'Dess - Uma História Interessante'

'Dess - Uma História Interessante'
AMO ESCREVER

CAPÍTULO 21 - MERGULHANDO NA ESCURIDÃO


 

Lágrimas escorrem dos meus olhos sem que eu tenha controle. A cada passo em sua direção, sinto meu coração se comprimir. Observo anjos pintados no teto abobadado. No altar, o Crucificado parece compreender meus anseios. Distraio-me com pequenos pontos de luz branca que escapam de Seu corpo pregado na cruz. Esbarro em um jovem com túnica preta e capuz na cabeça. Peço desculpas num tom muito baixo. Penso em Antoine. Eu a deixei sob os cuidados de Cassandra e Aiden que, estranhamente, não quisera me acompanhar. Talvez, se eu refletir um pouco mais, encontre a resposta.

Eu o vejo de onde estou. Levo a mão a um ponto abaixo dos seios, curvando meu tronco para frente. Emito um lamento de dor enquanto outros monges abrem espaço para que eu siga adiante. A capela está vazia. Excetuando um grupo composto por seis monges e eu, não há mais ninguém. Ele possuía poucos amigos. Bons e poucos amigos que oram por ele enquanto me recuso a prosseguir. Temo descobrir a verdade se eu o tocar.

 Mortos ainda contam histórias?

- Venha. - Diz um dos monges cedendo-me sua mão. - Eu te levo.

- Eu o conheço?

- Não. - Responde-me o homem com capuz e os olhos tristes. Inspiro profundamente e imagens de sua juventude invadem meus pensamentos. Sentado na relva, recostado a uma árvore frondosa, eles conversam, animados. Seus sorrisos são francos, joviais. Cheios de esperança, planejam o futuro. Risos, velas, abraços, dor, punições, autoflagelo, castigos, separação. - Vc está bem? 

- Sim. - Retorno ao meu corpo diante do dele. Inerte, ele não sorri para mim como sorrira na última vez em que o vira. Toco na madeira. Ajeito as flores. Minha visão embaça. Cerro os olhos. Seco o rosto com o dorso da mão. - Padre Pietro me contou. Vcs eram amigos. 

- Sim. - Confessa o homem. - Muito mais do que amigos. Ele me ensinou a ter fé e a perseverar, mesmo estando em pecado. Padre Pietro me mostrou o caminho a seguir. - Seguro sua mão trêmula. Percebo seu esforço em não chorar. Minha voz embarga quando lamento.

- Tem coisas que não podemos ter, né?

- Sim. - Admite ele, olhando-me com estranheza. - O que ele te contou?

- Nada. - Minto. - Disse ter um grande amigo por quem nutria um grande amor. Um amor que liberta. Ele libertou esse amigo e o viu partir. - Contenho o ímpeto de lhe perguntar sobre os motivos que o levaram a se afastar de seu grande amor. Àquela época, quando padre Pietro me confessara seu pecado, tivera uma visão em que o monge, diante de mim, havia se casado e tido um filho com sua esposa. Minha impulsividade me embaraça ao questionar, de súbito. - Por que voltou a ser padre? - Sem se importar com meu possível julgamento, ele responde fixando seus olhos na imagem de Cristo. 

- Perdi minha família em um acidente de carro. Desesperado, atentei contra minha própria vida sem êxito. Padre Pietro me encontrou e me fez enxergar que ainda havia motivos para viver. Retornei ao mosteiro e, livre de meus pecados e culpas, hoje, tento seguir o Mestre.

- Sinto muito. - Lamento.

- Não lamente. Deus sabe de todas as coisas. Sei que meu filho e esposa estão com o Criador. Padre Pietro também estará. Não havia coração como o dele. Imenso, bondoso e forte. Ainda não entendo como ele morreu de infarto fulminante. 

- Infarto!?

- Sim. Foi o que o médico legista alegou. 

- Havia algo em seu sangue!? Alguma substância suspeita!?

- Não sei. Havia adrenalina. Provavelmente, algum susto. Não sei...

- Susto!? Pode-se morrer de susto!? O que o teria assustado!? 

- Não faço ideia. Padre Pietro era corajoso. Destemido.

- Eu sei. - Confirmo, incrédula. - Ele me livrou de um demônio há algum tempo. Não era do tipo que se assusta.

- Não. - Um forte abraço e ele me sussurra. - A paz de Cristo.



Deixando-me a sós, cheia de incertezas, fixo meus olhos nos chumaços de algodão nas narinas de padre Pietro. Meu impulso de arrancá-los e permitir que meu amigo respire é contido pela música angelical. De onde vem? Parece vir do teto, mas não há alto-falantes em canto algum da pequena capela onde estivera há dias. 

- Me perdoa. - Confesso-me ao seu ouvido. Sua barba acinzentada precisa ser penteada. Retiro o véu que cobre seu rosto. Rosto frio como as mãos de Aiden. Havia vida em seu rosto da última vez que nos vimos. - De onde está, consegue me ouvir? Padre, me perdoa. - Cochicho curvada sobre o caixão. - Eu fui a culpada. Não deveria ter vindo aqui e conversado com o senhor. Tenho medo, padre. Não me deixa só. Eu fui a culpada por sua morte? 

- Não há culpados. A morte chega para todos. - Murmura a voz sem rosto. Uma olhadela e percebo que seu capuz reluz mais do que os demais. Sua túnica é mais longa e imponente. - Não se culpe por nada. Deus o chamou. Ele ouviu e partiu. Simples assim.

- Ele era meu amigo. Ele me ouviu sem me criticar ou culpar. - Retruco sem desviar os olhos de padre Pietro. Ainda espero que ele abra seus lindos e pacíficos olhos e me diga que estou sonhando...ou tendo um pesadelo. - Não faz sentido. Morrer de susto?

- Quem vai saber o que ele viu, não é mesmo? - Incomodada com o tom sarcástico de sua voz aguda e seu risinho inconveniente, repreendo o homem sem rosto.

- Não fale assim dele.

- Perdão. - Diz ele ajeitando o capuz com seus dedos finos e longos. - Não foi minha intenção te irritar.

- Vc o conhece? De onde?

- Aaah, meu bem. Faz tempo.

- Eu te conheço? Por que não me deixa ver seu rosto?

- Já te disseram que vc é chata? Vele o corpo do homem e fique calada.

- Olha pra mim. - Ordeno, entre irritada e assustada. - Eu sinto que te conheço.

- Shhh! Fale baixo! Tem gente rezando!

- Por que não me olha!? - Abrindo um lento sorriso, seus lábios finos e delicados se movem ao pronunciar uma pergunta.

- Por que não o toca? Talvez me reconheça. - Um violento e súbito arrepio percorre minha coluna vertebral antes de ouvir suas últimas palavras. - Talvez entenda o que desejo e o poder que possuo. Talvez, enfim, compreenda que aquele que te ama não é o que vc pensa ser e aquele por quem é apaixonada pertence a mim. - Recuando de cabeça baixa, ele me amedronta. - Dê lembranças a Antoine. Sou apaixonado por aquela doce criança.

- Maldito...- Rosno antes de me virar em sua direção e encarar os olhos surpresos dos monges ao meu redor. - Vcs não o viram!? - Baixando as cabeças cobertas, eles se mantém calados. Voltando meu olhar assustado ao corpo inerte, sussurro. - Lúcifer pode entrar em igrejas, padre Pietro? Eu preciso de sua ajuda. Estou só.

- Não está. 

- Não me toque. - Imploro de olhos fechados. Angustiada, ameaço. - Se tocar em minha filha, eu te mato.

- Dess...- Diz ele com ternura. Removendo o capuz, ele me sorri com profunda tristeza. Ao meu lado, ele ajeita a barba de seu amigo. Com meu polegar, enxugo as lágrimas em seu rosto. Abatido, ele balbucia.  - Eu estou aqui. Por que tem medo?

- Vc não o viu!? 

- Quem? - Lembrando-me das últimas palavras de padre Pietro e da patética e covarde perseguição de Lúcifer, desisto. Não desejo que ele se entregue ao Mal por minha causa ou por Antoine. - Dess? 

- Oi...

- No que está pensando? 

- Em nada...- Esfrego meu rosto úmido com as mãos e, afastando-me dele, minto.

- Nada. Eu eu não tô bem. Só isso. Sinto muito, Vincenzo. Sei o quanto eram amigos.

- Ainda somos. - Replica ele, num desânimo, acariciando a testa pálida do amigo. - Ele só estará em outro plano. - Reprimindo a imensa vontade em abraçar e consolar o homem que ainda amo, eu me afasto. - Não vai. Fica.

- Não posso. Antoine pediu pra eu voltar logo.

