Vida que segue. É o que dizem. Estou seguindo com a minha. Antoine e eu estamos juntas e é isso o que importa. Por duas vezes, seu dedo inflamou e, por duas vezes, voltou ao normal como se nada houvesse acontecido. Não quero relacionar isso ao incidente do dia de sua festa de aniversário. Não quero dar importância à minha intuição.
Talvez, devesse...
Meu apartamento está à venda. Antoine recebera com uma alegria inocente a notícia de que mudaremos para outra casa um pouco menor do que a nossa. Mais uma vez, usara de eufemismo. Na realidade, pretendo comprar um imóvel muito menor do que esse apartamento nababesco onde vivera momentos inesquecíveis. As paredes desse quarto guardam lembranças das quais desejo me desfazer. Desde os abortos de meus dois filhos até o inexplicável sequestro de Ga'al, o demônio que desejava um corpo humano. Por onde ele deve andar? Não que eu o queira em minha vida novamente, mas, é, no mínimo, estranho que ele tenha desistido de mim após me manter refém por três terríveis meses dentro desse quarto que, agora, me sufoca. Onde eu me entrego aos gostos suspeitos de Aiden e reforço meu prazer por sexo violento. É disso que gosto. É assim que têm sido minhas noites após permitir que ele ocupasse o lugar que fora de Vincenzo.
Vincenzo...
Superei o fato de que Vincenzo e Sweet estão juntos. Creio que sim. Espero que sim. Até hoje, não os vira novamente.
Até hoje...
Caminhando pelas ruas do meu bairro, ainda triste pela morte de Luka, penso na dor que levara sua mãe ao suicídio. Quando prometera a Luka que ele a veria novamente, não supunha que ela faria algo assim. Teria sido obra do espírito perverso ou vontade de se reencontrar com o filho amado? Talvez, o arrependimento tardio a tenha levado a se enforcar no quarto do filho.
O que eu não compreendo é como alguém escolhe se enforcar ao invés de tomar veneno ou apontar um revólver contra a própria cabeça. Seria muito mais rápido e indolor.
Comprar um corda, aprender a dar o nó perfeito, subir na cadeira, enrolar a corda ao pescoço, chutar a cadeira e aguardar, talvez, por muitos minutos, a morte chegar. O que se passa na cabeça do suicida enquanto se vê ali, pendurado, movendo braços e pernas, aleatoriamente, até que o cérebro perca seu suprimento de oxigênio?
Putz. Essa seria a última forma com a qual eu tentaria me matar. Muito esforço e sofrimento para nada. Ela não se encontrou com ele. Eu ainda o sinto em uma relva, cercado por flores e árvores frondosas à espera de sua mãe. Pobrezinha. Se eu pudesse fazer algo por ela.
- Pode rezar por sua alma.
- Inferno. - Rosno, assustada. - De onde surgiu?
- Vc fica parada em frente ao local onde trabalho e me pergunta de onde surgi? - Um daqueles sorrisos e me pego arfando. Estúpida. - Por onde andou? Sinto sua falta.
- Vc tá suado. - Observo seu torso nu sob a luz alaranjada do poste em frente ao galpão de boxe. Recordo-me de quando lutamos juntos no ringue. Ele me ensinara alguns golpes antes de me deitar e...- Tem gente te esperando lá dentro. Retira a porra desse sorriso da cara e sai da minha frente.
- Por que parou aqui?
- Eu não parei. Vc tá me impedindo de passar.
- Dess, vc está parada aqui faz uns vinte minutos.
- Não seja ridículo. - Sério??? - Por que eu faria isso?
- Saudades? - Sugere Vincenzo em seu novo visual. Gostei de seu cabelo quase raspado e dos músculos à mostra. Da última vez em que o vi, seus cabelos estavam suados e sem corte. Da última vez...ele se foi. Faz tanto tempo! - Eu te devo desculpas.
- Não me deve nada. - Refuto, angustiada, sem mover um músculo. - Preciso continuar a procurar.
- O quê?
- Sai da minha frente. Vá trabalhar. Solta meu braço.
- Que hematomas são esses, Dess!? - Cobrindo meu antebraço com a manga do moletom, cruzo os braços na altura dos seios. Não posso pensar em uma resposta porque ele, certamente, ouvira antes de eu falar. Não vou pensar, nem falar. - Dess...- Expressando incredulidade, ele volta a perguntar. - Quem te fez isso?
- Eu deixei que fizesse. O corpo é meu. A vida é minha. - Recuando, ele murmura.
- Foi o Aiden. Eu te avisei pra não lhe dar permissão.
- Desde quando eu preciso de sua permissão pra usar o meu corpo!? Não vou discutir com vc, Vincenzo! Eu tô feliz! Minha filha tá feliz! Vc fez a sua escolha! Eu fiz a minha! Tenha uma ótima noite e me deixa passar! - Forçando passagem, toco minha mão em seu ombro. Imagens difusas chegam até mim.
As filhas de Sweet choram em um quarto enquanto Sweet aplica algo em sua veia. Vincenzo a leva em seu colo. Grandes asas escuras alçam voo. Vincenzo cruza o umbral de uma capela. Jujuba, a caçula de Sweet, chora em seus braços. Vincenzo a faz sorrir. Padre Pietro e Vincenzo conversam debruçados sobre uma mesa em madeira. A vela sobre a mesa se apaga, subitamente. Sweet grita com Jujuba. Padre Pietro benze um crucifixo. Vincenzo o guarda no bolso de seu casaco em moletom. Duas figuras aladas se confrontam. O ser com asas claras baixa a cabeça enquanto o outro, gargalha. A cena se repete. Sweet com a seringa na mão. Suas filhas choram. No leito de um hospital, Vincenzo cochila ao lado de Sweet, acamada. Vincenzo, antes de sair de seu quarto, beija um porta-retratos ao lado de sua cama. Grandes patas tateiam a grama úmida. Em uma das patas, um celular. "Não", rosna ele. Sua mão trêmula abre outra mão onde deposita o crucifixo bento. Solitário, ele chora enquanto caminha através da névoa. Asas escuras o rodeiam quando ele sussurra: "Vc venceu. Acabou".
- Dess! Vc tá fria! - Alerta-me ele, envolvendo-me em seus braços. Eu ainda daria tudo por me manter aqui, nesse abraço. Como sou estúpida. - Mais uma de suas visões? - Sussurra ele. - Percebeu que eu não tive opção? Que eu nada tenho com ela?
- Isso já não tem importância...- Lamento contra seu peitoral nu. - Eu já fiz a minha escolha quando vc fez a sua. - Inspiro seu cheiro cítrico e, com minhas mãos, eu o afasto. - Vc não precisava se afastar de Antoine. Ela ainda o chama de pai. - Seus olhos úmidos me encaram. Sua boca emudece. Há dor em seu semblante quando, dando um passo para o lado, tento me desviar dele. - Sai. Eu preciso continuar a procurar.
- O quê?
- Um emprego. Não sei porque eu tô te dando satisfação, mas eu preciso de um emprego antes que minha grana acabe. Se souber de algo, me avise.
- Eu posso te ajudar. - Diz ele caminhando ao meu lado. - Me deixa, Dess. Eu tenho minhas economias. Eu tenho a casa na praia. Vcs poderiam...
- Não preciso! - Aviso cobrindo minha cabeça com o capuz do moletom. Um misto de ansiedade e desânimo me faz confessar. - Já tenho onde morar!
- Onde? Para um pouco! Fala comigo!
- Tarde demais, padre. Eu já pequei.
- Do que tá falando, Dess!? - Com seu corpo, ele me impede de seguir adiante. Com seu sorriso triste, ele me impede de ser feliz com outro homem além dele. - Dess, olha pra mim. Onde vai morar? De que pecado vc tá falando? Vc voltou a se prostituir? - Movo a cabeça de um lado ao outro enquanto ele me enche de perguntas. Seu desespero cresce à medida em que tento não pensar no que não desejo fazer. - Fala! O que vc tá me escondendo!?
- Casamento.
- Heim!? Não entendi! - Baixando a cabeça coberta pelo capuz, caminho, deixando-o para trás ao declarar em alto e bom som.
- Aiden e eu vamos nos casar! Antoine terá um pai de verdade! Até nunca!
- NÃO FAZ SENTIDO! - Grita ele enquanto paro e o escuto sem olhar para trás. - SE VCS ESTÃO JUNTOS, POR QUE VC PRECISA DE UM EMPREGO!? ELE TEM GRANA!
Corro antes de dar a Vincenzo a chance de ler meus pensamentos. Aiden me propôs, mas eu ainda não o aceitei.
Há algo entre Antoine e ele que me deixa inquieta.
- Por quê?
- Por que o quê?
- Suas mãos são sempre frias. Por quê?
- Porque não tenho alma. - Responde-me Aiden sorrindo. - Vc e suas desconfianças.
- Foi só uma pergunta. O resto do seu corpo é tão quente...
- Principalmente o meu pau. - Gaba-se ele deitado ao meu lado. - Vc ainda gosta dele?
