'Dess - Uma História Interessante'

'Dess - Uma História Interessante'
AMO ESCREVER

CAPÍTULO 30 - JUNTOS

 





Contrariando minhas expectativas, eu me senti 'simplesmente esplêndida', ao lado dos noivos, no altar. Cassie estava deslumbrante. Liam irradiara luz assim que a vira caminhar pelo tapete vermelho tendo como sua 'Dama-de-Honra', nossa filha. Ele, literalmente, irradiava luz de sua aura sempre crescente. Lembro-me de não ter tido a conversa que sempre quis ter com ele. Agora, de onde estou, quase não tenho dúvidas de sua origem. Vincenzo, junto a mim, esforçava-se a fim de demonstrar alegria, mas, segurando sua mão fria, eu pude sentir a dor que o afligia.
Não tivemos tempo de conversar sobre o que vira na noite passada. Minto. Não tivemos coragem de tocar em um assunto que mudaria, drasticamente, nossas vidas.
- Tia, eu faço questão. 
- Não posso aceitar. É muito caro, Cassie. Vcs estão começando uma vida juntos. Não é hora de esbanjar dinheiro com a gente. 
- Tia! - Insiste ela sentada à mesa suntuosa em sua recepção após o casamento. - Vc me levou à Itália e à Irlanda quando eu não tinha ninguém. Agora é a minha vez de retribuir. Liam faz questão e eu também.
- Matteo vai nascer a qualquer momento, sua louca!
- Serão somente dois dias. Meu marido e eu vamos curtir nossa lua-de-mel. Tio Vincenzo e vc deveriam fazer o mesmo. Ele tá super esquisito. Triste. Eu nunca o vi assim. - Percebendo Vincenzo se aproximar de nossa mesa, cochicho.
- Agora não posso contar.
- Contar o quê? - Pergunta-me ele, desconfiado.
- Que vcs irão à Itália comigo, tio! - Um sorriso tímido e ele retruca.
- Não dá. Sem chances. Agora somos pobres. - Magoada, engulo em seco, baixando a cabeça. Constrangida, Cassie refuta ao se erguer e me lançar um olhar compassivo.
- Pobres ou não, vcs irão! - Eufórica, ela considera. -  Agora, com licença, porque eu vou dançar com o meu maridão! 
- Vai lá, safada! - Beijando a bochecha de Antoine, ela comenta, aos risos.
- Daqui a alguns anos, eu vou me vingar e te chamar de 'safada' no dia do seu casamento, pirralha! Fui!
- Woohoo! De volta à Itália! - Comemora Antoine sentada à mesa. Vincenzo toma um gole de cerveja e, num rompante de irritabilidade, a contesta.
- Não iremos, filha. Tira isso da cabeça. Eu não posso pagar.
- É um convite! Não seja estúpido!
- Pai...
- Não. É uma retribuição ao que vc e Aiden deram a ela. Eu nada tenho a ver com isso. Esqueçam! Nada de Itália!
- Eu vou dançar...- Avisa Antoine num desânimo. Olhando nos olhos do pai, ela suplica. - Pensa bem, papai. Eu queria tanto ir...
- Satisfeito? 
- Dess, eu não tô bem. Podemos ir embora? - Sentando-me ao seu lado, eu o abraço ao cochichar. 
- Eu sei que não está bem, amor. Sei que tá sentindo dor na cabeça, mas Antoine nada tem a ver com isso. Cassie tá sendo super grata por tudo o que vc fez a ela enquanto ela morava com a gente. Nada tem a ver com Aiden. Ela te ama. Ela me ama e quer ver Antoine feliz. Aceite, por favor. 
- Não é justo gastar o dinheiro deles com a gente.
- Justo ou não, é um convite de coração. E eu acredito que, na Itália, vc vai se sentir melhor. - Um olhar distante e ele sussurra.
- Tenho certeza. Fomos muito felizes lá.
- Sejamos novamente, amor. Não se afaste de nós. Por favor. Não me deixa. - Melancólico, ele murmura.
- Eu preciso te contar uma coisa, Dess...
- Agora não. - Um beijo em sua boca e imploro. - Vamos aproveitar essa noite, marido. Bons momentos passam rápido.
- Passam...- Antoine surge, num repente e, abraçando seu pai pelas costas, ela toca em sua testa ao cochichar.
- Tá doendo, né? Mas vai passar. - Seus olhinhos se fecham. Vincenzo, desorientado, tenta se mover na cadeira quando ela o libera e, diante dele, sorri ao perguntar.
- Passou? - Os olhos de Vincenzo se arregalam. Espantado, ele responde, hesitante.
- Sim...
- Eu sabia. Foi meu tio que me ensinou.
- Que tio??? - Ergo-me, assustada. - Ele tá aqui de novo??? - Gargalhando, ela responde.
- Claro que tá! Ele se casou com a Cassie, mamãe!
- Liam???
- Meu irmão...- Murmura Vincenzo, sorrindo. - Ele jamais será corrompido.
- Liam é um...? - Voltando a ser o homem por quem eu me apaixonei, ele se levanta e me convida.
- Dança comigo, Sra. Rossi. - Animada, retruco.
- Se a barriga deixar...



 
Em solo italiano, Vincenzo se revigora por completo. Esquecendo-se de nossos problemas, ele volta a gargalhar ao brincar com Antoine correndo pela relva próxima ao hotel onde nos hospedamos. A visão que temos de nosso quarto é magnífica. Um penhasco adiante e o oceano infinito. Atraída pelo ruído das ondas contra os rochedos, caminho até a beira do penhasco. Inspiro profundamente sentindo a brisa do mar em meu rosto. De olhos fechados, ouço um sussurro sinistro.
"Pule".
Antes de abrir meus olhos assustados, Vincenzo me puxa para trás e, abraçando-me, adverte.
- Nunca chegue tão perto, Dess! Por favor!
- Não fica nervoso. Eu não iria pular. - Sorrindo, acaricio seu rosto ao indagar. - Que motivos eu teria para pular? Eu tô feliz com vc, amor. Na verdade, eu nunca estive tão feliz. - O vento esvoaça meus cabelos. Sob os primeiros pingos da chuva fina, grito. - Tenho a impressão de que já estivemos aqui, Vincenzo! De que fomos felizes aqui! Por que não para de olhar lá pra baixo!? Por que tá com medo!?
- Não estou! - Refuta ele, num tom de voz alto. Olhando ao redor, ressabiado, ele proclama. - Não tenho medo de nada! Te afastas daqui! Deixe-nos em paz! Ainda tenho forças! Vc não vai nos vencer! Ela jamais vai pular novamente!
- Vincenzo? - De volta a si, debaixo do guarda-chuva, ele me pede perdão.
- Desculpa, Dess. Eu pensei...
- Eu sei. Eu o ouvi. Não lhe empreste forças. Lúcifer nada é se não dermos brechas.
- Tem razão. - Observando Antoine vibrar ao cavalgar junto a Liam, Vincenzo me pergunta ao abrir um sorriso compassivo. - Desde quando minha esposa se tornou um ser tão sábio? Vc mudou muito, Dess e eu te amo ainda mais. - Ergo meu queixo e pisco por diversas vezes ao perguntar num tom brincalhão.
- Quer que eu chore aqui, na frente de todo mundo, marido? Se quiser, fale isso novamente.
- Vc tá linda com esse vestido, Dess. Linda e irresistível...


- Pareço uma camponesa. Uma gorda camponesa prestes a explodir.
- Exagerou no decote...- Observa ele voltando a me olhar com seus lindos olhos insanos. - Mas eu gostei. Quer voltar ao nosso quarto? Tenho uma ideia que vai te agradar.
- Safado! - Gargalho deixando-me levar por ele e seu inesgotável apetite sexual. Cassie surge, repentinamente, à nossa frente, convidando-nos a passear pelas redondezas, frustrando os planos lascivos de Vincenzo. Dentro do carro alugado e dirigido por Liam, Antoine, eufórica, pede, aos gritos.
- Aquele castelo, tio! Vamos até aquele castelo! - Sentado no banco traseiro, ao meu lado, Vincenzo leva a mão ao coração. Seus olhos se enchem d'água enquanto murmura com o rosto quase grudado à janela.
- Mio Dio...- Preocupada com sua súbita emoção, pergunto.
- Tá sentindo dor, amor? Na cabeça?
- Não. No coração. - Um profundo suspiro e ele pensa alto. - Como fomos felizes aqui...- Do banco do carona, Cassie torce o pescoço ao perguntar, intrigada.
- Já veio aqui, tio!?
- Sim. - Responde Liam. 
- Como sabe???
- Suponho. - Responde-me ele lançando, pelo retrovisor interno, um daqueles olhares cúmplices a Vincenzo. - Vamos entrar?
- Vamos!!! - Berra Antoine ao subir a escadaria que nos leva ao imenso portal em madeira. Meu coração ribomba assim que piso no imenso salão ao estilo medieval. De olhos fechados, apurando minha sensibilidade, ouço risos, música, relinchos de cavalo e um grito de horror. - Mamãe? Vc tá bem? 
- Sim. - Minto. Luto contra a pungente vontade em fugir dali o mais rápido possível. Vincenzo nota minha agonia enquanto Cassie baila, sozinha, ao redor do salão. - Alguma coisa ruim aconteceu aqui, Vincenzo. Quero ir embora.
- Foi um erro trazer vcs aqui. - Assume Liam.
- Não. Não foi. - Refuta Vincenzo ainda nostálgico. Dirigindo-se a mim, ele indaga. - Não consegue se lembrar das coisas boas? - Uma dor lancinante em meu útero e me jogo contra o piso frio. De joelhos, com as mãos apoiadas no chão, capto as imagens. 