- Ela está bem. Eu não. - Contenho meu impulso em pular em seu pescoço e beijar suas bochechas. Ele precisa de mim? É isso? - Por que até agora não tocou no rosto dele?

- Medo.

- De ver algo?

- Sim.

- Desconfia de alguma coisa?

- Não. - Minto. - Só não quero ver. Ao contrário do que muitos pensam, não há nada de interessante em ver os últimos momentos de vida de alguém que se ama.

- Imagino que não, meu anjo...

- Não sorria assim pra mim. - Imploro. - Sabe que consegue qualquer coisa de mim quando sorri assim.

- Eu sei...

- Ele me espera.

- Aiden?

- Sim. Ele não quis vir.

- Por quê?

- Não sei. Dor de cabeça.

- Não lhe parece estranho que ele não entre em igrejas?

- É a primeira vez que isso acontece, Vincenzo. - Contrariado, ele refuta.

- Não. Ele se negou a se casar com vc em uma igreja. Vc se esqueceu?

- Como soube disso? - Revirando os olhos, ele bufa. - Ok. - Resmungo. - Não precisa dizer. Vc e Antoine continuam...

- Dess...

- Preciso ir.

- Toque nele.

- Não! Não me peça isso! Eu não quero ver! Não posso! - Empurrando-me com seu corpo, sou guiada até um dos cantos da capela onde ele me pressiona contra a parede. Seus olhos insanos se fixam nos meus ao suplicar baixinho.

- Eu preciso saber como foi. Ele não estava só, Dess. Eu o ouvi. Ele me chamou e eu o ouvi. Ele me pediu ajuda e eu não estava aqui para ajudá-lo. - Arquejo, arrepiada. Desvio o olhar intrigado às velas bruxuleando no altar. Raios de sol penetram pelas fendas do teto iluminando o corpo em seu caixão de madeira simples. Arrependido, Vincenzo se afasta de mim e me pede perdão. - Eu não deveria te pedir isso. Sei que é terrível. Eu vou descobrir.

- Ele morreu de infarto fulminante! O que há pra ser descoberto!? - Fingindo ignorância, eu o irrito. - Não me olha assim!

- Dess, vc não é boba. Sabe o que tá rolando aqui. Sabe que tem algo de errado com o desaparecimento de Mimi...- Surpreendida, sufoco um soluço. Temendo ter dito mais do que deveria, ele me questiona. - Vc não sabia? - Com a voz trêmula, respondo.

- Mimi foi encontrada no lago, nadando...viva.

- Não, Dess. Não foi.

- Eu fui até a casa de Sweet! - Refuto, aterrorizada. - Ela não me disse nada!

- Ela não está bem, Dess. Ela não vê a filha há dias. Enquanto vcs viajavam, nós dois a procuramos incessantemente. - Uma pontada de ciúmes e volto a refutar.

- Eu estava lá quando ela surtou, anteontem. Vc não.

- E viu a Mimi!? - Desorientada, respondo.

- Não. Não vi. Mas...

- Ela não falaria nada, Dess. Ela já não estava bem antes de seu casamento. Depois, só piorou.

- Como sabe disso tudo? - Rosno. - Passaram muito tempo juntos?

- Ciúmes agora, Dess!? - Critica-me ele. - Não é o melhor momento!

- Não é mesmo! Vou pra casa! - Segurando-me pelo braço, ele me pede num desespero.

- Espera! Eu não sei o que fazer! - Diante do olhar de reprovação dos monges, caminho até a porta da capela e, de lá, recomendo.

- Vá atrás dela e veja como tá indo a gestação de seu filho! Parabéns e cuidado! Agora vc já pode ser morto! Ah! E leve flores!

- Para! - Ordena-me Vincenzo, ensandecido ao retirar a chave da ignição de meu carro. Recostando minha testa ao volante, solto o ar dos pulmões pela boca e o ouço, calada. - Do que tá falando!? Gravidez!? Sweet tá grávida!?

- Aaaah! Me poupa! - Resmungo. - É isso o que acontece quando um homem e uma mulher transam sem camisinha

- Eu nunca estive com ela, Dess! Vc sabe! Vc viu!

- Eu não vi porra nenhuma! - Exalto-me tentando tomar de volta a minha chave de sua mão. Ele sorri de minhas tentativas frustradas. Eu sorrio diante de seu sorriso cativante. Enrolo meus cabelos em um coque no topo da cabeça e, um pouco menos descontrolada, peço. - Me dá a chave. Eu preciso ir. - Enfiando sua cabeça pela janela do carro, ele refuta.

- Não precisa não. Antoine está bem com Cassandra, embora elas tenham horror àquela casa. Por que não se mudaram ainda?



- Porra! Tu sabe mais da minha vida do que eu! - Ele me devolve a chave. Eu a pego com uma das mãos. Ele envolve minha mão com a dele. Apertando-a, ele me alivia. 

- Não tem a menor chance do filho de Sweet ser meu, Dess. Eu juro. O que quis dizer que agora posso morrer?

- Ué! Tu me contou! Não lembra!?

- Vc se lembra? - Pergunta-me ele, desconfiado. - Como?

- Sei lá. Tem coisas das quais me lembro. Outras, não. Tu me disse que se tivesse um filho com uma mulher, perderia a imortalidade. Isso se eu acreditar na história de vc ser um anjo...

- Não vou perder. Não ainda. Não antes de ter um filho seu.

- Para...- Ruborizo, encabulada. - Não prometa o que não pode cumprir.

- Não é promessa. É um fato. O tempo vai te mostrar. Vamos ficar juntos. - Afirma ele enchendo-me de esperanças. Num repente, ele muda de conversa. - Agora, temos vários problemas. 

- Temos!?

- Além do desaparecimento de Mimi e da morte suspeita de padre Pietro, precisamos descobrir a paternidade dessa criança. - Uma risada histérica e comento.

- Isso é praticamente impossível, meu bem! Sweet trepou com cento e um homens antes de entrar em colapso! Quer gastar toda sua grana com testes de DNA!?

- Nossa...- Lamenta ele sob a chuva fina. - Eu nunca imaginei que ela estivesse tão mal.

- Foi disso que fugi.

- Eu me orgulho de vc, Dess.

- Não seja patético. - Enrubesço. - Não fiz porque sou boa. Fiz porque não sou boba. Tenho Antoine que depende absolutamente de mim.

- Infelizmente, não é verdade. Aiden a sustenta. - Envergonhada, assumo.

- Sim. Mas isso vai mudar. - Desviando meu olhar para a chuva caindo contra o vidro dianteiro, divago. - Eu só preciso de um tempo até descobrir tudo. Até lá, vou permanecer naquela mansão assombrada.

- Deixe Antoine comigo. - Sugere-me ele. - Ela não estará segura naquele lugar.

- Vai sim. Estamos sempre grudadas e Cassandra tem sido uma amiga e tanto.

- Entendo...- Diz ele, ensopado, recostando o antebraço em minha janela. - Dess...

- Não insista.

- Por ele. 

- Não faz isso...

- Ele te livrou de Ga'al e confiou seus segredos a vc. Foi na casa dele que me refugiei quando precisei de socorro. Ele te ouviu e tentou te fazer desistir do casamento. Ele...

- Chega! - Grito cobrindo minha cabeça com o capuz do meu moletom. Pego minha mochila e, saltando do carro, eu o tranco. Jogando minha mochila nas costas, reclamo. - Sei que vou me arrepender, mas, me leva até lá novamente. Tô morrendo de vergonha de seus amigos eunucos. - Um riso impertinente e ele refuta.

- Eles não são eunucos, Dess. Eles têm paus, mas escolheram não usá-los como um homem livre.

- Aaaah...tá bom! - Resmungo caminhando de volta à capela. Antes de entrar e enfrentar minha maldição, bebo a água da chuva. De braços abertos, imploro. - Irmã Chuva, me lave e me limpa de todo o Mal.

- Minha bruxinha está de volta...

- Sai! - Rosno. Caminho a passos lentos até o altar. Os monges já não se encontram em conjunto. Um ou outro ainda ajoelhados, oram ou fingem orar pelo morto. - Me dá sua mão. Sem vc, eu não vou conseguir. - Sua mão aperta a minha quando minha mão livre, enfim, toca a pele fina e gelada de sua testa. Inspiro e expiro profundamente. Aguardo por alguns minutos e desisto. - Não deve funcionar com mortos, Vincenzo.

- Tenta mais uma vez, Dess. Por favor.

- Isso me enfraquece.

- Perdão, amor. - Amor??? - Eu não te pediria isso se não fosse urgente. - Ainda entusiasmada pelo 'amor', tento um segunda e última vez. Lançando um olhar tímido ao Crucificado, peço em voz baixa.

- Me ajuda...

Dessa vez, é diferente. Não são as memórias de padre Pietro que vem até mim. Sou eu que vou ao encontro delas. 