- Sim. - Respondo, distante. Ainda o sinto dentro de mim quando comento. - Gosto mais do seu coração. Vc é bom comigo e com Antoine. Não me deixou sozinha quando eu mais precisei.
- E nunca deixarei...- Promete-me ele deitando-se sobre mim. Ele não se cansa. É viril, fogoso, incansável, insaciável. - Casa comigo. Por que não diz 'sim'?
- Porque não é tão simples quanto imagina.
- Não? Basta dizer 'sim' e eu serei somente seu e vc, somente minha.
- Isso me assusta. - Sussurro contra seus lábios quentes e famintos. Estou exausta enquanto ele parece ter acabado de acordar. Seu pau ereto está entre minhas pernas cansadas. - Nunca me casei. Nunca namorei. Vc é o primeiro homem com quem me relaciono por mais de quatro meses sem interrupções. Não sei se serei uma boa esposa. Talvez ainda esteja doente.
- Será...- Afirma ele mordiscando meu pescoço. Gosto de seus carinhos, de seus arroubos. Gosto do jeito como me toca e me fode, mas, algo nele me assusta. Essa intensidade me faz lembrar de algo que me atormenta, embora eu não saiba o que é. Encarando-me com seus olhos escuros, ele ronrona antes de me invadir novamente e me encher de dúvidas. - Seja minha esposa e eu te darei o mundo. Dá-me a tua mão e a tua alma e, em troca, eu terei um corpo.
Vendo meu apartamento por um valor acima do avaliado. Tenho poucos dias para desocupá-lo. Ainda perplexa com a quantidade de zeros no saldo de minha conta bancária, levo Antoine, Cassandra e as filhas de Sweet ao cinema. Convenço Aiden a não vir dormir comigo hoje. Dormir? Ele não dorme. Ele me fode o tempo todo como um leão ninfomaníaco.
- Não vou conseguir dormir sem vc.
- Vai sim.
- Não vai me chamar de 'amor'? Vc me chamou ontem enquanto eu te fodia.
- Vc nunca faz amor, Aiden? Nunca experimentou?
- Sim. E me arrependi pelo resto de minhas vidas...
- Aaaah tá! Aquele papo de outras vidas não! - Protesto entre risos. - A gente se vê amanhã. Ok? Hoje é a noite das meninas! Antoine tá animadíssima! Jujuba e a irmã virão dormir aqui!
- Quantos anos tem a mais velha?
- A filha de Sweet?
- Sim.
- Por que quer saber?
- Porque sou um traficante de órgãos, ué!
- Deixa de ser bobo...
- Vc sempre pensa o pior de mim. - Lamenta Aiden do outro lado da linha. - Gosto de crianças. Só isso. Fiquei curioso.
- Tem sete anos. Assim como Antoine. Ela é fofa, mas eu sou apaixonada pela mais nova. A Jujuba. Ela é forte e guerreira como Antoine. Tem luz própria, entende?
- Sim. A minha luz se apaga sem vc, baby. O que eu faço hoje à noite?
- Tome um bom vinho e vá dormir pensando em mim...
- Já tenho uma resposta?
- Não entendi.
- Sim ou não?
- Aaaah! - Hesito de olho na foto onde Antoine e Vincenzo ainda dormiam juntos em seu quarto. O obturador da câmera do celular capturou o exato momento em que ambos sorriam, tranquilos. Arquejo de dor e saudades antes de responder. - Então...
- Baby, não me faça de bobo. Por favor.
- Não farei. Eu tô com medo. Só isso.
- Não se encontre com aquele homem. Ele é mau.
- Não vou. Juro. - Minto. Pretendo passar em frente ao galpão de boxe após o cinema. Antoine quer ver aquele a quem ela ainda chama de 'pai'. - Vou desligar. Te vejo amanhã...baby. - Rindo de mim mesma, aperto a tecla em vermelho com a sinistra sensação de estar sendo observada enquanto me visto. Há marcas de mordidas e hematomas por todas extensão de minhas coxas e pescoço. Sem mencionar que minhas partes íntimas estão quase que intocáveis. Não me recordo de ter estado assim enquanto trabalhava como garota de programa atendendo a seis clientes por dia ou como atriz pornô. Coberta do pescoço até os joelhos, estaciono em frente ao galpão de boxe. Vincenzo parece ter adivinhado minhas intenções porque já nos espera na calçada...
Meu coração ainda bate mais forte quando o vejo sorrir. Sem dizer uma palavra a mim, ela abraça Antoine que o chama de 'pai'. Em seu colo, Vincenzo a acaricia e a chama de 'filha'. Enciumada e confusa, eu os deixo sozinhos e volto ao meu carro. Deixara as filhas de Sweet em casa antes de passar no galpão. Preocupada com o estado caótico da casa e de Sweet, tento falar com ela ao celular. Nada. Ninguém atende. Distraída, não o vejo se aproximar da janela de onde me observa calado. Antoine, sentada ao meu lado no banco do carona, gargalha de jogar a cabecinha para trás.
No rádio, rola um flashback quando pergunto, desconfiada.
- O que houve, filha?
- Meu pai tá aí faz um tempão e a senhora não viu!
- Vincenzo...- Rosno ao guardar o celular na bolsa. - Não tem o que fazer? Já posso ir embora ou ainda vai bancar o 'bom moço'?
- O que é isso, mãe?
- Filha! - Repreendo-a. - Saca aquela história de não se meter em assuntos de adultos!?
- Já sei. Já sei. - Resmunga ela pulando para o banco traseiro. Com fones nos ouvidos, ela cantarola enquanto Vincenzo continua a me observar, calado. Se ele não me impedir, serei obrigada a me casar com Aiden a fim de manter o padrão de vida ao qual Antoine está acostumada. Não. Na verdade, não quero me casar com ele. Eu não o amo. Quero que esse imbecil à minha frente me peça para largar tudo e fugir com ele. Mas ele é tão surdo e cego e burro...- Te amo, pai. - Deitando-se no banco, ela avisa, num bocejo. - Vou dormir. Qualquer problema, me chama.
- Eu mereço...- Resmungo olhando-a pelo retrovisor interno. Enfim, Vincenzo murmura uma pergunta.
- Vc vai se casar com ele? É sério?
- Tenho outra opção!? - Indago, ansiosa.
- Tem.
- Qual!?
- Não se case. Me dê um tempo pra resolver tudo. Achar uma solução que não machuque Antoine ou vc e, depois, a gente fica junto.
- Sério!? - Zombo dele. - Após anos de enrolação, essa é a tua proposta!? Quer que eu te espere mais ainda!?
- Dess...
- Olha. - Saio do carro e encosto a porta. Não quero que Antoine nos ouça. O vento frio traz seu cheirinho de maçã verde que, talvez, eu inspire pela última vez. - Eu nem me importo mais com o lance entre Sweet e vc. Te juro. Não acredito que tenham algo de emocional que os ligue. Sério. Pode ser físico ou pode ser pura compaixão de sua parte. Ela tá precisando de ajuda. Algo tá rolando na casa dela e com ela e eu não tô conseguindo manter contato. Ela precisa de apoio e vc é o cara que apoia, né!? - Um riso triste e complemento. - Mesmo que depois, meta o pé na nossa bunda. Tudo bem. Fica perto dela. Tem algo de sinistro acontecendo ali. Eu não tenho mais tempo e paz de espírito pra cuidar dela. Preciso tomar uma decisão a fim de garantir uma boa vida a Antoine.
- Antoine precisa de amor, Dess! Não de 'boa vida'! Eu tenho uma casa! Um emprego! Tenho grana no banco! Tenho amor por vcs! O que mais tá faltando!?
- A sua presença, porra! - Grito, angustiada. - Vc nunca fica com a gente por muito tempo! Tá sempre fugindo de alguém ou de alguma coisa! Vc é 'pancada'! - O celular toca dentro da minha bolsa. Um forte arrepio e retruco. - Porra! É o Aiden! Ele pressente! Ele sabe que eu tô aqui! Eu sei!
- Dess, vc tá com medo...
- Sim. O que eu farei não é por amor ou preguiça de encarar um 'trampo' pesado. É por medo. Nesse momento, eu preciso estar ao lado dele. Pelo bem de Antoine, das filhas de Sweet e de outras crianças.
- Do que tá falando?
- Tira a mão do meu rosto. Ele pode estar vendo...
- Eu nunca te vi tão amedrontada.
- Se vc realmente o conhece, vai me entender. Vc disse que o conhece. Vcs se conhecem e se odeiam e existe um motivo pra tanto ódio. Não. Não tenta me contar. Eu preciso pensar que ele é o cara ideal pra mim. Eu preciso. Não me deixa mais confusa do que eu já estou. - Ao volante, suplico. - Se gosta de mim e de Antoine, me impeça de casar.
- Dess...
- Covarde.
O carro se move sem que eu me despeça dele ou sequer o veja pelo retrovisor externo. Acabou. Lanço um breve olhar a Antoine adormecida no banco traseiro e, chorando, peço perdão.
- Filha, o que eu farei é pelo seu bem. Quanto mais perto estivermos do perigo, menos perigo correremos.
