merda. - Vai molhar o papel. - Rindo, ele me faz rir. Antoine ri porque ambos estamos rindo. Ela é tão cheia de amor! Assim como seu pai...
- Para de pensar , Dess! Quer que eu chore também!?
- Não! - Rindo, assoo meu nariz na toalha que arranco da cabeça. Meus cabelos úmidos caem sobre meu ombro direito. Vincenzo me olha, encantado. Por quê? - Para de me olhar. Eu tô feia.
- Vc é linda, Dess. Linda e burra. Vai ligar?
- Pra quem?
- 'Pro' celular, mamãe...- Resmunga Antoine, impaciente.
- Não entendi.
- Liga, mãe! Eu vou com vc!
- De onde é??? - Pergunto entre confusa e curiosa. Vincenzo me faz arfar ao comentar, esperançoso.
- Tem a ver com aquilo que vc mais ama depois de seus filhos. - Sem ter entendido sua dica, acaricio seu rosto e o corrijo.
- Depois de meus filhos e de vc, meu grande amor.
- Woohooo! - Uiva Antoine ao me beijar e, satisfeita, sair do quarto. Antes de fechar a porta, ela alerta. - Eu quero ir com vc, mamãe! Vai ser simplesmente esplêndido! Ah! E nada de safadeza! Meu maninho tá dormindo!
- Ela é especial. - Comenta Vincenzo, emocionado, sentado no tapete diante de mim. - Bendito o dia em que vc saltou daquele carro e a salvou.
- Eu sou uma péssima mãe. - Digo entre soluços. - Eu gritei com ela sem querer. Eu explodi. Eu me vi no espelho e não me enxerguei.
- Foi sem querer, Dess. Vc mesma disse.
- Eu não me vi, Vincenzo. - Assumo, assustada. - Eu vi outra.
- Eileen?
- Não.
- Morgana?
- Não. Eu a invoquei e uma outra mulher surgiu.
- E o que ela disse?
- Nada. Foi quando vcs bateram à porta. - Arrancando fios de meu cabelo úmido, desespero-me. - Eu tô surtando, amor. Não me deixa enlouquecer. Cuida dos nossos filhos por mim.
- Ninguém aqui vai surtar. - Afirma ele impedindo-me de continuar a puxar os fios de meu cabelo. Enrolando os que estão em minhas mãos em seus dedos, ele esclarece antes de jogá-los no lixo. - Todos nós perdemos cerca de cinquenta a cem fios de cabelo por dia, Dess. Faz parte do ciclo natural de crescimento. Não se liga nisso. - Olhando-me com serenidade, ele considera. - Vc ainda tem muito cabelo nessa cabeça oca.
- Por que dançou com a 'outra'?
- Porque vc precisava da grana do prêmio e eu, como sempre, queria estar ao seu lado.
- Ao lado da 'outra'. - Insisto, enciumada. - Vc nunca aceitaria dançar comigo em um concurso. Foi difícil te fazer dançar comigo em nosso casamento.
- Era diferente, Dess. Eu dancei com vc na Irlanda, pra te conquistar. Em nosso casamento, vc já era minha. Então, eu achei que poderia ser eu mesmo. - Um arquejo e ele diz num tom de tristeza. - Errei.
- Não. Eu que errei. Por que não diz o nome dela?
- Porque ela é vc, Dess! Eileen é vc! Morgana é vc! E a mulher que apareceu hoje pra vc no espelho...é vc! Tome posse do teu corpo!
- Não se cura um transtorno de personalidade assim! Não se joga alguém com fobia por cobras em um buraco com ninhos delas! Não funciona assim, Vincenzo!
- Fale baixo. Nosso filho dorme. - Enraivecida, ergo-me da cadeira, levando comigo o chuveiro novo até o banheiro. Deixando-o sobre o cesto de roupa suja, penteio meus cabelos com agressividade. - Assim vai ficar careca.
- Isso não me ajuda em nada.
- Me dá a porra desse pente.
- Não. - Digo ao seu reflexo. - Vá embora.
- Me dá a porra desse pente, Adessa Rossi. - Ordena-me ele sem mover um músculo de sua face. Tomando o pente de minha mão, ele o desliza suavemente da raiz até as pontas de meus cabelos. Apoiando minhas mãos na pia, fecho os olhos e relaxo enquanto ele repete o ritual até secar as pontas úmidas com uma toalha de rosto. Desde quando ele se tornou um cabeleireiro? De cabeça baixa, ele responde. - Desde que tive de lidar com uma mulher impulsiva, reativa e difícil de agradar. - Trançando meus cabelos, ele me instiga a curiosidade.
