Eu mesma, sem conseguir parar de chorar, a mergulhei na banheira com água morna. Cuidei de minha menina como nos tempos em que ela ainda era uma criança cheia de vida e curiosidade. "Acorda, por favor", supliquei enquanto secava, com dificuldade, seu corpo de adolescente. Recusando a ajuda de Vincenzo, com quem ainda não conversei, eu a levei, em meus braços, até seu quarto. Eu a vesti com seu pijama preferido. Ela parece dormir. No local da facada desferida por Liam, nada resta além de uma pequena cicatriz. Enfim, aceito o fato de que ela não é humana. Sem poder extravasar minha surpresa diante da apatia de Vincenzo e Leo, agradeço ao Criador por ter salvo minha filha.
Mesmo sem o dom da telepatia, posso ouvir a voz de Vincenzo a me recriminar:
"Somente agora vc recorre ao Criador?"
Leo se mantem calado, sentado sobre o colchão de Antoine, apoiando a cabeça de nossa filha em suas pernas esticadas. Ele acaricia seus cabelos úmidos. Vez por outra, ele sussurra algo em seu ouvido e sorri de olhos fixos no teto.
Vincenzo, recostado à parede, em frente à cama, mantem a cabeça baixa entre os joelhos flexionados. Por Matteo, sou obrigada a me movimentar. Sou obrigada a me manter firme, distante de minha filha a quem desejo abraçar e beijar. Tenho outro filho que necessita de minha atenção, do meu amor e de alimento. Matteo não tem culpa dos erros de seus pais.
Na banheira, ele e eu nos limpamos. Enquanto enxaguo seus cabelos sem corte, procuro arrancar um sorriso de seu lindo rosto, sem êxito. Visto-me com um pijama idêntico ao de Antoine e procuro por qualquer roupa que deixe Matteo aquecido e confortável. Não tenho lágrimas. Não tenho o que falar. Não consigo olhar para Vincenzo, por raiva de mim mesma e culpa. Na cozinha, misturo o caldinho de purê de batata ao feijão morno. Sem ânimo, diante de Matteo em sua cadeira de alimentação, eu imploro.
- Come, filho. Por favor. - Triste, ele abre a boquinha e aceita as colheradas sem sua algazarra costumeira. Beijo sua testa e lhe peço perdão ao confessar. - Eu não queria ter feito o que fiz. Vc acredita em mim? - Fazendo 'beicinho', ele move a cabeça. Seus olhinhos se enchem de lágrimas quando o abraço com força e prometo o que não poderia cumprir. - Não vou deixar sua 'maninha' partir. Juro. - Fixando seus olhos claros nos meus, ele declara com todas as letras.
- 'Ti' amo, mamãe.
Desabo.
Eu o aperto tanto enquanto choro compulsivamente que o ouço reclamar.
- 'Páia, mamãe. Páia. Faz dodói neném."
Ainda chorando, eu o vejo ser erguido por mãos fortes que o levam para longe de mim. Vincenzo, ainda sujo, o abraça e canta uma canção de ninar.
- Papai 'tiste'. Tadinho. - Constata Matteo levando Vincenzo a chorar enquanto o embala em seu colo. Sob a luz fluorescente, enxergo suas feridas no rosto, braços e abdômen. Como fui capaz de estancar o sangue que brotava de seu corpo? Como fui tão fria a ponto de matar Liam? Ele se arrependeu? Minha Cassie estava grávida de seu segundo filho. Como eu errei tanto? Não sei. Eu só queria acertar e salvar minha família e a de Cassie. Eu sou a porra de um monstro egocêntrico. Como me deixei levar por Lúcifer? Não vou deixar que levem o pai de meus filhos de mim. Não vou. Por que Vincenzo ainda continua aqui depois de eu ter feito o que fiz?
- Para de pensar, Dess. Vc precisa comer alguma coisa. Tá fraca.
- Vc precisa tomar um banho. Eu vou limpar suas feridas.