Aiden, contrariando meu pedido, me aguarda em frente ao prédio onde ainda resido por pouco tempo. Com os olhos turvos, ele me encara.
- Onde estão as meninas? Não era para ser a 'noite do pijama'?
- Sim. Mas Sweet não tá bem. Pediu pra que suas filhas estivessem ao seu lado. Quer subir?
Com Antoine dormindo em seu colo, ele se mantem calado, embora eu sinta a pressão sobre nossas cabeças. Torcendo para que as portas do elevador se abram logo, cantarolo uma canção.
- Vc esteve com ele?
- Sim. Antoine queria ver o pai.
- Ele não é o pai dela. - Rumina ele. - Vc sabe disso.
- Sei. Agora ela terá um pai de verdade...- Um sorriso no canto de sua boca e ele, timidamente, indaga.
- O que quer dizer com isso?
- Sim.
- Sim o quê?
- Eu me caso com vc, Aiden. - Pronuncio tais palavras como quem decreta uma sentença de morte. - O que houve? Vc não esperava por isso?
- Esperava por mais alegria. Eu não quero ser um peso na sua vida. Quero ser seu marido. Aquele que te acorda com um beijo e café na cama e que está contigo em todos os bons e maus momentos.
Aiden deita Antoine em sua cama e, ao sair do quarto, é surpreendido por meu beijo ardente. Ele o corresponde, rasgando meu vestido ao meio, jogando-me contra o sofá onde me fode com fúria, raiva e paixão.
- Ainda deseja se casar comigo? - Pergunta-me ele jogado contra o chão da sala. - Com um ser abissal, grosseiro, violento e gostoso?
- Sim, Aiden. - Usando de todas as minhas forças para afetar alegria, exulto. - Sim! Eu quero me casar com vc!
- Baby. - Num abraço afetuoso, ele comenta. - Vc não vai se arrepender. Prometo.
Promessas quase nunca são cumpridas...
Dois dias antes da cerimônia, abatida, procuro alívio à minha angústia em uma capela bucólica próxima ao galpão de boxe de Vincenzo. Uma súbita vontade de confessar meus erros me faz procurar por um padre que me ouça. Encaro o 'Crucificado' no altar e duas lágrimas escorrem de meus olhos. Lembro-me da última vez em que estivera em um confessionário. Era tão jovem e cheia de vida. Encontrara Ga'al no lugar do padre. Antes de me ajoelhar, abro a cortina e, envergonhada, peço desculpas ao homem de batina cujo rosto não vira.
- Precisava ter certeza de que o senhor estaria aí. Tive problemas da última vez.
- Não sou um demônio, filha. Não sou um santo também, mas estou tentando evoluir seguindo os ensinamentos do Mestre.
- Como sabe o que houve comigo há anos!? - Pergunto procurando-o através das brechas na madeira. - Eu o conheço?
- Não posso mentir, filha. Vc me conhece. Estivemos juntos em um momento muito difícil em sua vida. Não! Não se levante, por favor. Conte-me o que te deixa tão aflita e, depois, eu me revelarei. - Algo em sua voz me acalma e me incentiva a falar.
- Estou prestes a casar, padre. Não amo o homem com quem vou me casar, mas o homem que amo não me quer. Ele tem segredos que não me revela e sempre que estivemos muito próximos e felizes, ele me abandonou. Não suporto mais esperar por ele, padre. Minha filha precisa de um pai. Aiden é bom com ela.
- Aiden?
- É o nome do meu namorado. O senhor o conhece?
- Não...
- Sério?
- Sim. Eu diria se o conhecesse, filha. Prossiga.
- Não é exatamente uma confissão, padre. Eu sempre pequei. Era garota de programa e ainda tenho uma doença que não tratei e, de certa forma, meu namorado meio que me adoeceu. Com Vincenzo, eu me sentia curada. Ele me incentivava a me tratar e quando a gente...- Como falar de sexo com um padre dentro de uma igreja? - Quando...
- Não se preocupe, filha. Antes de ser padre, sou humano. E não há melhor lugar para se falar em coisas que nos transtornam do que em uma igreja. Vc e Vincenzo se relacionavam de uma maneira mais saudável. É isso?
- Sim. - Concordo, cismada. - Como sabe, padre? O senhor lê pensamentos?
- Se eu disser que sim, vc vai embora?
- Não. Vincenzo lê também. - Sorrio. - Ele me irritava, mas eu o amava...
- Vc ainda o ama.
- Sim. Mas ele é um covarde. Não vai fazer nada pra impedir que eu me case.
- E por que precisa se casar com um homem a quem não ama?
- Não sei. Acho que por medo de não encontrar um bom emprego e ter de retornar ao mundo de onde escapei. Eu não quero mais me prostituir, padre.
- Existem outros tipos de trabalho, filha.
- Não vou mentir para o senhor, mesmo porque, o senhor lê meus pensamentos. Acho que não quero perder o luxo com o qual me acostumei. É. - Assumo, envergonhada. - É isso.
- E Vincenzo é pobre?
- Não.
- Ele te daria uma boa vida, não é?
- Sim. Ele não é rico como Aiden, mas tem seu patrimônio. Mas eu me casaria com ele mesmo sendo pobre, padre. Com Vincenzo eu casaria e viveria com simplicidade. Não sei dizer o porquê. Eu lutaria com ele pelo bem de nossa filha e dormiria feliz em uma cama simples, em uma casa simples. Com Vincenzo, meu mundo muda...- Suspiro, desalentada. - Eu vou cometer um erro, padre. Eu sei que vou, mas, ao menos, minha filha não vai precisar mudar de colégio ou largar as aulas de Ballet e Inglês.
- Sério que vai se casar por esse motivo!?
- Não. Eu sei que soou mal. É ridículo. Sinto que devo algo ao meu futuro marido. Algo que não sei explicar e que, me casando com ele, vou pagar essa dívida. O senhor me entende?
- Sim.
- E?
- Nada posso fazer, filha, além de orar por vc. Quem sabe até o dia do casamento, vc entenda que Vincenzo talvez te esconda algo a fim de proteger Antoine e vc?
- O senhor o conhece??? Como sabe disso tudo??? O senhor o conhece!!! - Reativa, eu me ergo e, sem me conter, abro a cortina do confessionário. Arquejo surpreendida ao reconhecer o padre que me confessara seu pecado ao me salvar de Ga'al. - Padre Pietro!
- Impulsiva como sempre...- Graceja ele ao me abraçar. Um abraço apertado e cheio de compaixão. - Filha, pensa bem no que vai fazer. Conheço Vincenzo há anos. Ele tem seus motivos para se afastar de vc, mas ele te ama.
- Que motivos!?
- Ele os contou a vc, mas vc não acreditou nele. - Explica-me padre Pietro sentado ao meu lado no banco em madeira. - Revirando os olhos, refuto.
- Não dá pra acreditar naquela história de Lúcifer e sua fixação por Vincenzo, padre. Ele tá surtando.
- Antoine melhorou do dedo? - Sufoco um soluço enquanto o encaro, assombrada. - Vc viu. Vc estava lá. Sabe quem era o palhaço. - Recuo, deslizando no banco ao protestar.
- Padre! Isso é um absurdo! - Minha voz ecoa no teto abobadado. - O senhor acredita naquela história de filhos entre anjos e mulheres que foram perseguidos por...? - Assentindo com a cabeça, ele permanece em silêncio. - Então, se Vincenzo ficar comigo, Antoine...?
- Sim. Ela vai sofrer, filha.
- Isso é injusto! - Protesto, de pé. - Onde está seu Deus que não muda isso!?
- Livre arbítrio, filha. Ele nos deixa livres para que tomemos nossas decisões. Mas, para cada decisão tomada, temos uma consequência.
- Não aceito! O que eu fiz pra merecer isso!? O que Antoine fez!? - Expressando piedade, ele dá de ombros. Revolto-me caminhando até a porta de saída. Antes de me despedir, faço uma última pergunta. - O que Vincenzo teria de fazer para satisfazer Lúcifer e se livrar dele pra sempre!?
- Cometer alguma atrocidade contrariando os mandamentos do Criador. Então, ele se juntaria à Legião e nós, os que o amamos, o perderíamos para sempre.
Dentro do carro, grito de ódio e horror até ficar rouca. Chego a um ponto de minha vida onde nada faz sentido. Onde fantasia e realidade se misturam. Onde ódio e amor se mesclam. Onde eu preciso escolher entre a alma do homem que amo e a vida de minha filha.
Não há o que pensar.
Escolho Antoine.
Aiden se recusa a se casar em uma igreja. Segundo ele, é extremamente previsível. Sem me importar, permito que ele se encarregue de todos os detalhes. Até mesmo do meu vestido de noiva. Há poucas horas do meu casamento, ainda mantenho a esperança de ser resgatada como em um filme romântico. Talvez Vincenzo surja entre os convidados e confesse a todos que me ama e me leve dali ao lado de Antoine. Porém, tudo o que vejo é o meu reflexo no espelho do castelo medieval onde será realizada a cerimônia. Há teias de aranha nos tetos. Aposto que existem caixões no porão que se abrem a noite de onde vampiros sedentos escapam. Antoine e Cassandra não se desgrudam de mim enquanto a mulher loira e bela, com um sorriso angelical, retoca a maquiagem em meu rosto sem expressão.