- Vc trançava o cabelo dela?
- Não. Nunca tivemos tempo. Ela morreu jovem. Vc morreu jovem, Dess, deixando o nosso filho nas mãos de sua tia. - Sufoco um soluço e, horrorizada, indago.
- Celeste cuidou de nosso filho??? Como permitiu???
- Seu amado demônio irlandês já havia me matado, ou melhor, inutilizado meu corpo e, mortos não salvam crianças.
- Talvez seja isso o que a 'outra' deseje. Tirar nosso filho de nossas vidas.
- Talvez não seja isso que Eileen esteja tentando te dizer, Dess. - Sugere ele enroscando um elástico na ponta de minha trança perfeita. Encarando meu reflexo, ele diz antes de se afastar de mim. - Talvez seja por medo que ela queira voltar à vida. Medo. Talvez ela tenha medo do que sua tia possa fazer ao nosso filho que, talvez, ela ainda imagine ser o dela.
- Não vai! Celeste não toca em Matteo! - Magoado, ele me pede.
- Encare suas personalidades. Diga seus nomes. Converse com elas e, por favor, ligue para o número de celular no papel. É pouco, mas é tudo o que posso oferecer a vc, Dess.
- Não vai...- Imploro, cheia de remorso. Ele me deixa sozinha no quarto onde nosso filho dorme em paz. Uma olhadela no papel amassado e, atordoada, digito os números no 'Google'. Boquiaberta, leio em voz baixa.
"Just Dance - Cia. de Ballet Contemporâneo".
- Não precisa ir ao colégio, filha. Hoje tem alguma prova?
- Não, mãe. Mas eu prometi ao meu amigo que estaria lá. Ele precisa de ajuda em Matemática.
- Que amigo? Quantos anos ele tem?
- Pega leve, Dess. São crianças.
- Eu tinha seis anos quando aquele monstro me atacou.
- Isso não vai acontecer com a nossa filha. - Afirma ele com as mãos trêmulas ao partir o pão francês ao meio. - Somos pais atentos e sempre presentes.
- Eu sei. Desculpa. - Arrependida, ergo-me da cadeira e, apressada, procuro por um de seus remédios num dos armários da cozinha: o que impede os tremores. De volta à mesa, eu o obrigo a tomar com o leite em seu copo. Ele se nega. Eu insisto ao dizer. - Vc cuida de mim e eu de vc. Lembra?
- E quem cuida de mim??? - Dramatiza Antoine de boca cheia.
- Nós dois. - Responde Vincenzo beijando-a na bochecha. - E vc, cuida de seu irmãozinho. Certo?
- Certo, chefe! - Exulta ela prestando continência. - Ninguém chega perto dele. Principalmente, a minha avó. - Vincenzo me olha ressabiado enquanto pergunto, afetando tranquilidade.
- Por que principalmente a sua avó? Ela fez alguma coisa de errado, filha? - Escondendo o rosto entre as mãos, ela argumenta.
- Prefiro não falar o que eu vi. Vcs vão brigar comigo e eu não vou poder ir ao colégio.
- Ninguém vai brigar com vc, amor. - Afirma Vincenzo tocando em sua mão, retirando-a de seu rosto, suavemente. Seus olhinhos assustados nos encaram. Vincenzo prossegue enquanto meu peito dói. - Conte o que viu.
- Eu não vi. Eu ouvi, papai.
- O quê!? - Exalto-me. Matteo sorri ao meu lado, deitado em seu carrinho. O pânico em perdê-lo me faz alterar a voz. - Diz! O que vc ouviu, filha!
- Calma, Dess. - Rosna Vincenzo visivelmente afetado pela dor em sua cabeça. Atordoada, volto a me erguer da cadeira. Deixo cair, do armário, sua caixa de remédios. Uma onda de horror me engole ao perceber que o meu marido era saudável até que eu surgisse em sua vida e que meus filhos correm perigo por minha culpa. Se eu não tivesse surgido na vida de Vincenzo, Lúcifer não teria tanta sede de vingança e Celeste não teria tanto ciúme do filho. Um ciúme mais do que maternal. Maldita! - Dess...
- Deixa que eu pego tudo. - Aviso baixando a cabeça. Agacho-me no chão, fugindo de seu olhar incisivo. Ele volta a chamar meu nome. Eu odeio quando ele me chama por mais de três vezes. Sinal de que ouviu algo e que aguarda por respostas. Erguendo-me com as caixas de remédios em minhas mãos, eu as jogo contra a pia da cozinha onde me apoio tentando respirar. Uma crise de claustrofobia chegou sem avisar. - Não fica nervosa. Assim vc não respira.
