Acordo bem disposta após muitos meses. Os raios de sol invadem meu quarto pelas brechas da persiana trazendo conforto à minha alma. Não penso que devo trabalhar hoje à noite no 'California' ou nos clientes que já entupiram minha caixa de mensagens aguardando meu contato. Pulo da cama, tomo uma ducha e calço meus tênis de corrida. Estranhamente, sinto-me feliz sem sequer saber o porquê. Minto. Eu sei. A voz dele em minha mente ontem, antes de dormir, foi tão real...
Corro oito quilômetros na orla, sorrindo para cada criança que vejo junto aos pais. Uma ideia ridícula passa pela minha cabeça em frações de segundos e some. Ser mãe!? Eu!? Nunca! Uma puta não tem tempo para ser mãe. Eu acho. Sei lá. De repente...
Desatenta, sou empurrada por alguém que corre na direção oposta à minha. Eu o xingo. Ele gargalha sem olhar para trás. Irritada, arremesso um chinelo velho largado na calçada, contra suas costas. Acerto em cheio já aguardando por uma revanche.
- NÃO DOEU! - Grita ele. Ainda rindo de mim, ele me zoa. - Da próxima, vc acerta! - Dando-me as costas, ele acena com uma das mãos enquanto fico parada observando-o desaparecer entre os pedestres na ciclovia.
- Mas vc tá suada!
- Ah! Então! - Reviro os olhos exageradamente e, bufando, explico à garçonete da cafeteria onde servem o melhor cappuccino da cidade. - Eu corri oito quilômetros, mas fui impedida de continuar por um babaca que me empurrou na pista. Essa gente começa a correr do nada e acha que pode concorrer comigo! É mole!?
Tomo um gole do cappuccino fumegando e, sorrindo, agradeço.
- Giulia, quando crescer, vc vai ser dona de sua própria cafeteria. NÃO! - Exclamo enquanto degusto um 'croissant' de queijo maravilhoso. Engulo um pedaço e, concluo. - Dona de uma rede de cafeterias espalhadas pela cidade! Seu croissant é fantástico! Leve...desmancha na boca! Hummmm! - Rindo, ela beija minha bochecha e me chama de exagerada.
- Mas, valeu tia! Que Deus a ouça!
- Já ouviu. - Garante o homem que se senta na cadeira giratória ao meu lado. - Ele sempre ouve as almas puras. - Gargalho de costas para ele e provando um pedaço de torta de chocolate, refuto.
- Então seu deus tem que ouvir a Giulia porque a mim, Ele não ouve não! Repete aí, Giulia!
- O 'Meu Deus'? Vc não acredita n'Ele? - Ainda de costas, respondo, de boca cheia.
- Não.
- E por que Ele não te ouviria?
- Porque já deixei de ser inocente faz tempo...
- Ah...entendi. Não tem problema. Vc não precisa acreditar n'Ele, mas Ele acredita em vc.
- Aaaah! Vá! Tu não é um daqueles que ficam nas ruas entregando pa...pa...- Giro, de súbito, a cadeira e, limpando os cantos da boca com guardanapos de papel, engulo em seco diante dos olhos mais azuis que vi na face da Terra. - Papel...pa...papel...sei lá. O que vc disse? - Puta que pariu. Vc é lindo. Fofo. - Tá rindo de mim???
- Não! Só não quero levar outra chinelada nas costas!
- Cacete!!! Era vc???
- O babaca que acha que pode correr enquanto vc corre? Sim.
Cubro meu rosto com as mãos e, envergonhada, peço desculpas.
- Eu sou um pouco impulsiva...
- Um pouco?
- Muito! - Avisa Giulia servindo um cappuccino ao desconhecido que me encanta enquanto toma o primeiro gole. Seu Pomo-de-Adão se move a cada golada. 'Nuss'... - Adessa! Acorda, tia!
- Oi!? - Seus olhos giram nas órbitas enviando-me uma mensagem subliminar do tipo: "Tá dando muito mole! Acorda!" - Ah! Tá! Vou pagar a conta! Tenho...tô...tem...cacete...quanto foi!?
- Eu pago! - Adianta-se ele, mostrando seu cartão de débito. Ou seria crédito? - Débito. - Arquejo, recuando. Ele me ouviu??? Abrindo um sorriso lento, ele se dirige a Giulia. - Por favor. - Impulsivamente, eu retiro o cartão da mão de Giulia e o jogo contra o rosto do homem que me olha assustado. Sério? Eu fiz isso???
- Eu não preciso de ninguém pra pagar as minhas contas! Sacou!?
- Tia!!! Ele só queria...
- Eu sei o que ele queria, meu anjo! É desse tipo de homem que vc deve se manter afastada, entendeu??? - Meus olhos insanos encontram os de Giulia. Toco em sua mão e a vejo gritar por socorro em algum lugar imundo. Retiro a mão, desconectando-me da visão. Tropeço na cadeira, caindo de bunda no chão. - PORRA!!! QUE PORRA É ESSA QUE EU VI??? NÃO! NÃO ME TOCA!
- Deixa eu te ajudar...- Recua ele, intrigado. Abano a cabeça e, arrependida, tento explicar.
- Não. Perdão. Não toca em mim. Eu tenho um...
- Ela tem um poder. Ela vê coisas quando toca ou é tocada por alguém.
- Giulia...- Resmungo, erguendo-me do chão. - Não é um poder. É uma faculdade que qualquer um pode ter.
- Eu não tenho, ué! - Replica ela, indignada.