- Não precisa.
- Precisa sim. Vão infeccionar. As unhas daqueles...- Um arquejo e volto a chorar debruçada sobre a bancada. Entre soluços, advirto. - Vc precisa se limpar. O Leo também. Solta o meu filho. Ele já tomou banho.
- Nosso. - Refuta ele sem vida em seus olhos. - Nunca se esqueça de que ele é meu também. - Dando-me as costas, ele caminha até a sala de onde responde minha pergunta. - Ainda estou aqui porque não quero que outro homem me substitua. Ainda me agarro à esperança.
Impactada por suas palavras, jogo-me sobre o sofá e me arrependo de ter sido impulsiva, mais uma vez. Ligo a TV. Ao meu lado, Matteo assiste ao seu filme predileto até adormecer. Deitando-o em seu berço, beijo sua testa, deixando a porta de seu quarto, entreaberta. Corro até o quarto de Antoine.
Leo adormeceu ao seu lado. De mãos dadas a ela, ele deixa escapar duas lágrimas de seus olhos fechados. Com um estranho receio, toco na pele de minha filha. Alegro-me por não estar gelada. Ajoelho-me ao pé de sua cama. Com as mãos em prece, fixo meus olhos devastados pelas lágrimas, no rosto do 'Crucificado' pintado por Antoine, pregado à sua parede. Sentindo-me pequena demais, sussurro.
- Sei que errei. Não sou merecedora de Seu Amor. Não ouvi Seus avisos. Invoquei forças contrárias ao Senhor. O desejo de vingança tomou conta de mim quando eu deveria ter parado. Minha filha me alertou e eu não quis parar. Meu marido me implorou e eu não quis raciocinar. Juro que, naquele momento, eu não me lembrava de nada. Eu só queria matar aquele homem. - Com a voz embargando, prossigo. - Cometi vários pecados e, por isso, devo ser punida. Peço, pelo amor de Vossa Mãe, e não pelo ser humano repugnante que sou. Por favor, salva minha filha. Permita que ela permaneça entre nós por mais tempo. Eu imploro. Não deixe que o pacto se cumpra. Tu tens o poder de mudar tudo. Deixa Vincenzo com a gente. Nossos filhos e eu, precisamos dele. - Curvando meu tronco para frente, sentando-me sobre meus tornozelos, recosto minha testa na madeira da cama e, voltando a chorar, suplico. - Eu preciso muito dele. Por nosso filho, não deixe que o Mal o leve.
Permaneço assim por um tempo até perceber sua presença.
- Eu estava...
- Rezando. Eu ouvi, Dess.
- Seu cabelo tá molhado. - Ajoelhado, ao meu lado, ele sorri. Secando minhas lágrimas com sua mão fria, ele comenta. - Vc não comeu nada ainda. Nem tomou seus remédios. - Erguendo-se, ele me estende o braço e me convida. - Vem. Vou te preparar um sanduíche.
- Eu estava rezando, Vincenzo.
- Ele já ouviu, Dess. Jesus já Te ouviu.
- Como sabe?
- Como vc diria: 'Eu sei. Eu sinto'.
Caminho ao seu lado até a cozinha tentando descobrir o que ele sente por mim, neste momento. Em silêncio, sem largar minha mão, ele me faz sentar na banqueta. Em frente ao fogão, ele prepara sua especialidade: um 'Xburger' duplo com queijo cheddar. Sentando-se à minha frente, ele empurra um dos dois pratos em minha direção e mantem um deles diante de si. Abocanhando o sanduíche suculento, ele me emociona com seus olhos úmidos. Por que ele está prendendo o choro?
- Antoine e Leo deveriam estar aqui rindo de seus questionamentos impertinentes.
- Eles estarão aqui, em breve, marido. Não desanima. - Lançando-me um olhar sombrio, engulo em seco e afirmo. - Estarão sim. Para de me olhar desse jeito. Tenho medo.
- Coma, Dess e, depois, tome seus remédios.