- Vc me ouviu? - Assentindo com a cabeça, ele esclarece.
- Ouvi o que pensou sobre Celeste.
- Merda. Eu não consigo...
- Inspira em quatro tempos. Segura por sete e expira por oito.
- Eu já sei...- Observo, tonta.
- Faz o que eu mando! - Ordena-me ele, com um olhar insano. Eu o obedeço enquanto Antoine brinca com Matteo a fim de fazê-lo parar de chorar. Ele precisa do meu leite. - Se não conseguir respirar, ele vai perder o leite e a mãe ao mesmo tempo. Respira. - Apoiando meus cotovelos na pia, completo o ciclo de respiração, voltando ao normal. Abro a torneira e, com as mãos em concha, molho o rosto. Ergo tronco, ainda tonta. Ao meu lado, ele sussurra. - Perdão pelo grito.
- Toma seu remédio, amor.
- Não tá doendo, Dess.
- Eu sei que está. Eu sinto.
- Vc e seus super poderes. - Zomba ele engolindo o comprimido a seco. Tomando água da bica, ele seca o rosto com papel-toalha olhando em meus olhos.
- O que é?
- Depois vc me conta isso, Dess. Agora eu tô atrasado.
- Contar o quê???
Vestindo seu casaco, ele me lança seu olhar cafajeste e comenta.
- Vc ainda não aprendeu que não dá pra esconder nada de mim? Depois de tanto tempo? - Desconversando, dramatizo.
- Quem vai levar Antoine ao colégio!? Tá chovendo muito! Não vou andar de carrinho com Matteo! Não debaixo dessa chuva!
- Meu pai me leva! - Exulta ela, dando-me as costas.
- Antoine Rossi! - Encolhendo os ombros, ela deixa escapar um 'Ihh! Ferrou!" - Não pense que eu me esqueci do que ainda não me disse sobre sua avó, ouviu? - Movendo a cabeça em minha direção, ela força um sorriso e responde entredentes.
- Ouvi.
- Já ligou?
- Vincenzo...eu...tenho...
- Sério!? Nem pra saber do que se trata!? - Decepcionado, ele beija a bochecha de Matteo e, ao tocar seus lábios nos meus, diz. - Eu não acerto uma. - Antoine cruza os braços em um ato de reprovação antes de ser arrastada por Vincenzo que fecha a porta da sala e me deixa, novamente, sozinha. Isso está se tornando um hábito. Abro a porta e grito do corredor, vazio.
- Vincenzo! Volta!
"Não deixem brechas", diz a voz em minha cabeça. Uma voz suave e sábia. Talvez a voz entenda que tenho medo de tudo e de todos e não sei como pedir ajuda.
"Olhe-se no espelho".
Corro até o banheiro e, com Matteo em meu colo, encaro meu reflexo que, aos poucos, vai se modificando. Eu a vejo sorrir. Um sorriso que me acalma e me dá forças para tomar a decisão correta.
- Valeu.
Agradeço antes de deixar o quarto, vestindo um macacão largo, meu gorro e meus tênis brancos, seguindo em direção ao presente que o meu marido me deu.
- Quanto???
- Duzentos ao mês, senhora. - Senhora? Eu tenho quase a mesma idade que a dela. Que merda. Envelhecer é uma bosta. Observando minha insatisfação e surpresa, a jovem recepcionista da 'Just Dance', esclarece. - São duzentos por mês, mas nós temos um pacote semestral que sai mais em conta.
- Sério??? - Sorrio sem graça. - E...quanto seria o pacote???
- Mil reais. - OI??? - A senhora economizaria uns duzentos reais. Não lhe parece melhor? - Super melhor! Mil reais eu tenho em minha carteira, meu bem! Aqui! Agora mesmo! Espera um pouco! Já vou te dar! - Senhora?
- Então...- Recosto-me à bancada requintada, espelhada, perfumada. - Dá pra vc me chamar pelo nome? - Um sorriso franco e ela concorda.
- Claro. Qual o seu nome?
- Adessa. Adessa Rossi. - Digo num tom imponente. Dinheiro eu não tenho, mas meu nome é de gente rica. - Foi um prazer te conhecer...- Bem próxima ao seu rosto, indago. - Vc me disse seu nome?
- Ana. Meu nome é Ana, mas todos me chamam de 'Aninha'. - Aaah! Que fofo! Aninha, novinha, bonitinha, assanhadinha...- A senhora está bem? - Um olhar raivoso e ela se corrige.
