sexta-feira, 3 de maio de 2024

CAPÍTULO 50 - CARPE DIEM

 





Eu mesma, sem conseguir parar de chorar, a mergulhei na banheira com água morna. Cuidei de minha menina como nos tempos em que ela ainda era uma criança cheia de vida e curiosidade. "Acorda, por favor", supliquei enquanto secava, com dificuldade, seu corpo de adolescente. Recusando a ajuda de Vincenzo, com quem ainda não conversei, eu a levei, em meus braços, até seu quarto. Eu a vesti com seu pijama preferido. Ela parece dormir. No local da facada desferida por Liam, nada resta além de uma pequena cicatriz. Enfim, aceito o fato de que ela não é humana. Sem poder extravasar minha surpresa diante da apatia de Vincenzo e Leo, agradeço ao Criador por ter salvo minha filha. 

Mesmo sem o dom da telepatia, posso ouvir a voz de Vincenzo a me recriminar:

"Somente agora vc recorre ao Criador?"

Leo se mantem calado, sentado sobre o colchão de Antoine, apoiando a cabeça de nossa filha em suas pernas esticadas. Ele acaricia seus cabelos úmidos. Vez por outra, ele sussurra algo em seu ouvido e sorri de olhos fixos no teto.

Vincenzo, recostado à parede, em frente à cama, mantem a cabeça baixa entre os joelhos flexionados. Por Matteo, sou obrigada a me movimentar. Sou obrigada a me manter firme, distante de minha filha a quem desejo abraçar e beijar. Tenho outro filho que necessita de minha atenção, do meu amor e de alimento. Matteo não tem culpa dos erros de seus pais.

Na banheira, ele e eu nos limpamos. Enquanto enxaguo seus cabelos sem corte, procuro arrancar um sorriso de seu lindo rosto, sem êxito. Visto-me com um pijama idêntico ao de Antoine e procuro por qualquer roupa que deixe Matteo aquecido e confortável. Não tenho lágrimas. Não tenho o que falar. Não consigo olhar para Vincenzo, por raiva de mim mesma e culpa. Na cozinha, misturo o caldinho de purê de batata ao feijão morno. Sem ânimo, diante de Matteo em sua cadeira de alimentação, eu imploro.

- Come, filho. Por favor. - Triste, ele abre a boquinha e aceita as colheradas sem sua algazarra costumeira. Beijo sua testa e lhe peço perdão ao confessar. - Eu não queria ter feito o que fiz. Vc acredita em mim? - Fazendo 'beicinho', ele move a cabeça. Seus olhinhos se enchem de lágrimas quando o abraço com força e prometo o que não poderia cumprir. - Não vou deixar sua 'maninha' partir. Juro. - Fixando seus olhos claros nos meus, ele declara com todas as letras.

- 'Ti' amo, mamãe.

Desabo.

Eu o aperto tanto enquanto choro compulsivamente que o ouço reclamar.

- 'Páia, mamãe. Páia. Faz dodói neném." 

Ainda chorando, eu o vejo ser erguido por mãos fortes que o levam para longe de mim. Vincenzo, ainda sujo, o abraça e canta uma canção de ninar. 

- Papai 'tiste'. Tadinho. - Constata Matteo levando Vincenzo a chorar enquanto o embala em seu colo. Sob a luz fluorescente, enxergo suas feridas no rosto, braços e abdômen. Como fui capaz de estancar o sangue que brotava de seu corpo? Como fui tão fria a ponto de matar Liam? Ele se arrependeu? Minha Cassie estava grávida de seu segundo filho. Como eu errei tanto? Não sei. Eu só queria acertar e salvar minha família e a de Cassie. Eu sou a porra de um monstro egocêntrico. Como me deixei levar por Lúcifer? Não vou deixar que levem o pai de meus filhos de mim. Não vou. Por que Vincenzo ainda continua aqui depois de eu ter feito o que fiz?

- Para de pensar, Dess. Vc precisa comer alguma coisa. Tá fraca.

- Vc precisa tomar um banho. Eu vou limpar suas feridas.

- Não precisa.

- Precisa sim. Vão infeccionar. As unhas daqueles...- Um arquejo e volto a chorar debruçada sobre a bancada. Entre soluços, advirto. - Vc precisa se limpar. O Leo também. Solta o meu filho. Ele já tomou banho.

- Nosso. - Refuta ele sem vida em seus olhos. - Nunca se esqueça de que ele é meu também. - Dando-me as costas, ele caminha até a sala de onde responde minha pergunta. - Ainda estou aqui porque não quero que outro homem me substitua. Ainda me agarro à esperança. 

Impactada por suas palavras, jogo-me sobre o sofá e me arrependo de ter sido impulsiva, mais uma vez. Ligo a TV. Ao meu lado, Matteo assiste ao seu filme predileto até adormecer. Deitando-o em seu berço, beijo sua testa, deixando a porta de seu quarto, entreaberta. Corro até o quarto de Antoine.