- Vc me odeia? - Pergunto enfileirando os comprimidos ao lado do prato. São quatro ao todo. Tempo mais do que suficiente para que ele responda sem que eu o encare e repita. - Vc me odeia?
- Como posso te odiar, Dess?
- Por ter feito tudo o que não deveria ter feito. Por ter ferrado com nossas vidas. Por ter sido impulsiva quando vc cansou de me avisar. - Tocando em sua mão sobre a mesa, volto a jurar. - Eu não me lembrava do pacto entre vc e Liam. Acredite. Eu agi daquela forma porque eu o odiava. Por Cassie, por Sean. Não quero que vc vá embora...
- Come, Dess. Vai esfriar.
- Foda-se! Eu não tenho fome! Nossa filha tá prestes a morrer! Não faço ideia do que passa por sua cabeça e tudo o que pensa é em me fazer comer esse sanduíche!? - Com suas mãos em minhas têmporas, ele afirma.
- Não vou sair daqui.
- E o pacto!?
- Não há pacto, Dess. Toma teus remédios e coma o 'Xburguer'. Precisa ficar forte.
- Preciso de vc! Vc me odeia!? Fala logo!
- Como poderia odiar a mulher que me perdoou mesmo tendo sido machucada por mim? A mãe de meus filhos? Vc sabia de tudo e jamais me expulsou de sua vida.
- Por que não me salvou do segundo estupro na mansão dos amigos de Aiden? Vc disse que estava lá e não fez nada. Vc era um deles?
- Não, Dess. - Responde-me ele, amargurado, com os cabelos ainda molhados. Num repente, ergo-me da cadeira, abro uma das gavetas do armário e, com um pano de prato limpo, eu os enxugo enquanto ouço seu riso inocente. Após secar seus fios desalinhados, eu acaricio seu couro cabeludo e inspiro o cheiro de maçã verde que exala de seu corpo. Tenho medo de nunca mais inspirar esse cheirinho novamente. - Eu não era um deles. Eu fui impedido de entrar na mansão por seres mais poderosos do que eu. Fiquei ali, diante do jardim, imaginando o que faziam com vc e esse foi o meu castigo. Eu já te amava e já havia me curado por seu amor. Eu já tinha noção dos meus erros e do quanto eu te fiz sofrer e, ficar ali, até ouvir a primeira explosão foi a minha tortura.
- Primeira explosão? Eu não me lembro do que aconteceu. - Declaro, surpreendida. - Não foi Aiden quem me retirou dali?
- Não. Aiden chegou a sair do casarão, mas, imediatamente, retornou. Ele foi consumido pelo fogo como os outros convidados. Antes da explosão final, eu consegui entrar e te resgatar, com vida.
- Então...- Assustada, pergunto. - Aiden morreu e retornou?
- Sim e não. Ele sempre esteve morto. Digo, sempre habitou aquele corpo sem vida. Vc já sabe disso. Assim que o recuperou, ele te procurou, decidido a se redimir, assim como eu. Éramos dois párias à espera de seu perdão, mas ele sempre foi o mais honesto e o mais corajoso.
- Ele não tinha o que perder. Meu amor sempre foi seu.
- Foi?
- Foi. E sempre será. - Sentando-me em seu colo, eu o abraço e beijo sua boca.
- Perdão, Dess.
- Eu que preciso te pedir perdão, amor. Mesmo que venham te buscar, não vá. Vc pode se rebelar. Não pode?
- Não, Dess. Isso seria o fim dos que mais amo. Prefiro me afastar de vcs do que vê-los sofrer.
- Nós vamos sofrer de um jeito ou de outro, Vincenzo! Vc não pode nos deixar!
- Eles vão te matar!
- Quem são 'eles'!?
- Sei lá! 'Legião', arcanjos, demônios!
- Arcanjos!?
- Esquece, Dess.
- Não dá!
- De alguma forma, o destino vai nos separar.
- Não vai!