Estou diante dele, deitado em sua cama, com pijama listrado, lendo um livro. A luz do abajur na mesinha de cabeceira clareia parte de seu rosto envelhecido. Um breve cochilo e ele acorda, assustado. Passando por mim, ele não me vê. Eu o chamo pelo nome. Ele não me escuta, então, eu o sigo. A casa agregada à capela é pequena e aconchegante. Um crucifixo pende da parede acima da porta da sala. Em sua cozinha, ele toma um copo d'água e engole um comprimido. Observo o nome do remédio na caixa sobre a pia. Eu o tomo, logo, o conheço. Trata-se de um ansiolítico para auxiliar no tratamento de ansiedade e insônia. Sua mão treme ao segurar o copo. O que estaria causando ansiedade nele? De volta ao quarto, ele se senta em uma cadeira em madeira em frente à sua escrivaninha. Curvo-me sobre suas costas e leio o que escreve em uma página de seu caderno de anotações. 

"Caro Vincenzo, urge que se prepare para a luta. O inimigo se juntou a outras forças tão malignas quanto ele. Salva aqueles a quem ama. Eles a querem. As outras crianças não passam de..."

Antes de continuar, leva a mão ao peito. Sua respiração arrítmica me causa angústia. Quero falar com ele. Quero ajudá-lo de alguma forma, então, recordo-me de que não estou no presente e sim, no passado. Nada posso fazer além de observar os acontecimentos. De joelhos em seu oratório em madeira, ele faz o sinal da cruz. A estátua de Nossa Senhora com seu filho Jesus em seu colo o observa, compassiva. Orando em latim, ele transpira pela testa e têmporas. Erguendo-se, ele lava o rosto na pia do banheiro onde se vê no espelho minúsculo. Ao seu lado, tento tocar em sua mão, mas ele não me sente; porém, eu sinto seu pavor ao recitar palavras em aramaico a algo presente entre nós. Não consigo ver o que ele está vendo, mas sinto uma presença pesada exalando um forte odor ferroso. Deitando-se, de volta à cama, ele desiste do livro. De olhos fixos no teto, ele reza o terço entre suas mãos cruzadas sobre o peito. Olho ao redor à procura do motivo de tanto medo e nada vejo. Assusto-me com as batidas na porta da sala. Num salto, ele se ergue. Eu o sigo, receosa. "Não abra!", grito sem ser ouvida. Recuo ao mesmo tempo em que ele abre a porta. "Vincenzo?", indaga ele com os olhos arregalados e a voz vacilante. Lá fora, somente a escuridão da noite chuvosa. Estou prestes a berrar para que ele feche a porta quando um vulto invade a casa. Padre Pietro corre até seu quarto. Corro junto percebendo que já não estamos sozinhos. Puxando sua estola de um velho guarda-roupas, ele a beija antes de vesti-la. Seus óculos não se encaixam nos ossos nasais. Suas pernas vacilam ao se curvar sobre a escrivaninha, abrir a gaveta e encontrar um livro grosso de capa preta. Orando alto, ele folheia o livro, visivelmente abalado. Por que não consigo ver a presença maligna dentro do quarto!?

"Eu não vou permitir!", brada ele mostrando ao ser invisível sua cruz benta. "Tu fostes expulso do paraíso. Ele não. Tu invejavas o Filho de Deus. Merecias ser expulso, ser desprezível".

Parecendo conversar com alguém, ele se exalta. Seus batimentos cardíacos aumentam. Eu os sinto em suas veias pulsando em seu pescoço. Ao seu lado, volto a chamar por seu nome. Minha mão tremula quando a aproximo do que, supostamente, está afrontando padre Pietro. Grito de dor e pânico ao ser mordida. Retiro a mão, apavorada. Marcas de dentes afiados marcam minha pele. Disposta a enfrentar o que acaba de me morder, avanço em sua direção. A força revida, arremessando-me, violentamente, contra a parede de onde assisto ao fim. Aos gritos, peço que o ser pare de atormentar meu amigo. Ouço sua risada infernal. Garras se materializam penetrando a caixa torácica de padre Pietro. As últimas palavras de padre Pietro foram reservadas ao Seu Criador.

"Perdoa-me, Senhor e tende piedade de mim".

Puxando o ar pela boca, suas mãos tentam impedir que as garras se aprofundem em seu peito. Sua expressão de horror e dor jamais sairão de minha mente. Vencido, ele deixa suas mãos penderem sobre a cama e exala seu último suspiro. As garras se evaporam no ar. A vida de padre Pietro se esvai como água em um bueiro em dias de chuva. Seu espírito livre do corpo encontra-se desorientado.

- Padre?

- Filha! - Seus olhos azuis e inquietos me angustiam. - Eu...?

- Sim. - Lamento entre lágrimas. - Eu não pude ajudar. Perdão. - Forçando um sorriso, ele me abençoa com o sinal da cruz. De joelhos, aos prantos, pergunto. - Aonde vai? 

- Não sei...- Diz ele, confuso. Luzes coloridas invadem o quarto atravessando o teto, atingindo seu peito como flechas. Insanamente, recordo-me dos momentos em que vivera no palco do California. Um pensamento inadequado que tento banir de minha cabeça enquanto ele é erguido pelos braços. Seu corpo flutua. Seus olhos se enchem de júbilo. - Eu não estou só. - Diz ele consigo mesmo. - É maravilhoso...- Imobilizada diante de seu arrebatamento, esqueço-me de respirar. Um pensamento intrusivo me distrai. A despedida da alma de um corpo não é como no filme 'Ghost'. É muito muito muito mais impactante e estranhamente doloroso. - Filha...- Puxo o ar pela boca, voltando ao meu corpo. Ainda de joelhos, eu escuto seu pedido sem sentido. - Faça-o parar.



- NÃO ME TOCA! - Grito de volta ao velório. Vincenzo, preocupado, se afasta e me observa enquanto choro agarrada ao corpo de padre Pietro. Levo minutos até parar de sentir meu corpo formigar e serenar os batimentos cardíacos. Jogo-me contra o banco em madeira diante do altar. Vincenzo, em silêncio, senta-se ao meu lado. Naturalmente, deseja respostas. - Ele foi morto por algo...- Murmuro. Receoso, ele se aproxima de mim, recostando seu braço em minhas costas. Respeitando meu sofrimento, ele nada pergunta até que eu pare de chorar compulsivamente. Assoo o nariz. Tomo da água que ele me oferece em uma garrafa de plástico. Esvazio a garrafa e a arremesso contra o caixão. - Eu não me lembro do que estava escrito no papel.

- Que papel?

- Ele escrevia algo pra vc.

- Um pedido de socorro?

- Não sei! - Respondo, impaciente. - Eu disse que me esqueci! 

- Perdão...

- Desculpa. - Arrependo-me. - Eu não tô bem. As paredes estão se movendo ou eu tô ficando louca?

- Pode ser uma crise de pânico. - Adverte-me ele. - Quer sair daqui?

- Sim!

Levando-me em seu colo, tento respirar sem conseguir. Fora da capela, debaixo da chuva, volto a me sentir viva e leve. Profundamente impressionada, ainda consigo mostrar a Vincenzo a marca dos dentes afiados que, aos poucos, somem do dorso de minha mão.

- Dói? - Pergunta-me ele cheio de compaixão em seus olhos. - Me perdoa. Eu não deveria ter feito isso com vc.

- Mas fez. Me põe no chão.

- Dess...- Descendo a escadaria diante da capela, indago, magoada.

- Mais um favor?

- Não. Vc jura que não se lembra de nada? - Pergunta-me ele no banco do carona de meu carro. - Eu sinto que vcs estão em perigo. - Reviro os olhos, exausta ao refutar.

- Eu já te contei tudo, exceto o que estava escrito no papel, Vincenzo. Eu não vou surtar por algo que, talvez, tenha sido fruto de minha imaginação. Sai do meu carro. Eu quero ir pra casa. Tô exaurida...

- Imagino.

- Não. Não imagina não. Vc não estava lá. Não viu as garras. Não foi mordido. Não viu a alma de seu amigo sair do corpo e, definitivamente, não estava lá pra me proteger do ser maligno.

- Calma, Dess.

- Eu estou calma. Calma e puta da viva. Dá pra sair?

Ligo o som do carro. Aumento o volume até o limite. Não posso permitir que ele ouça meus pensamentos e descubra o que descobri. Ele corre perigo. Padre Pietro e ele estavam prestes a iniciar uma espécie de batalha espiritual contra o ser que, provavelmente, o matara. Desde quando demônios têm poder e força a ponto de ceifarem uma vida!? Por que o Criador não os proíbe!? O que ele quis dizer com 'faça-o parar'!? 