Instrumentos musicais em dourado, o tilintar de talheres, lustres belíssimos pendendo do teto, mulheres exageradamente maquiadas transitam pelo salão, risos estridentes, vinho em taças de prata; a sombria figura de uma linda jovem ruiva entre os convidados observa a estúpida entrada de um homem enraivecido trazendo consigo as trevas. - Dess!
- Dói! - Grito assim que sinto o líquido quente escapar de minhas entranhas. - Me tira daqui! Nosso filho não pode nascer aqui! 
- A bolsa estourou! - Grita Cassie, desesperada. - Liam! O que a gente faz!?

- Não deixem que levem meu filho! Não deixem! - Grito, histérica, diante do homem com os olhos inflamados de ódio. De joelhos, suplico. - Tirem esse homem daqui!
- Não há ninguém aqui, Dess. Fica calma. Vamos te levar ao hospital.
- Não temos tempo. - Avisa Liam arregaçando as mangas da camisa social enquanto luto contra vultos que tentam me agarrar. - Ela está tendo alucinações. 
- Não são alucinações, Liam. - Sussurra Vincenzo atordoado. - Ela está revivendo um passado doloroso. Terrível. - No chão, deitando-me em seu colo, ele implora. - Me ajuda, irmão. Eu já não sou o mesmo. - Um olhar benevolente e Liam o repreende.
- Não se menospreze. Vc continua a ser aquele que conheci há tempos. Foi graças à sua coragem que decidi 'cair'.
- De onde??? - Indaga Cassandra, confusa. Liam, concentrado, ordena.
- Cassandra! Traga toalhas e água quente! E uma tesoura esterilizada!
- Cacete! - Grita ela, atordoada. - Onde acha que estamos!? Isso não é um hotel ou um hospital! É a porra de um castelo assombrado! Faz ela acordar, tio! 
- Eu sei onde tem, Cassie! Vem comigo!
- Como sabe, pirralha!? Vc nunca esteve aqui!
- Já estive sim! Cala a boca e me segue! - Meus cabelos se encharcam de suor. Movo braços e pernas na tentativa de afastar os homens de batina ao meu redor. Seus rostos medonhos me apavoram. 
- Nunca! O filho é meu! Vincenzo! Não me deixa novamente! Eles vão matar o bebê! Eles vão me queimar viva! Salva nosso filho! - Comprimindo os olhos, sentindo pavor e dor, repito. - Eles vão matar o bebê! - Enxugando meu rosto úmido com sua blusa, ele sussurra.
- Não vão não, Dess. Eu prometo. Volta, meu amor. Matteo precisa de sua ajuda. 
- Adessa, consegue me ouvir?
- Liam! Tira eles daqui! Eu não vou deixar meu filho nascer enquanto eles não forem embora! 
Outra contração e grito de dor agarrada a Vincenzo, sentado no chão do grande salão. Aflito, ele afirma que os homens não existem.
- São fruto do passado, Dess! Eles não podem te fazer mal! Não mais!
- Que porra de passado!?
- Do nosso, Dess! Fica calma, pelo amor de Deus!
- Adessa, meu ouça! - Pede-me Liam fazendo-me dobrar os joelhos e afastar minhas pernas. Vincenzo puxa meu vestido para cima. Erguendo meu tronco, ele se mantem calmo ao perguntar.
- Lembra dos exercícios de respiração que fizemos, amor? - Contendo outro grito, assinto com a cabeça. - Inspire lenta e profundamente pelo nariz, contando até 4. Expire pela boca. - Em silêncio, de olhos fechados, eu o obedeço enquanto ouço a voz de Liam recitar palavras em um idioma que desconheço. - Eles se foram, Dess. Eles se foram, amor. Respira. - Abro, vagarosamente, meus olhos e, aliviada, eu não os vejo mais. Antoine se ajoelha ao meu lado e avisa.
- Trouxe as toalhas, mãe. Meu maninho vai nascer?
- Vai...- Tento sorrir enquanto ela seca meu rosto com uma das toalhas. - Onde conseguiram isso?
- Num dos quartos! - Responde Cassandra assombrada. - Tem gente morando aqui, tio!?
- Já tivemos. - Diz Vincenzo ao beijar minha testa. - Foram dias de extrema alegria...
- Puta que pariu! - Exclama Cassandra. - O que é isso saindo dela, 'Coelhinho'!?
- 'Little Princess'. - Repreende-a Liam. - É parte do líquido amniótico. Não se assuste e, principalmente, não a assuste.
- Não fala assim com ela, 'Coelhinho'. - Zomba Antoine trançando meus cabelos. - Ela ficou triste.
- Perdão, amor. - Diz ele enquanto sigo as ordens de Vincenzo respirando, ofegantemente, como um cachorrinho. - Eu estou nervoso. As contrações aumentaram. - Ela o beija na bochecha e seca sua testa usando uma toalha de rosto branca com as iniciais 'M&G' bordadas em preto. Apesar da dor e do medo, recordo-me da mesma toalha e das velas ao redor de uma banheira em cobre onde, submersa, sorrio para alguém. - Adessa! Acorde! Continue a respiração! - Um longo gemido e afirmo.
- Eu tô tentando!
- Prenda a respiração na próxima contração!
- Além de padeiro, vc é médico, tio!? - Solto uma gargalhada perdendo o controle da respiração. Vincenzo ri atrás de mim enquanto Antoine reclama com Cassandra.
- Sai daí! Vc não serve pra ser enfermeira! Fica gritando o tempo todo! Eu, hein! - Puxando-a pela braço, Antoine a afasta de seu marido. Sob protestos, Cassie se ajoelha ao meu lado e, dando-me sua mão, aconselha-me.
- Aperta a minha mão quando doer muito, tá!? 
- Já está doendo, Cassie! - Grito jogando a cabeça para trás. Antoine adverte. 
- Se gritar, vai ser pior, mãe. Segura a dor e empurra meu irmãozinho pra fora.

Todos se entreolham por segundos. Intrigados, permanecemos em silêncio até Cassandra observar.

- Definitivamente, essa garota não é normal.
- EMPURRA! - Ordena Liam com a mão enfiada em minha vagina. Nunca me senti tão exposta em minha vida. Nem mesmo nos filmes adultos que se perderam no tempo. Antoine vibra ao gritar.
- Olha a cabecinha dele!
- PORRA! ISSO DÓIIII! - Urro de dor antes de contrair todos os meus músculos e, finalmente, expulsar nosso filho de mim. 
- Nasceu, Dess. - Diz Vincenzo, emocionado. - Nosso filho nasceu. 
- Me dá ele...- Imploro, quase sem voz, com os braços estendidos. - Seu primeiro vagido e Matteo dá seu primeiro sinal de vida no colo de Liam. O primeiro de nossos três filhos a romper a barreira entre a vida e a morte. O primeiro a vencer. Retirando a placenta, Liam corta o cordão umbilical que me ligara ao meu filho por longos nove meses. Cassandra, horrorizada em ver a placenta, vomita ao meu lado. Antoine, sem demonstrar nojo, beija a cabeça salpicada por sangue e gordura esbranquiçada de Matteo antes de Liam acomodá-lo, cuidadosamente, em meu colo. Vincenzo nos abraça e chora de felicidade. Sem palavras, ele beija minha bochecha e a cabeça úmida de seu filho enrolando-o em uma toalha limpa.
- Nosso filho é italiano, Dess. 'Un vero italiano'! - Um breve olhar a Antoine e ela me diz.
- Eu não te disse, mamãe, que ele ia nascer aqui? - Exausta, concordo.
- Disse, filha. Te amo.
- Te amo, mãe. Te amo, pai. Te amo, maninho.
Abraçando Liam, Cassandra nos faz rir ao afirmar.
- 'Coelhinho', esquece esse lance de ser pai, ok? Essa parada foi mais do que 'sinistra'. Foi bizarra. 
- Veremos. - Refuta Liam, absolutamente suado e iluminado.
- Vc é um anjo, Liam. - Afirmo sem que ele perceba que eu acabo de confirmar minhas suspeitas. Vislumbrando suas asas abertas, arquejo ao agradecer. - Sem vc, eu não teria conseguido. Abençoado Seja.



Passamos mais tempo do que o previsto na Itália após o nascimento de Matteo que fora registrado como cidadão italiano. Não por ter nascido na Toscana, mas por ter um italiano como pai. A consanguinidade lhe garantira a cidadania. Jamais poderia imaginar que Vincenzo teria documentos que comprovassem seu nascimento em solo italiano. Um anjo italiano? Meu anjo é italiano!? Isso me deixou perplexa. 