- Apesar de bela, está triste. Algum problema?
- Nenhum. - Resmungo. - Estou feliz. Só não quero sorrir pra não estragar sua maquiagem. Ficou lindo.
- Simplesmente esplêndida, mamãe.
- Simplesmente esplêndida. - Repete a bela mulher ao piscar para Antoine e cochichar ao meu ouvido. - Se quiser desistir, ainda há tempo.
- Oi???
- Aqui está a minha futura esposa. - Diz Aiden, radiante, em seu smoking alinhado, cabelos lambidos por 'Gumex'. Ao seu lado, uma versão patética de 'Longlegs', segurando a alça de uma valise preta, observa-me com desdém. - Pode começar! Deixe minha esposa ainda mais linda!
- Ela já está maquiada. - Comenta 'Longlegs' revirando os olhos. Contenho o riso ao ouvir sua voz desafinada e desapontada. - Não consegue ver?
- Quem te maquiou, baby? - Pergunta-me Aiden ao meu reflexo. Dou de ombros, desinteressada. Antoine responde, aos risos, girando em sua cadeira acolchoada.
- Foi a tia Celeste. Ela já foi, mas pode voltar a qualquer momento.
Aiden eleva uma de suas sobrancelhas e, antes de se afastar, beijando o topo de minha cabeça, avisa num tom de ameaça.
- Não deixe que nada me impeça de casar com vc, baby.
Contenho a claustrofobia ao caminhar por um corredor estreito, iluminado por tochas em suas paredes disformes. Erguendo a saia pomposa de meu vestido de noiva, tento não tropeçar nas pedras abaixo de meus pés calçando scarpins 'salto agulha'. Que diabos de castelo é esse!? Em que época estou!? Idade Média!?
- Posso te acompanhar?
- Pode...- Sorrio ao homem que sorri com os olhos. Olhos azuis como os de...- Eu te conheço?
- Não creio. Não visito esse país há séculos. - Diz ele coçando a barba acinzentada. Oferecendo-me seu braço sob a luz do fogo bruxuleante das tochas, ele me leva até o imenso salão onde sou aguardada. Intrigada, eu me perco na profundeza de seu olhar melancólico. - Tem certeza?
- Do quê?
- De que quer continuar?
- Não...- Suspiro. - Eu te conheço?
- Adessa. - Doc me faz desviar os olhos do homem que some tão suavemente quanto apareceu. - Vc está bem?
- Não.
Não consigo enxergar meus pés abaixo do longo, exuberante e extremamente sexy vestido enquanto caminho, vacilante, pelo extenso tapete vermelho. O canto gregoriano que se espalha pelo sombrio salão me faz lembrar de lamentos. Lamentos dos que já perderam as esperanças e se entregam à morte.
- Não vou conseguir. - Sussurro. Doc, ampara-me com seu braço forte, incentivando-me com um "Seja forte". Ele me conduz ao altar quando meus pés se negam a prosseguir. Antoine, ingênua, me precede jogando...ou melhor, arremessando pétalas de rosas vermelhas nos convidados que me observam com os olhos astutos. Dentre eles, reconheço Sweet, abatida, o olhar distante, ao lado de suas filhas que, alheias à sua dor, acenam para mim. Cravo minhas mãos no buquê de flores do campo exalando um aroma amadeirado misturado a outro que desconheço. Sinto-me flutuar indo ao encontro de Aiden. Não. Não flutuo de felicidade. Flutuo por estar quase saindo do meu corpo diante de tanta informação que minha mente e visão atordoadas captam nesse exato momento. "Cuida das meninas", cochicho aos ouvidos de Doc enquanto finjo beijar sua bochecha. Como se não bastassem o peso sobre minha cabeça e a enervante claustrofobia que ameaça me atingir novamente, acabo de reconhecer o Drácula de Bram Stoker como o celebrante de nossa união, em pé, num altar improvisado.
- Por que ele, Aiden!? - Rosno, irritada. Aiden me toma pelo braço direito enquanto mantenho Antoine grudada ao meu vestido. - Não gosto dele e vc sabia disso!
- Baby, ele é um juiz de paz. ''Be cool''.
- 'Be cool' é o cacete! - Protesto entredentes. - Por que não me disse antes!?
- Vc está linda...- Seu sorriso tímido me faz lembrar do homem que conquistara parte de meu coração. - Como consegue ficar ainda mais linda quando zangada?
- Bobo.
- Fique calma. - Cochicha-me ele. - Vai passar logo.
- Tenho medo...- Olho ao redor e tudo o que vejo são olhos ávidos por prazeres mundanos. Uma outra plateia nos assiste, ainda mais tenebrosa. Espectros sobrevoam nossas cabeças como morcegos famintos. Sweet. Pobre Sweet. Ela me sorri enquanto sua força é sugada por um ser de aparência demoníaca. Quero descer e expulsá-lo de sua vida e proteger as crianças. Quero gritar por Vincenzo e implorar que ele me resgate desse lugar obscuro quando Aiden, num toque frio em meu rosto, me traz de volta ao corpo. - Pode repetir? - Peço ao celebrante com olhos lascivos. De mãos dadas a Antoine, hesito antes de, enfim, responder. - Aceito.
Misturo-me entre os convidados sem largar a mão de Antoine. Vou ao encontro de Sweet que se apoia em Doc. DOC??? Desde quando ela o suporta!?
- Precisamos conversar, amiga.
- Vc me chamou de 'amiga', amiga?
- Sweet, não vá chorar no meu casamento! - Sorrio. - Eu te proíbo de dar seu showzinho vulgar aqui! - Agarrando-se a mim, ela chora em meu ombro. Doc meneia a cabeça com os olhos cheios de compaixão. - Ei, amiga. - Cochicho. - Vc não tá sozinha. Ok? Vamos passar por isso juntas. Onde estão as crianças, Doc!?
- Jujuba tá aqui, mamãe. - Avisa Antoine parecendo consciente do receio que estou sentindo. Com seu vestido branco tão longo quanto o meu, ao estilo 'princesa', ela se diverte com a saia e asinhas em suas costas. Olhando ao redor, preocupada, ela informa. - A Mimi sumiu...
Engulo em seco. Meu coração aperta. A imagem de Luka me vem à cabeça. Antes de deixar Antoine sob os cuidados de Doc e procurar pela filha mais velha de Sweet, Aiden me convida a dançar.
- Não me faça de bobo, baby. São meus amigos.
- Agora não, Aiden. - Suplico, aflita. - Não tô bem. Daqui a pouco a gente dança. - Um aperto em meu braço e ele, sutilmente, ordena.
- Agora sim, esposa.
Rodopio pelo salão cercado pelos convidados de Aiden. Opulentos, ostentam suas joias e roupas de grifes mais caras do que um carro. Sorrisos falsos. Estranhas intenções. Exalo ao olhar para o teto. Sombras transitam de um lado ao outro grudadas às paredes. Num repente, todas são atraídas para a enorme escadaria e somem em um dos corredores do segundo andar do castelo. Tonta, deixo-me guiar por Aiden que, enfim, me liberta de seus braços.
- Perdão por não te deixar feliz como aquele babaca. - Diz Aiden, ressentido. - Pode voltar aos seus amigos.
- Não, Aiden. Me perdoa. - Peço, arrependida. - Estou sufocando dentro desse vestido. É isso. - Tentando sorrir, comento. - Acho que a costureira exagerou um pouquinho no espartilho. Meus seios vão pular pra fora se eu respirar com mais força.
- Deixe que pulem. - Ronrona ele. - Que todos vejam o quão lindos eles são. Que todos a desejem...
- Safado...- Beijo sua boca segundos antes de ouvir o grito de Sweet e olhar em sua direção. Cercada por homens e mulheres que a aplaudem, Sweet, sobe em uma das mesas e, absolutamente descontrolada, se despe e chora ao mesmo tempo. - Cacete...
Corro em sua direção, empurrando os convidados, xingando-os enquanto a faço descer da mesa e a cubro com o terno de Doc. Jujuba chora abraçada a Antoine que avisa, com os olhinhos arregalados.
- A Mimi sumiu, mamãe!
- Quem te disse isso, filha!? - Ajoelhada, com o coração aos pulos, eu a ouço cochichar ao meu ouvido.
- O Luka. Ele disse que ela tá morta.
Pisamos em solo italiano e eu ainda ouço os gritos de Sweet ao ser carregada por Doc até o exterior do castelo.
Aiden se modificara por completo longe de seus amigos nefastos. Voltara a ser o Aiden por quem estou me apaixonando, aos poucos. Ele fizera questão de acompanhar as autoridades à procura da filha mais velha de Sweet e me tranquilizou ao informar que Mimi havia sido encontrada com vida, nadando em um lago próximo ao castelo. Antes de partirmos para nossa lua-de-mel, ele resistira à presença de Antoine.