- Cala a boca, garota linda. - Digo, entredentes. - Depois eu te ensino a praticar e, de repente, vc até ganha uma graninha pra comprar a primeira de muitas padarias. Porra, cadê a carteira!? - Sentado diante de mim, ele me observa enquanto eu retiro tudo da mochila e esparramo tudo no balcão. Seu olhar incide sobre um pacote de camisinhas. Ligeiramente, eu o empurro contra Giulia, fazendo-o sumir. - Não é o que vc imagina.
- Eu não pensei em nada. - Diz ele, pacientemente.
- Pensou sim que eu sei!
- Além da Psicometria, vc também domina a Telepatia?
- Aaaah...não ferra! - Retirando uma nota de cem da carteira, eu a grudo no balcão com as mãos espalmadas. - Fica com o troco e...por favor...- Inspiro e expiro profundamente e imploro sem tocar em Giulia. - Não sai de casa hoje. Fica com a tua mãe. Ok?
- Não vou sair, tia. 'Fica de boas'.
- Confio em vc. - Afirmo num tom de repreensão. Beijo sua bochecha e, jogando minha mochila nas costas, vou caminhando em direção à saída quando ele abre a porta da cafeteria para mim. - Obrigada, mas não precisava.
- Mas eu quis. Algum problema?
- Nenhum. - Mas se me olhar assim novamente, eu pulo em seu pescoço e beijo sua boca e, de repente...- Porra...
- O que houve?
- Eu me esqueci...
- Do quê?
- Da bike.
- Onde estacionou?
- Não. Não sei se vim pedalando ou andando. - Culpa sua! Idiota! Não sorria assim pra mim porque sou capaz de te mostrar quem eu sou! Quem eu não gostaria de ser...- Ah! Vou andando mesmo! É perto!
- Quer carona? Tô de moto. - Puta que pariu. Moto. Agarrar vc por trás. Fala sério. Solto uma gargalhada repentina. Olho para ele que me encara, sorrindo. Tá rindo de mim ou para mim? - Sorrindo pra vc. Vc é engraçada. Isso me surpreendeu.
- Vc ouviu o que eu...?
- O que vc o quê? - Outro riso histérico e, movendo as mãos aleatoriamente, peço.
- Ih! Deixa pra lá! Eu não tenho estado bem da cabeça. Vc vai me seguir? Não me diga que vc é um psicopata?
- Não sou, mas, se fosse, eu não diria. Né?
Paro de andar e mergulhando em seus olhos azuis, retruco, meio que abobalhada.
- Acho que não...
As ondas do mar, o céu de um azul perfeito. A brisa morna em meu rosto me faz fechar os olhos e voltar a um tempo que não conheço.
Dói...
- Vc tá bem? Deixa te levar até a sua casa, por favor. Eu fico na porta e vc entra, ou se preferir, eu fico de longe e não preciso saber onde mora exatamente já que está com medo de mim.
- Não estou não. Sei lidar com homens. - Mais do que vc pode imaginar. Mais do que eu gostaria de saber. Por que eu estou me sentindo assim? O que tem nele que me faz querer largar tudo? - Eu???
- Claro! Tem outra mulher bonita e louca por aqui? Sobe, vai! - Eletrizada, sento-me atrás dele na moto que ronca quando ele gira os punhos, irritando-me, propositadamente, com os ruídos do motor. - Com ou sem emoção!? - Encostando meu rosto em suas costas, ouço sua voz através de sua caixa torácica e respondo, sentindo-me viva após muito tempo.
- COM EMOÇÃO!!!
Eu não o vejo há dias. Volto sempre à cafeteria onde Giulia trabalha, na ânsia de rever aqueles olhos azuis e intensos e nada...
- Amiga, acorda! - Alerta-me Sweet Child, suada após seu inigualável espetáculo de horrores. Tadinha. Eu não devo pensar assim. Faço o mesmo, exceto aquela porcaria de me deitar no palco. Minto. Eu faço. Mas, agora eu não quero fazer. A grana é boa? Sim. Mas...eu não quero. - Vai, bicha!!!
- NÃO ME EMPURRA, VACA!!! - Pigarreio, lançando um olhar devastador à plateia de bêbados idiotas e absolutamente previsíveis. Freddie, o DJ, deixa rolar a música que pedira a ele antes do meu show que eu dedico à 'voz sem rosto' e ao carinha da moto. Quem sabe ele não esteja por aqui? - JÁ VOU, PORRA! - Respondo a Sweet que me espia pela cortina de miçangas. O que há comigo hoje? - Ok! - Um sinal ligeiro com o polegar e volto a ouvir a canção romântica que narra o encontro de dois corações em uma cafeteria. Sorrio ao me lembrar dele erguendo suas mãos para o alto, na defensiva, enquanto giro ao redor do palco calçando minhas botas em couro preto até os joelhos. No corpo, apenas um biquini cavado com lantejoulas que devo retirar ao final da música.
De cabeça para baixo, na barra de 'pole dance', tento enxergá-lo dentre os outros homens que me desejam, mas não me terão. Não nessa noite.
"You don't know my name", cantarolo dando-me conta de que não sei o nome dele também. Que merda! Dois homens fantásticos e nenhuma chance de tê-los ao meu lado. Agora que estou livre de Ga'al, poderia largar tudo e viver...
- NÃO ME TOCA, SEU IMBECIL! - Grito ao chutar o braço de um cliente abusado que tentara arrancar minha calcinha quando me abaixei para recolher as notas de cem que deveriam gastar com suas famílias. Estúpidos. Eu os odeio. - ME LARGA! - Berro ao terminar o meu show e chutar o queixo de outro verme lascivo.
- Calma, meu anjo. - Diz Doc, meu melhor amigo e segurança do "California". - Eu dou conta deles. Vá para o camarim. Ok?