- Vc está bem, Adessa? Seu filho é lindo! Parece muito com vc!
- Que nada...- Sorrio, envaidecida. - Puxou ao pai. Ele é lindo. - Suspiro. - Vc não faz ideia.
- Faço sim. - Diz ela movendo os dedos ágeis no teclado, sorrindo para a tela do computador. - Rossi...Rossi...Rossi. Achei!
- O quê? - Matteo amarrado ao meu tronco pelo 'canguru' toca, com suas mãozinhas fofas, o meu rosto, distraindo-me. Aninha, eufórica, repete.
- Eu sabia! Eu sabia!
- Sabia do quê?
- Eu vi seu marido. Ele esteve aqui na semana passada. - Revirando os olhos, ela comenta. - 'Um sapão!'.
- 'Sapão'??? - Rindo, ela esclarece.
- Um 'deus grego', 'gato', 'Um pedaço de mau caminho!" - Puta! Vadia! - Com todo o respeito. - Afastando-me dela antes de arremessar a pedra em mármore, arredondada, sobre os folhetos na bancada, em sua cabeça, comento.
- Eu preciso ir. Ele tem pediatra marcado. - Minto. - E eu, preciso passar no shopping e comprar algumas roupas pra ele. - Minto outra vez. - Eles crescem muito rápido.
- Não quer dar uma olhada nas acomodações?
- Pra quê!? - Sua vaca!!! Daqui já dá pra ver que eu não posso sequer sonhar em observar as aulas! Tampouco, participar delas! - Eu te agradeço a atenção, mas eu estou, de fato, muito atrasada...
- Vincenzo.
- O que tem ele!? - Grudo-me à bancada prestes a cravar minhas unhas em seus cabelos castanhos presos em um coque. - Vc o conhece!? De onde!?
- Daqui.
- Daqui??? Ele frequenta esse lugar??? Ele conhece alguma mulher nesse lugar??? É vc??? - A puta com quem ele me trai??? - Fala!!! - Voltando a rir de mim, ela comenta.
- Vc é muito ciumenta. Eu também sou. Minha namorada odeia isso em mim. - Ufa. Ela é gay. Melhorou. Aliviada, eu a ouço explicar. - Seu marido esteve aqui, Adessa. Vc está matriculada.
- Oi??? Onde???
- Aqui. Onde mais? - Apoiando minha cabeça em meu cotovelo sobre o balcão, cochicho.
- Meu marido me matriculou aqui??? Pra quê???
- Dançar! Ele disse que vc é uma bailarina perfeita. Foi isso que ele me disse. Perfeita!
- Perfeita? - Engulo em seco abraçando Matteo. Apertando-o contra meu peito, elevando o queixo, piscando repetidas vezes a fim de não chorar. Não na frente dela. - Perfeita? Imagina! Eu nunca frequentei um lugar como esse antes! - Movendo o visor do notebook em minha direção, ela observa num tom alegre.
- Então eu acho que agora chegou a sua vez. - Sem compreender absolutamente nada do que está escrito na tela à minha frente, eu a encaro, ansiosa. - Viu? - Pergunta-me ela apontando o indicador ao meu nome em alguma lista.
- Não. - Respondo, confusa. Levantando-se da cadeira giratória, ela me estende o braço, ofertando-me sua mão. Abrindo um sorriso acolhedor, ela me guia até o interior do hall de entrada da academia enquanto eu a puxo na direção contrária. - Eu não posso...- Eu não tenho dinheiro para pisar nesse lugar, menina! - Preciso...
- Vc tem seis meses pagos, Adessa. Seu marido, além de bonitão é inteligente. Ele aceitou o pacote e eu ganhei uma comissão. - As palavras saem de sua boca sem que eu as compreenda. Os números se misturam às palavras enquanto eu a sigo. Matteo ri mostrando suas gengivinhas rosadas. Deve estar me chamando de otária. Vincenzo gastou mil reais comigo??? MIL REAIS??? - Venha!
- Não posso. - Recuo, suando frio. - Preciso voltar pra casa e falar com ele. Me perdoa. Vc é um anjo.
- Adessa!
- Eu volto! - Prometo ao passar pela catraca. - Assim que eu conversar com ele, eu volto. Ok?
Agarrada ao meu filho, caminho pelas ruas sem saber o que pensar. Vincenzo gastou uma fortuna somente para me agradar??? E quanto às contas que ainda não pagamos??? Ele é irresponsável ou adoravelmente louco???
- Eu não posso aceitar, amor!
- É um presente, porra!