"Vai atrapalhar os meus planos", alegara ele com seu olhar lascivo.
"Sem ela, eu não irei a lugar algum", rebati, rejeitando a ideia absurda de deixar minha filha sob os cuidados de um arremedo da preceptora de "Damien", em "A Profecia.". Gargalhando, ele concordara comigo: "Parece mesmo!"
Aiden me levara a uma casa simples no alto de um penhasco. Simples e bela com um imenso jardim cuja relva úmida me remete a outros tempos. Antoine e Cassandra correm estabanadas até a floresta atrás da casa enquanto Aiden me leva em seu colo até a porta da cabana em madeira ao estilo colonial.
- Enfim sós...- Torcendo o nariz, ele se corrige. - Ou quase isso.
- De quem é essa casa!? - Indago maravilhada com seu interior rebuscado e rústico ao mesmo tempo. Por segundos, eu a comparo à casa de praia de Vincenzo. Tentando afastar essa lembrança a todo o custo, eu o beijo ao tocar meus pés no piso frio. - Ela é linda! É de algum amigo seu!? - Repito o gesto do dia em que Vincenzo me levara à sua casa. Da noite em que estivemos juntos e nos amamos pela primeira vez. Saltitando entre os móveis em madeira, jogo-me contra o sofá em couro, inspirando, profundamente, a brisa do mar que invade a casa pela imensa janela em azul. - Responde e para de me olhar assim!
- Não se lembra?
- Não começa! - Um sorriso tímido e ele assume.
- É minha. 'I mean'...Nossa. É antiga. Muito antiga. Fiz algumas reformas. Gostou?
- Muito! - Exulto, intrigada. De cômodo em cômodo, as perguntas se acumulam sem respostas. Como ele tem tanta grana sem trabalhar!? Desde que começamos a nos relacionar, eu não o vi no teatro com a companhia de dança ou em qualquer outro lugar além de reuniões com seus amigos bizarros. ESQUECE. ENTREGUE-SE A ELE E SE ESQUEÇA DO OUTRO. PONTO. Ponto é o cacete! Quem manda na minha cabeça sou eu! - Eu!?
- Quem mais poderia inaugurar o quarto comigo!?
- Me solta, homem. - Resmungo, empurrando-o com a lateral de meu corpo. Feliz, ele comenta.
- Vc está voltando, esposa. - Com as mãos na cintura, indago, curiosa.
- Estou, marido?
Exaustas de tanto correr atrás dos cavalos, Cassandra e Antoine 'desmaiam' em suas camas. Aiden e eu iniciamos uma jornada de sexo violento e insaciável por toda a casa e fora dela. O vento que sopra do mar me incita a me aproximar do penhasco. Aiden me puxa para si, receoso.
- Não fique aqui por muito tempo. Entendeu?
- Por quê? É tão lindo...
- E perigoso. - Afirma ele deitando-se sobre mim. A grama úmida molha minhas costas enquanto se pau me invade com urgência. Solto um gemido alto e longo. Sua mão livre me faz calar. - Shhh. Vai acordar as crianças.
- Vc tá diferente, marido.
- Como?
- Não sei. É como se ninguém mais existisse além de nós dois e Antoine.
- É assim que deve ser. Somente nós três novamente...
Devo agradecer à sua infertilidade. Caso contrário, já estaria grávida novamente ou ele estaria falido tendo gasto horrores com caixas e caixas de 'camisinha'. Apesar de conhecermos o vilarejo repleto de cantinas fofas e acolhedoras, ele me pede, de uma forma extremamente carinhosa, para cozinhar em nossa casa.
- Eu amo te ver cozinhar. Foi a última vez que te vi antes de tudo mudar.
Estou me adaptando ao seu jeito sombrio de se referir ao nosso presente como se ainda estivéssemos no passado. A cada dia, eu o vejo e o sinto com mais carinho. A cada dia, eu me recordo de algo que ainda não me lembro por completo. A casa tem vida própria. As árvores trazem a música consigo. Dor e alegria me unem a ele enquanto dançamos sob os pingos grossos da chuva. Da varanda em madeira, Antoine, Cassandra e seu novo 'amiguinho' italiano nos aplaudem. Na tentativa em conquistar minha aprovação, o 'ragazzo' escolhe a canção em sua playlist favorita em um dos 'apps' do celular. Coincidência ou não, estamos dançando a mesma música que cantarolei há alguns meses. Seus olhos extremamente claros e marejados me encaram. Sua boca carnuda confessa.
- Esse é o momento mais feliz de todas as minhas vidas, baby. Não deixa acabar.
- Não deixo...
Enquanto cozinho um guisado de carne no fogão à lenha, meu celular toca. Queimo meu dedo mínimo ao identificar o ringtone.
- Já deveria ter trocado essa merda, cazzo! - Resmungo procurando pelo celular. - Para de tocar! Eu já vou atender!
- Quer que eu atenda?
- Não...- Sorrio, sem jeito. Excito-me ao ver seu torso nu. Seus braços fortes carregam achas de madeira para a lareira. De súbito, sua boca sedenta chupa meu dedo ardido acendendo-me por dentro. Talvez esteja ainda mais doente, mas, ao menos, desejo somente um homem. O homem másculo e gentil que me carrega até o quarto e faz ranger a cama enquanto me fode com força.
Saio da cama e, lentamente, caminho até a sala. Clico na 'área' de mensagens do celular e, indiferentemente, eu leio o que o covarde tem a me dizer:
"Não vá à Inglaterra! Haja o que houver, não vá a Stonehenge!"
- Não faz sentido...- Rumino de volta à cama.
Na noite anterior à nossa viagem à Irlanda, terra natal de Aiden, acordo ouvindo sua voz clamar por mim. Levanto-me da cama e deslizo até a porta da sala. Descalça, sinto a relva úmida enquanto caminho até o penhasco. A barra da camisola longa e branca, manchada de terra marrom esvoaça sob a ação do vento que sopra do mar logo abaixo de mim. As ondas rugem. As rochas pontiagudas me assustam. Levo a mão ao ventre que dói. Sinto sua falta. Sinto a falta de seu pai.
"Pule", instiga-me a voz sibilante e forçosamente suave. Um passo à frente e inspiro seu cheiro cítrico. Choro de saudades do pai do filho que ainda mora em meu ventre. "Ele te espera do Outro Lado. Pule", incita-me o ser, de cócoras sobre uma pedra, com asas escuras. Sem perceber se estou sonhando ou acordada, sorrio ao erguer os dois braços e mantê-los esticados na altura dos ombros. Prestes a saltar em busca do anjo que amo, vejo suas asas abertas com todo esplendor. Elas se fecham ao subir em minha direção, em alta velocidade. Meu corpo é suspenso por suas mãos quentes que me fazem descansar no gramado. Sua voz doce me desperta.
- Nunca mais faça isso, Dess. Nunca mais. Entendeu?
- Sim. - Sorrio de olhos fechados. - Aonde vai? Fica.
Tragado pelo abismo, o anjo se vai e me deixa deitada, em paz. O Anjo de asas escuras, ao meu lado, rosna antes de sumir.
"Um dia, vc pula novamente."
- Acorda, mamãe! Acorda!
- Filha!? O que estamos fazendo aqui fora!? Tá frio!
- Me diz vc, baby. - Refuta Aiden com os olhos escuros. Suas mãos ainda mais frias acariciam meu rosto. Sua voz rouca avisa num sussurro. - Não me decepcione, baby. Não me decepcione.
Percorremos alguns pontos turísticos da Irlanda sem que Aiden me apresentasse à sua família. Segundo ele, todos haviam morrido, exceto um primo distante com jeito de gangster. Inebriada com seu sotaque italiano, encanto-me ainda mais ao ouvir Aiden conversar, animadamente, em irlandês, também conhecido como gaélico. Antoine discute com Cassandra que a troca por um jovem irlandês fofo com os olhos mais verdes que já vira em minha vida.
- Filha, não fica assim. Ela é adolescente. Gosta de namorar.
- Eu nunca vou namorar! - Afirma Antoine, emburrada com os cotovelos sobre a mesa. Sentada à minha frente, ela me faz rir com sua rabugice. - Coisa nojenta. Eca! Beijar de língua! Por que o tio Aiden tá rindo tanto!?
- Por que tá bêbado. - Respondo acenando para ele. Nunca o vira tão descontraído como agora. No bar, ele ergue seu caneco de cerveja e junto ao seu primo, brindam a mim. Sorrio desconfiada porque talvez estejam me xingando. Sei lá. O idioma é lindo de se ouvir e absolutamente impossível de se falar. A alegria contagiante dentro do pub me faz gritar a única frase que aprendera: "Go raibh maith agat!"
Um 'obrigada' em gaélico.
Agora é oficial. Estão rindo escrachadamente de minha pronúncia. Impulsiva, eu me vingo.
- Vamos dançar, filha!? Eu amo essa música!
- Eu também! - Grita minha parceira. - Woohoo!
Sem o menor pudor, Antoine se intromete na grande roda e dá as mãos ao adultos que a acolhem com entusiasmo.