Leo adormeceu ao seu lado. De mãos dadas a ela, ele deixa escapar duas lágrimas de seus olhos fechados. Com um estranho receio, toco na pele de minha filha. Alegro-me por não estar gelada. Ajoelho-me ao pé de sua cama. Com as mãos em prece, fixo meus olhos devastados pelas lágrimas, no rosto do 'Crucificado' pintado por Antoine, pregado à sua parede. Sentindo-me pequena demais, sussurro.

- Sei que errei. Não sou merecedora de Seu Amor. Não ouvi Seus avisos. Invoquei forças contrárias ao Senhor. O desejo de vingança tomou conta de mim quando eu deveria ter parado. Minha filha me alertou e eu não quis parar. Meu marido me implorou e eu não quis raciocinar. Juro que, naquele momento, eu não me lembrava de nada. Eu só queria matar aquele homem. - Com a voz embargando, prossigo. - Cometi vários pecados e, por isso, devo ser punida. Peço, pelo amor de Vossa Mãe, e não pelo ser humano repugnante que sou. Por favor, salva minha filha. Permita que ela permaneça entre nós por mais tempo. Eu imploro. Não deixe que o pacto se cumpra. Tu tens o poder de mudar tudo. Deixa Vincenzo com a gente. Nossos filhos e eu, precisamos dele. - Curvando meu tronco para frente, sentando-me sobre meus tornozelos, recosto minha testa na madeira da cama e, voltando a chorar, suplico. - Eu preciso muito dele. Por nosso filho, não deixe que o Mal o leve.

Permaneço assim por um tempo até perceber sua presença.

- Eu estava...

- Rezando. Eu ouvi, Dess.

- Seu cabelo tá molhado. - Ajoelhado, ao meu lado, ele sorri. Secando minhas lágrimas com sua mão fria, ele comenta. - Vc não comeu nada ainda. Nem tomou seus remédios. - Erguendo-se, ele me estende o braço e me convida. - Vem. Vou te preparar um sanduíche.

- Eu estava rezando, Vincenzo.

- Ele já ouviu, Dess. Jesus já Te ouviu.

- Como sabe?

- Como vc diria: 'Eu sei. Eu sinto'

Caminho ao seu lado até a cozinha tentando descobrir o que ele sente por mim, neste momento. Em silêncio, sem largar minha mão, ele me faz sentar na banqueta. Em frente ao fogão, ele prepara sua especialidade: um 'Xburger' duplo com queijo cheddar. Sentando-se à minha frente, ele empurra um dos dois pratos em minha direção e mantem um deles diante de si. Abocanhando o sanduíche suculento, ele me emociona com seus olhos úmidos. Por que ele está prendendo o choro?

- Antoine e Leo deveriam estar aqui rindo de seus questionamentos impertinentes.

- Eles estarão aqui, em breve, marido. Não desanima. - Lançando-me um olhar sombrio, engulo em seco e afirmo. - Estarão sim. Para de me olhar desse jeito. Tenho medo.

- Coma, Dess e, depois, tome seus remédios. 

- Vc me odeia? - Pergunto enfileirando os comprimidos ao lado do prato. São quatro ao todo. Tempo mais do que suficiente para que ele responda sem que eu o encare e repita. - Vc me odeia?

- Como posso te odiar, Dess?

- Por ter feito tudo o que não deveria ter feito. Por ter ferrado com nossas vidas. Por ter sido impulsiva quando vc cansou de me avisar. - Tocando em sua mão sobre a mesa, volto a jurar. - Eu não me lembrava do pacto entre vc e Liam. Acredite. Eu agi daquela forma porque eu o odiava. Por Cassie, por Sean. Não quero que vc vá embora...

- Come, Dess. Vai esfriar.

- Foda-se! Eu não tenho fome! Nossa filha tá prestes a morrer! Não faço ideia do que passa por sua cabeça e tudo o que pensa é em me fazer comer esse sanduíche!? - Com suas mãos em minhas têmporas, ele afirma. 

- Não vou sair daqui.

- E o pacto!?

- Não há pacto, Dess. Toma teus remédios e coma o 'Xburguer'. Precisa ficar forte.

- Preciso de vc! Vc me odeia!? Fala logo!

- Como poderia odiar a mulher que me perdoou mesmo tendo sido machucada por mim? A mãe de meus filhos? Vc sabia de tudo e jamais me expulsou de sua vida. 

- Por que não me salvou do segundo estupro na mansão dos amigos de Aiden? Vc disse que estava lá e não fez nada. Vc era um deles?

- Não, Dess. - Responde-me ele, amargurado, com os cabelos ainda molhados. Num repente, ergo-me da cadeira, abro uma das gavetas do armário e, com um pano de prato limpo, eu os enxugo enquanto ouço seu riso inocente. Após secar seus fios desalinhados, eu acaricio seu couro cabeludo e inspiro o cheiro de maçã verde que exala de seu corpo. Tenho medo de nunca mais inspirar esse cheirinho novamente. - Eu não era um deles. Eu fui impedido de entrar na mansão por seres mais poderosos do que eu. Fiquei ali, diante do jardim, imaginando o que faziam com vc e esse foi o meu castigo. Eu já te amava e já havia me curado por seu amor. Eu já tinha noção dos meus erros e do quanto eu te fiz sofrer e, ficar ali, até ouvir a primeira explosão foi a minha tortura.