- Porra, Vincenzo! Sai da frente do meu carro! Eu quero passar e vou te atropelar! - Sentado no capô, ele grita.

- VC TÁ ME ESCONDENDO ALGO IMPORTANTE! ABAIXA A PORRA DESSE SOM!

- NUNCA! - Refuto ao girar a chave. Se alguém tiver que se prejudicar nessa história que seja eu. Não vou permitir que Vincenzo se curve aos desejos de Lúcifer. Não vou permitir que esse ser arrogante e trevoso toque em minha filha! Não vou sair da porra daquela mansão até descobrir o que houve com Luka e Mimi! SACO! É SÓ TIRO, PORRADA E BOMBA! - Por que desligou!? - Aproveitando-se de minha ausência temporária, Vincenzo retira a chave da ignição e a balança em sua mão, o braço erguido. Triunfante, ele me encara. - Cacete! Eu tô exausta!

- Eu ouvi, Dess.

- Não ouviu...- Rebato, em dúvida. - Eu aumentei o volume.

- E eu desliguei o rádio a tempo de ouvir parte do que pensava, idiota. - Puxando-me para fora do carro, ele me pressiona contra a lataria. Seus olhos azuis e plácidos me encaram antes de me perguntar. - Quando vc vai entender que eu 'caí' por vc e não vou desistir da minha família por nada nesse ou em outro mundo? - Invadida por uma paz extrema, eu relaxo. - Eu te amo e vou fazer qualquer coisa pra te proteger. Mesmo à distância e, a cada vez em que penso que vc e aquele merda estão transando, eu surto. - Sussurra ele contra meus lábios. - Eu te odeio nesses momentos. E te amo, nos outros. 

- Vincenzo...- Exalo.

- Cala a boca. Não fala nada.

Seu beijo longo e cheio de paixão me sufoca e me faz perder a razão. Entrego-me ao momento sem pensar nas consequências. Como uma colegial, enlaço seu pescoço com meus braços e me pego rindo entre um beijo e outro. Meu coração ribomba. Minhas mãos trêmulas agarram o volante. Um sorriso patético de euforia se estampa em meu rosto enquanto o vejo sumir pelo retrovisor externo. 

"Espera por mim", pede-me Vincenzo ao se despedir.

"Gostou do beijo?", pergunta-me Aiden assim que piso no imenso salão sombrio da mansão.





E então, a Escuridão se fez...

Como prisioneira, Aiden me mantem distante de todos, exceto de Antoine que exerce um estranho poder sobre ele. Em nosso quarto, sou subjugada por ele a intermináveis horas de sexo brutal. Disposta a descobrir a verdade sobre Luka e Mimi, entrego-me a ele que, vez por outra, volta a ser o Aiden com quem dançara na Itália. 

Em uma noite de tempestade, eu o vira se transmutar enquanto fingia dormir. Diante da enorme janela em nosso quarto, ao som do rugido do trovão, Aiden abre seus braços e, inconsciente, o acolhe.

Temendo ser vista por ele e pelo ser demoníaco que o possui, permaneço imóvel debaixo dos lençóis enquanto Aiden, aos berros, na varanda, sob forte chuva, blasfema contra o Criador. Não era Aiden. Era algo muito maior e poderoso. Algo que o atrai de volta à cama. Atormentado e molhado, ele retira o lençol que me esconde e com os olhos mais escuros do que nunca, ameaça-me numa voz gutural.

- Nunca mais se aproxime daquele verme ou mato a ti e à tua filha.

- Tenta. - Refuto antes de ser barbaramente violentada.

Enquanto hospedeiro e parasita dormem, arrasto-me até a banheira luxuosa. Sem ânimo, mergulho meu corpo dolorido e marcado por dentes e chupões na água morna. Um único pensamento me vem à mente: o de dormir para sempre até que tudo volte ao normal.



'Não pode, tia. Antoine precisa de vc e eu também. - Debaixo d'água, abro os olhos e a vejo. Eu a ouço clamar. - 'Reaja'.

'Giulia? Vc ainda não descansou? Ainda não encontrou a Luz?'

'Não, tia. O Mal ainda me persegue. O mesmo que tirou a minha vida e a de muitas outras crianças. Acorda, tia. Não é hora de desistir. Antoine corre perigo.

- ANTOINE! - Grito de volta à superfície. Sufoco um soluço. Aiden, nu, me observa sentado no ladrilho clássico octogonal. Abraçando os joelhos, ele move a cabeça para o lado. Seus olhos me fitam, curiosos. Sem saber com quem estou lidando, ergo-me da banheira expondo meu corpo nu. Antes de pisar sobre o piso frio, ele me cobre com a toalha. Um abraço forte e ele me pergunta num sussurro.

- Quem fez isso com seu corpo? 

- Você. - Respondo, humilhada. - Me deixa passar, Aiden. Eu quero ver a minha filha.

- Me perdoa. Eu não sei...- Aparentando arrependimento, ele lamenta. - Não sei mais quem eu sou. Me liberta, baby.

- Eu vou. 



Ao lado de Cassandra, brinco com Antoine em seu quarto. Perspicaz, ela beija minha bochecha e me diz que tudo vai passar. Prendo o choro, olhando ao redor. Bonecas e brinquedos de última geração a cercam enquanto ela se apega a um, em especial: o ursinho de pelúcia que Vincenzo lhe dera de presente. Eis o elo entre ambos. Decidida a não permanecer na mansão por muito tempo, peço o retalho da roupa de Luka a Cassandra.

- Eu o escondi aqui. - Diz ela retirando-o dos fundos de uma das gavetas de pijamas de Antoine. Entregando-me o retalho guardado dentro de um saco plástico, ela me adverte. - Cuidado, tia. Eu tenho medo do que vc vai ver.

- Eu também...- Suspiro antes de beijar Antoine e deixar o quarto.

Tranco a porta do quarto de hóspedes e me sento no piso em madeira da varanda. A visão daqui é bucólica. Árvores, arbustos se misturam às flores, no jardim. A preceptora de Antoine me encara sentada no banco em cimento. Provavelmente, ela me odeia. Eu a ameacei após ter repreendido minha filha. Resgatei do fundo de sua memória algo escondido a sete chaves.

"Nunca mais se atreva a brigar com Antoine ou contarei ao seu patrão quem está roubando o dinheiro que some de sua carteira!"

Um breve aceno e eu a irrito. Ótimo. Assim posso me concentrar sem ser vista.

Retiro o pano sujo do saco plástico. Um aperto no peito e exalo.

- Falhei em não te salvar. Vc tá morto, Luka. Ajude-me a entender o que aconteceu contigo. - A brisa fresca toca meu rosto assim que fecho os olhos e me concentro. Minha mão pressiona o tecido. Um forte tremor e olho para baixo. 

Estranho meus pés calçando botas 'blaqueadas' cano longo. Desvio dos galhos secos e arbustos sob os pingos da chuva leve. Minhas mãos calçam luvas pretas. Observo meus braços curtos, o tronco coberto por uma armadura reluzente. Subo as escadas escorregadias. Atravesso o umbral da mansão. A festa ainda não começou. No salão, somente os garçons e um ou outro convidado. Tento impedir que meus pés se movam, porém, meus pés não são os meus. Algo mudara novamente. Não estou recebendo as memórias de Luka ou assistindo ao que lhe acontecera como o fizera com padre Pietro. 

Agora, eu estou em seu corpo. Agora, eu sou o Luka.



Sem conseguir me desvencilhar do elo que me liga a ele, deixo-me levar. Com os olhos de um cameraman em ação, volto ao passado e, impotente, vejo tudo acontecer.


"Eu quero ficar na festa", protesto diante do homem de cabelos brancos e olhos de rapina. Chego a avistar Antoine tentando voar do topo da escada. Ela é maluquinha mesmo. Ainda bem que o panda a salvou.

"Ei! Eu quero falar com Antoine!"

"Ela irá ao seu encontro. Prometo".

Contrariado, permito que o velho com cara de mago me conduza à porta vermelha. Eu vi uma igual em um filme de terror. Como era mesmo o nome?

"Eu quero ficar na festa!", reclamo apontando, ameaçadoramente, minha espada ao homem com smoking preto. "Onde está Antoine!?"

O homem abre a porta e num tom de voz sombrio avisa.

"Ela já vai chegar. Espere por ela aqui." 

O homem abre um lento sorriso e, antes de trancar a porta da sala à chave, alerta.

"Ela já vem. Não faça barulho."