- Ok. Obrigada, amigo. - Sigo de volta ao camarim, desconsolada. Ele não estava entre a multidão. Ele não vai voltar a me ver. Não nasci para ser feliz. Minha mãe me dizia isso. Por que não? - Claro que não!
- Por que não??? - Pergunta-me, indignada, Sweet. - É o que dá mais grana. Trepar com eles no palco. Fala sério! O que vc tem hoje?
- Uma tristeza profunda. Só isso. Quero ir pra casa.
- E seus clientes???
- Atendo amanhã. Hoje eu só quero ir pra casa e chorar e beber e chorar e beber até cair...
E assim foi feito.
Chego ao meu apartamento luxuoso sentindo uma dor pungente no peito. Tomo uma ducha e abro uma garrafa de vinho tinto. Dispenso o cálice, tomando-o no gargalo. Um vento morno se espalha pela sala onde tento assistir TV enquanto penso na 'voz sem rosto'. No homem que me salvara dos estupradores. Enquanto penso no carinha legal da moto que não pode suspeitar da vida que venho levando, um torpor percorre meu corpo quando me deito na cama.
Tocando-me intimamente, penso em gravar tudo em meu celular. A compulsão por sexo havia regredido com o tratamento e o afastamento de Ga'al, no entanto, agora, eu quero...eu preciso gozar e ser vista gozando.
- Essa é pra vc que me salvou daqueles monstros...- Falo diante da câmera que capta o exato momento em que tenho um orgasmo.
Durmo. Acordo em algum lugar sombrio onde seres bestiais me acolhem sem me tocar. Sou conduzida, através de uma caverna fétida e claustrofóbica, iluminada por tochas presas às paredes de pedra, a um altar onde eu o reconheço, sentado em seu trono.
- Vc não pode me tocar! - Alerto, amedrontada. - As bruxas me libertaram de vc! Quero voltar! Eu quero voltar ao meu quarto!
- Aqui quem manda sou eu, Adessa. Vc iniciou o ritual. Vc me invocou inconscientemente. Vc veio até mim. Eu não te chamei.
- Mentira! Traidor! Eu não te suporto! Onde estão as minhas roupas!?
Recuo enquanto ele avança em minha direção. Em algum sonho lúcido, eu me perco em suas mãos e, por ele, volto a ser violentamente usada diante de uma multidão de degenerados.
- Isso não é justo! Vc não pode ter tanto poder sobre mim! - Revolto-me com ele e seu pau dentro de mim.
- Vc ainda goza comigo, Adessa. Não negue. Vc é e sempre será a minha puta. - Ouço sua voz gutural enquanto ele me fode por horas.
Exausta e molhada, acordo em minha cama. Choro por compreender que ainda não estou livre dele. Ainda não estou curada da ninfomania.
Ainda não sou quem eu gostaria de ser.
Passo na cafeteria onde Giulia trabalha após correr por dez quilômetros na estúpida tentativa em reencontrar o carinha da moto. Guardo poucas lembranças da noite passada, mas, do pouco que me lembro, tenho nojo.
Talvez seja um progresso...
- Talvez.
- Vo vo vo...
- Seu avô deve chegar daqui a pouco. Por enquanto, só eu mesmo. - Gargalho de jogar a cabeça para trás. Ele me apoia com um braço em minhas costas para que eu não caia da cadeira giratória. - Vc não me parece bem...
- Tô sim. Agora que vc chegou. - Merda. Deu mole. Idiota. - Digo...agora...que...eu corri...digo...eu te vi...e...ah...deixa pra lá!
- Não sei quanto a vc, mas eu estou bem melhor agora que te reencontrei.
- Digo o mesmo. - Ruborizo evitando seu olhar, sugando o milk shake com canudinho. - Tá me seguindo? Eu nunca te vi aqui antes e agora...
- E agora o quê? Eu não posso ter gostado daqui e voltar?
- Não no mesmo horário em que eu frequento esse lugar!
- Ele é público.
- Mas eu o vi primeiro! - Rosno.
- É sério que vcs dois vão brigar feito adolescentes!? - Indaga Giulia, incrédula. - Tia, 'pega leve'. Ele é meu cliente. - Dando de ombros, concordo. - Ok. Venha quando quiser, desde que gaste muito porque ela ganha por comissão e aceita gorjetas.
- Tia!!! Que mico!!!
- Vcs são parentes?
- Não exatamente...- Interrompo Giulia e a refuto.
- Somos sim! Eu a vi crescer e a ensinei a dançar. Sou amiga de sua mãe, logo, posso dizer que somos parentes sim. Sem mencionar que eu a amo. - Apoio meu tronco sobre o balcão e a beijo na bochecha enrubescida. - Vc fica uma gracinha envergonhada, Giulia.
- E vc não muda nunca, tia! Adora me tratar como criança!
- Vc é uma criança, Giulia! Eu preciso cuidar de vc! Sua mãe me pediu!
- Concordo, Giulia. Em um mundo como o nosso, é sempre bom ter alguém mais velho com quem contar. - Apoia-me o carinha da moto que, aliás, não me disse seu nome. - Vincenzo. - Revela ele girando a cadeira em minha direção. Que porra! Ele ouviu...???
- Cruzes! Como faz isso!?
- Isso o quê? Eu não fiz nada. - Um tapa em seu braço e repito, meio que empolgada.
- Como leu meu pensamento??? Não ria! Responda! Não é a primeira vez!
- Não vai atender? - Pergunta-me ele apontando para o meu celular ''berrando" em minha mochila. Não posso atender. Certamente é um de meus clientes. O que vou dizer? "Ok. Daqui a duas horas vc me pega e me fode, mas antes eu quero ver o depósito em minha conta!" - Ele pigarreia baixando a cabeça e repete a pergunta. - Não vai atender? Pode ser importante. - É importante, mas não é tão legal quanto estar aqui...com vc, idiota. - Atende. Vai.