- Primeira explosão? Eu não me lembro do que aconteceu. - Declaro, surpreendida. - Não foi Aiden quem me retirou dali?

- Não. Aiden chegou a sair do casarão, mas, imediatamente, retornou. Ele foi consumido pelo fogo como os outros convidados. Antes da explosão final, eu consegui entrar e te resgatar, com vida. 

- Então...- Assustada, pergunto. - Aiden morreu e retornou?

- Sim e não. Ele sempre esteve morto. Digo, sempre habitou aquele corpo sem vida. Vc já sabe disso. Assim que o recuperou, ele te procurou, decidido a se redimir, assim como eu. Éramos dois párias à espera de seu perdão, mas ele sempre foi o mais honesto e o mais corajoso. 

- Ele não tinha o que perder. Meu amor sempre foi seu. 

- Foi?

- Foi. E sempre será. - Sentando-me em seu colo, eu o abraço e beijo sua boca. 

- Perdão, Dess.

- Eu que preciso te pedir perdão, amor. Mesmo que venham te buscar, não vá. Vc pode se rebelar. Não pode?

- Não, Dess. Isso seria o fim dos que mais amo. Prefiro me afastar de vcs do que vê-los sofrer.

- Nós vamos sofrer de um jeito ou de outro, Vincenzo! Vc não pode nos deixar!

- Eles vão te matar!

- Quem são 'eles'!?

- Sei lá! 'Legião', arcanjos, demônios!

- Arcanjos!?

- Esquece, Dess.

- Não dá!

- De alguma forma, o destino vai nos separar.

- Não vai!

- Te acalma. Muita coisa ainda pode acontecer.

- Milagres?

- Eu acredito. E vc? - Desesperada, eu o abraço. Choramos juntos até Leo invadir a cozinha e, ofegante, avisar.

- Ela voltou!

Juntos, corremos até seu quarto. Empaco assim que a vejo sentada em sua cama. Seus olhos tristes me assustam. Seu sorriso mudou. Seu corpo irradia luz. Sua voz fraca me chama de 'mãe'. Ajoelhada ao seus pés, beijo suas mãos e lhe peço perdão.

- Levanta, mãe. Não há o que perdoar. Vc lutou por mim. 

- Vc me avisou. Eu ouvi e não parei.

- Agora é passado, mãe. Estamos no presente e o presente é uma dádiva divina. Estamos unidos e com saúde.

- Filha...- Sussurro agarrada a ela. - Não me deixa nunca. - Um silêncio perturbador e a faço olhar em meus olhos ao implorar. - Não morra, filha. Se vc partir, eu vou junto.

- Não vai não. Meu maninho ainda vai precisar muito de sua força. - Tocando em sua cicatriz, pergunto.

- Dói?

- Não, mãe. Não fique abalada com o que não conhece. 'Meu Pai' me curou. 

- Vincenzo? - Um sorriso pálido e ela responde.

- Não. O Pai que está nos Céus, mãe. Ainda não compreendeu quem eu sou?

- Não, filha! - Protesto. - Não quero ouvir!

- O tempo chegou, mãe. Eu preciso contar a minha história antes...

- NÃO DIGA 'ANTES DE PARTIR'!

- Dess, te acalma. - Pede-me Vincenzo, afastando-me de Antoine que, rindo esclarece. 

- Eu ia dizer antes de comer. Tô sentindo daqui um cheirinho peculiar...- Animado, Vincenzo avisa.

- Vou preparar um 'Xburger' reforçado pra nossa heroína!

- E pra mim? - Abraçando Leo com força, Vincenzo se emociona ao revelar. - Vc me surpreendeu, filho. Sem a tua coragem e força, não estaríamos aqui.

- Quem são aqueles meninos, Leo? Seus amigos do colégio? - Elevando os olhos ao teto, ele hesita em responder.

- Sim. Pode ser.

- Havia algo de diferente neles.

- E eles são diferentes, tia. 'Tá ligada'?



- Será que podemos conversar enquanto comemos? Tô 'varada' de fome. - Sem forças para se manter de pé, Antoine é carregada por Leo até a cozinha enquanto Vincenzo e eu os seguimos, de mãos dadas. 

Sinto que, talvez, minhas preces tenham sido ouvidas.


Beliscando as batatas fritas do prato de Vincenzo, observo a estranha euforia de Antoine em enfatizar a atuação de Leo durante o que ela chama de 'O ínicio do Fim'
- Não gosto desse título, filha!
- É do fim deles, mãe. Relaxa.
Devorando o segundo sanduíche, como se fosse o último, ela elogia Vincenzo que, assim como eu, a encara em silêncio. Leo, alheio a tudo, aprecia o 'Xburguer', aos poucos. Ele arregala os olhos quando, sem desejar ouvir a resposta, indago.

- Por que veio à Terra, filha? Eu já me convenci que vc não era uma garotinha normal quando te vi naquela praça. Não depois de ver o imenso ferimento em sua barriga cicatrizar no mesmo dia. - Lambendo os dedos, ela me encara e pergunta.