Confiante e ansioso por dar um susto em Antoine, lanço um olhar ao redor. Nada além de um sofá em couro ao lado de um abajur de pé, aceso. Deito-me no sofá, descansando a espada no tapete. Um quadro acima de minha cabeça me intriga. Um borrão vermelho sobre um rosto infantil. Descruzo as pernas e, com meu braço erguido, toco no quadro. Em alto relevo, a letra 'A' em maiúsculo. Instintivamente, contorno a letra com meu indicador. Um ruído me faz arfar. "Uau!", exclamo diante da parede que se abre como a porta de um elevador. Não me importo com o cheiro forte e desagradável que vem do interior da parede. "Sou um guerreiro destemido!", penso erguendo a espada. "Antoine precisa ver isso!", exulto desbravando a escuridão. Desço as escadas amparando-me na parede viscosa. Como nos 'games',  há uma lâmpada acima da minha cabeça. Um leve puxão na corrente enferrujada e 'pluft'...

Eis a luz! 

"Garotos intrometidos vão para o inferno", alerta a voz rouca e masculina atrás de mim. Antes de atingi-lo com minha espada afiada, sufoco com um lenço úmido em meu nariz. O cheiro é forte e me faz desmaiar.

Estou com medo. Chamo por minha mãe e ela não aparece. Que lugar é esse? Eu quero a minha mãe! Por que eles estão me olhando? Que música esquisita! Por que todos estão de máscaras!? São tão feias!

- Cadê Antoine!? - Pergunto deitado sobre uma pedra fria. As tochas nas paredes parecem reais. Tão reais quanto nos jogos. Onde está minha espada? - Eu quero ir pra casa! - Choramingo. - Cadê a minha mãe!?

- Ela já vai chegar...- Responde a mulher com os olhos escuros. Tipo...escuros demais. Não existe a parte branca. Seus olhos são totalmente pretos. - Fique quietinho e espere. O mestre já vai chegar.

- Mestre!? Um 'Danger Master'!? De verdade!?

- Shhhh! Ele chegou!

Um homem de toga e capuz vermelhos se aproxima. Procuro por Antoine em algum canto da sala sinistra com cheiro de ferro. Não consigo mover minhas mãos. Estão presas à mesa grudenta. 

- Gostaria de jogar um pouco? 

- Sim! - Respondo, entusiasmado. - Onde está Antoine!? Ela também vai brincar!?

- Não. - Lamenta o homem com o rosto coberto. - Seremos somente vc, o mestre e eu.

Vejo um cálice dourado em sua mão. Tomo do líquido no cálice. Jamais havia jogado algo tão real! 

- Uau...eu tô tonto...

- Que bom. - Diz o tio. - Vamos brincar?

Enjoado, fecho os olhos. Quando os abro, grito de medo. Há fogo por todos os lados. Um fogo que não queima as pessoas que me veem sofrer e nada fazem. Eu grito por socorro enquanto o homem se transforma em um monstro diante de mim. Não é exatamente um monstro. É mais um demônio com chifres e olhos parecidos com os de um crocodilo gigante. Grito tanto que perco a voz. Estou com muito medo e sozinho. Por que minha mãe não aparece e me salva? 



O monstro demoníaco me mostra uma faca. Ele encosta a faca em meu peito. Continuo a berrar apavorado. Não quero que me machuquem. Ele gargalha. Ainda não sei se estão brincando comigo. Ainda espero por Antoine. Talvez estejam me 'trolando'. Eu preciso ser forte. Vou fechar os olhos. Os monstros ao meu redor são muito feios e fedorentos. Vou fechar meus olhos e esperar por minha mãe.

- Ele está com medo.

- Isso é muito bom. - Diz alguém ao lado do demônio. - Quanto mais medo, melhor. Pronto para a próxima fase?

- Tio, me tira daqui.

- O jogo ainda não terminou, Moby Dick. - Por que até aqui eles me magoam. Será que são meus colegas do colégio ou os pais deles? 

- Dói! - Berro enquanto os monstros rasgam minha fantasia nova e me fazem abrir as pernas. - NÃO!

Desmaio de dor assim que o primeiro monstro empurra minhas botas para cima. 

Mãe, cadê vc?

Abro os olhos. Meu bumbum dói muito.

- Me tira daqui, tio. Eu sou homem. Minha mãe disse que homem de verdade não faz isso. Tio, dói. Me tira daqui.

Eles riem de mim enquanto meu corpo sacode. Riem do meu choro, dos gritos de dor. Por que fazem isso? Por que sou gordo?

- MÃE!!! TÁ DOENDO!

Apago. 

A água fria que jogam em meu rosto me faz acordar. Agora, eu acho que não está rolando um jogo. Acho que é real. 

Ainda espero por Antoine...

- Não, tio. Não.

- Eu preciso. - Diz ele de volta à forma humana. - Se gosta mesmo de Antoine, vai me compreender e colaborar.

Como o meu herói preferido, movimento meus braços e pernas para escapar da mesa e me vingar. Choro ao ver sangue em meus braços e pernas. Arde. Tudo arde em meu corpo. Por que estão me batendo!? O que eu fiz!?

- NÃO! AÍ NÃO! 

Minha mãe não vem. Ela nunca disse que me amava. Por que, mãe? Dói, mãe. Queima. Eu tenho medo dos monstros, mãe. Me tira daqui, tio. 

De novo não...

Quero morrer. Não aguento mais a dor. Por que não param de colocar aquilo no meu bumbum? Dói. Para. 

Abro os olhos. Estou tonto. Minha cabeça pesa muito. Meus braços estão presos nas minhas costas. Estou vendo tudo embaçado e de cabeça para baixo. Meu corpo se move pra lá e pra cá como se eu estivesse em um balanço na praça.

Que coisa é essa pingando no balde? É sangue?

É o meu sangue!!!

- Tio, me ajuda. Me solta daqui. - Minha garganta arde quando imploro. - Chama a minha mãe, tio.

- Eu vou. - Erguendo o punhal, seu rosto humano se transmuta em algo demoníaco. Um corte em minha barriga e mais sangue escorre até meus olhos. Choro bem alto. Grito. Se eu rezar, Jesus vai me ajudar? Estou jogando em casa ou isso é real? Que língua é essa? Mãe, eu vou sentir sua falta. Não tenho mais voz para gritar. Minha boca está seca. Preciso de água. Há quanto tempo estou aqui? Meus olhos doem. Não consigo enxergar direito. Eles estão fazendo aquilo? Que feio. Estão fazendo o que meu pai e minha mãe faziam no quarto!? O demônio me mordeu na garganta. Acho que fiz xixi. Por que ele me mordeu!? O que eu fiz de errado!? Por que meu pai me deixou!? Eu sou forte, mãe. Dói muito, mas eu vou resistir. Eu sou 'Bolthor' e vou matar 'Gothgoth', seu demônio maldito. 

Estou sangrando por baixo. O demônio lambe meu rosto. Eca. Eu estou com medo, mãe. Muito medo. Me acorda. Eu quero ir pra escola.

Meu corpo cai contra o chão sujo. Finjo ser uma minhoca e, como uma minhoca, vou movendo pelo chão até alcançar a porta vermelha. Ouço 'Parabéns a vc'. Estão cantando para Antoine. Choro por ter perdido a festa. Antoine vai ficar triste porque eu não estava lá.

Eu vou lutar, Antoine! Vou matar o monstro e escapar!

- Tio, não! Volta! 

Arrastam-me de volta à mesa enorme. Deitam-me sobre sangue. De quem é esse sangue?

- Eu tenho poderes...- Aviso sem esperanças.

O demônio urra antes de enfiar o punhal em meu peito. Isso só pode ser um jogo. Onde estão meus amigos? Off-line? Que dor forte. Só quero dormir e acordar com minha mãe ao meu lado.

- Eu te levo comigo e deixo o teu sangue na Terra. - Grita o demônio com alguma coisa em suas garras afiadas.

Estou tossindo e cuspindo um líquido quente, pela boca. Tem gosto de ferro. Já não sinto tanta dor. O jogo deve estar acabando. Preciso ser forte. Minha mãe vai se orgulhar de mim quando tudo acabar. O que o monstro está segurando na mão? Bate igual a um relógio. Eu vi isso na aula de Biologia. Um coração? Tenho medo do sorriso dos monstros ao meu redor. 

- Chega...- Imploro.

- Acabou. 

- Vc voltou, tio?

- Sim. - Reúno todas as forças da minha alma e peço, antes de dormir novamente.

- Vc pode chamar minha mãe?



De volta ao meu corpo, ouço Cassandra esmurrar a porta.

- Tia! Abre! 

- Mamãe!?

Em convulsão, meu corpo enfraquecido permanece na varanda. Abro meus olhos e o vejo ajoelhado ao meu lado. Em pânico, meu corpo volta a tremer e eu nada mais vejo.

- Baby!? Acorda!

De olhos arregalados e, ainda confusa e horrorizada, estapeio seu rosto ao berrar.

- MONSTRO!!!