- Vem, mãe! - Seguindo seus passos, junto-me ao povo que, em um grande círculo humano, gira de um lado ao outro. A música festiva e encantadora me faz voltar ao tempo em que dançava no 'California'. Percebo, com tristeza, a falta que a Dança faz em minha vida. Percebo, igualmente, o olhar enciumado de Aiden lá do balcão. - Pula, mãe! - Grita Antoine, empolgada. Eu a obedeço atraindo olhares de homens que não estão acostumados à mulheres de vestidos e botas de cano longo. Todas aqui, dentro do pub, usam calça jeans, casacos pesados e gorros. Estou suando só em pensar em vestir tanta roupa. Incomodada com o olhar insistente de Aiden, deixo Antoine junto a Cassandra que já flerta com outro jovem irlandês tão bonito quanto o anterior.
- Tô de olho em vc. - Cochicho ao seu ouvido.
- O que fiz, tia!? - Pergunta-me Cassandra aos risos. - Eu preciso melhorar o meu inglês. E o idioma deles é tão fofinho...
- Eu sei o que é fofinho! - Outra risada e Antoine, enciumada, protesta.
- Cassandra é safada, mãe! - Ajoelho-me e a beijo na testa. Secando seu suor com um dos guardanapos verdes sobre a mesa, comento, contendo o riso.
- Um dia vc vai entender, filha. Um dia. Fique com Cassandra. Já volto. Ok?
- Ok. - Diz ela, sorrindo. Ergo-me, angustiada. Não há motivos, mas estou angustiada. Antes de seguir ao banheiro, Antoine me puxa pela mão. Agacho-me novamente quando ela sussurra algo sem sentido. - Ele levou o guardanapo.
- Oi???
Cassandra a empurra de volta à pista de dança. Antoine se encanta e se distrai com a decoração acima de sua cabeça. Luzes, quadros, bandeiras a fazem se esquecer de mim. Movo os ombros e, ao som dos risos, talheres e copos tilintando, caminho em direção ao banheiro ainda cismada com o que acabo de ouvir. Aiden me intercepta, visivelmente alcoolizado.
- Vc me assustou.
- Foi aqui que tudo começou, baby.
- Não entendi! - Replico num tom de voz alto. - Começou o quê!? - Nunca o vira beber tanto. Talvez por estar em sua terra natal. Talvez, ele seja mais humano do que penso...do que aparenta ser. - Preciso ir ao banheiro! - Pressionando-me contra a parede, sua voz entaramelada confessa.
- E eu preciso de vc, baby. Não me deixe novamente. Foi aqui que comecei a te chamar de 'baby', lembra!?
- Não, Aiden. - Respondo, incomodada. - A gente conversa depois. Aqui tá cheio demais. - Sua mão fria pressiona meu queixo. Minha cabeça derruba um dos quadros da parede quando ele sussurra em meu ouvido.
- Vc gostava de mim, baby. Até que ele apareceu.
- Deixa eu sair, Aiden. Tá me machucando.
- Eu saio. - Afasta-se ele abrindo um sorriso triste, erguendo as mãos na defensiva. Ao lado de seu primo com olhos ladinos, ele suplica. - Não me deixe outra vez, baby. Não quero morrer. Preciso viver. Liberta-me...- Seu primo me olha com rancor. Um 'déjà vu' e, atormentada, ordeno.
- Aiden! Para de beber e vamos embora!
- Ok...
Eu o deixo falando em gaélico com seu primo esquisito e escondo-me no banheiro.
- Uau! - Exalo. Centenas de fotos e bandeiras recobrem as paredes do teto ao piso. O vaso sanitário verde me faz sorrir. - Antoine precisa ver isso.
- Vc o deixou levar o guardanapo!?
- Puta que pariu!!! - Grito, assustada. - De onde surgiu??? Não!!! - Grito novamente afastando-me dele. - Não fala nada!!! É impossível que vc esteja aqui!!!
- Calma, Dess...
- CALMA É O CARALHO! NÃO ME TOCA!
- Fala baixo, por favor. Ele pode nos ouvir. - Corro até a porta. Ele a tranca à chave. Antes de começar a esmurrar a porta verde, ele me abraça com força. - Fica calma. Perdão. Eu te assustei.
- Imagina. - Ironizo em seus braços prestes a desmaiar. - Não consigo respirar...
- Inspira em quatro tempos. Prende em dois. Solta em cinco.
- Me deixa...
- Vai! Faz o que eu mando! - Instintivamente, eu o obedeço. O banheiro, apesar de lindo, é claustrofóbico. Ele continua a me abraçar enquanto volto a respirar tranquilamente. - Perdão, Dess. Eu não queria...
- Vc me assustou. - Murmuro apoiando-me à parede. A foto de 'Bono' do 'U2' sorri para mim. - Como chegou até aqui? Pra quê?
- Saudades de vcs...- Sussurra ele em minha nuca. Por mais que eu tente me esquecer dele, eu ainda o amo e eu me odeio por isso. - Eu te amo, Dess. Não consigo ficar longe de vc e de Antoine.
- Isso não tá certo. Agora...
- Eu sei. Vc é uma mulher casada. - Proclama sua voz triste. - Eu te perdi pra sempre?
- Não seja ridículo. - Sorrio contra a parede. - Dá pra me soltar? Já estou bem.
- Dá sim...- Recuando, ele me livra de seus braços. O único lugar no mundo onde me sinto segura. - Se quiser, te abraço de novo.
- Porra! Tu me ouviu!? - Movo os braços, aleatoriamente. - Tem música lá fora! Aquele papo de que tu não ouve pensamentos quando a música tá alta é mentira!?
- Não. É que vc pensou alto demais. - Mordo o canto da boca diante de seu sorriso inocente. Eu ainda amo a porra desse sorriso. - Para de pensar, Dess.
- Não consigo! - Num gesto tresloucado, abro a torneira e, com as mãos em concha, jogo água em meu rosto. - Merda. - Seco-me com papel-toalha diante do espelho. - Vc nunca vai sair da minha vida? - Pergunto ao seu reflexo.
- Não. - Sorrimos juntos. Sinto-me estúpida ao arfar ao mesmo tempo que ele. - Por que não foram a Stonehenge?
- Antoine fez seu drama típico de quem estava à beira da morte. - Rimos juntos quando desconfio. - Vc tem algo a ver com isso?
- Eu??? Nunca!!! - Exclama ele escondendo um sorriso maroto. - Juro 'de dedinho'!!!
- Vcs ainda se falam...- Concluo, revirando os olhos. - O que tem de tão terrível em Stonehenge?
- Poder. - Revela ela sentando-se na pia em mármore. De olhos fixos no chão, ele elucida. - Aiden conseguiria, enfim, voltar...- Um forte arrepio e indago.
- De onde?
- De onde não deveria ter saído. - Dando de ombros, ele lamenta encarando-me com seus olhos azuis e plácidos. - Mas não sou eu quem faz as regras. São eles que mandam, Dess.
- Eles!? - Questiono seguindo seu indicador apontando para o teto. Tentando quebrar o clima tenso, brinco. - John Lennon e Liam Neeson!?
- Não. - Responde-me ele, sombrio. Arquejando de pavor, pergunto vacilante.
- O que quis dizer com o lance do guardanapo?
- Ele o pegou. Agora, ele tem o suor de Antoine e seu sangue também.
- Porra! - Volto a puxar o ar pela boca. Uma súbita crise de pânico e explodo. - Não começa essa história! Não fala daquele homem! Lúcifer não existe! Ele não existe! Não existe!
- Shhh...- Murmura ele envolvendo-me em seu abraço. Minhas mãos tocam, timidamente, suas costas curvas, seus músculos. - Isso vai acabar logo. Prometo.
- Não quero que faça algo de ruim.
- Do que tá falando?
- Eu sei de tudo. Padre Pietro me contou. - Inspiro seu perfume, roçando meu nariz em sua nuca. - Não seja mau. Por favor. Não quero que se perca.
- Não irei...
- Proteja Antoine. Eu tenho uma saída.
- Qual!? - Empurrando seu tronco com minhas mãos, eu o afasto. Evito pensar enquanto seus polegares secam as lágrimas de meu rosto. - Dess. Fala comigo.
- Não posso. - Lamento.
- Não volte pra ele. Vc não vai ser feliz.
- Eu sei. Agora é tarde.
- Ainda não...
- Eu esperei por vc, amor...
- Eu estava lá. Há leis que me impedem de fazer o que quero. - Diz ele expressando sofrimento em seu belo rosto. - A menina, Dess...
- O que tem a Mimi!?
- Ela...
- Não. - Tapando os ouvidos com minhas mãos, exclamo. - Não quero ouvir! Não vou ouvir!
- Vc precisa fazê-lo parar. Só vc tem esse poder.
- Não! Não fala mais nada!
- Dess...- Ele dá um passo à frente. Eu recuo, apavorada. - Eu vou te ajudar.
- Fica longe, Vincenzo. Fica longe.
Num brusco movimento, eu me aproximo dele. Um beijo casto em seus lábios e destranco a porta. Antes de fugir dele, confesso.