Sua conversa com Liam me deixaria ainda mais intrigada. Fingindo dormir no leito do hospital após amamentar Matteo, ouço Vincenzo lamentar a perda de seu antigo castelo. O mesmo onde meu parto fora realizado. 
- Por que o tiraram de vc?
- Por ter cometido um ato hediondo. Eu induzi um jovem à morte. Um jovem que seguia Lúcifer e seus mandamentos. 
- Isso não é justo. - Declara Liam, revoltado. - Cassandra me contou tudo sobre esse rapaz. Não tinha boa índole.
- Mas não merecia morrer. - Retruca Vincenzo num tom de voz baixo, repleto de remorso. - Não por minhas mãos. Eu cometi um crime e devo ser punido.
- Por quem??? O Nosso Pai não faria isso!!!
- Fale baixo. - Pede Vincenzo num sussurro. - Ela não deve saber disso. Já sofreu muito por mim. Não sei como sustentar nossos filhos com o que ganho. Jamais pensei que passaria por esse tipo de experiência aqui na Terra. Assim que retornarmos ao nosso país, volto a lutar profissionalmente. Não vejo outra opção.
- Vc sabe que não pode, irmão. Não agora que se tornou mortal. Isso é suicídio.
- Não tenho outra opção. Não vou deixar que meus filhos e minha esposa sofram por mim.
- Eles sofrerão mais sem vc por perto.
- Liam, eu já tomei minha decisão. Já estou perdido mesmo. Não vou permitir que sofram por mim. Nunca.
- Precisa se curar, Vincenzo! - Relutante, Vincenzo prossegue.
- Preciso lutar, ganhar dinheiro e, então, eu me curo. Minha cabeça dói...- Um segundo de silêncio e Liam, num tom de lamento, assevera.
- Não posso te curar, irmão, mas posso amenizar seu sofrimento.

 
Um clarão no quarto mergulhado na penumbra e, curiosa, arregalo meus olhos. De esguelha, assisto meu Vincenzo se entregar à luz que se irradia de Liam e suas lindas e imensas asas brancas.
Um arquejo e sou percebida por Vincenzo. Provocando um bocejo, finjo ter acordado naquele momento. Um sorriso triste e ele me pergunta.
- Acordada há muito tempo?
- Não. - Minto. Ainda impressionada, olhando nos olhos melancólicos de Liam, confesso. - Eu sempre soube que vc era especial, Liam. Cassandra tem sorte em ter vc por perto. - Prestes a revelar seu segredo, a porta do quarto se abre, num supetão. Cassandra, surge, exultante. Ao pular no colo de Liam, ele a beija enquanto ela afirma.
- Tenho sorte mesmo, tia! Eu mirei no padeiro e acertei em um homem rico, bonito, gostoso e cheio de compaixão pelo próximo! Quer mais sorte do que isso!? - Um olhar cúmplice a Liam e respondo, aliviada.
- Não mesmo. Põe sorte nisso. Não o deixe escapar, Cassie. Ele é mais do que seus olhos podem ver.
- Não entendi...
- Claro que não. Vc é safada e gente safada é burra. - Resmunga Antoine sentando-se ao meu lado no leito do hospital enquanto Vincenzo traz Matteo enroladinho em sua manta azul da cor dos olhos do pai. Um beijo em minha bochecha e ela comenta. - Meu maninho é tão fofinho. Queria ter saído da sua barriga também, mãe. Assim, eu seria mais bonita. Igual a vc e ao papai.
- Vc é linda, filha. - Suspiro encaixando a aréola do meu seio direito em sua boquinha faminta. Matteo suga meu leite, de imediato. Fixando meus olhos em Antoine, prossigo. - Vc é e sempre será a minha primeira filha, mesmo não tendo saído da minha barriga. - Contrariada, ela refuta.
- Mas a minha cor é diferente. Não gosto dela.
- Deveria. - Aconselha Liam. - A raça negra existe há mais tempo nesse planeta do que a raça branca, resistindo a todo tipo de sofrimento. Foram eles que lutaram por um planeta melhor. A sua raça, Antoine, é uma raça de guerreiros vitoriosos. Deveria ter orgulho disso. Vc é linda. Adoraria ter uma filha como vc.
- Mas não vai poder...
- Como? - Estranha Liam.
- Ter filhos. - Elucida Antoine. - Vc e Cassie não vão poder ter filhos.
- Quem te disse isso??? Eu sou fértil!!! Meu 'coelhinho' também!!!
- Para, filha. - Peço diante do casal espantado. - Para de falar.
- Mas mãe...
- Para. Eu tô mandando.
- Mas foi o tio Miguel que me disse!
- Cala a boca, Antoine! - Ordena Vincenzo, descontrolado. Arregalo meus olhos enquanto acolho nossa filha  debaixo do meu lençol. Irreconhecível, Vincenzo continua a nos assustar. - Eu não quero que ouça mais nada de seus tios! Entendeu!? Chega de 'tio Lu' ou de 'tio Miguel'! Chega de conversas com o 'Outro Lado'. Vamos viver o 'Agora'! E, agora, eles são jovens e saudáveis e nada os impede de terem filhos saudáveis! Por que me olha assim, Dess!? Vc não queria que eu agisse como um pai!? - Magoada, ainda com Matteo em meu colo, enxugo as lágrimas de Antoine ao responder num tom baixo.
- Como um pai sim. Não como um idiota grosseiro filho da puta. - Um passo adiante e ele se mostra arrependido. Antes de pronunciar qualquer palavra, eu lhe peço sem olhar em seus olhos. - Vc poderia sair do quarto, por favor? Quero ficar sozinha com meus filhos.
- São nossos.
- Sai, Vincenzo. - Aos prantos, rosno um 'Por favor'. Liam arrasta Vincenzo para o corredor. Cassie, desnorteada, beija Antoine no topo de sua cabeça e, antes de sair, pergunta.
- Isso é verdade, pirralha? - Assentindo com a cabeça, Antoine se mantem calada, agarrada à minha cintura. - Não chora. Tá tudo bem. Ok? Tudo muda o tempo todo. Quem sabe seu tio pode ter se enganado? E, 'de boas', eu não quero ter filhos mesmo. Dá muito trabalho. - De costas, ela se despede. - Fui.

- Tem certeza de que quem te disse isso foi seu tio Miguel, filha? Não é o tipo de assunto que o interessa. - Dando de ombros, ela responde.
- Sei lá. Foi num sonho. Parecia com o tio Miguel, mas não tinha as asas azuis. Eram pretas. E ele falou outra coisa também. Mas não adianta pedir porque eu não vou contar. Chega de levar bronca por hoje. Quero ficar com o meu maninho. - Aconchegando-o em seu colo, eu a faço sorrir. Um suspiro e ela observa. - Ele tem cheiro de anjo. Igual ao meu pai. 
- O que mais o 'tio dos sonhos' falou, filha? Pode contar pra mim. Não vou te dar bronca. Juro.
- De dedinho? - Erguendo meu mindinho, eu juro.
- De dedinho. - Enroscamos nossos dedos enquanto ela confessa. 
- O 'tio dos sonhos' disse que vai ficar de olho no papai e, quando ele lutar de novo, vai tirar a alma dele. - Sufoco um soluço antes de responder à sua pergunta. - Ele pode pegar a alma do papai, mãe?
- Não. - Inflando as narinas, afirmo. - O 'tio dos sonhos' não pode nada. Seu pai vai ficar com a gente por muito tempo, filha. Pode acreditar. Faz um favor pra mamãe?
- Claro! - Olhando em seus olhos, ensino.
- Quando o 'tio dos sonhos' aparecer novamente, pense no 'tio Miguel'. Chame por ele. Ele vai fazer o 'tio dos sonhos' sumir. Ok?
- Tem certeza?
- Sim. - Minto. Não estou certa de nada além da imensa vontade de voltar ao meu lar a quase dez mil quilômetros de distância. - Eu tenho. 

Observando Vincenzo dormir ao meu lado no assento do avião, despedindo-me do solo italiano pela janela, prometo a mim mesma.

'Não vou deixar que tirem vc de mim. Não mesmo'.