- Baseada em que vc afirma que eu matei o menino!? Em suas visões!? Sabe que podem ser frutos de sua doença, né!?

- Não! - Refuto, resoluta. - Eu não vi. Eu vivi o que ele viveu! O pobre menino não teve paz sequer na morte!

- Baby, não seja louca. - Murmura Aiden, enraivecido. - Não me acuse de algo tão brutal.

- Ele te chamou de 'tio'!

- Idiota! Maluca! - Protesta ele, furioso, andando de um lado ao outro de nosso quarto. Visto meu pijama após um banho frio. Ainda guardo em meu corpo a dor de Luka quando Aiden me puxa pelo braço e se defende. - Luka era uma criança adorável! Crianças como ele e Antoine chamam qualquer adulto de 'tio' ou 'tia'! Estou errado!? - Vendo fundamento em sua alegação, baixo os olhos, meneando a cabeça. Com a voz impregnada de desprezo, ele prossegue. - For God's Sake! Como vc pode pensar isso de mim!?

- Como??? - Revoltada, retirando o pijama, exponho meus hematomas por todo o corpo. - Quem fez isso comigo, Aiden??? Um fantasma???

- Isso nada tem a ver com matar uma criança inocente!

- Tem a ver com o que, Aiden??? Com sadismo??? Possessão??? - Consigo sua atenção. Diminuindo o tom de voz, confesso, amargurada. - Eu te vi, marido. Eu vi tudo. Por que o invoca? É o tal demônio que te deu tudo isso? - Lanço um olhar ao redor. - Tanto luxo e riqueza pra que, marido? Nós fomos felizes na Itália. Ele não estava lá. Volta pra mim e não me deixa pensar em coisas ruins. - Caminhando até mim, ele me veste com o pijama, cobrindo os hematomas que o inquietam. Beija minha testa. Penteia meus cabelos úmidos e os trança. Um resquício de paz invade meu peito. - Marido, vamos recomeçar. Por favor. Tira a gente daqui. - Num rompante, ele me toma em seus braços e me deita em nossa cama. - Não. Eu não quero.

- Nem eu. Me deixa ficar aqui, do teu lado, quieto. Não vou tocar em vc. Só preciso de paz na minha cabeça.

Arrastando meu corpo para o lado, cedo meu lugar na cama a ele. Deitando-se junto a mim, ele me abraça em silêncio. Chora como criança o que me faz chorar também. Acaricio seus cabelos. Beijo sua testa, rosto, boca. Olho em seus olhos claros e indago, curiosa.

- Por que seus olhos mudam de cor?

- Do que tá falando? - Ele tenta sorrir e não consegue. - Meus olhos são claros. É tudo o que sei.

- Não. São claros quando está calmo como agora. Eu tenho pavor quando eles escurecem. Quando vc invocou aquela entidade, Aiden?

- Vc o viu? - Indaga ele, desconcertado. - Deveria ser um segredo. Eu não o invoquei. Ele surgiu em um momento de dor e eu não o expulsei. 

- Quando isso aconteceu?

- Há muitos e muitos anos...

- Vc quer dizer...

- Quer mesmo ouvir?

- Sim.

- Em outra vida. Quando fui atraiçoado, ele se aproximou de mim e me fez uma proposta.

- Qual?

- Prefiro não falar. - Diz ele, agoniado. - Não me orgulho do que fiz e paguei por isso. Ainda pago.

- Como?

- Fui amaldiçoado e até que me livrem dessa maldição, ele vai usar meu corpo.

- Aiden...- Suspiro, compassiva. - Isso é terrível.

- Terrível é ter sido amaldiçoado por quem eu amei...

- Eu posso te ajudar a se livrar dessa maldição? - Com profunda tristeza nos olhos, ele responde.

- Não posso falar nisso...

- Por que não?

- Eles me proibiram. 

- Quem?

- Deixa pra lá, baby. 

- Não! - Insisto. - Eu sei que, juntos, podemos mudar isso!

- Podemos? - Arranco-lhe um sorriso tímido. - Como?

- Se confiar em mim...

- Confio, esposa. Tudo o que desejo é ser feliz ao seu lado e proteger Antoine.

- Por que não fica desse jeito pra sempre? Não muda, por favor.

- Vou tentar. - Promete-me ele aconchegando-me em seu abraço. - Por favor, não o procure mais. Não sei até quanto vou segurar meus instintos de quebrar aquela carinha de anjo arrependido. - Um riso inconveniente e prometo.

- Não vou...não quero me encontrar com Vincenzo. - Minto. Não antes de desvendar os segredos do desaparecimento de Mimi. - Dorme comigo de conchinha?

- Claro, baby. 

Seus braços fortes envolvem minha cintura. Seu corpo se recosta ao meu. Após dias de turbulências, uma noite de paz nos faz reatar.

Se não foi Aiden, quem Luka teria chamado de 'tio'?


 


Aiden montara um estúdio de dança em um dos quartos da mansão somente para mim, assim que nos mudamos para cá. Porém, eu nunca a usara antes de hoje.

Após tanta dor, preciso de um descanso e nada me faz me conectar tanto com o Alto quanto a Dança e a Música.

Diante dos grandes espelhos cobrindo todas as paredes do cômodo, eu me alongo na barra. Pronta para iniciar uma de minhas coreografias, escolho a canção em minha playlist. Imediatamente, eu a ouço nos alto-falantes do quarto, instigante, alegre. Do tipo que me enche de esperança... 




Imediatamente, percorro o grande espaço saltando, rodopiando, solta e leve. Por instantes, esqueço-me do horror pelo qual Luka passara antes de morrer e me entrego à melodia. De olhos fechados, me deixo levar pelo entusiasmo. Antoine está segura no colégio e Cassandra estuda em seu quarto. Aiden voltara a ser gentil. Ontem, planejamos outra viagem à Itália. Ontem, ele me disse que nos mudaríamos para um apartamento mais aconchegante do que essa mansão fria e úmida.

- Estou feliz. Leve. Sou um pássaro livre e leve...- Minto a mim mesma diante do espelho, suada, forçando um sorriso. - Aiden pode ser violento no sexo, mas jamais faria algo tão terrível. Eu sei. Eu sinto. Seu cuidado com Antoine prova minha teoria.

- Tem certeza, meu bem? 

Recuando assustada, procuro pela voz enquanto giro na ponta dos pés. Tropeço na sapatilha. Caio contra o piso em madeira corrida antes de perguntar num grito.

- Quem tá aí!? 

- Ainda não adivinhou?

- Sua voz falsa eu reconheceria em qualquer lugar. Fica longe da minha família ou sabe do que sou capaz de fazer.

- É uma ameaça?

- Sim. - Rosno deslizando feito cobra sobre o piso frio. - Eu te conheço. Vc me conhece. Infelizmente, não posso mudar o passado, mas, certamente, mudarei o futuro se voltar a se intrometer em minha vida.

- Ora, ora. Estamos progredindo...- Ironiza Lúcifer. - Quem te viu. Quem te vê. Não é que a boa mocinha quer jogar a merda no ventilador.

- Deixa minha família em paz. Deixe Vincenzo em paz ou eu mesma terei aquela conversa com vc. Nem precisarei incomodar seu arqui-inimigo que, por acaso, é meu amigo.

- Até ele saber de onde vens, cobra peçonhenta! Fui!

Deito-me no chão, exausta. Em posição fetal, choro. Já não suporto viver lutando. Eu quero paz. Eu preciso de paz. Estou tentando matar o monstro que há em mim, mas...

- Porra! - Assusto-me com ringtone do celular. - Ainda não troquei essa merda! Fala!

- Bom dia pra vc também. 

- Desculpa. Eu tô nervosa. - Esfrego a toalha em minha testa, recostando-me à parede. - O que houve?

- Eu sei porque. Ele estava aí, não é?

- Sim. O que ouviu? - Indago, preocupada.

- Suas vozes desencontradas. Nada nítido. - Que bom. - Precisamos nos encontrar. - De gatinhas, afasto-me da porta. Sigo até a janela onde me escondo debaixo da cortina em voil. Abafo o som de minha voz com a mão ao implorar.

- Vincenzo, deixa eu viver a minha vida. Vc escolheu me deixar e...- Sua voz triste me interrompe.

- Talvez vc escolha deixar o Aiden após me ouvir, Dess.

- Não entendi.

- Adrenocromo.

- HEIM???

- Já ouviu falar!?

- É algum tipo de creme rejuvenescedor???

- Quase isso. Uma espécie de creme extremamente especial, caríssimo, preparado a partir de uma substância rara.

- Vincenzo! Eu não tô a fim de falar sobre estética agora! - Num tom de voz mais alto e firme, ele me faz arfar de espanto.

- Sangue, Dess! 