- Eu morreria por vc.
Ainda não me acostumei ao luxo em que vivemos, tampouco às incessantes reuniões, festas, noitadas às quais sou submetida a frequentar graças ao prestígio de Aiden junto à alta sociedade. Aristocratas mais vazios do que os homens que assistiam aos meus shows no 'California'.
Antoine tem tido pesadelos à noite. Cassandra teme os vultos e se sente vigiada ainda que esteja sozinha em seu quarto. Cassandra tornara-se um membro da família assim que seus pais faleceram em um acidente bastante suspeito. A polícia não soubera explicar o porquê de encontrarem os corpos de ambos, deitados em sua cama de casal, após um suposto ataque cardíaco.
- Morreram juntos. Que romântico.
- Eles jamais usaram drogas!
- Who knows!?
- Eu, Aiden! Eu sei! Eu os conhecia! - Defendo a honra dos mortos à mesa. - Eu frequentei a casa deles. Cassandra foi contratada para cuidar da minha filha. Não poderia ser qualquer pessoa. Eu os conheci e, afirmo que jamais usariam drogas.
- Seres humanos fazem coisas que até Deus duvida. - Alega, gargalhando, uma das amigas de Aiden sentada à minha frente. - Vc não faria qualquer coisa por sua filha?
- Sim. - Rosno demonstrando meu desprezo por ela. - Não ria de quem já partiu. São os pais de Cassandra, a melhor amiga de Antoine.
- Não são mais, baby...
- Não me toca. - Peço entredentes. Erguendo-me da cadeira, despeço-me. - Estou com enxaqueca. Com licença. - A mão fria de Aiden toca o dorso da minha quando ele me lança um olhar indecifrável ao perguntar.
- Tem certeza de que não quer ficar? Pode ser instigante. - Lembrando-me das últimas palavras de Vincenzo, percebo que não serei feliz debaixo desse teto sombrio. - Fique.
- Não. - Subo as escadas, retirando os sapatos de salto. - Eu odeio isso aqui, Aiden.
- É a nossa casa, baby.
- Não. Não é a minha. - Rebato no topo da escadaria. Caminhando em direção ao quarto de Antoine, ele me intercepta, aflito. Aproveitando seu raro momento de lucidez, indago, aos prantos. - Por que não volta a ser o mesmo homem que amei na Itália, marido? Por que essa gente precisa estar sempre aqui ou precisamos estar perto deles em outros lugares? Por que não fica com a gente, Aiden? Sinto sua falta. Tenho medo desse lugar. Aiden, olha pra mim. Tenho medo desse lugar. Antoine também.
- É o nosso lar. - Insiste ele. Seus olhos escuros me fitam com indiferença ao insinuar. - Se não estiver satisfeita, saia. - Decepcionada, refuto.
- Ainda não, Aiden. Ainda tenho o que fazer aqui. - Num tom sarcástico, ele me provoca.
- Tem? E o que seria? - Sua mão fria em meu pescoço desliza até o decote de meu vestido. Seus dedos tocam em meus seios. Seus lábios mordiscam minha orelha quando sussurra. - O que deseja descobrir sobre mim, esposa? Ainda pensa que sou um ser demoníaco à procura de um corpo humano para habitar? - Confusa e triste, imploro.
- Me deixa dormir, Aiden.
- Vc me espera na cama?
- Sim.
- Eu te amo, baby. Por que não diz o mesmo? - Exalo, desanimada. Sem ter como responder, dou de ombros e recuo até a porta do quarto de Antoine. - Um dia vc vai me amar, baby? - Antes de fechar a porta, dentro do quarto, despeço-me com o coração apertado.
- Boa noite, Aiden.
- Te espero em nossa cama. - Avisa-me ele em seu terno alinhado e um copo de uísque em uma das mãos.
Naquela noite, ele me mostrou seu pior lado. Um lado cruel, devasso, insaciável. Por horas, ele usou o meu corpo causando-me dor. Percebi que meu sofrimento lhe causava um desejo ainda maior, então, eu me calei e sofri até que ele se cansasse e dormisse, abraçado a mim, como se nada houvesse acontecido.
Dias piores vieram.
Exausta de tanto apanhar enquanto sou submetida aos seus caprichos sexuais, procuro por ajuda. Antoine e Cassandra estão em meu novo carro junto à preceptora de Antoine. Não. Aiden não desistira de acolher em nossa casa a mesma mulher da qual rimos antes de viajarmos.
"Ela é de confiança", garantira-me Aiden.
"De quem!?", refuto, angustiada.
- A culpa é minha padre. - Confesso de olhos atentos em Antoine e Cassandra sentadas em um dos degraus do altar. Sob a segurança do "Crucificado", enfim, eu a vejo distante da figura sinistra da preceptora vinda diretamente do inferno que se negara a entrar na igreja. - Eu casei por medo de enfrentar a vida sem grana. Eu casei pra dar uma vida tranquila a Antoine e a mim mesma e tudo o que consegui foi prejudicar minha filha e sofrer nas mãos dele.
- Tenha calma, filha. Tudo pode mudar.
- Como??? - Desespero-me escondendo os hematomas em meus braços, pernas e pescoços. Os hematomas ao redor dos meus olhos, cubro-os com 'primer', corretivo, base, pó e o que tiver à mão. Ainda assim, noto que Padre Pietro os percebe. - Eu não tenho casa! Eu a vendi e não sei quem a comprou! Eu vendi meu carro e desconheço o novo proprietário!
- Onde está o dinheiro das vendas?
- Com ele.
- Adessa...- Recrimina-me padre Pietro, compassivo. - Como assim? - Envergonhada, assumo.
- Confiei nele. Minto. Não quis ter trabalho e deixei tudo em suas mãos. Ele transferiu tudo pra minha conta, mas tem os dados dela. Se ele quiser, pode retirar tudo a qualquer momento.
- Vamos resolver logo isso, filha.
- Me ajuda, padre. - Imploro recostando minha cabeça em seu ombro. - Não aguento mais uma noite sob a pressão que tenho vivido. Antoine não merece isso.
- Amanhã, bem cedo, volte aqui com seus documentos. Vamos trocar as senhas e assegurar que seu dinheiro permaneça contigo. De acordo?
- Sim...- Choro em seu colo até me acalmar. - Tem notícias de...?
- Não. Ele sumiu. Creio que longe de vc, ofereça menos riscos.
- Tem razão. - Minto. Eu preciso dele aqui, agora. - Até amanhã, padre.
- Que o Criador te proteja e aos seus também.
Dentro do carro, Antoine acena ao padre| Pietro e, antes de eu dar a partida, em transe, ela avisa.
- Cuidado. Eles virão atrás do senhor.
Não vou ao encontro de Padre Pietro. Aiden me convida a passear com ele e as crianças em seu iate.
- Quero me desculpar pelo que tenho feito a vc.
- Aiden...- Exalo extasiada e intrigada. - Esse iate é seu também? É lindo! - O vento esvoaça meus cabelos enquanto Antoine e Cassandra se espreguiçam nas cadeiras sob o sol. O dia está perfeito. O mar, sereno, azul e límpido nos convida a um mergulho. Observando a maneira como ele me observa, entendo que ele, talvez, me queira comprar. Sinceramente, creio que já fui comprada. Relutante, afirmo. - Eu posso viver com muito menos, Aiden. Eu ainda quero ser feliz com vc.
- Eu também, baby. - Envolvendo seus braços em minha cintura, ele me beija na bochecha e me pede perdão. - Eu não sou aquele, baby. Algo toma conta de mim e não consigo me controlar. Algo que conheci faz tempo.
- Como assim?
- Uma força da qual não consigo me libertar. Eu preciso de vc, baby.
- Vc e eu fomos felizes na Itália, Aiden. Por que não nos mudamos pra lá? Eu não quero ficar naquela mansão. Ela me dá medo. - Sorrindo, ele desconversa.
- Medo vc vai ter se eu te jogar no mar agora! - Tomando-me em seus braços, ele ameaça me jogar. Grito, eletrizada.
- NÃO SE ATREVA!
Ouvindo o som do silêncio submersa no oceano, penso que, talvez, ainda possamos ser felizes.
- Vem! Salta! - Do mar, eu o chamo. Um mergulho olímpico e, em segundos, ele surge diante de mim. Seus lábios rubros e salgados me beijam. - As meninas estão seguras?
- Estão. O barco está ancorado e eu estou excitado. - Gargalho abraçada a ele, flutuando ao sabor das ondas. Seus olhos claros me fitam com ternura quando promete. - Eu vou mudar, baby. Eu juro. Não me deixa.
O dia fora sensacional!
Antoine, Cassandra, Aiden e eu almoçamos em uma ilha próxima à costa. Aiden correra na areia atrás de Antoine que berrava de entusiasmo. Longe da preceptora macabra, Cassandra e eu conversamos, aliviadas, debaixo do guarda sol 'Ombrelone' gigantesco.
- Ele mudou, tia.
- É. Estranho, não? Deve ser a mansão.
- Tem alguma coisa de errado ali, tia.