- Vc tá preparada pra saber de tudo, mãe?

- Não. Mas...tudo bem.

- Dess...- Abraçada a Vincenzo, resmungo. 

- Eu preciso conhecer a verdade, mesmo que ela doa. - Limpando a boca com guardanapo de papel, ela corrige sua postura sobre a banqueta e, antes de iniciar seu relato, ela inspira e expira profundamente. - Pode falar, filha. Não vou surtar.

- Essa história começa antes do 'Messias' pisar na Terra. Onde meu pai e eu habitávamos, havia milhares de outros como nós.

- Vc não é como eu, filha. Explique o que vc é.

- Pai...- Resmunga ela, envergonhada. Vincenzo me explica.

- Ela é um querubim, Dess. Está acima de anjos e arcanjos. Tem ligação direta com o 'Nosso Deus'.

- Uau...- Suspira Leo. Em silêncio, eu a ouço prosseguir.

- Vivíamos em paz até que a ideia de rebelião contra o 'Nosso Criador' começou a circular entre os anjos. À essa altura, havia humanos habitando a Terra. Uma espécie rude, sem fé em 'Nosso Pai'. Sabíamos que anjos escapavam do céu em busca de aventuras na Terra. Alguns se excediam e se misturavam aos humanos com intenções impuras. Alguns lhes faziam mal. 

- Lúcifer?

- Não, mãe. Ele pouco descia à Terra. Ele desprezava os humanos. Ele os invejava. Preferia ficar entre nós e disseminar ideias contrárias ao amor que Deus nos ensinou. Meu pai, um anjo bom e bem quisto por todos acima dele, curioso, desceu à Terra onde, infelizmente, se desvirtuou. Maltratou algumas mulheres dos vilarejos que visitava. Apesar de tudo, eu o amava. À distância, mas o amava. Ele era encantador. Antes de se desvirtuar, ele costumava falar de 'Nosso Pai' aos que o encontravam. Tinha tudo para se tornar um querubim ou serafim até encontrar a mulher que lhe roubou o coração e atormentou sua alma. 

- Ah tá! A culpada foi a mulher! Ele fez merda e a culpada é a infeliz da mulher!?

- Mãe...

- Vai. - Rosno.

- Lúcifer, contaminado pela inveja, o incitou a se rebelar contra 'Àquele' que O criou. Lúcifer já havia feito uma humana sofrer. Dessa maldade, nasceu um lindo menino com poderes sobrenaturais.

- Onde ele está?

- Não importa, mãe.

- Claro que importa! É seu irmão!? Sean!?

- Posso continuar ou vai insistir? Não posso revelar mais nada sobre esse assunto.

- Então por que falou nele, diabos!?

- Dess!

- Inferno...- Resmungo contrariada. - Continua.

- Meu pai não aceitou se unir aos rebelados, mas continuou a errar entre os humanos. Entre as humanas, mais especificamente. Por uma delas, ele se apaixonou. Implorou ao arcanjo Miguel que intercedesse por ele junto ao 'Pai'. Miguel o aconselhou a se afastar da humana grávida de seu filho a fim de se curar de sua estranha compulsão. Ele aguardou pelo consentimento de Miguel enquanto a pobre mulher o esperava em sua aldeia. Ela o amava. Ele a amava. Lúcifer os detestava. Ele insistia em ter meu pai em seu exército já organizado, em sigilo. Porém, nada escapa aos olhos de 'Meu Pai'. - Confusa, ergo meu braço direito e proponho.

- Dá pra falar de Deus como Deus ou Criador!? Essa coisa de 'meu pai' tá me deixando confusa! Eu já não sei quem é o 'pai' nessa história! Se é Deus ou o meu marido! - Provoco risos em Leo e Vincenzo. Antoine, revirando os olhos, concorda. 

- Vou chamar o Criador de 'Deus' ou 'Criador'. Ok?

- Ok. - Compenetrada, ela continua. 

- Revoltado e com saudades da mulher amada, meu pai - seu marido -  tentou 'cair'. Soube, por outros anjos, que ela o esperava na Terra. Rafael, o anjo da Cura, temendo pela morte da humana grávida do anjo apaixonado, o tranca em uma cela dourada até que ele desista de 'cair' por ela.

- Para tudo! 

- De novo, mãe!?

-  O que esse tal de Rafael tem a ver com a nossa história!? 

- Dess...

- Não me venha com essa merda de 'Dess', Vincenzo! Ele é frio pra cacete! Esse Rafael já não gostava de mim antes de Cristo!? Por que ele se meteu entre nós!?

- Uma rusga antiga, Dess. Mas, ele me curou. Lembra disso!? No hospital!?

- Por Antoine, ele te curou! 

- O Criador pediu que ele interferisse, mãe. A mulher corria risco de morte por ter sido fecundada por um anjo.

- E daí!? Ele não socorreu a mulher! Ele impediu que ela fosse feliz com o anjo amado! Eu odeio esse Rafael!

- Mãe!!!

- Não faz sentido!!! Que rusga é essa, Vincenzo???