- Não! Eu não quero! - Irritada com sua insistência e com a porra do toque do meu celular, eu o pego e o desligo diante dele. - Pronto. Acabou. Finito. It's over! Cacete! Tá satisfeito!?
- Vc precisa dominar sua impulsividade. Isso pode te trazer prejuízos no futuro.
- Desde quando vc é habilitado pra falar de minha impulsividade ou do meu modo de ser?
- Desde que me formei em Psiquiatria há alguns anos. Conheço um pouco do Ser Humano. Saca? - O canudo faz barulho quando esvazio o copo e, soltando o ar pela boca, eu me calo. - Desculpa. Eu não queria...
- Não. - Digo num tom baixo. - Tô de boas. Vc tem razão. Eu preciso 'segurar minha onda' de vez em quando. Preciso retornar à terapia. - Encosto minha testa no balcão e repito num lamento. - Preciso retornar à terapia. Por que parei?
- Ei...- Vincenzo acaricia meus cabelos enquanto sinto a paz que ele irradia. - Não fica assim. Tudo tem jeito. Se acha que deve retornar à terapia, retorne. Vai te fazer bem. Vai te ajudar a se controlar em outros aspectos.
- Que 'outros aspectos'??? - Pergunto com a cabeça erguida. - Eu tenho cara de quem não tem controle sobre a minha vida???
- Eu não disse isso. - Defende-se ele, sorrindo. - Eu só quero que vc fique bem.
- Por quê???
- Por que não???
- Porque vc não me conhece. Não sabe do que vivo, como vivo, com quem eu lido todos os dias. Não conhece a vida dura que eu levo ou de quem eu tenho fugido sem êxito!
- Tia, calma...
- É fácil falar de mim sem ter noção do que é viver como eu vivo!
- Tia...para. - Ignorando Giulia, eu explodo. - Tem coisas que eu não quero fazer e sou obrigada porque paga bem. Porque preciso da grana. Caso contrário, eu já estaria bem longe daqui, escrevendo meu livro! - Salto da cadeira e sigo em direção a 'Juke Box', chutando-a com meus tênis. Escolho uma música qualquer e me surpreendo quando a máquina a escolhe por mim. Parada em meio ao salão, penso alto.
- É a mesma música de ontem.
- Tem tudo a ver com vcs, né tia? - Comenta Giulia limpando o balcão com um pano de prato úmido. - Fala de um casal que sempre se encontra numa cafeteria. Será que o destino...?
- Tira esse risinho do seu rosto, fofinha. Isso é ridículo. - Percebendo a insinuação de Giulia, Vincenzo, interessado, pergunta.
- Vc dançou essa música ontem? Onde? - Antes de mentir, sou bruscamente interrompida pela voz soturna que, num tom sarcástico, responde à pergunta de Vincenzo.
- No 'California'. Conhece?
- Jack! Não!
- Adessa! Que surpresa! - Sentando-se onde eu estava sentada há pouco, ele me olha com raiva nos olhos e, num tom irônico, comenta. - Vc é realmente inabalável. Ainda hoje, estava no palco e agora, pela manhã, já está aqui, linda como sempre.
- Palco? Vc é atriz? - Imobilizada e muda, eu deixo que 'Jack Tequila' arruíne minhas chances com Vincenzo. - Por que não me disse antes?
- Adessa!? Vc não a conhece!?
- Jack, sai daqui! Vc não é bem-vindo! - Grito sem conseguir me mover. - Vá embora!
- Vc é a proprietária da cafeteria!? Comprou com o suor do seu trabalho digno!? - Provoca-me ele, abrindo um sorriso sinistro. - Aaah...perdão. Seu amigo não sabe...?
- Adessa, vc tá bem? Vc tá tremendo.
- Eu já disse pra ela usar mais roupas durante o trabalho, mas ela não me ouve...
Finalmente eu me movo, com os punhos cerrados, em direção a Jack. Gargalhando, Jack me incita a me descontrolar. Vincenzo percebendo minhas intenções e meu estado emocional salta da cadeira e me impede de socar o rosto desprezível do barman do 'California'. Inusitadamente, Vincenzo me abraça e cochicha.
- Não liga pra ele. Tudo o que ele deseja é te ver descontrolada. Se acalma.
Em seu abraço, eu me demoro sentindo a paz retornar ao meu coração.
- Passou?
- Sim. Obrigada. - Cochicho.
- Quer ir embora daqui?
- Não posso! Não com ele aqui, perto da Giulia! Ele é perigoso! Eu sinto!
- Bobagem...- Diz Jack lançando seu olhar repugnante sobre a minha menina. - Que mal eu faria a um 'docinho' como esse?
Seu indicador ergue o queixo de Giulia quando num impulso selvagem, eu empurro Vincenzo com meu corpo e salto sobre Jack, jogando-o contra o chão da cafeteria. Giulia grita, nervosa. Vincenzo tenta me conter, segurando-me pela cintura enquanto, sentada sobre o corpo de Jack, distribuo socos em seu rosto. Seu sorriso continua ali. Exausta, eu me deixo levar por Vincenzo de volta à cadeira. Meus punhos e dedos estão doloridos e ensanguentados. Lavo as mãos na pia do outro lado do balcão quando meus pelos da nuca se eriçam ao ouvir Jack me ameaçar, antes de fechar, bruscamente, a porta de saída.
- Isso não morre aqui, Adessa. Vai ter volta. Em breve, a gente se encontra. Vc, eu e essa gracinha de criança com gosto de tutti-frutti.
- Maldito!!!
- Eu preciso trabalhar. Obrigada por tudo. Vc tem sido um cara bem legal.