- OIII??? EU VOU DESLIGAR!!!

- Adrenocromo é feito de sangue. - Rosna ele. - Sangue de crianças torturadas e amedrontadas até a morte. Agora consegui sua atenção?



- Tem bebido?

- Não.

- Fumado?

- Não.

- Trepado?

- NÃO, AMIGA! EU ME TORNEI UM ZUMBI!

- Sweet, eu tô preocupada. Só isso. - Inspiro e expiro antes da próxima pergunta.

- Sabe quem é o pai?

- Não. - Rosna ela. 

- Puta que pariu...

- Não me julgue. Vc já fez o mesmo.

- Não estou. - Refuto, indignada. - Mas, o lance dos 'cento e um' foi bizarro.

- Que lance é esse!? - Perplexa, eu a encaro.

- Sweet! Vc não se lembra de ter...!? - Pigarreio aguardando alguma mudança em sua fisionomia assustada. Sentada ao seu lado no sofá da sala, continuo. - Lembra de ter quebrado seu recorde com...?

- Fala, amiga! O que eu fiz!?

- Caraca. - Exalo. - Vc não se lembra mesmo.

- Do quê!? O que eu fiz!?

- Nada! - Minto. Ela surtou e, durante o surto, ela trepou com cento e um homens e depois apagou tudo da memória como se nada houvesse acontecido. É sério???

- Tá me assustando, amiga. - Eu estou assustada, Sweet!!! - Fala comigo.

- Vc se lembra de seu último - ou últimos - parceiros sexuais?

- Não exatamente...- Responde-me ela, confusa. - Eu me lembro de vários rostos. Nada real. Parece um sonho. Um pesadelo.

- Ok! - Puxo o ar pela boca. Apavorada, decido. - Deve ter sido de algum cliente! Com certeza! Não vamos nos preocupar com isso agora!

- Eu uso camisinha. - Defende-se ela. Diante de sua apatia, comento.

- Eu tô preocupada com o bebê. Só isso. Tem alguma chance de ser de Vincenzo? - MALIGNA. APROVEITANDO-SE DA FRAGILIDADE DELA. POR QUE NÃO PERGUNTOU DESDE O INÍCIO? Não quis. Tenho medo...pânico da resposta. - Sweet?

- Não. Nenhuma. Ele nunca me tocou como homem. E eu não gosto de homens. Vc sabe. 

- Imagine se gostasse! - Engulo meu riso inconveniente e, contente pela resposta, mudo de assunto. - Precisamos iniciar o 'pré-natal', né?

- Eu sei, amiga.

- Sweet, reaja. Tem uma vida dentro de vc. Vc me deu força quando eu estava grávida. Lembra?

- Sim. 

- Não chora, amiga...- Jogando-se em meu colo, ela prorrompe em prantos.

 - Eu tô tão triste que não consigo cuidar da Jujuba sozinha.

- Quer que ela fique comigo por um tempo?

- Não. Eu preciso dela. Ela...- Engasgando-se com o próprio choro, ela lamenta. - Jujuba sente falta da irmã, amiga. Isso não é justo. Onde tá a minha Mimi? - Enxugando suas lágrimas com lenços de papel, tento não chorar. 

- Não sei, Sweet. Eu tô tentando encontrar a Mimi. - Minto. Até agora nada fiz. Eu não quero...não posso perder mais forças com essas incursões em memórias alheias. As memórias de pessoas mortas me exaurem ao máximo. EGOÍSTA! Eu sei. Eu vou tentar...- Amiga...- Beijo o dorso de sua mão pálida e prometo. - Eu vou encontrar a Mimi.

- Viva? - Puta que pariu. É sério que ela ainda espera que eu a encontre viva??? - Por favor, amiga. Diz que sim.

- Sim. - Contrariada, eu a obedeço. BANDIDA! O que vou dizer??? Que sinto que ela já morreu??? - Tenha fé, amiga. Ela deve ter se perdido em algum lugar e alguém muito bacana a acolheu em sua casa. - Erguendo-se do meu colo, enchendo-se de esperança, seus olhos brilham ao indagar.

- Vc sente isso, amiga!?

- Eu eu eu...- Hesito antes de mentir. - Eu sinto. 

- Vc sempre teve esses lances de ver coisas, amiga. E se eu te der uma roupa, um sapato dela!? Sei lá!

- Sweet! Calma! - Exaltada, ela se levanta do sofá caminhando até o quarto das meninas. Tagarelando sozinha, ela se  mostra absolutamente transtornada. Eu a acompanho pensando em como dizer que não farei o que ela vai me pedir para fazer. - Não, amiga...- Afasto-me dos sapatos encontrados pela polícia na beira do lago no dia da festa de Antoine. - Eu eu eu...

- Pelo amor de Jesus! - Implora ela ajoelhada à minha frente. - Me ajuda! Me dá alguma resposta! - Incomodada, eu a ergo do chão e encarando seus lindos olhos verdes, explico.

- Não é assim que funciona. Não vem quando eu quero.

- Vem sim, mamãe. Vc consegue.

- Antoine! O que eu falei sobre...!?

- Me meter na conversa de adultos? - Jujuba e Antoine sorriem juntas e juntas me pedem. - Tenta. 


Como negar algo a uma criança que perdera sua irmã mais velha e está sob os cuidados precários de sua mãe em depressão profunda?

MERDA!



- Pega!

- Sweet...

- Vai dar certo, amiga! Vai dar certo!

À beira de um colapso nervoso, aceito o par de sapatos de sua mão. Sapatilhas brancas e novas. Foram compradas no dia anterior à festa.

Seu sorriso iluminado surge diante de mim. Aliviada por não repetir minha última experiência vendo o mundo através de seus olhos, capto suas memórias, lentamente...

Mimi abraça Antoine e se afasta, ressentida. Jujuba toma seu lugar ao lado de minha filha que se mostra feliz enquanto brincam de acertar bolas coloridas na barriga redonda do Kung Fu Panda. Sinto o que vai em seu coração. Ouço seus pensamentos. Mimi tem ciúmes de Jujuba por ser a preferida de Sweet. Isolando-se no interior da mansão, ela chora. Debruçada na soleira em mármore de uma das varandas, ela pensa em se jogar. Com o meu coração aos pulos, novamente, encontro-me impotente. Pergunto-me o porquê de ter essa maldição - ou dom - se nada posso fazer a fim de impedir o pior. Felizmente, a altura é inferior a dois metros. O máximo que conseguiria era sujar seu lindo vestido de princesa ou torcer os tornozelos.

"Ninguém vai sentir minha falta", pensa ela descendo a escadaria que dá para os fundos da mansão. Caminhando sobre a grama úmida, ela segue em direção ao lago. Alguém a segue, porém, eu não conseguirei identificar se ela não olhar para trás.

Não estou em seu corpo, mas sinto e ouço seus pensamentos. Há uma força que me impede de assistir a tudo como acontecera com padre Pietro. Essa força está sugando as minhas. Não sei se conseguirei ir até o final. 

Penso em desistir e entregar os sapatos a Sweet quando Mimi os arremessa contra a árvore e os xinga.

"Falando palavrão?", repreende a voz feminina. Tímida e envergonhada, Mimi não encara a dona da voz. Desculpando-se, Mimi se senta na beira do rio caudaloso enquanto a voz suave lhe incita a nadar. "Eu tomo conta de vc. Prometo".

Cuidadosamente, Mimi a obedece e mergulha os pés na água fria. Inocentemente, ela comenta:

"Não é fundo, tia!"

"Mergulhe!", ordena a voz num frenesi.

Mimi se assusta com o empurrão em suas costas e, debaixo d'água, observa as bolhas acima de sua cabeça.

"Mãe!", grita Mimi assim que submerge. Seus braços afoitos se movem enquanto seu corpo se distancia da margem onde o vulto da psicopata permanece. Não há galhos ou pedras onde se apoiar como nos filmes. Nada além da força da água que a empurra na direção oposta à mansão, afastando-a de Sweet por quem ela clama.

Não suporto mais essa dor. Preciso parar. Quero me desconectar, porém, algo me diz que devo continuar. 

Algo ou alguém que acaba de mergulhar no rio e agarrar o corpo de Mimi pelas axilas e tirá-la da água.

- Ela tá viva. - Sussurro antes de perder as forças e desmaiar.



Acordo de um pesadelo e mergulho em outro. Vincenzo me repreende por ter dito o que vira assim que abro os olhos.

- Foi ela quem insistiu. - Rosno ao me levantar da cama de Jujuba. Tonta, eu cambaleio. Ele me abraça e me pede perdão. - Me deixa ir. Eu não mereço isso. Só quis ajudar. - Aumentando o tom da voz, eu me corrijo. - Aliás! Eu nem queria! Foram as crianças e Sweet que me forçaram! Me solta! - Percorro os cômodos do pequeno apartamento de Sweet e não a encontro. Antoine consola Jujuba quando, ainda mais confusa, questiono. - Cadê Sweet!?