- Não fala assim comigo, Vincenzo! Eu quero o nosso bem!
- E eu quero o seu! Eu não 'caí' pra te fazer infeliz!
- Eu não sou! EU NÃO SOU INFELIZ! EU TENHO TUDO O QUERO!
- Eu quero te dar alguma coisa!
- Vc já me deu tudo, cacete!
- Então, por que eu me sinto um merda!?
- Porque vc é um idiota cego que não me enxerga! Não vê o quanto eu te amo e não preciso de nada além do teu amor e dos nossos filhos!
- EU QUERO TE DAR A PORRA DAS AULAS DE DANÇA!!!
- EU NÃO QUERO!!!
- ACEITA!!!
- NÃO!!!
- SE FOSSE PRESENTE DELE, VC ACEITARIA!!!
Arquejo, angustiada. Recuo, magoada.
- Vc tá doente. - Lamenta Vincenzo cobrindo o rosto com suas mãos trêmulas. - Eu não suporto te ver sofrer.
- Eu digo o mesmo. Seu sofrimento é maior, amor. O que eu tenho, vai passar. O que vc tem, talvez...
- Não tem cura. Talvez fosse melhor vc...- Outro recuo abrupto, eu o xingo.
- Nunca mais pense nisso!
- Seria melhor que ele voltasse e sustentasse vcs porque eu não consigo mais. Só vai piorar, Dess. Daqui por diante, só vai piorar! - Arremesso um dos chinelos espalhados pela sala, em seu abdômen. Ele me olha, confuso. - Vc é louca?
- Sou. Por vc.
- E, por isso, me machuca?
- Eu não vou te perder.
- Dess...- Despenteada, enraivecida, desorientada, ando de um lado a outro em meio à sala antes de apontar meu indicador a ele e, decidida, gritar.
- NÃO FALA NADA! EU VOU TE CURAR! NÃO SEI COMO, MAS VOU TE CURAR!
- Parem de brigar. - Choraminga Antoine, de pé, no corredor. Vestindo uma de minhas camisolas, ela arrasta sua barra no chão até abraçar o pai. - Para de brigar, papai. É isso o que ele quer.
- Ele quem, filha? - Pergunta Vincenzo, ajoelhado. - Quem falou com vc?
- Aquele tio que não é meu tio.
- Tio Lu. - Revelo, entredentes. - Ele tem falado com vc?
- Fica longe, Dess. Deixe a nossa filha falar.
- Eu não sou um monstro. - Defendo-me, enrolando meus fios despenteados em um coque no topo da cabeça. Cato o chinelo que atingiu a barriga de Vincenzo e rio comigo mesma. Devo estar enlouquecendo. - O que tá olhando?
- Falta pouco, mas, ainda não enlouqueceu. - Diz Vincenzo quase sorrindo. Arfando, eu me jogo contra o sofá, cobrindo com a manta, o rasgo em sua lateral. - Dess, preste atenção ao que ela disse.
- O quê???
- Ele não falou comigo porque eu disse que vcs não querem que eu fale com ele.
- Fez bem.
- Dess!
- Foi só uma observação. - Rosno. Antoine ri de minha expressão de louca e prossegue.
- Eu ouvi aquele tio falando com a vovó. - Erguendo-me do sofá, arfando, ajoelho-me diante de Antoine. Antes falar qualquer coisa, Vincenzo ordena.
- Fica quieta. Aprenda a ouvir.
- Dois a zero, bandido. - Magoada, recuo até a mesa de jantar onde me sento na cadeira e os observo, movendo, aceleradamente, os dedos dos pés. - Continua, filha. Eu tô calma. - Minto. Quero voar sobre Vincenzo e estapear a sua cara por me desautorizar diante de Antoine. Tamborilando os dedos da mão direita sobre a mesa, aguardo. Vincenzo move sua cabeça num gesto de desaprovação. - Para de ouvir os meus pensamentos e escuta a tua filha, cacete.
- Mãe...
- Ok. Tô calada. Pronto. - Tapando minha boca com uma das mãos, ordeno. - Fala, filha. - Assustada, ela continua.
- Eu ouvi a vovó chorando na frente dele. Ela não queria deixar o vovô, mas o...
- Pode falar como quiser, filha. Mas, fale. Por favor.
- Mas o tio Lu disse que se ela não conseguisse o que ele queria, ela voltaria pra 'Legião'. Isso é um lugar, papai?
- Não. - Responde Vincenzo, visivelmente abalado. Sentando-se à mesa, ele a acomoda em seu colo e explica. - É o nome de uma comunidade...