- Porque vc merece. Merece que pessoas legais estejam contigo.
- Não. - Refuto diante do edifício onde moro. O vento frio esvoaça meus cabelos. Seus dedos retiram os fios que escondem meu rosto. Tento disfarçar o nervosismo, mas não consigo. - E e eu não mereço não.
- Por que não? Vc é filha de Deus.
- Não. Não sou. Não sou digna de seu Deus.
- Adessa, por favor, para de falar de 'Meu Deus' como se Ele não fosse o Seu também.
- Ok. - Concordo baixando a cabeça. Seu indicador ergue meu queixo quando falo. - Não sou o tipo de mulher com quem vc deve estar acostumado a lidar. Sou meio que...- Puta? Stripper? Perseguida e usada por um demônio? - Meio que...esquisita.
- Mesmo que vc fosse uma psicopata, eu ainda gostaria de ser seu amigo. - Amigo??? Nada mais??? E o que ele poderia querer com uma garota de programa??? - Amizade é mais importante do que qualquer outro tipo de relacionamento. - Seus olhos sob a luz do sol me fitam com doçura quando ele corta meu coração em pedaços ao declarar. - Ainda que eu me apaixonasse por vc, eu deveria abdicar de meus sentimentos.
- Po por quê!? - Arregalo os olhos enquanto improviso um coque no topo da cabeça com uma caneta que encontro dentro da bolsa. Vc é gay? Casado? Morto? Ele solta um riso triste e mata o que estava florescendo dentro de mim.
- Eu sou padre e exorcista. Eu posso te ajudar a se livrar...- Reagindo da pior maneira possível, eu o afasto num empurrão. Mortalmente ferida em meu orgulho de mulher desejada por muitos, aviso num tom rude.
- Fica longe de mim! Não preciso de sua piedade!
- Espera um pouco...- Pede-me ele na defensiva. - Eu não quero me afastar de vc.
- Mas eu quero! - Grito, reativa. - Não sou do tipo que precisa de amigos!
- Todos precisam.
- Não eu! Engula seu sorriso complacente, Vincenzo, e vaza da minha vida!
Antes que eu me apaixone por vc...
Faz tempo que não o vejo. Melhor assim. "O que os olhos não veem, o coração não sente", dizia minha mãe. Ainda assim, sinto sua falta. Um vazio dentro de mim como se o conhecesse há séculos. Um vazio que tento preencher com meu trabalho que me leva de volta à ninfomania. Saber que ele poderia me curar se me amasse me faz ter raiva e a raiva, transforma-se em lascívia.
- Me fode com força, porra! - Grito em alto e bom tom uma das poucas 'falas' de minha personagem em um dos muitos filmes eróticos que volto a gravar. Um sexo mecânico, sem sentimentos. - Tô tentando! - Respondo, irritada, ao diretor que me pede para demonstrar tesão em minhas feições. - NÃO É VC QUE TÁ COM DOIS PAUS ENFIADOS NO TEU CORPO!
- Vc é paga pra isso, Adessa. E muito bem paga! - Repreende-me ele bem próximo a mim. - Faz cara de quem está gostando.
Esqueço-me de Vincenzo e me entrego aos prazeres da carne. Filmes, vídeos caseiros, programas com um ou mais parceiros. Minha conta bancária está rechonchuda enquanto eu me sinto sugada, desnorteada. Por que aquele homem surgira em minha vida? Depois dele, eu nunca mais fui a mesma. Sexo e culpa andam de mãos dadas enquanto danço no palco do 'California' ao som de meus 'flashbacks'. Retiro o sutiã ansiando que ele me veja e, talvez, me deseje e...talvez...me queira um dia. Mas ele nunca surge diante de mim para me retirar do palco e me cobrir com sua jaqueta jeans e me repreender afirmando que sou dele...somente dele.
- Tem visto aquela coisinha linda da cafeteria, Adessa? Ou devo dizer "The Flashbackgirl"? - Um súbito calafrio e, em pé, diante do bar, sem encarar Jack Tequilla, peço secamente.
- Um 'Sex on the Beach', por favor. - Seu riso sinistro me incomoda, mas permaneço ali, remoendo sua pergunta, de costas para ele. Eu, de fato, não voltei à cafeteria desde o último encontro com Vincenzo. Não tenho notícias de Giulia. Por que diabos ele continua a rir? De súbito, volto-me em sua direção e o esnobo. - Tá pronto!? Não quero ficar aqui! Tua presença me faz mal! - Um gole do drink e gargalho diante de sua pergunta. - Vc e eu...juntos? Nunca!
- Eu pago bem. - Defende-se ele, visivelmente ofendido. - Eu só queria...- Esvazio o copo e cuspindo em seu rosto desfocado, eu o ofendo, sentindo-me superior a ele.
- Daria meu corpo de graça a qualquer um daqui, Jack, mas pra vc, nunca! Vc é a escória! Tenho nojo de vc...- Esbarro no copo. Ouço o som do vidro se partindo contra o chão acarpetado. Olho ao redor e só vejo sombras. Doc!? - Chama o Doc pra mim...por...favor. - Peço, agarrando-me ao balcão. Seu rosto vem e vai enquanto minhas pernas vão perdendo as forças.
- Doc precisou sair, Adessa. - Avisa-me ele num tom soturno. - Mas eu fiquei. Não é engraçado? Vc e eu estamos aqui, sozinhos e vc ainda me trata mal.
- So...zi...nhos? - Seus braços me erguem e me deitam sobre o balcão. Estou com frio. Fraca. Não consigo socar seu rosto...sequer mover minhas mãos. - O que vc...fez...creti...no?
Antes de apagar, eu o ouço dizer baixinho contra minha boca.