- Por que diz isso? - Revirando sua bolsa, ela encontra algo. Sufoco um soluço ao reconhecer o que me mostra. - Onde achou isso!? Um pedaço rasgado de pano!? - Apreensiva, ela continua.
- Em um dos quartos da mansão, tia. Olha isso! - Ansiosa, ela aponta para um desenho impresso no pano rasgado e sujo. - Esse é o logotipo de um dos jogos de RPG.
- Estampado no peito de Luka! Eu o comprei! - Engulo em seco e o escondo em minha bolsa. Evito tocar no pano e me conectar ao que ele guarda consigo. Aiden, exausto, se joga sobre a toalha. Antoine se joga sobre ele. Ambos riem, felizes. Cassandra e eu nos olhamos com temor. Um ligeiro movimento e ela me compreende. - Depois...- Cochicho em seu ouvido.
- Valeu, tia! Vou mergulhar! Tá quente aqui! - Antoine, incansável, corre atrás de Cassandra. Aiden me puxa para si. Sobre ele, meu corpo descansa enquanto minha cabeça está prestes a explodir.
- Se quiser, podemos morar em outro lugar, baby.
- Sério!?
- Sério. - Confirma ele escondendo um sorriso tímido. - Vc quem manda. Eu te peço mais uma chance de te fazer feliz. Posso?
Afastando os maus pensamentos, sob o sol ameno em minhas costas, eu o beijo com paixão. Eu sinto que lhe devo algo. Que o prejudiquei de alguma maneira e é esse sentimento que me faz concordar.
- Pode. A gente vai ser feliz, marido.
- Te amo, esposa.
Em um dos raros momentos em que Aiden me deixa sozinha, visito Sweet em sua casa. Antoine e Jujuba, inocentes, brincam no quarto de Mimi enquanto tento reanimar Sweet, estirada sobre o sofá. Desisto. Lavo a louça imunda na pia da cozinha. Cato o lixo espalhado pela sala. Seringas usadas se acumulam na lixeira. Doc me alertara, antes da cerimônia de meu casamento que Sweet estaria surtando durante os shows. Bebia em excesso e suas palavras já não faziam mais sentido. Doc, preocupado, afeiçoara-se a ela e a protegia de constantes ataques de homens inescrupulosos que a desejavam. Ansiedade, impulsividade, descontrole emocional excessivo e o alto consumo de drogas o fizeram crer que Sweet estaria vivendo o temido e famoso momento pelo qual as profissionais do sexo quase sempre passam.
Eu 'saltei' do barco antes disso. Sweet não. Após transar com cento e um homens em um dia a fim de 'bater seu próprio recorde', ela 'afundou'.
"Um dia a conta chega".
E a conta chegou. Sweet surtou.
Aconchego sua cabeça em meu colo assim que seus lindos olhos verdes se abrem. Olhos sem vida, sem brilho.
- Sweet, eu tô aqui. - Balbucio enquanto tento conter as imagens em minha mente. São deprimentes. Nenhum ser humano deveria ser usado como a usaram. - Acorda, amiga. Fica comigo. - Um choro compulsivo e eu a abraço forte. - Eu sei. Não me conta nada. Vai passar. Eu prometo. Eu vou te ajudar, amiga. Vc vai sair dessa.
- Não vou não. Cuida da Jujuba pra mim? - Pressentindo suas intenções e evitando contato com os seres vampirescos que nos rodeiam, proclamo em voz alta.
- Vai sim! Eu não vou deixar que nada de ruim te aconteça! - Erguendo-se, com dificuldade, ela se senta ao meu lado. Seus cabelos desgrenhados não veem água há tempos. Sinto-me culpada por tê-la invejado quando deveria ter sido mais amiga. Afetando tranquilidade, comento. - Vc precisa de um bom banho e de um café forte.
- Vc tá vendo?
- Quem, Sweet? - Suas mãos trêmulas tateiam o ar. Uma risada histérica e ela volta a se calar. Um forte calafrio na nuca e insisto. - Amiga, deixa eu te ajudar. Vamos tomar um banho...
- Tira ela da água! - Grita Sweet ensandecida. Desnorteada, lutando contra seus braços e pernas que se movem violenta e aleatoriamente, choro sem ter noção do que fazer. - TIRA ELA DA ÁGUA! - Berra Sweet com os olhos esbugalhados, os dentes trincados. Lembrando-me dos golpes que Vincenzo me ensinara, eu a imobilizo deitada no chão frio. Modelando minha voz, tendo-a sobre mim, eu a incito a inspirar e expirar. Aos poucos, ela para de se mover. Seu corpo rola para o lado. Exausta, respiro. De olhos fixos no teto, ela sorri. - Ele tá chegando. - Tremendo-me dos pés à cabeça, indago num fio de voz.
- Quem, amiga?
Antoine abre a porta. Do chão, eu o vejo caminhar até mim. Incrédula, indago.
- O que faz aqui!?
- Por que não me chamou para te ajudar, baby!? - Erguendo Sweet pelas axilas, Aiden a faz se deitar no sofá. Ainda no chão, eu o observo enquanto ele verifica sua boca, narinas e olhos. Com a presteza de um pronto-socorrista, afere sua pressão arterial pelo pulso. Perplexa, eu o ouço afirmar. - Ela precisa de cuidados!
- Aiden...- Levanto-me do chão e o encaro. Assustada, repito a pergunta, pausadamente. - O que faz aqui? Como sabia que eu...? - Mantendo seus olhos escuros fixos nos meus, ele infla as narinas ao questionar.
- Quer perder tempo com respostas idiotas ou prefere perder sua amiga!? Escolha!
Estou velando o sono de Sweet em um leito de hospital. Doc, sempre presente, cuida de Antoine e Jujuba. Cassandra finge jogar algo em seu celular enquanto nos espiona. Aiden, esparramado na poltrona em couro do quarto luxuoso, vez por outra, lança-me um olhar de ternura e arrependimento. Permaneço muda à espera do médico de plantão.
- Ela está bem, baby.
- Graças ao seu heroísmo. - Ironizo. - Conveniente, não é mesmo?
- Ciúmes?
- Nunca. - Rumino. - Desconfiança.
- Eu já te disse que...
- Já ouvi 'trocentas' vezes, Aiden. - Reclamo, impaciente. - Vc estava passeando pelas redondezas quando, subitamente, reconheceu meu carro...ou melhor, o seu carro e resolveu subir até o apartamento de Sweet. - Inflando as narinas, rosno. - Extremamente normal. - Relaxadamente sexy, ele ri de meu comentário e avisa.
- Se vc estiver insinuando que tenho algo com Sweet, mais tarde, será advertida.
- Cala a boca. - Rumino, contendo um sorriso. - Respeite a Cassandra.
Erguendo-se, de súbito, ele vem em minha direção. Sua intenção em beijar minha boca é interrompida pela chegada de um homem de jaleco, colar de estetoscópio e um olhar indiferente.
- Vc é parente dela?
- Boa noite, doutor. - Aiden me puxa pela cintura e, vendo-me contrariada, responde por mim.
- Sim. São primas. - Primas??? Afetando extremo interesse, Aiden indaga. - Qual o estado dela, doutor?
- O que quer ouvir primeiro?
- Vc é sempre assim ou tem dias de mau humor?
- Baby...- Repreende-me Aiden, contendo um riso. - Deixa comigo. Ok?
Afasto-me do insuportável médico e, de mãos dadas a Sweet que acaba de acordar, eu o ouço de queixo caído.
- Sífilis, gonorreia, cirrose hepática, transtornos psicóticos causados pelo uso de maconha, cocaína e outras substâncias encontradas em seu sangue.
- Que substâncias!? - Indago, horrorizada.
- Não conseguimos identificar. Ainda. - Dando-nos as costas, eu me revolto. Num grito, pergunto.
- Não vai examinar a paciente!? Ela tá aqui e tem nome! Sweet!
- Ah! Que bom, Sweet! Agora eu sei o nome da mãe da criança!
- Criança? - Questiona Aiden, confuso. - Que criança? - Lançando a Sweet um olhar de desprezo, o homem de jaleco comenta, antes de sair do quarto.
- Ela está grávida.
Puxo o ar pela boca e as únicas palavras que encontro são:
- Puta que pariu.
Cassandra abraça Sweet enquanto atendo o celular. Estou tão desorientada que não me atentei ao ringtone.
- Alô.
- Dess? - Meu coração bate na gargante enquanto caminho até o corredor do hospital. De olho em Aiden, comento num tom baixo.
- Esse não é o momento, Vincenzo. Agora não. - Sua voz sombria me pergunta.
- Vc esteve com padre Pietro nos últimos dias?
- Sim. Putz. Diga a ele que assim que puder, vou me encontrar com ele. Temos algo a resolver.
- Não vai não...- Lamenta ele.
- Por quê? Nós combinamos e eu faltei.
- Dess...- Escondo-me no banheiro ao perceber uma profunda tristeza em sua voz. Apreensiva, mordo meus lábios e, antes de perguntar o que acabo de pensar, ele me responde. - Padre Pietro está morto.
Continua...