- Te acalma. Muita coisa ainda pode acontecer.
- Milagres?
- Eu acredito. E vc? - Desesperada, eu o abraço. Choramos juntos até Leo invadir a cozinha e, ofegante, avisar.
- Ela voltou!
Juntos, corremos até seu quarto. Empaco assim que a vejo sentada em sua cama. Seus olhos tristes me assustam. Seu sorriso mudou. Seu corpo irradia luz. Sua voz fraca me chama de 'mãe'. Ajoelhada ao seus pés, beijo suas mãos e lhe peço perdão.
- Levanta, mãe. Não há o que perdoar. Vc lutou por mim.
- Vc me avisou. Eu ouvi e não parei.
- Agora é passado, mãe. Estamos no presente e o presente é uma dádiva divina. Estamos unidos e com saúde.
- Filha...- Sussurro agarrada a ela. - Não me deixa nunca. - Um silêncio perturbador e a faço olhar em meus olhos ao implorar. - Não morra, filha. Se vc partir, eu vou junto.
- Não vai não. Meu maninho ainda vai precisar muito de sua força. - Tocando em sua cicatriz, pergunto.
- Dói?
- Não, mãe. Não fique abalada com o que não conhece. 'Meu Pai' me curou.
- Vincenzo? - Um sorriso pálido e ela responde.
- Não. O Pai que está nos Céus, mãe. Ainda não compreendeu quem eu sou?
- Não, filha! - Protesto. - Não quero ouvir!
- O tempo chegou, mãe. Eu preciso contar a minha história antes...
- NÃO DIGA 'ANTES DE PARTIR'!
- Dess, te acalma. - Pede-me Vincenzo, afastando-me de Antoine que, rindo esclarece.
- Eu ia dizer antes de comer. Tô sentindo daqui um cheirinho peculiar...- Animado, Vincenzo avisa.
- Vou preparar um 'Xburger' reforçado pra nossa heroína!
- E pra mim? - Abraçando Leo com força, Vincenzo se emociona ao revelar. - Vc me surpreendeu, filho. Sem a tua coragem e força, não estaríamos aqui.
- Quem são aqueles meninos, Leo? Seus amigos do colégio? - Elevando os olhos ao teto, ele hesita em responder.
- Sim. Pode ser.
- Havia algo de diferente neles.
- E eles são diferentes, tia. 'Tá ligada'?
- Será que podemos conversar enquanto comemos? Tô 'varada' de fome. - Sem forças para se manter de pé, Antoine é carregada por Leo até a cozinha enquanto Vincenzo e eu os seguimos, de mãos dadas.
Sinto que, talvez, minhas preces tenham sido ouvidas.
Beliscando as batatas fritas do prato de Vincenzo, observo a estranha euforia de Antoine em enfatizar a atuação de Leo durante o que ela chama de 'O ínicio do Fim'.
- Por que veio à Terra, filha? Eu já me convenci que vc não era uma garotinha normal quando te vi naquela praça. Não depois de ver o imenso ferimento em sua barriga cicatrizar no mesmo dia. - Lambendo os dedos, ela me encara e pergunta.
- Vc tá preparada pra saber de tudo, mãe?
- Não. Mas...tudo bem.
- Dess...- Abraçada a Vincenzo, resmungo.
- Eu preciso conhecer a verdade, mesmo que ela doa. - Limpando a boca com guardanapo de papel, ela corrige sua postura sobre a banqueta e, antes de iniciar seu relato, ela inspira e expira profundamente. - Pode falar, filha. Não vou surtar.
- Essa história começa antes do 'Messias' pisar na Terra. Onde meu pai e eu habitávamos, havia milhares de outros como nós.
- Vc não é como eu, filha. Explique o que vc é.
- Pai...- Resmunga ela, envergonhada. Vincenzo me explica.
- Ela é um querubim, Dess. Está acima de anjos e arcanjos. Tem ligação direta com o 'Nosso Deus'.
- Uau...- Suspira Leo. Em silêncio, eu a ouço prosseguir.