Um dos momentos mais relaxantes e de extrema troca de energia com o meu filho é a hora de amamentá-lo. Não permito que ninguém fique no quarto durante esse momento íntimo que divido somente com Matteo. Entrego-me a ele por inteiro sem pensar nos problemas que se acumulam além da porta de seu quarto. Enquanto ele mama, eu o embalo na cadeira de balanço cantando canções antigas que me vêm à mente. Canções que minhas irmãs bruxas cantavam aos seus filhos antes de serem julgadas e condenadas por lidarem com ervas e poções para a cura de quem as procurava. Minha memória secular parece ter se ampliado desde que nosso filho viera ao mundo. Deitando-o em seu berço, peço ao Criador que o proteja de todo o mal e me preparo para o que há além da porta. Assim que a fecho por fora, caminho até a sala onde encontro Vincenzo prostrado em sua poltrona, após um dia estafante de trabalho. Embora, ele sorria, sei que sente dores fortíssimas na cabeça e percebo os tremores no corpo. Corro até a cozinha onde preparo um dos meus chás de cura com as ervas que cultivo em um cantinho acima da pia.
- Toma.
- Não quero, Dess. Obrigada.
- Não estou pedindo. Toma! - Sorrindo, ele cede ao meu comando.
- Hmmm. Gostoso. O que tem aqui?
- Ervas e muito amor. É assim que eu vou te curar, Vincenzo. - Ajoelhada à sua frente, imploro. - Desista de morrer, por enquanto. Precisamos de vc, aqui, com a gente, mais do que nunca. Lembre-se disso. - Sentando-me em seu colo, advirto. - Esqueça as lutas ou eu vou me esquecer de vc. Não ria. Eu tô falando sério. Eu sei que quer lutar novamente. Ouvi a conversa entre vc e Liam no hospital.
- Dess...- De olhos fechados, ele resmunga. - Esquece isso.
- Toma o chá. 
- Não quero.
- Até o fim! - Rindo de minha rabugice, ele comenta.
- Vc parece minha mãe.
- Desde quando vc tem mãe, Vincenzo? Que tipo de anjo é vc que tem cidadania italiana e mãe? 
- Desde que comecei a viver entre os humanos, sempre à sua procura. Existem outros como eu e, um deles, uma mulher, me acompanha nessa jornada. - Um recuo inesperado e indago, surpresa.
- E vc fala isso com naturalidade??? Existe uma mulher por aí que se diz sua mãe e vc nunca me falou dela???
- Calma...- Pede-me ele tentando rir sem sentir dor. Impulsiva, imponho minhas mãos unidas sobre sua cabeça e, de olhos fechados, murmuro palavras de cura em algum dialeto. Livre da dor e curioso, ele indaga.
- De onde vc tirou isso, Dess? Desde quando vc tem o dom da cura?
- Responda-me vc que conhece minhas vidas e me fez esquecer de todas elas. O que rolou no castelo, Vincenzo? Por que eu vi vc com outra mulher, super feliz e não comigo?
- Era vc, Dess. Sempre foi vc com outros rostos. É assim que deve ser. Não faço as regras. Sua alma é sempre a mesma. Seu rosto e corpo mudam, mas o meu amor sempre foi seu. - Um beijo caloroso em seus lábios e, arfando, suplico.
- Se me ama tanto, não volte ao ringue profissionalmente. Liam disse algo sobre suicídio. Eu não quero que morra, amor. Eu não vou conseguir sem vc.
- Não vou morrer. Prometo.
- Qual foi o diagnóstico, Vincenzo? -  Surpreendido por minha pergunta sem rodeios, ele tenta se levantar. - Fica! - Ordeno ainda sentada em seu colo. - Me diz qual foi o diagnóstico! Seja lá o que o médico tenha dito, nós dois vamos vencer isso juntos! - Desanimado, ele se joga de volta à poltrona, recostando a cabeça no encosto. Mantendo os olhos fechados, ele permanece calado. - Vincenzo! - Insisto. - Sabe que posso invadir suas lembranças e...
- 'Encefalopatia Traumática Crônica'. - Arquejo, horrorizada. Um sorriso triste e ele argumenta. - O nome é mais feio do que a doença, Dess. Fica calma. Já ouviu falar na 'Síndrome do Pugilista'?
- Sim. Meu Deus...sim. - Levando as mãos ao rosto, retruco. - Um de meus clientes já teve isso, Vincenzo. É terrível, amor! Ele perdeu os movimentos...
- Dess...- Com a voz embargando, prometo.
- Eu não vou chorar. Eu sou forte. Vc também. Somos uma família forte. Vamos vencer. Vc vai se curar.
- Não há cura. A 'Demência do Pugilista' ou 'ETC' não tem cura.
- Tem que ter! Tudo tem cura nos dias de hoje! A Medicina avançou muito! Eu não vou permitir...! - Abraçando-me, ele me pede com ternura.
- Dess, se acalma. Eu estou no primeiro estágio. Só dores de cabeça e alguns tremores. Só isso.
- Só isso??? Vc acha pouco??? - Salto de seu colo e, entre colérica e desesperada, pergunto. - E vc ainda que continuar a lutar??? Quer aguardar pela lentidão, rigidez muscular, alterações na fala, falta de coordenação, agressividade, depressão e paranoia???
- Alguém andou estudando...
- NÃO RIA!
- Não grite, Dess.
- NÃO LUTE!
- Eu preciso. As contas não param de chegar.
- EU DOU UM JEITO!
- Eu darei um jeito, Dess.
- NÃO! 
- Vai acordar nosso filho. - Prestes a surtar, berro.
- NÃO ME IMPORTO! EU NÃO VOU PERMITIR QUE VOLTE A LUTAR! - Contendo-me com seus braços fortes, ele sussurra.
- Fique calma, amor. Por favor. Nossos filhos precisam de vc.
- De vc também, Vincenzo! Acorda! Se lutar novamente, vai piorar! Eu não quero que o homem que eu amo não consiga andar, comer, sorrir! Eu amo seus sorrisos, Vincenzo! Eu os amo! Não me deixa sem eles, por favor! Não luta! - De joelhos, aos prantos, suplico. - Não volte a lutar profissionalmente, amor. Se tem algum amor por mim, não luta. - Suas mãos trêmulas me erguem do chão. Seus olhos lívidos me encaram ao declarar.
- Não vou lutar. Prometo. 
- Promete?
- Prometo. E, por favor, nunca mais duvide de meu amor por vc. Eu fiz e faria tudo de novo por vc. - Recostando meu rosto em seu ombro, murmuro.
- Vc perdeu tudo, Vincenzo. Tudo. Vc perdeu seus bens, sua saúde, suas asas e sua imortalidade por mim. Isso não é justo. Liam concorda comigo. Quem faria isso a um filho? Que tipo de pai é o seu? 
- O Meu Pai é justo. Não foi Ele quem me fez perder tudo. Fui eu. Existem leis em nosso universo e eu infringi uma delas. 
- E o seu Deus te pune com uma doença incurável justamente agora que é mortal???
- O nosso Deus...- Corrige-me ele, compassivo. - Nada tem a ver com isso. Assim como Ele permitiu que Lúcifer iniciasse sua revolução por invejar O Cristo, Ele permite que eu seja punido por respeitar nosso livre arbítrio. Assim que Ele quiser me livrar desse sofrimento, Ele vai me livrar. Creia n'Ele, Dess. Ele permitiu que eu te encontrasse e te amasse. Ele me deu uma família e uma companheira que, em tempo algum, me deixou sozinho. Tenta entender...
- Nunca. - Rosno ao me afastar dele. - Eu nunca vou aceitar um Deus que deixa tanta coisa ruim acontecer na Terra. Eu nunca vou perdoar o seu Deus por tirar vc de mim.
- Ainda estou aqui, amor. - Expressando profundo abatimento, ele me pede. - Não se revolte contra Ele, por favor. Não tenta compreender o 'Incompreensível'. Nem mesmo eu, um anjo, conheço os desígnios de Meu Pai. Eu jamais O vi pessoalmente. Ele é Tudo e está em Tudo. Está em mim, em vc e em nosso filho que dorme, tranquilo, por ter vc como mãe. Dess, sua descrença me enfraquece...- Abraçando-o com força, peço-lhe perdão.
- Não sei o que fazer ou no que pensar. A única coisa que sei é que nem mesmo o seu Deus vai te tirar de mim.
- Dess...- Repreende-me ele beijando minha nuca. - Não blasfeme. Ele está ouvindo.
- Que ouça! Daqui, Ele não te leva! Afinal, de que me serve ser uma bruxa queimada viva em uma fogueira se não puder salvar meu homem!?
- Como sabe...!?
- Lembranças, amor. Lembranças. Cadê sua mãe!? Quero conhecer essa mulher! Talvez, ela possa te curar!
- Esquece isso, Dess.
- Vincenzo, me faz um favor?
- Qual?
- Cala a boca e me abraça.

Ouvir sua gargalhada me acalma...


- Feijão, arroz, bife e batata frita de novo!?
- De novo não. Novamente. - Resmungo sentando-me à mesa. De olhos fixos em Antoine, notando a apatia de Vincenzo, advirto-a. - Tem gente que não tem sequer feijão pra comer, filha. Coma e não fale mais nada.
- Dess, ela não fez por mal. É uma criança.
- E vc é outra. - Rosno. - Quando vc vai começar a agir como um pai e educar sua filha?
- Vc educa de um jeito. Eu, de outro.
- Vc não educa, Vincenzo. Vc acaricia, brinca, ri enquanto eu faço a parte da megera.
- O que vc tem hoje, amor?
- Nada. - Respondo de boca cheia. - Só tô esgotada. 
- Matteo está bem?
- Aaaah! Sim! Ele está ótimo! Mama o tempo todo. Acorda de madrugada todos os dias. Está sempre limpo e cheiroso. Então, volta a dormir e, quando eu tento fazer algo por mim, ele volta a chorar. Eu não posso nem escovar os dentes sem ouvir seu choro porque ele sempre quer alguma coisa e eu tenho que estar sempre disponível cem por cento do meu dia! Por que todos perguntam pelo bebê e nunca pela mãe!? Alguém quer saber como eu estou!?
- Eu perguntei, Dess. - Arrependida, eu me calo e engulo o pedaço de carne grudado em minha garganta. Um silêncio constrangedor e, largando meus talheres sobre a mesa, levo as mãos ao rosto e escondo meu choro. - Desculpa. Não sei o que deu em mim.