- Comunidade? - Indaga Antoine, confusa.
- Uma rede social, filha. - Esclareço. - Tipo 'Instagram, Tik Tok, Deep Web...bem 'deep' mesmo.
-Ah. Entendi. Não conheço essa 'Deep Web'.
- Nem vai conhecer. - Afirma Vincenzo. - Continue, filha. O que o tio Lu disse à sua avó?
- Ele disse que minha avó tá atrás do sangue errado.
- Sangue???
- Dess!!!
- Sangue??? Vc ouviu o que sua filha falou??? Sangue??? Eu te disse que aquela mulher não era confiável!!!
- Dess! Controle-se ou vou tirar vc daqui!
Engulo meu medo, minha indignação e raiva e, prestes a explodir, continuo sentada à mesa, cobrindo minha cabeça com o capuz de meu moletom.
- O tio Lu disse que a vovó já errou uma vez matando o filho errado e que, agora, tá mirando no no...no...quadro? Quadro errado???
- Mirando no alvo errado? - Sugere Vincenzo enquanto tento respirar. - Sua avó tá mirando no alvo errado?
- Isso! Alvo! O que é isso, papai?
- É tipo uma trave de gol em um jogo de futebol, só que menor.
- Minha vó tá tentando acertar uma bola na gente, pai? Por quê? Eu preciso proteger meu maninho? Mamãe!!! Vc tá bem???
Deitada no chão da sala, puxo o ar pela boca. Meu coração bate na garganta enquanto ouço Vincenzo alertar, num tom alto.
- Ela está tendo um ataque de pânico, filha. Pegue meu estojo dentro da gaveta da escrivaninha. Sentindo a vida se esvair de mim, buscando o ar que não chega aos meus pulmões, ainda enxergo a agulha nas mãos de Vincenzo por onde duas gotas escapam.
- Não. Isso...não...
- Eu não vou deixar vc morrer. - Sussurra ele enquanto sinto a incômoda picada em meu braço. O rosto aflito de Antoine é a última imagem que tenho antes de apagar.
- Eu estou exausta. Por que não o deixam em paz? Por que não nos deixam viver nossas vidas? O que temos de tão especial?
- Cada um de vcs é parte de um quebra-cabeças. Cada um tem sua importância. Um anjo que 'cai' por amor. Um querubim que se propõe a correr os riscos entre Humanos e uma antiga e poderosa bruxa que dera início à história de amor antes mesmo do 'Messias' nascer. Há muita força, magia e poder entre vcs, querida.
- Pra quê? Por quê? Não queremos isso. Queremos viver em paz. Curar Vincenzo é o meu maior desejo. Eu darei a minha vida por ele e ele cuida de nossos filhos.
- E vc o deixaria nas mãos do 'Anjo Caído' para ser corrompido? Permitiria que Lúcifer machucasse Antoine? E quanto aquele que carrega o sangue maldito avô? Sem vc, o pequeno vai se perder.
- O sangue maldito de quem???
- Acorde e lute.
- Não! Não me deixe aqui!
- Estarei no espelho...
Corro pela relva atrás de sua silhueta elegante e diáfana até perdê-la de vista.
- Não me deixa! Salva meus filhos! MEUS FILHOS!
- Dess! Estamos aqui!
- MEUS FILHOS! ELE QUER MEUS FILHOS! - Agarrando-me pelos braços, Vincenzo grita.
- Te acalma! Vc teve um pesadelo! Só isso!
- Vc me drogou, bastardo! - Estapeio seu rosto, arrastando-me no chão da sala, recuando até a parede. Acuada, encolhida, repito: "Ele quer nossos filhos. Ele quer nossos filhos".
Antoine chora ao me ver descontrolada. Matteo chora, com fome. Vincenzo comprime sua cabeça com as mãos, expressando sofrimento. Em choque, eu me calo. Choro cobrindo meu rosto com os braços. Nosso mundo se tornou um caos e eu sou a culpada.
Lembrando-me do conselho da bela mulher com quem conversara antes de voltar ao corpo, reúno as forças que ainda me restam e, erguendo-me, caminho até a cozinha sob os olhares surpresos de Vincenzo e Antoine. Tampando a borda do copo d'água com uma das mãos, murmuro palavras que desconheço. Diante de Vincenzo, ordeno. - Bebe.
- Dess.
- Bebe agora. A dor vai passar. - Derramo sal grosso na soleira da porta, sussurrando palavras de encantamento.
- Pra que isso, Dess?