- Vivíamos em paz até que a ideia de rebelião contra o 'Nosso Criador' começou a circular entre os anjos. À essa altura, havia humanos habitando a Terra. Uma espécie rude, sem fé em 'Nosso Pai'. Sabíamos que anjos escapavam do céu em busca de aventuras na Terra. Alguns se excediam e se misturavam aos humanos com intenções impuras. Alguns lhes faziam mal.
- Lúcifer?
- Não, mãe. Ele pouco descia à Terra. Ele desprezava os humanos. Ele os invejava. Preferia ficar entre nós e disseminar ideias contrárias ao amor que Deus nos ensinou. Meu pai, um anjo bom e bem quisto por todos acima dele, curioso, desceu à Terra onde, infelizmente, se desvirtuou. Maltratou algumas mulheres dos vilarejos que visitava. Apesar de tudo, eu o amava. À distância, mas o amava. Ele era encantador. Antes de se desvirtuar, ele costumava falar de 'Nosso Pai' aos que o encontravam. Tinha tudo para se tornar um querubim ou serafim até encontrar a mulher que lhe roubou o coração e atormentou sua alma.
- Ah tá! A culpada foi a mulher! Ele fez merda e a culpada é a infeliz da mulher!?
- Mãe...
- Vai. - Rosno.
- Lúcifer, contaminado pela inveja, o incitou a se rebelar contra 'Àquele' que O criou. Lúcifer já havia feito uma humana sofrer. Dessa maldade, nasceu um lindo menino com poderes sobrenaturais.
- Onde ele está?
- Não importa, mãe.
- Claro que importa! É seu irmão!? Sean!?
- Posso continuar ou vai insistir? Não posso revelar mais nada sobre esse assunto.
- Então por que falou nele, diabos!?
- Dess!
- Inferno...- Resmungo contrariada. - Continua.
- Meu pai não aceitou se unir aos rebelados, mas continuou a errar entre os humanos. Entre as humanas, mais especificamente. Por uma delas, ele se apaixonou. Implorou ao arcanjo Miguel que intercedesse por ele junto ao 'Pai'. Miguel o aconselhou a se afastar da humana grávida de seu filho a fim de se curar de sua estranha compulsão. Ele aguardou pelo consentimento de Miguel enquanto a pobre mulher o esperava em sua aldeia. Ela o amava. Ele a amava. Lúcifer os detestava. Ele insistia em ter meu pai em seu exército já organizado, em sigilo. Porém, nada escapa aos olhos de 'Meu Pai'. - Confusa, ergo meu braço direito e proponho.
- Dá pra falar de Deus como Deus ou Criador!? Essa coisa de 'meu pai' tá me deixando confusa! Eu já não sei quem é o 'pai' nessa história! Se é Deus ou o meu marido! - Provoco risos em Leo e Vincenzo. Antoine, revirando os olhos, concorda.
- Vou chamar o Criador de 'Deus' ou 'Criador'. Ok?
- Ok. - Compenetrada, ela continua.
- Revoltado e com saudades da mulher amada, meu pai - seu marido - tentou 'cair'. Soube, por outros anjos, que ela o esperava na Terra. Rafael, o anjo da Cura, temendo pela morte da humana grávida do anjo apaixonado, o tranca em uma cela dourada até que ele desista de 'cair' por ela.
- Para tudo!
- De novo, mãe!?
- O que esse tal de Rafael tem a ver com a nossa história!?
- Dess...
- Não me venha com essa merda de 'Dess', Vincenzo! Ele é frio pra cacete! Esse Rafael já não gostava de mim antes de Cristo!? Por que ele se meteu entre nós!?
- Uma rusga antiga, Dess. Mas, ele me curou. Lembra disso!? No hospital!?
- Por Antoine, ele te curou!
- O Criador pediu que ele interferisse, mãe. A mulher corria risco de morte por ter sido fecundada por um anjo.