- Desculpa, mãe. - Beija-me Antoine na bochecha. - Tá uma delícia essa comida. 
- Perdão, filha. - Peço entre soluços. - Eu não quis brigar com vc.
- Não brigou não. - Seu sorriso me deixa ainda mais culpada. - Por mim, eu posso comer isso todos os dias. - Uma garfada no bife fatiado e ela comenta. - Está simplesmente esplêndido. Não é, papai?
- Está sim, filha. - Um olhar benevolente e Vincenzo abre um de seus sorrisos sem os quais eu não posso viver. - Vou tentar te ajudar mais, Dess. Eu tenho ficado muito tempo na academia e...
- Não precisa. Eu cuido de tudo por aqui. 
- Por que não me acorda de madrugada?
- Porque seu sono é pesado.
- Seu remédio, pai. Ele te dá muito sono.
- Antoine! Volte a comer!
- Mas mãe...
- Ela disse a verdade, Dess. Esse remédio me deixa inútil. Não é justo que vc se esforce tanto se eu posso te ajudar.
- Ajudar como, Vincenzo??? Sua cabeça explode de tanta dor se vc não dormir e vc só dorme com o auxílio desse remédio!!!
- Resumindo: eu sou um pai inútil.
- Não quis dizer isso. - Rosno. - Me deixem quieta. Eu preciso comer antes...

Ouvindo o choro de Matteo, revoltada, ergo-me da cadeira.

- Eu pego ele, Dess. - Diz Vincenzo impedindo-me de caminhar pelo corredor. - Termine o seu jantar.
- Não! Vc não sabe lidar com ele! - Magoado, ele refuta num tom baixo.
- Eu sou o pai e ainda estou vivo. Ainda me movo e não estou paranoico.
- Eu não disse isso.
- Mas pensou. - Caminhando à minha frente, ele ordena. - Volte à mesa e coma.
- Não...
- Agora! - Recuo, assustada com seu grito. Antoine me puxa pela mão ao cochichar.
- Não deixa ele nervoso, mamãe. Faz a cabeça dele doer mais ainda.

De volta à mesa, enxugo minhas lágrimas com o guardanapo de pano enquanto Vincenzo sorri para Matteo em seu colo. Sentando-se à mesa, ele anuncia.
- De hoje em diante, vc vai deixar sua mãe descansar um pouco mais, garotão. Seu pai aqui, vai cuidar de vc.

Sem me compreender, volto a chorar, encolhendo-me na cadeira. Antoine me abraça e diz que vai passar. Vincenzo concorda, com Matteo em seu colo. Sorrindo para mim, meu filho parece confirmar que nossos dias, daqui por diante, serão tranquilos.

Mas não foram.

Sou forte ao lidar com a doença de Vincenzo e seus cuidados. Vincenzo me dispensara do trabalho na academia, o que me deixou ainda mais solitária. Matteo e eu guardamos um segredo sujo que varro para debaixo do tapete todas as noites antes de Vincenzo chegar a casa e me abraçar com ternura. Não há vestígios de desejo em seu abraço. Ressentida, afasto-me dele e de Matteo que ri em seu colo como se não houvesse chorado o dia inteiro ao meu lado. Por mais que eu lhe dê o que há de melhor em mim, meu filho parece me odiar. Gostaria de confessar alguns segredos a Vincenzo, mas, ele não me compreenderia. Nem eu me entendo. Como explicar ao pai de um filho perfeito, lindo e fofo que sua mãe tem ímpetos de machucá-lo em seu berço? Bebês choram. Disso eu sei, mas meu cérebro - ou seja lá o que for - não tem aceitado isso como verdade. Sozinha com Matteo, recuo e imploro ao 'Crucificado', pregado acima do berço, que me ajude a não ceder à vontade de beliscar a pele fina e delicada do ser que mais amo no mundo. Talvez, eu esteja ficando louca e não posso contar nada a ninguém. Nem mesmo a Doc que nos visita na noite de hoje. O que ele diria? 
"Filha! Machucar meu afilhado!? Que diabos vc tem na cabeça!?"
- Adessa, meu anjo, vc me parece muito cansada. Matteo tem dado trabalho?
- Não, Doc. Nenhum. - Minto. - Eu não tenho dormido muito bem. É só isso.
- Sabe que pode contar comigo, né?
- Sei sim, Doc. - Mas vc jamais aceitaria o fato de eu querer machucar meu filho ainda que o ame profundamente. Como eu posso pedir por socorro, Doc!? Eu quero gritar por socorro! Não sei mais quem eu sou! - Pra mim!? Tem certeza que é pra mim, Doc!?
- Filha...- Um choro súbito e compulsivo e agarro-me ao presente embrulhado com papel florido como quem se agarra a um bote salva-vidas. - Adessa, não é nada de mais. É uma lembrança, filha.
- Ela tem estado assim, Doc. Muito emotiva. - Considera Vincenzo, compadecido, embalando Matteo em seu colo. - Devem ser os hormônios. - Condoído, Doc concorda.
- Devem ser os hormônios.
Como criança em dia de Natal, rasgo o papel dourado e, exultante, comemoro.
- É pra mim! É um presente pra mim! Só pra mim!
- Dess...
- Uma caixa de sabonetes, Vincenzo! Sabonetes para adultos! Só pra mim!
- Que bom. - Diz ele, sem convicção. - Doc os comprou pensando em vc.
- SIM! - Assinto, eufórica. - Enfim, alguém se lembrou de que sou alguém além do meu filho e não a sua continuação! Eu ainda sou Adessa, mãe de Antoine e esposa de Vincenzo! Não sou somente a mãe de Matteo! - Rindo histericamente, eu me isolo no quarto de nosso filho até que Doc, entristecido, vá embora. Inspirando o aroma dos sabonetes, comento assim que Vincenzo entra no quarto e, cuidadosamente, senta-se no tapete. - São tão cheirosos...
- Dess, quer conversar comigo? Além de seu marido, sou seu amigo, seu confidente. Lembra? 
- Do que tá falando? Não me olha como se eu fosse louca! - Com cautela, ele se aproxima de mim e me separa da caixa de sabonetes. Delicadamente, ele me faz sentar na cadeira de amamentação. Preocupada, indago. - Com quem deixou nosso filho???
- Antoine está com ele na sala, amor. Nosso filho dorme no carrinho, extremamente seguro. - Sentando-se em um banquinho de madeira, diante de mim, ele acaricia meu rosto. Seus dedos penteiam meus cabelos em desalinho ao afirmar. - Precisamos conversar sobre um assunto sério, amor.
- Qual? - Pergunto ainda apreciando o aroma dos sabonetes em minhas mãos. - É o primeiro presente que ganho depois do nascimento do nosso filho. Tudo é sempre pra ele...
- E vc acha isso injusto?
- Não. Eu o amo muito. Os presentes devem ser dele. Mas...
- Mas...? - Voltando a chorar, confesso.
- Eu sou um monstro, Vincenzo. Um monstro.
- Como assim? Me conta tudo, amor. Somos amigos e companheiros. Vc se lembra disso?
- Sim. Eu tenho tido desejos terríveis quando vc não tá aqui comigo. 
- Que tipo de desejo, Dess?
- Não posso falar.
- Pode sim. Eu nunca te julgaria. Sou um anjo caído e cheio de pecados. Com quem mais vc poderia se confessar além de mim? - Próximos demais, invado seu olhar manso ao ouvir o que eu mesma jamais falara em voz alta.
- Tenho vontade de machucar nosso filho, Vincenzo. Estou doente ou possuída por algum demônio. Talvez, eu seja um demônio. Nosso filho é um anjo. Quase nunca chora. Quase nunca me dá trabalho, mas, quando ele chora ou quando está acordado em seu berço, a vontade de beliscar seus bracinhos ou de xingá-lo vem até a minha mente exausta. Imediatamente, eu me arrependo e o encho de carinho e cuidados. Peço ao seu Deus que me ajude porque estou absolutamente sozinha.
- Entendo. Continue.
- Vc acha que eu tô louca, amor? Vc vai tirar o meu filho de mim?
- Nunca. - Diz ele, aliviando minha dor. - Vc é a melhor mãe que conheço. Vc se doa a ele por completo, Dess. Eu não poderia ter escolhido uma mãe melhor para nossos filhos.
- E o que é isso que eu sinto? Essa coisa ruim que me queima por dentro?
- Pelo pouco que estudei em Psiquiatria, parece-me com depressão.
- Não. Eu não tenho depressão. Eu não fico na cama como ficava antes. Eu não penso em morrer, Vincenzo. Eu penso em calar nosso filho. Eu sei que tenho que me levantar e cuidar de Antoine e de Matteo e de nossa casa e...
- 'Depressão Pós-Parto', Dess. Isso é mais comum do que se imagina. É algo natural, embora não seja normal. 
- Vc me odeia? - Fazendo-me sentar em seu colo, ele me pergunta.
- Como eu posso te odiar, Dess? Vc está tendo problemas com seus hormônios. Não é maldade. É um transtorno. Um subtipo de depressão maior. Eu te amo por ser tão forte a ponto de se controlar e não machucar nosso filho.
- Se eu não tiver ajuda, eu não sei se vou conseguir por muito tempo, amor. Eu tenho medo de ficar sozinha com ele. Me ajuda.
- Eu vou te ajudar.
- Não. - Choro em seu ombro. - Não é justo. Vc tá doente. Sou eu quem tenho que te ajudar. 
- Eu te ajudo e vc me ajuda. Que tal? - Mergulhando em seus olhos tristes, concordo. - Como vc pode ser tão bom comigo? Agora eu tenho certeza de que vc é um anjo.
- Já não sou mais, amor. - Refuta ele, num desânimo. - Se ainda fosse, eu poderia te curar somente com as minhas mãos. Vc ainda me ama?
- Mais do que nunca. - Sussurro agarrada ao seu pescoço. Recostando minha testa à dele, prossigo. - Eu não me apaixonei por vc por ser um anjo. Eu não sofri por vc por ser um anjo. Eu sempre quis o homem e não o anjo. Eu desejo o homem que já me desejou com ardor e que, talvez, agora, já não me queira mais. Estou magra, pálida, descabelada, descuidada, feia, fedendo a leite, irritante...
- Para de falar de merda, Dess. - Ordena-me ele contra meus lábios. - Eu te quero mais do que nunca. Eu sinto a sua falta.
- Por que não me procura mais? Sinto a sua também. - Um beijo súbito e demorado me surpreende. Suas mãos firmes em minhas costas me puxam para si. Nossos corpos se unem enquanto tento respirar. Aos risos, ele afasta sua boca da minha e diz.
- Respira.
- Não quero. Quero morrer de tanto te beijar, amor. Quer me...?
Lendo meus pensamentos, ele se ergue da cadeira e, levando-me em seu colo até o nosso quarto, joga-me contra a nossa cama, de olho na sala onde Antoine ri diante da TV ao lado de seu irmãozinho. - O que pretende fazer? - Um olhar lascivo e, retirando sua roupa com extrema rapidez, ele pergunta.
- Preciso dizer? 
- Eu tô feia. - Retirando minha camisola, ele ronrona em meu ouvido.
- Adessa Rossi, mesmo que vc se esforce, vc nunca vai conseguir ser feia. Agora cala a boca e não pensa porque eu vou te foder com força.