- Bobagem, Dess!

- Um arcanjo te tranca numa jaula dourada e te afasta de uma mulher prestes a parir um filho teu, cercada por gente ruim e vc classifica isso como 'bobagem'??? 

- Mãe, olha pra mim.

- Tem coisa aí, filha! Eu sei! Eu sinto! - Gargalhando, Vincenzo me provoca ao comentar.

- Sua velha frase de impacto.

- Meu ranço por esse Rafael aumentou!

- Mãe! Ele não seria um arcanjo se fosse mau! - Intrigada, repito. 

- Como Shakespeare diria: 'Há algo de podre no Reino da Dinamarca'. Odeio esse Rafael. Pronto. Falei. Continua. - Bufando, ela prossegue.

- Libertado por Miguel, o anjo pede perdão ao Criador e o desobedece, 'caindo' exatamente no momento em que a rebelião de Lúcifer acontece. Confundido com um dos rebelados, sem ser reconhecido por guardiões de nossos portões, ele desiste de explicar sua versão ao Criador e passa a vagar pela Terra, à procura da mulher amada e do filho perdido, morto ao despencar de um penhasco ainda no ventre da mãe.

- Não faz sentido. - Protesto. Leo deixa de sugar o refrigerante pelo canudinho e me apoia.

- Não mesmo, tia. Tipo...eu faço parte dos 'topíssimos' de um reino. Sou preso injustamente. Um arcanjo 'brother' me liberta. No mesmo dia de uma rebelião do cara que me odeia, eu resolvo me misturar à torcida dele. Levo uma rasteira. Perco o jogo por causa dele. Consigo voltar ao início. Tento pedir perdão ao 'Master'. Os guardiões do portão que deveriam me conhecer há milênios, não me reconhecem e, do nada, eu resolvo desistir de tudo e vagar pela Terra. Final do jogo? Tipo...o anjo bom mudou de rosto pra não ser reconhecido? O 'Master' não teria ouvido falar nessa suposta injustiça e procurado pelo anjo bom? Tá confuso. - Tento não classificar o olhar de Vincenzo sobre Leo que, despretensiosamente, morde os cubos de gelo e repete. - Tá confuso.

- É tudo o que conheço, Leo. - Declara Antoine, desanimada. Um beijo em sua bochecha e Leo pede perdão.

- Foi mal. Eu confio em vc, 'bebê'. - Um riso histérico e, desviando meus olhos dos de Vincenzo, pergunto, intrigada.

- Onde vc entra nessa história, filha? Tem certeza de que sua versão procede?

- Ela é um querubim, Dess. Eles não mentem. - Um leve inflar de narinas e ele rosna. - Deixa ela falar.

- Não disse que ela mente. - Confronto Vincenzo. -  Talvez ela não tenha a visão geral dos fatos, marido.

- Se os dois não pararem de discutir, eu me levanto e vou embora.

- NÃO! - Inspirando e expirando, profundamente, de olhos fechados, imploro. - Continua, filha. - Encarando Vincenzo com um olhar indecifrável, ela confessa.

- Sentia um amor especial pelo anjo apaixonado. Uma curiosidade por conhecer a Humanidade. Pedi, diretamente, ao 'Meu Criador' se poderia ficar ao lado do anjo que 'caíra' por descuido. Tendo sua permissão, desci à Terra e o tenho acompanhado, desde então.

- Foi quando eu te encontrei na praça?

- Um pouco antes, mãe. Já nos encontramos em outras vidas.

- Quando!?

- Não posso falar. - Rindo, ela me ouve protestar.

- NÃO MENCIONE FATOS SOBRE OS QUAIS NÃO PODE FALAR! OK!?

- DESS!

- CALA A BOCA, VINCENZO! - Um olhar ao teto e, resfolegante, ordeno. - CONTINUA!

- Eu precisei criar aquela situação, na praça, pra chamar sua atenção. Acho que deu certo.

- Então, vc não viveu sob o domínio daquele brutamontes!? Nunca passou fome!?

- Não, mãe. Eu fazia questão de estar entre eles exatamente pra proteger meus amigos. Crianças sem seus pais. Quando te reconheci, meu coração transbordou de júbilo.

- Para tudo...- Choramingo, escondendo meu rosto entre minhas mãos trêmulas. Soluçando, indago. - Por que eu? Tanta gente boa que poderia te acolher. Vc deve saber o que fui. Com o que trabalhei. Nada tem de honesto em destruir casamentos alheios ou viciar jovens em pornografia. Vc poderia ter me ajudado de longe. - Cuidadosamente, ela retira minhas mãos de meu rosto e, com ternura na voz, responde.

- Eu sempre te amei, mãe. Desde que te vi sozinha, em sua aldeia, à espera de meu pai, há milênios. Desde que chorou de saudades e orou ao Criador por seu retorno. Vc jamais desistiu. Mesmo diante das inúmeras dificuldades, vc aceitou a vida em seu útero. Vc aguentou firme até o fim. Vc lutou contra Lúcifer sem medo. Tudo por meu pai. Eu sabia que largaria aquele tipo de trabalho triste, nesta vida, a qualquer momento. Eu me apaixonei por vc, mãe. Eu queria sentir esse amor que te faz tão forte. Eu...