- E daí!? Ele não socorreu a mulher! Ele impediu que ela fosse feliz com o anjo amado! Eu odeio esse Rafael!
- Mãe!!!
- Não faz sentido!!! Que rusga é essa, Vincenzo???
- Bobagem, Dess!
- Um arcanjo te tranca numa jaula dourada e te afasta de uma mulher prestes a parir um filho teu, cercada por gente ruim e vc classifica isso como 'bobagem'???
- Mãe, olha pra mim.
- Tem coisa aí, filha! Eu sei! Eu sinto! - Gargalhando, Vincenzo me provoca ao comentar.
- Sua velha frase de impacto.
- Meu ranço por esse Rafael aumentou!
- Mãe! Ele não seria um arcanjo se fosse mau! - Intrigada, repito.
- Como Shakespeare diria: 'Há algo de podre no Reino da Dinamarca'. Odeio esse Rafael. Pronto. Falei. Continua. - Bufando, ela prossegue.
- Libertado por Miguel, o anjo pede perdão ao Criador e o desobedece, 'caindo' exatamente no momento em que a rebelião de Lúcifer acontece. Confundido com um dos rebelados, sem ser reconhecido por guardiões de nossos portões, ele desiste de explicar sua versão ao Criador e passa a vagar pela Terra, à procura da mulher amada e do filho perdido, morto ao despencar de um penhasco ainda no ventre da mãe.
- Não faz sentido. - Protesto. Leo deixa de sugar o refrigerante pelo canudinho e me apoia.
- Não mesmo, tia. Tipo...eu faço parte dos 'topíssimos' de um reino. Sou preso injustamente. Um arcanjo 'brother' me liberta. No mesmo dia de uma rebelião do cara que me odeia, eu resolvo me misturar à torcida dele. Levo uma rasteira. Perco o jogo por causa dele. Consigo voltar ao início. Tento pedir perdão ao 'Master'. Os guardiões do portão que deveriam me conhecer há milênios, não me reconhecem e, do nada, eu resolvo desistir de tudo e vagar pela Terra. Final do jogo? Tipo...o anjo bom mudou de rosto pra não ser reconhecido? O 'Master' não teria ouvido falar nessa suposta injustiça e procurado pelo anjo bom? Tá confuso. - Tento não classificar o olhar de Vincenzo sobre Leo que, despretensiosamente, morde os cubos de gelo e repete. - Tá confuso.
- É tudo o que conheço, Leo. - Declara Antoine, desanimada. Um beijo em sua bochecha e Leo pede perdão.
- Foi mal. Eu confio em vc, 'bebê'. - Um riso histérico e, desviando meus olhos dos de Vincenzo, pergunto, intrigada.
- Onde vc entra nessa história, filha? Tem certeza de que sua versão procede?
- Ela é um querubim, Dess. Eles não mentem. - Um leve inflar de narinas e ele rosna. - Deixa ela falar.
- Não disse que ela mente. - Confronto Vincenzo. - Talvez ela não tenha a visão geral dos fatos, marido.
- Se os dois não pararem de discutir, eu me levanto e vou embora.
- NÃO! - Inspirando e expirando, profundamente, de olhos fechados, imploro. - Continua, filha. - Encarando Vincenzo com um olhar indecifrável, ela confessa.
- Sentia um amor especial pelo anjo apaixonado. Uma curiosidade por conhecer a Humanidade. Pedi, diretamente, ao 'Meu Criador' se poderia ficar ao lado do anjo que 'caíra' por descuido. Tendo sua permissão, desci à Terra e o tenho acompanhado, desde então.
- Foi quando eu te encontrei na praça?
- Um pouco antes, mãe. Já nos encontramos em outras vidas.
- Quando!?
- Não posso falar. - Rindo, ela me ouve protestar.
- NÃO MENCIONE FATOS SOBRE OS QUAIS NÃO PODE FALAR! OK!?
- DESS!
- CALA A BOCA, VINCENZO! - Um olhar ao teto e, resfolegante, ordeno. - CONTINUA!