Meu corpo sacoleja sobre o colchão enquanto ele me invade. Sorrindo, cravando minhas mãos nos ferros da cabeceira, procuro por sua boca. Correspondendo ao meu beijo, ele sussurra.
- Te amo.
- Pra sempre?
- Sempre, idiota.
- Antoine vai ouvir...
- Não me atrapalha. Preciso de concentração.
- Matteo vai chorar. 
- Dess, cala a...- Um gemido e ele goza dentro de mim. Incrédula, indago.
- Acabou?
- Desculpa. - Pede-me ele, rindo de si mesmo. - Essa teve que ser rapidinha. Da próxima, eu capricho. Hoje à noite eu não vou tomar o remédio. 
- Não? - Sentando-me na cama, sorrio, maliciosamente. Rindo do meu sorriso, ele aponta seu indicador a mim ao avisar. - É bom estar descansada porque o 'bicho vai pegar'. - Solto uma gargalhada espontânea e me espanto ao ouvir seu som. Faz tempo que não ouço o som do meu riso. Faz tempo que não me sinto viva. Ajoelhando-se ao lado da cama, ele promete. - Eu vou cuidar de vc, amor. Aguenta firme. Vc é forte. Vamos superar tudo isso juntos.
- Vamos. - Confirmo num abraço forte e demorado. - Vc cuida de mim e eu de vc.
- Sim. E nós dois cuidaremos das crianças. Ok?
- Ok. - Respondo sem convicção. - Vamos precisar de um milagre, Vincenzo.
- Ele vai chegar. Eu creio. Vou tomar um banho e voltar ao trabalho.
- Posso tomar com vc? - Um sorriso cafajeste e ele comenta.
- Como diria Antoine...
- Safada! 
Antes de entrarmos no box minúsculo, assusto-me com o toque insistente da campainha. Vincenzo ri de mim ao me beijar e, vestindo rapidamente, sua calça jeans, caminha até a sala. Cobrindo-me com sua camisa, eu o sigo. Antoine, afobada, corre até a porta e a abre, de imediato. Corro até Matteo e o seguro em meus braços antes de repreendê-la por me desobedecer.
- Eu já te pedi pra não abrir a porta sem saber quem está do outro lado!
- Mas eu sabia! - Exulta ela olhando fixamente para o corredor do lado de fora do apartamento. Assustada, dou um passo adiante. Atordoada, eu recuo ainda que seu sorriso sereno me acalme. Antoine volta a me assustar ao saltar em seu colo e gritar.
- Vovó!!!
- Vovó??? - Vincenzo me ampara abraçando-me por trás. Sorrindo, ele sussurra.
- Nosso milagre chegou.


Celeste trouxera alegria à nossa casa. Vincenzo parece ter se esquecido das dores constantes na cabeça com a presença de sua mãe e de seus carinhos meio que excessivos. Eu sei. Eu sei.  Parece coisa de mãe depressiva com ciúmes da sogra linda, cheirosa e sempre sorridente, mas não é. Se eu não confiasse em meu marido a ponto de me jogar em uma fogueira ardente por ele, poderia chegar a pensar que ela possui mais do que um amor maternal por Vincenzo que parece ter lido meus pensamentos. Ele sempre fica pertinho de mim quando ela nos visita, o que ocorre quase que todos os dias. 
- Não posso morar aqui. Seria inconveniente de minha parte. - Concordo mentalmente sem me arriscar a olhar para Vincenzo diante de mim, à mesa de jantar. Um jantar preparado por ela em minha cozinha. Agarrada ao meu filho, observo Antoine se entusiasmar com as dezenas de presentes que ganha de sua avó. Presentes caros, distantes de nosso mundo. - Vc não concorda, querida?
- Eu?
- Vc, Dess. Ela te fez uma pergunta.
- Qual? 
- Não seria melhor deixar meu netinho dormir em seu berço enquanto jantamos tranquilos? Ele dorme como um anjinho!
- Não. - Rosno como um cão raivoso. - Prefiro ele aqui, perto de mim. - Algo em seu olhar me assombra. Um sorriso e ela comenta. 
- Mães são sempre assim. Possessivas. Então, os filhos crescem e alçam voo.
- Vc não é a mãe de Vincenzo. - Um erguer de sobrancelhas e ela refuta.
- Sou sim! Sempre estivemos juntos em nossas jornadas! 
- Vc o pariu?
- Dess!
- Não, mas...
- Vc o amamentou!?
- Para, Dess!
- Então não é mãe dele. - Um sorriso forçado e ela refuta.
- Existem várias maneiras de ser mãe. Antoine não saiu de vc e é tão filha sua quanto Matteo. Estou errada? - Envergonhada, rumino um 'não'- Pousando sua mão sobre a de Vincenzo, ela confidencia. - Sempre sorrimos e choramos juntos, não é mesmo?
- Sim. - Responde Vincenzo meio que incomodado. Não sei se por ouvir meus pensamentos conflitantes ou por sentir o mesmo que eu em relação à sua suposta mãe. - Sempre pude contar com a sua ajuda, Suriel.
- Continue a contar com ela. Estou aqui para ajudar. - Catando ervilhas no prato  com o garfo, cantarolo.
- Suriel. Cassiel. Miguel.
- Pastel, papel. - Complementa Antoine provocando, em mim, uma crise de riso incontrolável. Matteo acorda com meus risos. Vincenzo lança-me um olhar indecifrável ao tirar meu filho do meu colo, contra a minha vontade. - Deixa ele aqui, papai. Ele tá rindo.
- Peça desculpas à sua avó, filha.
- Por quê??? - Indago, aos risos. - Ela não a ofendeu!!! Foi só uma brincadeira!!! Uma rima inocente!!!
- Não é vc que me pede para educar nossa filha?
- Quando ela faz algo de errado, Vincenzo! Ela brincou com os nomes de vcs! Qual o problema!? É tão ofensivo assim!? 
- Não...- Diz ele levando a mão à cabeça.
- Tá com dor, amor? - Ignorando minha pergunta, de olhos fechados, ele pede desculpas a Antoine. Resgato Matteo de seus braços e, resmungando, sigo até seu quarto e o tranco por dentro. Sentada na cadeira de balanço, amamento Matteo, aos prantos. 
- Deixa eu entrar. - Pede-me Vincenzo com suavidade. - Eu preciso falar com vc, Dess.
- Outra hora! - Grito em resposta. - Me deixa quieta aqui! Terminem de jantar! Depois, eu lavo os pratos!
- Dess...- Implora ele contra a madeira da porta. - Me deixa entrar. - Ergo-me pronta a abrir a porta assim que ouço a voz de sua mãe sussurrar.
- Deixe ela quieta, filho. São os hormônios. Já passamos por isso antes. Lembra? Parece que tudo se repete.
- Sim. - Responde Vincenzo, tristonho. Os passos se distanciam da porta. De volta à cadeira, volto a chorar. Sozinhos, meu filho e eu, pergunto ao 'Crucificado' acima do berço.
- O que me diz? Devo ou não confiar nela? Pode responder ou vai ficar aí, calado, como sempre? Não quero enlouquecer. Me ajuda.