- Não chora, filha. - Num abraço forte, choramos até que nossas lágrimas sequem e, sem lágrimas, comecemos a rir de nós mesmas. - Duas bobas. É isso o que somos, filha. Te amo tanto...

- Te amo mais, mãe.

- Tem espaço pra mais um dentro de tanto amor? - Um olhar triste de Vincenzo e ela o abraça, sussurrando-lhe algo ao seu ouvido. Não me atrevo a perguntar o que ele ouviu. Não mesmo. Os olhos de Vincenzo estão ainda mais tristes. Meu coração dói. Minha alma ainda não se acalmou. - Creio que Leo também mereça um abraço, filha.

- Concordo. - Ao seu lado, Antoine o beija no rosto e se aconchega em seu abraço. - Meu herói. Meu grande amigo. Vou sentir sua falta.

- Merda! - Minha voz embarga. Erguendo-me, abruptamente, da banqueta, fujo da cozinha e, dentro do banheiro, trancado por dentro, volto a chorar diante de meu reflexo. - Não deixem que ela parta. Por favor. Deixem minha família comigo. Levem a mim. Deixem que eles fiquem. Por favor. 

Sentada no piso frio, recostada à parede, com os dedos enfurnados em meus cabelos, desolada, fixo meus olhos inchados de tanto chorar, no teto. Em meio ao silêncio, ouço sua voz doce e triste, sussurrar.

"Três dias. Foi tudo o que pude conseguir, filha. Três dias juntos. Carpe Diem. Aproveitem os dias."



Três dias.

Três longos e decisivos dias em que nos unimos ainda mais. Não contei a Vincenzo ou a Antoine o que ouvira de Enrico. Não. Guardei seu alerta e sua voz doce comigo e estou tentando viver cada dia como se fosse o último.

Novamente. 

Novamente, não falamos de 'Legião' ou de 'Lúcifer', tampouco da desconfiança que guardo comigoViajamos até a casa de praia de Vincenzo onde tudo começou. Onde ele me magoou por ter medo de me amar. Onde eu me entreguei a ele de corpo e alma. 

- Eu já te amava, Dess. Não consigo me perdoar pelo tempo que perdemos enquanto eu tentava ser algo que nunca fui.

- Shhh...- Calo sua boca com um beijo. - Não fala nada de nosso passado. O presente é o que temos aqui e agora. Vamos fingir que nos conhecemos no 'jardim de infância' e que nos apaixonamos no 'colegial' e que, desde então, não nos separamos mais.


- Eu era o astro do time de futebol?

- Sim! - Exulto. - E eu, era a idiota da 'Cheerleader' que se lesionou enquanto tentava te impressionar com meus saltos mirabolantes.

- Não precisava ter feito tudo isso, esposa. Eu teria te amado mesmo que fosse a aluna tímida, com óculos e o rosto cheio de espinhas.

- Duvido. Vc era o bonitão. O desejado por todas as vacas do colégio. Não teria olhado pra mim se eu não tivesse, literalmente, me jogado sobre vc ao cair do topo da porra daquela pirâmide de meninas ricas e mimadas.

- Ops! Tem gente levando a sério nossa brincadeira! - Rindo, concordo, ao me afastar dele. Com os pés fincados na areia morna, num grito, eu o desafio.

- O último a chegar naquela pedra é 'mulher do padre'!

Matteo grita, eufórico, ao correr, dando o melhor de si. Deixamos que ele vença e voltamos a admirar seu lindo sorriso sob a luz do sol. Mergulhamos no mar e o ensinamos a boiar de barriga para cima. Animadíssimo, ele nos mostra o que aprendera nas aulas de natação. Tento esconder o pânico que, vez por outra, me assalta. 

Nada será como antes. Nada de escolinha de natação ou aulas de 'kickboxing'. Talvez, eu jamais volte a pôr os pés na 'Just Dance'.

- Dess. Vc pretende morrer?

- Não. Por quê? - Ao embalo das marolas chocando-se contra nossos corpos, ele me repreende.

- Para de pensar bobagens. Antoine voltou. Liam morreu. Estamos juntos e em paz.

- Até quando? O que ela cochichou em seu ouvido ontem à noite? - Desconversando, ele ergue Matteo em seu colo e o afunda nas águas do mar. Ao submergir, Matteo pede, histérico.

- "De movo!!!"

Debaixo da barraca, Leo e Antoine brincam de brigar. Algo me diz que Leo sabe mais do que aparenta. Olho ao redor e percebo que estamos sozinhos na praia. 

- Está frio, Dess. Relaxa. A praia costuma ficar cheia somente no verão.

- Vc não sente, Vincenzo? - Matteo acaba de se jogar na areia e rolar, de um lado ao outro. Como um bife empanado, ele volta a gargalhar de Vincenzo que ameaça correr atrás dele. Ignorando minha pergunta, ele corre atrás de Matteo que, histérico, foge dele. 

Por que não consigo me desligar de tudo e aproveitar mais um dia com minha família? 