- Alguns chamariam de vingança, mas eu prefiro o termo "Justiça".
- Onde eu tô? Que cheiro horrível é esse!?
- Bem-vinda ao meu lar, Adessa Love.
Abro os olhos. Ainda tonta, minhas lembranças vem em flashes. A última dança no palco do 'California'. O gosto amargo do 'Sex on the beach'. Os olhos insanos de Jack encarando-me, triunfante antes de desmaiar.
Tento manter a calma, embora a sensação de claustrofobia me tome por inteiro. Tateio, na escuridão, o espaço ao meu redor. Está molhado. Levo as mãos ao nariz e vomito. O odor fétido de urina e fezes se alastra pelo quarto fechado. Engatinho até um dos cantos. Percebo que estou com minhas botas de cano longo, ainda de biquini. Encolho-me, enojada. Ouço o som agudo de ruídos de ratos. Chuto para todos os lados, aleatoriamente quando grito, horrorizada.
- JACK!!! ME TIRA DAQUI!!!
Apuro minha audição e ouço uma respiração fraca...no outro canto do quarto.
- Tem alguém aí? - Pergunto com pavor da resposta que vem num sussurro.
- Me ajuda...
- Deus do Céu! - Seguindo o som da voz, engatinho até esbarrar em um corpo estendido no chão. Grito por socorro enquanto tomo coragem para tatear o corpo.
Toco em sua mão e sinto seu pulso latejar com fraqueza. Mãos pequenas. Cabelos longos, sujos. O corpo esquálido...seios. O rosto frio. Presumo que seja uma menina.
- Vc pode me ouvir? Qual o seu nome, meu anjo? - Sinto seu esforço em se mover. Eu a puxo para mim, acomodando sua cabecinha em meu colo. Seu cheiro é insuportável. Deve estar aqui há muito mais tempo do que eu. - Pobrezinha. Fala comigo. Eu vou te tirar daqui. - Prometo, entre lágrimas. - Meu nome é Adessa. Vc consegue falar? - Movendo a cabeça numa negativa, imagino que esteja extremamente fraca. Eu a abraço com força e a nino como o faria à minha filha. Sua pele fina está 'craquelada' como se algum líquido tivesse secado ali, ao redor da boca. O pânico aumenta quando sussurro. - Eu vou te salvar. - Ela chora em meu colo, enlaçando seus braços fracos em minha cintura. Sinto sua aflição. Seu desespero. Cerro os olhos e mergulho em suas memórias.
Pães, croissants. Gente sorrindo. Música na 'Juke Box'. Ouço seu riso. Ela caminhando à noite. Uma rua deserta. Música em seus fones de ouvido. Bolas de aniversário presas às mãos de um homem com capuz. O rosto de Jack enquanto a empurra num furgão. Ela grita por sua mãe.
Sorrio ao lado de Vincenzo...
- Não. Não não não...Giulia???
Choro copiosamente, beijando o topo de sua cabecinha enquanto ela me abraça forte, sem formar frases. O som sai de sua garganta, mas ela não fala. Por quê???
Com dificuldade, eu a carrego em meu colo até um ponto do quarto iluminado pela luz da lua que atravessa brechas de uma janela em madeira. Procuro por seus olhos. Estão inchados e úmidos. Aquele maldito a espancara. Chorando e beijando sua testa continuo a prometer tirá-la dali quando solto um grito de horror ao observar sua boca aberta numa súplica. Eis o motivo pelo qual ela não fala. Imaginando o quanto ela sofrera, eu a aperto contra meu peito e digo a mim mesma, de olhos fixos no teto.
- Ele cortou sua língua. Miserável. Eu vou matar esse monstro.
Sua roupa rasgada, o sangue entre as pernas...
Ergo-me à beira da loucura, esmurrando a porta com minhas botas até tirar lascas da madeira velha...podre. Rasgo a pele das mãos ao tentar alcançar a maçaneta do outro lado quando, repentinamente, sou arremessada contra a parede, abaixo da janela. Jack abre a porta violentamente e, gargalhando como um louco, deixa a luz invadir o quarto. Demoro minutos para enxergar o que nunca deveria ser visto.
Arrasto-me até Giulia que não consegue se mover. Rosno para ele enquanto a seguro em meu colo. Ela está mais magra e avassaladoramente mais triste, quase sem vida.
- MALDITO! EU VOU TE MATAR!
- Mesmo? Acho difícil. - Diz ele, sarcasticamente. - Em pensar que tudo isso poderia ter sido evitado se não fosse por vc e sua arrogância, Adessa.
- NÃO! NÃO SE APROXIMA DE MIM!
- Não. - Replica ele num tom contido. - Não é vc quem eu desejo. É a garota 'tutti-frutti'. - Com minhas botas, eu o atinjo entre as pernas antes de ele tocar em Giulia que demonstra horror em seus lindos olhos castanhos...e inocentes. - Não adianta gritar ou tentar me bater, Adessa. Estamos sozinhos e longe da civilização. Nem mesmo seu padrezinho de merda pode te salvar agora. - Protegendo o corpo de Giulia com o meu, eu berro numa súplica.
- NÃO TOQUE NELA! EU TE IMPLORO! FAÇA O QUE QUISER COMIGO! ELA JÁ SOFREU DEMAIS!
- Que nada! Ela até gostou! - Outro chute certeiro de minhas botas contra seu rosto e o vejo lamber o sangue que escorre de sua testa. Vou enlouquecer a qualquer momento enquanto ouço Giulia urrar de medo. - Uma pena ela ter gritado tanto. Eu não queria ter feito isso...- Aponta ele para a boca de Giulia. Voltando a rir, ele assume. - Mentira! Queria sim! Odeio trepar com mulheres escandalosas! A língua dela serviu de alimento aos ratos...