Vincenzo me convencera a aceitar a presença de Celeste em nossas vidas. Assim como eu, ele enxerga seus defeitos, mas, como um bom anjo, ele a ama por ter sido a mãe que ele nunca tivera.
- Ela cuidou de nossos filhos quando...- Pigarreando, ele disfarça seu nervosismo. Engolindo em seco, prossegue. - Quando, por motivos que não vêm ao caso, tivemos de nos ausentar.
- Que motivos, Vincenzo?
- Eu preciso dar aula, Dess. - Seu polegar aponta para o ringue ao alertar. - Tem alunos me esperando, amor. Depois a gente se fala.
- Não! - Com Matteo a tiracolo, ordeno. - Me diz agora! Quando ela cuidou de nossos filhos!? 
- Agora não. - Reclama ele. Com os olhos fixos nos meus, ele decide. - Em casa, a gente conversa. - Encostando a ponta do meu nariz ao dele, ameaço num rosnado.
- Vou te esperar, Vincenzo Rossi.
Rindo, ele beija Matteo em sua testinha e me dá um selinho. Subindo no ringue, lançando seu sorriso inocente, ele move os lábios e, em silêncio, diz.
- Te amo, doida.
Dou meia-volta e, com Matteo deitado em seu carrinho, passeio pela calçada da academia, seguindo em direção ao colégio público de Antoine. A algazarra na saída dos alunos me incomoda. Reviro os olhos ao perceber o jeito como algumas mães me observam. Sem a menor discrição, falam de mim, abertamente. Meu ranço se avoluma assim que vejo um grupo de alunos arruaceiros ao redor de minha filha. Eles a chamam de 'esquisita' enquanto puxam sua mochila. Quieta, ela mantem os olhos fixos no chão. Reativa, corro em sua direção. Deixando Matteo no carrinho com uma das professoras que se afeiçoara a mim e a Antoine, peço que cuide de meu filho. Resgato Antoine dentre os baderneiros e avanço sobre eles como uma leoa desgovernada. Descalça, diante do semáforo, literalmente, eu 'paro o trânsito' ao ameaçar, aos berros, os fedelhos que, apavorados, fogem de mim, tropeçando uns nos outros. Em posição de ataque, com o coração saltando pela garganta, sou tocada por Antoine que, sutilmente, entrega-me os chinelos.
- Valeu...- Calçando-os, lanço um olhar de ódio às mães e as advirto em voz alta, os cabelos desgrenhados. - Se isso acontecer novamente, a 'porrada vai estancar'! - O bando recua deixando-nos passar. Divirto-me ao assustá-las num grunhido. - Deu pra entender ou quer que eu desenhe!? Falem mal de mim, eu não me importo, mas não toquem em meus filhos! - Puxando-me pelo braço, Antoine me pede.
- Vem, mãe. Elas já entenderam.
- Seu irmão! - Volto ao refeitório do colégio onde o deixara com a professora que, confusa, diz ter permitido que sua avó o levasse para longe da confusão. - COMO ASSIM??? - Descontrolo-me levando as mãos à cabeça. O diretor tenta me conter. Eu o chuto na canela. Ouço seu grito de dor enquanto perco o controle e, com as mãos nos braços da professora, eu a sacudo ao berrar. - EU PEDI PRA VC TOMAR CONTA DELE, PORRA!
- Desculpa, Adessa. - Pede-me a professora, absolutamente desorientada. - Ela disse que era a mãe de Vincenzo...me pareceu uma boa pessoa...eu...- Arrastando Antoine comigo, caminho até a portaria. Furiosa, dou meia-volta e avanço sobre a professora de Antoine e a ameaço quase encostando minha testa à dela. 
- Se algo acontecer ao meu filho, eu te mato, vaca.

Antoine e eu corremos pela calçada do colégio à procura de Matteo. Movida pelo ódio, horror e culpa, grito por seu nome enquanto pedestres me observam, espantados. Antoine aperta minha mão antes de chegarmos à esquina próxima à academia de Vincenzo. Gritando, ela avisa.
- OLHA ELA LÁ, MÃE!
- VAGABUNDA! - Sem esperar pelo sinal vermelho, cruzo a faixa de pedestres. Carros buzinam, motoristas me xingam. Protegendo Antoine com meu corpo, nada vejo além de seus cabelos loiros e o tronco curvado sobre o carrinho do outro lado da calçada. Saltando sobre a mãe de Vincenzo, eu a empurro contra uma carrocinha de cachorro-quente. Apavorada, procuro por Matteo em seu carrinho. Seu sorriso me faz chorar. Ajoelhada na calçada, eu murmuro, aos prantos. - Graças a Deus vc tá bem, meu amor.
- Vc é louca!? 
- Não se preocupe. - Diz a voz doce e controlada de Celeste ao senhor que a socorreu. - Ela tem andado um pouco nervosa. Coisa de mãe.
- Abraçando meu filho, eu lhe dou as costas ao ordenar.
- Antoine! Põe sua mochila no carrinho e me segue!
- E a vovó, mãe!? - À distância, sem olhar para trás, berro.
- ESPERO QUE FIQUE BEM LONGE DA NOSSA CASA!


- Não quero falar com vc, Vincenzo! Me deixa em paz! Estou amamentando nosso filho!
- Eu notei. - De esguelha, eu o percebo andando de um lado ao outro do quarto. Percebo seu nervosismo e inquietação e receio em falar comigo. Estacando diante de mim, ele extravasa. - Dess! O que houve hoje!? Vc surtou!? Agrediu a minha mãe!?
- Não vou falar nada. - Sussurro, rancorosa. - Eu tô amamentando meu filho que foi sequestrado hoje. Mas, disso, vc não falou.
- Dess!
- SAI DO QUARTO! AGORA! - Grito encarando-o com ódio e mágoa. - NÃO ESTRAGA ESSE MOMENTO!
- Não grita. Nosso filho não merece...
- O quê!? Ter a mãe que tem!? A mãe louca que surta na rua!? É isso!? Olha aí! Ele tá chorando! Satisfeito!? Volta pra sua mãe e aceite sua versão dos fatos e nos deixe em paz! - Assim que Vincenzo sai do quarto, batendo a porta com força, meu coração se estraçalha. Quero pedir perdão. Quero pedir que ele me abrace e me conforte e entenda que estou com medo dessa mulher. Que tipo de mulher faz o que ela fez? Não faz sentido levar consigo meu filho sem o meu consentimento. Sem o meu conhecimento! Ele não enxerga que alguém normal não faria isso a uma mãe!? Principalmente sabendo que essa mãe está passando por sérios problemas emocionais!? - Shhh, amor. Shhh. - Beijo a testa de Matteo que voltara a mamar. Embalando-o na cadeira, cantarolo uma antiga canção. Exausta de tanto chorar, fecho os olhos. Minhas lágrimas molham o rostinho de meu filho. - Não vou deixar que tirem vc de mim. Não vou, filho. Não quero enlouquecer.
- Não vai. - Assustada, abro os olhos. Diante de mim, ela se senta e, pela primeira vez, expressando seriedade, ela me pede perdão. - Fui estúpida. Queria te ajudar com meu neto. Afastá-lo daquela gente hipócrita e acabei fazendo tudo errado, Adessa. Eu me deixei levar pela beleza das árvores no caminho e não te esperei na calçada. Fui extremamente estúpida, grosseira e egoísta. - Calada, eu continuo a ouvi-la sem desviar meus olhos dos seus. - Começamos mal, querida. Invadi sua casa, sua vida, sem mostrar o quanto eu gostaria de te ajudar a vencer essa fase ruim. Não posso dizer que já passei por isso. Posso afirmar que já a vi passar por isso. Fomos amigas, Adessa. 
- Quando?
- Em outras eras. Outras vidas onde vc amou Vincenzo e lutou por ele. Vcs sempre foram felizes e eu estive ao lado de vcs. Por favor, me perdoe. Me deixe tentar novamente. Eu fiz tudo errado dessa vez. - Equilibrada, ela impede uma lágrima de cair de seus lindos olhos. Ainda desconfiada, peço desculpas.
- Eu perdi a cabeça quando não vi meu filho...
- Eu faria o mesmo.
- Quero ver meu Vincenzo feliz. Ele precisa de paz pra se curar. - Voltando a chorar, concluo. - Sei que pode ajudar seu filho a se curar. 
- Talvez...
- Tudo o que eu mais desejo é que ele viva conosco por muitos anos ainda. Por favor, nos ajude. Fique com a gente. Sozinha, eu não vou conseguir. - Enxugando minhas lágrimas com sua echarpe de seda leve, ela sorri ao afirmar. 
- Juntas, vamos curar Vincenzo. Eu prometo. Confia em mim? - Erguendo-me, acomodo Matteo em seu berço. Antes de lhe responder, lanço um olhar ao 'Crucificado' à espera de alguma resposta. Pela primeira vez, ouço sua voz ressoar em minha cabeça confusa. Hesitante, questiono.
- Vc ama Vincenzo do fundo de seu coração? Seria capaz de qualquer coisa por ele?
- Sim. Qualquer coisa.
- Jura por seu Deus? - Ajeitando os cabelos, demonstrando um certo desconforto, ela sorri ao comentar.
- Não gosto de juramentos. Vc tem minha palavra. Farei de tudo para que ele viva bem com vcs. - Seguro em suas mãos frias e as aperto. 


Música. Tulipas. Trevos de quatro folhas. Letreiros luminosos na fachada de um bar. Antes de ler seu nome em neon, ela recolhe suas mãos e me propõe.

- Em nome de nosso amor por Vincenzo, quer ser minha amiga? - Um sorriso forçado e aceito.
- Claro. Por ele, eu faço tudo. - Num tom de voz sombrio, repito. - Por ele e por meus filhos, sou capaz de tudo. Tudo mesmo.

Tendo ganhado minha confiança, Celeste passa a viver em nossa casa. Há um pequeno quarto onde nós a hospedamos. Nossa convivência tem sido pacífica, ainda que minha intuição grite para que eu tenha cautela. 