- Internada.

- Onde!?

- Em uma clínica de reabilitação. - Diante de meu espanto, Vincenzo esclarece. - Assim que vc perdeu a consciência, ela teve outra crise. Eu cheguei a tempo de evitar que a dose fosse fatal.

- Que dose!? - Uma olhadela para as crianças no sofá e ele cochicha em meu ouvido. 

- Cocaína. 

- Eu não queria...- Lamento prendendo o choro. Outro abraço de Vincenzo e eu 'desabo'.  - Eu juro que não queria. Eu tô exausta de tudo isso. Exausta. Só quero ir pra casa. - Agarrada à gola de sua camisa, entre soluços, pergunto. - Como chegou aqui na hora exata?

- Eu te segui.

- Porra...- Resmungo contra seu peito. - Isso não vai acabar bem. Aiden tem olhos por toda parte. Vc sabe.

- Sei. Precisamos conversar sobre ele. - Um brusco recuo e refuto.

- Não precisamos não! Eu não quero falar sobre nada! Me deixa em paz, por favor!

- Dess, ele...- Cambaleando, alcanço a porta da sala. Vincenzo me segue. - Me ouve!

- Não. - Exalo desanimada. - Preciso levar Jujuba comigo. Tadinha. Ela sofre. Por que eu não posso viver como uma humana normal?

- Dess, olha pra mim. - Tocando em meu queixo, ele me obriga a olhar em seus olhos tristes e cheios de dúvidas. - Do que tá falando?

- De nada. - Sorrio. Anestesiada pela dor, comento. - Quanto mais eu tento melhorar, as coisas pioram. Isso é normal?

- Sim. Evoluir, nesse mundo, é pesado demais. Dess! - Exclama ele ao encostar o dorso de sua mão em minha testa. - Vc está com febre! Muito alta!

- Não liga não. - Divago diante do meu carro em frente ao prédio de Sweet. - Eu perco forças todas as vezes em que...

- Dess! - Seus braços me amparam antes da queda contra a calçada. Meus olhos se fixam no céu nublado. Abrindo um sorriso triste, atesto em seu colo. - O bebê vai morrer. 

- Não fala assim, amor. Fica comigo. Eu vou te levar ao hospital. Abre os olhos, Dess. Dess! - Deitando-me no banco traseiro, Vincenzo se desespera. - Cuida da mamãe. - Ordena sua voz rouca. Antoine acaricia meus cabelos. Jujuba massageia meus pés. Abro os olhos. Antoine me sorri e me pede com ternura.

- Volta, mamãe. - Uma forte corrente elétrica percorre meu corpo dos pés à cabeça. Puxando o ar pela boca, retorno do lugar escuro. - Ela acordou, papai.

- Eu não dormi. - Esclareço, sentada entre ambas. - Sai do carro, Vincenzo. Ele tá vindo. - Salto para o banco do carona e o empurro com força contra a porta. Sorrindo, como um 'João Bobo' inflável, ele retorna ao volante. - Não irrita o Aiden! - Imploro. - Vc não sabe do que ele é capaz!

- Sei sim. - Rosna ele fixando o olhar furioso em meus hematomas nos braços e coxas. - Vou tirar vcs daquela casa, Dess. Antes que seja tarde.

- Não vai não. - Afirma Aiden junto ao meu ouvido direito. Aperto o botão acionando a janela. Usando de força extrema, ele a empurra para baixo. Num tom de ameaça, sussurra. - É melhor vir por bem, baby.

- Não vai, Dess. - Suplica Vincenzo, puxando-me pela mão. - Fica. Confia em mim. - Implorando que ele me ouça, respondo, mentalmente, que confio. - Fica.

- Obrigada por me ajudar, Vincenzo, mas Sweet precisa mais de vc do que eu. - Argumento sem olhar em seus olhos. - Meu marido vai cuidar de mim e de Antoine.  

"Ele não está só. Vc consegue me ouvir?", assentindo com a cabeça, ele prova que me ouve. 

- Sai do meu carro, por favor. - Engulo em seco ao concluir, desolada. - E da minha vida também. 

Vincenzo reluta. Antes de sair do carro, ele crava um punhal em meu peito.

- Dess, larga tudo e vamos pra minha casa na praia. Lá, ele não entra.

"Para. Só vai piorar tudo!"

- Vc é louco!? Eu sou casada!

- E eu sou o marido. - Diz Aiden, sorrindo. - Se esqueceu?

- Não. - Responde Vincenzo com a voz embargada. - Eu nunca vou me esquecer de vc e do que fez com ela da última vez.

- PAROU! - Decreto erguendo os braços. Jujuba e Antoine, inocentes, gargalham no banco traseiro. Vincenzo deixa o carro. Jujuba se despede de Antoine, aos prantos. Mortificada por ela, prometo. - Eu ainda venho te pegar, Ju. Vc vai ficar lá em casa, ok?

- Ela fica comigo. - Refuta Vincenzo com a filha de Sweet nos braços. Da calçada, lançando um olhar fulminante a Aiden, ele avisa entredentes. - Ainda não terminou.

- Não mesmo. - Ironiza Aiden ao volante. - Só estamos começando. Quando vai se cansar de ficar sempre na calçada feito um babaca?

- Tio! Palavrão é feio! - Repreende-o Antoine.

- Ops! Foi mal! - Diz ele sorrindo a Antoine. Antes de voltar seu corpo para frente, ele me olha com os olhos escuros e sombrios. Arrepio-me de medo. - Vamos pra casa, baby? - Em silêncio, assinto com a cabeça. Pisando no acelerador, ele faz o motor roncar. Antes de partir, ele projeta a cabeça para fora da janela e, num tom baixo, zomba de Vincenzo. - Perdeu...


"Me espera", peço em pensamento.




Dias se passaram sem que eu tivesse notícias de Sweet, Jujuba ou Vincenzo.

Talvez, estejam bem, juntos. Talvez, acreditar nisso, me faça bem. Eu preciso acreditar que algo vai mudar...

- Por que esse vestido, Aiden? É tão decotado!

- Vc sempre usou esses vestidos, baby. Se esqueceu de quem já foi?

- Não. - Rumino diante do espelho. - Nunca me esquecerei.

- Tenho certeza de que não vai. Não depois de hoje.

- Do que tá rindo?

- Estou sorrindo. - Alega ele, beijando meu pescoço. - Vc está linda e sexy. 

- E cheia de hematomas, Aiden. - Reclamo. - Eles irão notar.

- Meus amigos!? - Indigna-se ele. - Imagine! Eles não ligam para essas coisas. Aliás, eles as apreciam...

- Não gosto do tom da sua voz. Eu não quero ir. - Apertando meu braço com força, ele rosna.

- Gostando ou não, vc vai.

Antes de sair do carro, Aiden venda meus olhos. Guiando-me, ele vai narrando as peculiaridades do local por onde estou andando. O medo e a claustrofobia me impedem de me manter focada e colher informações sobre o lugar. Estaria mais preparada para o que viria.

Ou não...

- Chegamos. - Diz ele retirando a venda de meus olhos. Levo um tempo até que meus olhos abertos se ambientem à penumbra. - Bem-vinda ao passado, baby.

- Do que tá falando, Aiden? - Diante dos olhos lascivos de homens e mulheres reunidos em um salão, Aiden me conduz até a parte central onde há uma mesa imensa. Sobre a mesa em mármore, um par de algemas douradas. Respirando com sofreguidão, murmuro. - Quero ir embora, marido.

- Não agora, baby. - Sentindo a intenção devassa de seus amigos, corro até a porta. Um deles a fecha à chave. Outros dois me carregam, à força, até a mesa. Aiden os ajuda a prenderem meus pulsos às algemas. Horrorizada, eu o vejo se aproximar e rasgar meu vestido com uma das mãos. Grito por socorro. Com a mão livre, ele tapa minha boca e sussurra em meus ouvidos num tom gutural. - Não antes de saciar cada um de meus amigos. Eles pagaram caro por isso, baby.

- Aiden...- Erguendo a cabeça, imploro antes de ser invadida pelo primeiro homem. - Me ajuda.

Em silêncio, ele observa meu corpo sacolejar entre gemidos e urros.


O que deveria ser o fim de nosso relacionamento fora o retorno de minha doença, até então, adormecida.



Continua...





CAPÍTULO 35 - INJUSTO

  Na sala de espera do mesmo hospital onde Vincenzo voltara à vida, aguardo, ao lado de Liam e Enrico, ao desenlace da tragédia. Vincenzo, d...