Num impulso movido pela ira, revolta e asco, eu me jogo contra ele e o derrubo no chão pestilento. Apoio minha mão em seu pescoço e, com o punho da mão livre, cerrado, soco seu rosto repetidas vezes. Fraca, ele me vence ao me empurrar para o lado e, com suas mãos em meu pescoço, ele me sufoca enquanto movo freneticamente, braços e pernas até que ele me liberte. Puxo o ar pela boca, voltando a respirar quando ele avisa, abrindo um lento e repugnante sorriso.
- Não vou perder meu tempo com vc agora. Ainda não terminei de conversar com aquela gracinha ali atrás.
- NÃO, JACK! POR FAVOR! NÃO! NÃO! - Arrasto-me sobre urina e sangue até alcançar seu tornozelo. - Faça comigo. - Imploro ao ver um pedido de ajuda no rosto, antes plácido de Giulia, nos momentos felizes na cafeteria. - Ela é só uma criança...- Chutando meu rosto, bato com a cabeça contra uma poça de sangue enquanto ele a arrasta pelos cabelos até a sala em frente à nossa. - POR FAVOR! NÃO! ME LEVA! ME LEVA!
Com o sangue de Giulia em meu corpo, engatinho até a porta que se fecha bruscamente. Sua voz impregnada de maldade, alerta pelas frestas da porta.
-Tenho outros planos pra vc, Adessa.
Surtando com os urros de Giulia que não pode gritar, jogo-me, repetidas vezes, contra a porta fechada, sem me importar com as farpas da madeira rasgando a pele do meu corpo.
- ABRA A PORTA! ABRA A PORTA, JACK! ME PERDOA! ELA NÃO TEM CULPA! ELA NÃO TEM CULPA! ABRA A PORTA!
Novamente sou arremessada contra a parede pela porta aberta, bruscamente. Jack me observa com seus olhos malignos e, sorrindo diabolicamente, muda de ideia.
- Tem razão. Vou deixar a porta aberta. Vc precisa assistir a tudo, de camarote. - Vindo em minha direção, ele me ata à cordas e me faz ajoelhar. Penso que Giulia está livre de sua maldade. Agora é a minha vez. Que Giulia se livre dele.
Mas eu me enganei... O que vejo a seguir jamais sairá de minha cabeça. Jack amarra Giulia sobre uma mesa, atando seus punhos e tornozelos, deixando suas pernas abertas. Giulia chora como a criança que é e aquilo me mata por dentro. Meus berros implorando que ele a solte não o impedem de violar o corpo dela de diversas maneiras, sem descanso. Ajoelhada, ele puxa meus cabelos, obrigando-me a assistir a tudo e quando já não suporto mais e baixo a cabeça, ele chuta meu queixo com violência. Chego a pensar que desloquei o maxilar de tanta dor que sinto, caída no chão, amarrada, impotente. Giulia para de gritar e fixa os olhos no teto. Parece não estar ali. Penso que o horror terá fim, mas eu me engano...novamente.
É quando o pior acontece. Jack crava um punhal em seu peito e com extrema habilidade, retira seu coraçãozinho, ainda pulsando, e o mostra para mim sem nenhuma expressão em seu rosto. Cerro os olhos inchados de tanto chorar e já não tenho voz para gritar quando vejo brotar sangue da boca de Giulia. E eu nada fiz para salvá-la... - MONSTRO! - Urro de repulsa e ira ao vê-lo comer seu coração sem tirar os olhos frios de mim. - EU VOU TE MATAR! - Vai mesmo? - Com o rosto sujo pelo sangue puro de minha de Giulia, ele vem em minha direção. Arrasto-me pelo chão sem conseguir pensar no que fazer porque eu não quero morrer antes de assistir ao seu fim. NÃO MESMO! - Vc não vai a lugar algum, Adessa.
Jack se livra do corpo de Giulia com extrema frieza, jogando-o contra o chão. Eu a toco e peço que sua alma saia do corpo e não se lembre de mais nada. Antes de terminar minha oração, sou jogada contra a mesa, sobre o sangue inocente de minha querida amiga, meu anjo.
- Sua vez chegou. - Avisa-me Jack, lambendo meu rosto. - Ainda não sei o que fazer com vc. Te matar é pouco. - Diz ele enquanto me prende às cordas como o fizera a Giulia. Cuspo em seu rosto. Ele atinge o meu com um soco. Meu pescoço gira, violentamente. Volto a ver o corpinho de Giulia sem vida, jogada no chão imundo como se fosse um lixo. - Por que se negou sair comigo? Eu te pagaria bem pelo que vou fazer agora, de graça.
- Vc não sabe com quem está lidando, Jack. - Rosno enquanto ele me penetra com seu pau pequeno. - Faça o que quiser comigo, mas saiba que, daqui, vc não sairá com vida.
Ajoelhada ao lado do corpo de Giulia, não grito enquanto ele me chicoteia, aos risos. Ver Giulia morta por minha culpa, anestesia a pele flagelada de minhas costas.
- VC MERECE MAIS! MUITO MAIS, ADESSA!
Observo tudo com maior clareza. Olho ao redor e os vejo ao lado de Jack, insuflando...incentivando-o a cometer mais barbaridades. O verme é uma marionete nas mãos de seres bestiais que se alimentam do sangue de suas vítimas.
Há outro corpo próximo à porta de saída. Giulia não fora a primeira. Cansado de tanto me chicotear, ele me chuta na altura das costelas. Caio ao lado de Giulia e, rindo histericamente, eu o incito a me perder o controle. Em posição fetal, defendo meu rosto de seus chutes. Um brilho metálico surge em meio à escuridão. Os seres bestiais se movem, frenéticos ao redor da mesa de onde caí.