Um vento morno atinge minhas costas. Eu me arrepio ao olhar para trás. Assustada, eu nada vejo, mas pressinto. 

- Deixe-nos em paz! - Grito contra o vento. - Ninguém vai separar minha família!

"O que ela sussurrou ao ouvido do anjo bom?"

Um arrepio ainda mais forte e corro da voz sem rosto, até a barraca onde tento esconder o medo.

O medo da verdade.



Entre jovens, nos divertimos em um 'luau' próximo à nossa casa. Antoine e Leo dançam ao redor da fogueira. Um aperto no peito e sou contida pelo abraço de Vincenzo que murmura em meu ouvido.
- São jovens. Deixe que eles se divirtam.
- Não gosto de fogueiras. Não sei o porquê. 
- Porque já está bêbada e tem medo de cair dentro de uma? - Rindo, defendo-me.
- Não tô bêbada. - Um selinho em seus lábios e aviso. - Ainda.
Matteo, desinibido, dança, ao seu modo, a canção que um dos jovens, próximo à fogueira, toca em seu violão. A canção me remete ao passado onde nada existia além da esperança em um futuro feliz para os nossos filhos. Vincenzo me desperta ao me forçar a dançar com ele. Sob a luz da lua, enlaço seu pescoço com meus braços e me sinto jovem novamente.


Tento acalmar meu coração recostando meu ouvido em seu peito. O coração de Vincenzo bate tão acelerado quanto o meu. Contenho a intensa vontade de chorar e, sorrindo, pergunto.
- Isso tudo é timidez, marido? - Abrindo um lindo sorriso, ele responde num tom de voz melancólico.
- Isso é amor, Dess. - Inspirando seu cheiro cítrico, ouço seu sussurro. - Em algum lugar, além do arco-íris, eu vou te encontrar.
Um longo e forte abraço nos une. Em silêncio, permanecemos assim até que Matteo abrace nossas pernas e nos faça rir com sua clássica pergunta.
"Mamãe dodói?"

Da praia, fomos ao parque de diversões. Tomado por uma súbita vontade em aproveitar a noite ao máximo, Vincenzo monta Matteo em um dos cavalos do carrossel enquanto Antoine me obriga a me aventurar em todos os brinquedos que giram e me fazem gritar até ficar rouca. Sempre de mãos dadas, como irmãs, corremos de um lado ao outro porque não queremos perder um minuto sequer de nossa noite simplesmente esplêndida, como Antoine a chama.
- Tô com fome. - Confesso, arfando, assim que salto do trenzinho da montanha-russa. Matteo aponta para meus cabelos e solta uma gargalhada. Devo estar um monstro. Sem conseguir enfurnar meus dedos nos fios enroscados como fones de ouvidos antigos, improviso um coque desengonçado enquanto Leo e Vincenzo aguardam, na fila da barraquinha de 'cachorro-quente'.
- Quero um enorme! - Avisa Antoine, aos gritos. Elétrica, ela abraça Matteo e o ergue em seus braços definidos por músculos recentes. Olhando em seus olhos, ela me surpreende com suas palavras num tom grave. - Não te percas no Caminho, maninho. Sempre que se sentir sozinho e com medo, pense em mim e estarei contigo. - Tomando meu filho de seus braços, eu a confronto.
- O que acaba de fazer, Antoine!?
- Não entendi. 
- Vc falou com seu irmão como se estivesse...
- Mãe! Ele tá crescendo e eu não estive com ele durante os últimos dias! Tenho saudades! Só isso!
- Antoine! - Passando por mim, ela vai ao encontro de Leo e, antes de abocanhar seu 'hot dog' suculento, ela o beija na boca. Encabulado, ele deixa cair seu sanduíche no chão. 
- Não liga, bobinho. Come do meu. É enorme. Dá pra dois. - Vincenzo exala antes de me encarar. Seus olhos ainda estão tristes. Uma mordida no meu 'cachorro-quente' e ele comenta, de boca cheia.
- Vc pensa demais, Dess. Vamos curtir essa noite.
- Madrugada. - Corrijo-o ao verificar as horas em meu celular. - Matteo já deveria estar dormindo. - Apontando o queixo ao nosso filho, ele pergunta, descontraído.
- E vc acha que aquela criança correndo, enlouquecidamente, atrás das bolhas de sabão do palhaço, pensa em dormir agora? - Rindo de nosso filho sempre vibrante, concordo.
- Não mesmo. Ele cresceu. Né?
- Muito.
- Não tanto quanto nossa filha. - Resmungo sentando-me ao seu lado, em um banco de cimento, tentando não sujar minha roupa com o 'catchup' que escapa do pão. De boca cheia, concluo. - Ela pulou dos sete aos quinze e, por incrível que pareça, eu já me acostumei à ideia. Onde eles estão!?
- Lá em cima. - Diz Vincenzo, apontando seu indicador à roda gigante. - Eles se amam, Dess.
- Eu sei. Mais um motivo pra ficarmos de olhos neles. Jovens e apaixonados. Por que tá me olhando assim? - Um sorriso tímido e ele me abraça, em silêncio. Engolindo em seco, reclamo. - Não faz assim. Vc disse que deveríamos agir como uma família normal com um futuro normal. É o que eu tô tentando fazer.
- Nós somos uma família normal. O mundo, ao nosso redor, é que está ruindo. - Uma breve pausa e ele observa. - O palhaço sumiu.
- Matteo! Cadê ele!? - Erguendo-me do banco, deixo cair o resto do 'hot dog' no chão de terra e corro sem direção. Vincenzo me pede calma. - Ele sumiu! Estava na nossa frente!
- Eu vou encontrar ele, Dess! Fica aqui!
- NUNCA! 
Vincenzo e eu nos separamos em meio ao parque. Ele segue na direção contrária à minha. Gritando pelo nome de nosso filho, desesperada, empurro quem cruza meu caminho. De onde estou, vejo o mar que cerca parte do parque. Um aperto no coração e suplico. - Pra lá não! 
Intuitivamente, corro até o 'pier'. O vento forte traz a voz de Antoine que grita do topo da roda-gigante: "Corre, mãe! Ele vai cair!"
Triplico minha velocidade assim que o vejo se ajoelhar na madeira e, curvando-se para frente, tocar a água do mar com sua mãozinha. 
- Filho! - Estaco, horrorizada. Caminhando lentamente até ele, modulo o tom de voz e peço. - Olha pra mamãe. Matteo, vem com mamãe. - Sorrindo, ele olha para mim e balbucia.
- Monstro, mamãe. Monstro mau quer fazer 'dodói' em neném. - Do mar, braços lamacentos surgem e se aproximam dele. Um grito de pavor e salto contra o chão do 'pier', tentando alcançá-lo. Escorrego no piso em madeira até tocar em seu dedinho antes de vê-lo ser puxado pelos braços que o enlaçam. Sem hesitar, pronta para pular na água e resgatar meu filho do ser lodoso, sinto mãos segurando meus braços com força. Olhando na direção das mãos que me impedem de pular, puxo o ar pela boca.
- Titio salvou neném. - Avisa Matteo no colo de Aiden. Sem agradecer, arranco Matteo de seus braços e me afasto, amedrontada.
- O que foi aquilo!?
- Seres do mar. Um mar profundo e sombrio, baby. - Agarrada ao meu filho choro, sentada no chão do 'pier'. Vincenzo é o primeiro a chegar. Desorientado, ele se agacha e verifica se há algum ferimento em Matteo que repete.
- Titio salvou neném, papai. - Erguendo-se, lentamente, Vincenzo se aproxima de Aiden e, estendendo-lhe a mão, diz com a voz embargando.
- Não sei como te pagar por isso. Obrigado por salvar nosso filho. - Apertando a mão de Vincenzo, Aiden, visivelmente emocionado, refuta.
- É o meu dever, Vincenzo. Defender sua família é o meu dever.