- Eu precisei criar aquela situação, na praça, pra chamar sua atenção. Acho que deu certo.
- Então, vc não viveu sob o domínio daquele brutamontes!? Nunca passou fome!?
- Não, mãe. Eu fazia questão de estar entre eles exatamente pra proteger meus amigos. Crianças sem seus pais. Quando te reconheci, meu coração transbordou de júbilo.
- Para tudo...- Choramingo, escondendo meu rosto entre minhas mãos trêmulas. Soluçando, indago. - Por que eu? Tanta gente boa que poderia te acolher. Vc deve saber o que fui. Com o que trabalhei. Nada tem de honesto em destruir casamentos alheios ou viciar jovens em pornografia. Vc poderia ter me ajudado de longe. - Cuidadosamente, ela retira minhas mãos de meu rosto e, com ternura na voz, responde.
- Eu sempre te amei, mãe. Desde que te vi sozinha, em sua aldeia, à espera de meu pai, há milênios. Desde que chorou de saudades e orou ao Criador por seu retorno. Vc jamais desistiu. Mesmo diante das inúmeras dificuldades, vc aceitou a vida em seu útero. Vc aguentou firme até o fim. Vc lutou contra Lúcifer sem medo. Tudo por meu pai. Eu sabia que largaria aquele tipo de trabalho triste, nesta vida, a qualquer momento. Eu me apaixonei por vc, mãe. Eu queria sentir esse amor que te faz tão forte. Eu...
- Não chora, filha. - Num abraço forte, choramos até que nossas lágrimas sequem e, sem lágrimas, comecemos a rir de nós mesmas. - Duas bobas. É isso o que somos, filha. Te amo tanto...
- Te amo mais, mãe.
- Tem espaço pra mais um dentro de tanto amor? - Um olhar triste de Vincenzo e ela o abraça, sussurrando-lhe algo ao seu ouvido. Não me atrevo a perguntar o que ele ouviu. Não mesmo. Os olhos de Vincenzo estão ainda mais tristes. Meu coração dói. Minha alma ainda não se acalmou. - Creio que Leo também mereça um abraço, filha.
- Concordo. - Ao seu lado, Antoine o beija no rosto e se aconchega em seu abraço. - Meu herói. Meu grande amigo. Vou sentir sua falta.
- Merda! - Minha voz embarga. Erguendo-me, abruptamente, da banqueta, fujo da cozinha e, dentro do banheiro, trancado por dentro, volto a chorar diante de meu reflexo. - Não deixem que ela parta. Por favor. Deixem minha família comigo. Levem a mim. Deixem que eles fiquem. Por favor.
Sentada no piso frio, recostada à parede, com os dedos enfurnados em meus cabelos, desolada, fixo meus olhos inchados de tanto chorar, no teto. Em meio ao silêncio, ouço sua voz doce e triste, sussurrar.
"Três dias. Foi tudo o que pude conseguir, filha. Três dias juntos. Carpe Diem. Aproveitem os dias."
Três dias.
Três longos e decisivos dias em que nos unimos ainda mais. Não contei a Vincenzo ou a Antoine o que ouvira de Enrico. Não. Guardei seu alerta e sua voz doce comigo e estou tentando viver cada dia como se fosse o último.
Novamente.
Novamente, não falamos de 'Legião' ou de 'Lúcifer', tampouco da desconfiança que guardo comigo. Viajamos até a casa de praia de Vincenzo onde tudo começou. Onde ele me magoou por ter medo de me amar. Onde eu me entreguei a ele de corpo e alma.
- Eu já te amava, Dess. Não consigo me perdoar pelo tempo que perdemos enquanto eu tentava ser algo que nunca fui.
- Shhh...- Calo sua boca com um beijo. - Não fala nada de nosso passado. O presente é o que temos aqui e agora. Vamos fingir que nos conhecemos no 'jardim de infância' e que nos apaixonamos no 'colegial' e que, desde então, não nos separamos mais.