- Proteção. - Girando seu corpo em minha direção, ele confessa estar com medo. - Não precisa. Vai dar tudo certo. - Sorrio, acariciando o rosto que estapeei. - Perdão. Eu me descontrolei. - Tomando Matteo em meu braço, eu lhe dou de mamar no sofá da sala, cantarolando uma canção de ninar que me veio à mente. - Não sei. - Respondo à pergunta de Antoine sobre quem me ensinara a canção antiga. - Senta junto da mamãe. Não tenha medo.
- Não tenho. - Diz ela, abraçando-me com força. - Eu sabia que vc iria voltar. Precisamos de sua ajuda. Até quando vai ficar com a gente?
- Até seu avô chegar.
- Do que estão falando? - Indaga Vincenzo, assustado. - Dess? É vc?
- Sou. Sou parte dela. Abra a porta e aceite o que ele te oferecer. Quanto a ela, não a deixe cruzar o batente da porta. Ela já não está pura. Perdeu a razão. O pouco que tinha.
- Dess...
- Abra a porta, amor.
- Mas...
O copo cai de sua mão assim que o som estridente da campainha se faz ouvir. Assombrado, ele caminha até a porta sem desviar os olhos de mim. Deixo Matteo no colo de Antoine e varro os cacos do copo estilhaçado, jogando-os na lixeira da cozinha.
- Quem é? - Pergunta a voz trêmula de Vincenzo.
- Sou eu, meu filho. Eu vim em missão de paz. Não tenha medo. - A porta é aberta. Ao lado de Vincenzo, vejo o sorriso triste de Enrico. Ao seu lado, Celeste e seu olhar insano. Sendo impedida por Enrico de entrar, ela o empurra com o corpo. Erguendo o queixo, orgulhosa, ela tenta entrar em nossa casa. Admirada, ela recua.
- Que diabos é isso!?
- Magia.
- Tire isso daqui, Enrico. Desejo ver meus netos.
- Tire vc. - Eu a confronto. - É só um punhado de sal. Vc e seu amigo não serão detidos por sal. Não é?
- Há mais coisas aqui...- Vocifera ela, descontrolada.
- O que há com vc, Celeste? Por que se vinculou a ele novamente? - Indaga Vincenzo, decepcionado. - Eu te livrei dele uma vez. Não o farei novamente.
- Não precisa, meu doce Vincenzo. - Enxergo lascívia nos olhos sombrios de Celeste. - Ele não te quer mais. Seu alvo é outro.
- Eu não a trouxe. - Defende-se Enrico. Ela já não me obedece, filho. Vim trazer o cheque da venda do castelo. Vcs precisam de ajuda financeira. - Vincenzo arqueja, surpreendido. Antes mesmo de Enrico retirar o cheque de sua carteira, Celeste, num ligeiro gesto, o tira de sua mão. Um sorriso sombrio e ela o rasga diante de nossos olhos incrédulos.
- Maldita. - Murmuro. Enrico iniciaria uma discussão com Celeste se Vincenzo, suando frio, não recuasse. Enrico e eu o conduzimos até o sofá. Antoine e Matteo cedem lugar ao pai com os cabelos molhados de suor. - Ele vai morrer se não me deixarem entrar. - Ameaça Celeste debaixo do umbral da porta, gargalhando.
- Ele vai viver. - Afirmo, num desespero. Enrico mede sua temperatura.
- Quarenta graus, filha. Ele precisa de um médico. - Diz ele, desolado.
- Eu fico com as crianças enquanto vcs o levam ao hospital! - Sugere Celeste lutando contra a força invisível que a impede de entrar. Aos prantos, ela ordena. - Façam o que eu falei! Meu filho vai morrer por sua culpa, Adessa! Vão! Vão logo! Antes que seja tarde!
Convulsionando, Vincenzo revira os olhos, aterrorizando Antoine que chora acariciando seus cabelos.
- Volta, papai! Volta! - Atordoada, com Matteo em meu colo, tento me manter forte. Os médicos já haviam me alertado que esse momento poderia chegar. Era questão de tempo e, o tempo chegou. Após a dor de cabeça, os tremores, viriam as convulsões. - Leva ele, mamãe! Ele não pode morrer!
- Ele não vai morrer, filha! Eu prometo! - Voltando minha atenção a Enrico, imploro.
- Me ajuda a levá-lo até a banheira!?
- Claro!
Uma força descomunal me faz erguer Vincenzo pelas axilas enquanto Enrico o carrega pelas pernas. Antoine protege Matteo conforme minhas ordens.
- Não a deixe entrar. Vc sabe o que fazer.