'Com o quê?', pergunto a mim mesma sem respostas. Ela cuida de Antoine e de Matteo enquanto trabalho, meio período, na academia, organizando as finanças, documentos, recepcionando novos alunos que se afeiçoam a mim sem que eu entenda o porquê.
- Vc tem carisma, Adessa. - Diz João no intervalo entre uma aula e outra. Recostado à bancada da recepção, ele prossegue. - Vc atrai as pessoas e as encanta. Os jovens se sentem à vontade com vc, principalmente, as meninas. Vc fala como elas. Vc se veste como elas e é tão bonita quanto muitas que estão aqui.
- É impressão minha ou vc tá paquerando minha mulher!? 
- Viu!? - Observa João debochando de Vincenzo que surge num repente. - Quem hoje em dia diz: 'paquerar'. Esse cara é velho demais!
- Vc nem imagina o quanto. - Retruco, desviando meu olhar dos olhos compassivos de Vincenzo. Desde nossa última discussão, não fizemos as pazes. Ele tenta conversar comigo, mas eu me recuso a ouvi-lo. Ele não se cansa de exaltar Celeste, o que me irrita. Ele não percebe o esforço que faço em deixar meu filho com outra mulher e retirar, do fundo da minha alma, forças para me vestir, pentear os cabelos e usar esse sutiã bizarro por onde meu leite escapa deixando meus mamilos sempre úmidos??? - Muito velho.
- Vc costumava gostar desse velho aqui. - Sussurra-me ele. - Mudou de ideia? - Desconversando, aviso.
- João. Sua aluna chegou.
- Beleza. - Diz João desconfiado. Antes de partir, ele adverte. - Façam logo as pazes antes que o inimigo aproveite a brecha e 'pow'. Fui!



Deixando-nos a sós, arrumo as fichas de inscrições sobre o balcão enquanto Vincenzo me observa, calado.
- Não tem o que fazer?
- Pensei em levar minha esposa pra jantar fora, mas...- Mordendo o canto da boca, prendo um sorriso. - Vc é tão atraente que, talvez, eu mude de ideia.
- Melhor ir sozinho. - Sugiro. - Não saio com desconhecidos há anos e, não pretendo voltar a sair. - Passando pela catraca, escapo de sua mãos ágeis. Saltando sobre a catraca, ele me alcança antes da porta de saída onde me rouba um beijo cheio de paixão. Envergonhada, ouço os assobios dos alunos no interior da academia. Aos risos, ele agradece. Irritada, eu o empurro com a lateral de meu corpo e, já na calçada, reclamo, sentindo meu coração bater mais rápido do que o normal. - Isso foi patético! Se era atenção o que queria, por que não 'plantou bananeira'!? Teria sido menos humilhante! - Impedindo-me de caminhar até a calçada, ele se defende.
- Eu não queria atenção, Dess. Eu quero vc de volta à minha vida. Eu quero nossa vida. A vida que tínhamos antes...
- Da sua mãe chegar!? - Contrariado, ele admite.
- Sim. Antes dela. Antes da depressão pós-parto, antes da minha doença. Eu quero vc, amor, ao meu lado. Vamos jantar juntos?
- Não.
- Por que não!? As crianças estão com Celeste! Eu acabei de falar com Antoine e eles estão assistindo à TV!
- Não podemos gastar com bobagens.
- Acho que ainda posso pagar um jantar pra nós dois. - Um de seus sorrisos sedutores e eu me pego arfando. - Que tal, cachorro-quente na orla!? 
- Que orla, Vincenzo!? Estamos distantes do mar! - Cobrindo sua cabeça com um capacete, ele refuta com a voz abafada.
- Não pra quem tem uma moto super potente. - Recuando, resmungo.
- Não mesmo! Vc é louco sobre duas rodas! Eu tenho dois filhos...! - Puxando-me contra seu corpo, ele sussurra em meus lábios. 
- Onde está a mulher por quem me apaixonei? Aquela maluca que fugiu do 'California' e, de biquini, com meu casaco e um par de botas até os joelhos, montou na minha garoupa, sem destino?
- Morreu. - Suspiro. - Faz tanto tempo...- Um susto e ele me leva em seus braços até o estacionamento. Diante de sua moto, ele observa, acomodando, cuidadosamente, outro capacete em minha cabeça.
- Se ela morreu, serve vc mesmo. - Rindo de sua piada, deixo-me levar. Montada em sua garoupa, agarro-me em sua cintura, ouvindo o som de seu coração recostando meu ouvido em suas costas. Aspiro seu cheirinho de maçã verde. Exibindo-se, ele me faz gritar de pavor ao dirigir sinuosamente na autoestrada livre de carros. A brisa do mar penetra em minhas narinas. Encantada por ter meu marido de volta, abro um sorriso que ele não vê. - Quer comer agora ou prefere admirar as estrelas antes?
- Admirar as estrelas!?
- Burra! - Gargalhando, ele me puxa até a areia próxima ao mar. Um abraço forte e ele indaga. - Não sentiu minha falta? Sabe há quanto tempo a gente não faz amor!? - Fixando meus olhos nos dele, nego com a cabeça. - Há vinte oito dias, doze horas e dezessete minutos. 
- Vc contou, idiota?
- E vc não? Deixou de me desejar?
- Nunca. - Confesso ainda magoada. - Vc deixou de me amar?
- Eu vou te amar pra sempre, Dess. - Um outro beijo avassalador sob as estrelas e eu me rendo aos seus carinhos. Deitados sobre a areia, fazemos as pazes após o sexo longo e relaxante. - Uau...
- O quê? - De mãos dadas a ele, pergunto de olhos fixos no céu. - Já não sou mais a mesma. Vc deveria saber disso.
- É melhor, Dess. Vc é como vinho. Melhora com o tempo.
- Essa é velha. - Gargalho. - João tem razão. Vc tá ultrapassado. Alguém pode chegar...
- Ele tem razão em outra coisa também. - Um beijo em sua boca e pergunto.
- Em quê?
- O lance das brechas. A gente não pode mais ir dormir sem fazer as pazes, Dess. Vc sabe quem quer nos afastar.
- Além de Lúcifer!? Temos outra no páreo! - Erguendo o tronco, ele me encara ao refutar.
- Ela não faria isso. Faria?
- Vc é inocente, amor. - Ajoelhando-me diante dele, vestindo meu moletom, confesso. - Não confio nela. Perdão. Pode ter sido sua mãe em outras vidas, mas...
- Ela não foi minha mãe, Dess. Ela esteve comigo em momentos difíceis, mas não como minha mãe exatamente. 
- Ela pode vender o castelo?
- Não. Ele está em meu nome. Por que quer vender o castelo, Dess? Te falta alguma coisa?
- Sim. A tua saúde. É pra isso que eu quero que venda o castelo. Com a grana, a gente paga um bom tratamento e vc fica curado.
- Não tem cura, Dess... - Lamenta ele.
- Nunca mais repita isso!
- Mas...
- Foda-se a Ciência! Vc não acredita em milagres!?
- Sim, amor. Acredito.
- Então, cala a boca.
- Ok. - Observando as ondas, eu peço.
- Fale mais de Celeste.
- Vc não me pediu pra calar a boca?
- Fala, Vincenzo! - Rindo, ele me obedece ao vestir sua calça jeans.
- Ela foi uma grande amiga, mas, como todos nós, tem seus defeitos.
- Nós quem!? Os anjos!? Anjos têm defeitos!?
- Não antes da queda. - Vestindo sua camisa, ele lamenta. - Antes de 'cair', eu era um bom anjo. Sem defeitos. Sem pecados.
- Ainda é. - Afirmo enlaçando-o pelo pescoço. Colo meu rosto ao dele e concluo. - Vc é o melhor homem que conheço. O melhor anjo. O melhor pai, amor. Não importa o que tenha feito. Pra mim, o que se faz por amor, deve ser perdoado. - Seus olhos úmidos vislumbram o céu ao sussurrar.
- Espero que para Ele também...
- Ele já te perdoou, amor. Fica com a gente, por favor.
- Fico.
- Jura que não vai lutar profissionalmente?
- Juro.
- Não machuca meu coração, amor.
- Nunca.
Cheia de esperanças em um futuro melhor, fazemos amor novamente.

Inspiro profundamente, antes de abrir os olhos. Sorrio à sua procura. Exausta após uma noite inteira de prazer e amor, procuro por Vincenzo em nosso quarto. Visto uma de suas camisas e sigo até a sala onde chego a ouvir o final da conversa entre Celeste e Vincenzo ao celular.
- Não direi nada a ela. Fique tranquilo. Tente não se machucar muito, filho. Precisamos de vc, vivo. Eileen e eu. Boa luta!

"Não tente fazer isso, Celeste! Eu te proíbo!", grita Vincenzo do outro lado da linha. Desligando o celular, assim que me vê, Celeste sorri ao comentar.
- Uau! Parece que alguém aqui precisa de um bom café reforçado ao estilo irlandês!
- É...- Movendo meu pescoço, ouvindo os estalar dos ossos, concordo diante do olhar assustado de Antoine agarrada ao irmão. - Um tradicional 'Irish Breakfast' não seria má ideia...tia.



Continua...













CAPÍTULO 37 - IMPOTENTE

  Há dois dias, ela não se alimenta. Não fala. Não chora. Não reage de maneira alguma. Há dois dias, eu choro por ela. Por sua dor mal disfa...