- Eu era o astro do time de futebol?
- Sim! - Exulto. - E eu, era a idiota da 'Cheerleader' que se lesionou enquanto tentava te impressionar com meus saltos mirabolantes.
- Não precisava ter feito tudo isso, esposa. Eu teria te amado mesmo que fosse a aluna tímida, com óculos e o rosto cheio de espinhas.
- Duvido. Vc era o bonitão. O desejado por todas as vacas do colégio. Não teria olhado pra mim se eu não tivesse, literalmente, me jogado sobre vc ao cair do topo da porra daquela pirâmide de meninas ricas e mimadas.
- Ops! Tem gente levando a sério nossa brincadeira! - Rindo, concordo, ao me afastar dele. Com os pés fincados na areia morna, num grito, eu o desafio.
- O último a chegar naquela pedra é 'mulher do padre'!
Matteo grita, eufórico, ao correr, dando o melhor de si. Deixamos que ele vença e voltamos a admirar seu lindo sorriso sob a luz do sol. Mergulhamos no mar e o ensinamos a boiar de barriga para cima. Animadíssimo, ele nos mostra o que aprendera nas aulas de natação. Tento esconder o pânico que, vez por outra, me assalta.
Nada será como antes. Nada de escolinha de natação ou aulas de 'kickboxing'. Talvez, eu jamais volte a pôr os pés na 'Just Dance'.
- Dess. Vc pretende morrer?
- Não. Por quê? - Ao embalo das marolas chocando-se contra nossos corpos, ele me repreende.
- Para de pensar bobagens. Antoine voltou. Liam morreu. Estamos juntos e em paz.
- Até quando? O que ela cochichou em seu ouvido ontem à noite? - Desconversando, ele ergue Matteo em seu colo e o afunda nas águas do mar. Ao submergir, Matteo pede, histérico.
- "De movo!!!"
Debaixo da barraca, Leo e Antoine brincam de brigar. Algo me diz que Leo sabe mais do que aparenta. Olho ao redor e percebo que estamos sozinhos na praia.
- Está frio, Dess. Relaxa. A praia costuma ficar cheia somente no verão.
- Vc não sente, Vincenzo? - Matteo acaba de se jogar na areia e rolar, de um lado ao outro. Como um bife empanado, ele volta a gargalhar de Vincenzo que ameaça correr atrás dele. Ignorando minha pergunta, ele corre atrás de Matteo que, histérico, foge dele.
Por que não consigo me desligar de tudo e aproveitar mais um dia com minha família?
Um vento morno atinge minhas costas. Eu me arrepio ao olhar para trás. Assustada, eu nada vejo, mas pressinto.
- Deixe-nos em paz! - Grito contra o vento. - Ninguém vai separar minha família!
"O que ela sussurrou ao ouvido do anjo bom?"
Um arrepio ainda mais forte e corro da voz sem rosto, até a barraca onde tento esconder o medo.
O medo da verdade.
Entre jovens, nos divertimos em um 'luau' próximo à nossa casa. Antoine e Leo dançam ao redor da fogueira. Um aperto no peito e sou contida pelo abraço de Vincenzo que murmura em meu ouvido.
Tento acalmar meu coração recostando meu ouvido em seu peito. O coração de Vincenzo bate tão acelerado quanto o meu. Contenho a intensa vontade de chorar e, sorrindo, pergunto.
Da praia, fomos ao parque de diversões. Tomado por uma súbita vontade em aproveitar a noite ao máximo, Vincenzo monta Matteo em um dos cavalos do carrossel enquanto Antoine me obriga a me aventurar em todos os brinquedos que giram e me fazem gritar até ficar rouca. Sempre de mãos dadas, como irmãs, corremos de um lado ao outro porque não queremos perder um minuto sequer de nossa noite simplesmente esplêndida, como Antoine a chama.
Outro homem em nossa família a prometer o que não poderia cumprir.





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