- Sei. - Afirma Antoine com a voz mais grave do que o comum. - Salva o papai. - Pede-me ela.
O corpo de Vincenzo convulsiona sobre a cerâmica da banheira até que a água gelada cubra seu corpo por completo. Num desespero, mergulho na banheira ao seu lado, agarrando-me ao seu corpo. Enrico, sentado sobre a tampa do vaso sanitário, parece orar de olhos fechados, sem se importar com a água que transborda da banheira inundando o piso quadriculado.
- Volta, amor. Volta. - Suplico agarrando-o com meu corpo. A água gelada me faz tremer enquanto sua pele ainda se mantem quente. Enrico clama pela ajuda do Céu. Pela primeira vez em minha vida, ouço um nome diferente de Cassiel, Miguel, Suriel...
- Rafael, se puder, nos ajude. - Sussurra Enrico, contrito. De súbito, a figura de Liam surge diante de nossos olhos aflitos. Ainda ouço a voz de Cassie consolando Antoine vinda da sala quando Vincenzo, aos poucos, retoma o comando de seu corpo. Seus olhos azuis e tristes me encaram.
- Dess?
- Amor. Vc voltou. - Suspiro antes de assistir Liam e Enrico retirar o corpo de Vincenzo da água morna. Exausta e tremendo de frio, eu os vejo levar Vincenzo até o corredor. Arrasto-me até nosso quarto com minha roupa encharcada deixando um rastro de água por onde passo. - Cassie!
- Tia! Troca de roupa! Vai pegar uma gripe forte!
- Não me importo. Onde está Matteo!
- Aqui, mamãe! - Exclama Antoine, satisfeita. Matteo em seu carrinho, dorme, tranquilo. - Não tirei os olhos dele um minutinho sequer!
- Boa garota...- Sussurro. - Pega a roupa do seu pai na gaveta, filha. Eu tô...- Sufoco um soluço assim que vejo Celeste de pé, em minha sala. Como ela rompeu a barreira??? Reunindo as poucas forças que me restam, corro até ela e, como uma enorme bola de boliche raivosa, eu me jogo contra seu corpo e contra aquele que a acompanha. Lúcifer arregala seus olhos flamejantes assim que os atinjo. Eles evaporam como fumaça. Antes de bater com minha cabeça contra a parede, murmuro um 'strike', sentindo um gosto metálico na boca.
- Bem-vinda ao nosso mundo, amor.
- Vincenzo!
- Vc é louca, Dess. - Há tanta ternura em sua voz que só consigo suspirar.
- Por vc...
- Os dois são loucos. - Conclui Cassie, indignada, ao lado de Enrico num dos quartos de sua casa onde ela nos hospeda. - 'Anemia' e 'Pneumonia'. Que par perfeito! Uma dupla sertaneja! - Ironiza ela diante da cama 'king size' com lençóis macios e cheirando à lavanda onde estamos deitados.
- Anemia? - Questiono. - Vincenzo tem anemia?
- Sim. Foi o que o médico disse. Anemias severas, raramente, causam convulsões em adultos, mas, acontece.
- Ele disse como curar?
- Fica quieta, Dess. Vc ainda tá muito fraca.
- Me deixa...- Resmungo, tossindo. - Tem cura, Cassie!?
- Uma transfusão de glóbulos vermelhos. - Elucida Liam, sentado em uma luxuosa poltrona em couro num dos cantos do quarto.
- Transfusão de glóbulos!?
- Uma transfusão total de sangue. Retirar todo o sangue do corpo de Vincenzo e trocar por outro saudável.
- Esquece, Dess!
- Eu não falei nada.
- Mas pensou. Chega. Liam, muda de assunto.
- Tia, fica 'de boas'! Me poupa!
- Eu não disse nada...- Defendo-me debaixo do lençol. Com as mãos na cintura, Cassie, pergunta.
- Se vcs morrerem, quem eu vou escolher como padrinhos de nosso filho??? Dá pra pensar um pouco em mim e no meu 'Coelhinho'???
Rindo e tossindo, quase sem forças, respondo, surpresa e feliz, sob o olhar manso de Vincenzo, já recuperado de sua crise.
- Dá. Dá sim. Um filho?
- Sim. - Diz ela, chorando e sorrindo. - Eu vou ser mãe, tia. Acho que, dessa vez, Antoine se enganou. Eu vou ser mãe!
- Louvado seja o Criador. - Elevo os olhos ao teto. Exausta, medicada e aliviada, volto a dormir. Em minha mente, uma frase pisca em neon como o título de um filme de terror:
"Transfusão de Glóbulos Vermelhos".
Continua...