- Últimas palavras, Adessa? - Pergunta-me ele com um punhal na mão erguida. De costas para ele, ajoelhada, traço riscos no chão com o sangue inocente de Giulia. Num tom baixo, falo em um dialeto usado por bruxas. Eu repito as palavras por diversas vezes, aumentando a velocidade com que as pronuncio até gritar por seu nome. Sei que perderei minha liberdade. Sei que voltarei a ser dele, mas eu não vou...eu não posso...eu não quero e não admito que Jack permaneça vivo. - O que é isso que vc tá fazendo!?
- Com medo, Jack Tequilla!? - Meus olhos incidem sobre um ponto acima de sua cabeça quando ordeno, com todo ódio que há em meu ser.
- Destroce-o, Ga'al! Acabe com esse verme, agora e serei sua novamente!
Ga'al sorri para mim. Um sorriso de triunfo quando o ergue pela gola da blusa. Jack se desespera, debatendo-se no ar. Seus olhos assustados procuram por alguém ao seu redor quando Ga'al se materializa aos seus olhos e, com as garras no pescoço de Jack, avisa com sua voz gutural.
- Agora é a sua vez!
Jack Tequilla pede clemência antes de ter sua coluna vertebral partida ao meio. Fecho os olhos, aterrorizada. Nunca vira Ga'al ser tão feroz. Abro os olhos e o vejo retirar o coração de Jack, ainda pulsando e, mordê-lo como um cão raivoso. Escorrego no sangue de Giulia enquanto tento fugir dele.
Meu Deus, o que eu fiz!?
- Vc me invocou e agora, serás minha novamente. - Diz Ga'al contra minha boca. Sorrindo, ele se desfaz, aos poucos, ao revelar enquanto ouço chutes na porta de entrada. - Ele novamente. Seu padrezinho veio te salvar. - Arremessando o corpo de Jack contra a porta, ele me faz tremer de medo ao anunciar. - Estarei contigo hoje à noite...Adessa.
- Como me achou?
- Não importa. - Responde-me Vincenzo, desorientado. Ele me cobre com seu casaco em moletom e me pede para ficar no carro, sentada no banco do carona. De onde estou, escuto seu urro de raiva, seu choro de impotência. Eu o vejo trazer em seu colo o corpo sem vida de Giulia. Sem nada falar, ele me lança um olhar onde fúria e compaixão se misturam. Ele acomoda o corpo de Giulia no banco traseiro do carro como se ela estivesse dormindo. Recostando a testa ao volante, ele demora antes de me perguntar, soltando o ar pela boca. - Quem fez aquilo com o Jack?
Um arrepio sacode meu corpo quando evito seu olhar e, voltando-me para meu reflexo na janela fechada, respondo.
- É melhor não saber.
- Adessa!
- Me leva pra casa, pelo amor de Deus. Eu ainda preciso me encontrar com a mãe...
Não completo a frase porque minhas lágrimas embargam a minha voz. Choro copiosamente nos braços de Vincenzo que me consola, sussurrando.
- Eu vou te livrar dele. Prometo.
"Nossa Giulia sempre foi um anjo. Dançava muito bem e, na cafeteria, não havia ninguém que não gostasse dela. Deixe que eu realize seu sonho em abrir a sua própria cafeteria. Deixe-me amenizar sua dor. Sei que luta por continuar a viver. Quando encontrar um local, dê o nome dela à cafeteria."
Foi o que eu dissera à mãe de Giulia, avassaladoramente inconsolável. Jamais contaria a verdade surreal. Inventara algo mais sutil como um acidente de moto com uma das amigas. Sua mãe não vira seu corpo. O caixão permanecera fechado do início ao fim do funeral. Ainda fraca e horrorizada, lembro-me de seu fim. Vincenzo me apoia para que eu não caia sobre seu túmulo baixando à terra. Terra úmida e escura que cobre a madeira maciça.
"Não recuse minha ajuda, por favor. É o mínimo que posso fazer", peço à sua mãe com os olhos distantes. É o mínimo que posso fazer já que não consegui salvar a vida de um anjo.
- Eu não consegui. - Repito jogando uma rosa sobre o túmulo de Giulia.
Tento dormir sob efeito de ansiolíticos. Vincenzo pede-me para dormir no sofá, em meu quarto, alegando estar preocupado comigo.
- Eu não sou tão boba quanto vc pensa. Eu fui a culpada por tudo. Mereço um castigo.
- Não fala assim. - Repreende-me ele, cuidando de meus ferimentos, após lavar meu corpo debaixo de uma ducha morna. - Deus não castiga.
- Pois deveria. Como seu Deus pôde deixar que aquele verme tocasse em um ser tão puro?
- Eu não sei te dizer. Sei que, onde quer que ela esteja agora, estará em paz, dormindo um sono profundo e, quando acordar, vai encontrar o Mestre.
- Quando eu dormir, vou encontrar com um demônio...- Bocejo enquanto ele me cobre com meu edredom. - Não me olhe assim. Eu precisei invocá-lo. Deveria ter feito antes de Giulia morrer, mas eu ...eu não...não raciocinei...deveria...
- Durma, meu anjo. Eu estarei aqui quando ele chegar. Eu espero por esse encontro há tanto tempo.
Caminho até ele sem medo. Ele me aguarda em seu trono, em sua forma diabólica. Seu pau enorme à mostra. Seu sorriso lascivo, os lábios se movem ao dizer.
Com os olhos do corpo astral, eu o vejo me foder com seus olhos azuis mais escuros do que o normal. Espanto-me. Dentro de mim, ele faz meu corpo chacoalhar quando, enfim, goza.