Antoine e Leo chegam, afobados. Lançando-me um de seus sorrisos tímidos, Aiden se afasta. Antoine o interpela e, beijando seu rosto, ela repete uma frase de quando ainda era a minha garotinha de nove anos e se negava a entrar em seu quarto e dormir.
- 'A Fera, no final, conquista a Bela'.
Contendo seu entusiasmo, Aiden desaparece. De súbito, Vincenzo carrega Matteo em seu colo e nos deixa sozinhos.
Alcançando-o, indignada, pergunto.
- Por que isso!? Me espera!
- Me deixa, Dess. Por favor, me deixa ficar com meu filho até o último instante.
Sem ânimo, eu o vejo caminhar, levando consigo nosso filho e o meu coração despedaçado. 
- O que eu fiz? - Dando-me sua mão, Antoine considera.
- Eu errei. Eu vou consertar tudo, mãe. Vem. Vamos pra casa. 
Entre Leo e Antoine, caminho na estrada de pedras, o sol nascendo e eu pensando nas palavras que ainda ecoam em minha cabeça.
'A Fera, no final, conquista a Bela'.

- Não faz sentido ter ciúmes de um morto, Vincenzo!
- Não tenho ciúmes de ninguém. - Seguindo-o até a sala, esclareço.
- Aquele lance de 'Bela' e 'Fera' é antigo, amor. Antoine disse essa bobagem quando tinha uns nove anos. Aiden tinha ido lá em casa e levado pizza. Ela não queria dormir. Ela estava esperando  por vc e...
- Não precisa me explicar nada, Dess. Só me deixa. 
- Não posso!
- Larga meu braço.
- Para! Fala comigo! 
- Me deixa, Dess. Eu quero ficar sozinho.
- Não vou te deixar! - Refuto, furiosa. - Nosso tempo é precioso demais pra vc ficar sozinho! Se quiser se isolar, se isole entre nós! - Um riso e ele comenta.
- Isso não existe, idiota. Como eu vou me isolar de vcs, junto a vcs?
- NÃO VAI! PRONTO! DECIDIDO! - Grito, impedindo-o, com meu corpo, de passar pela porta da frente. Rindo, ele me pede.
- Sai. Eu não quero te machucar.
- Machucar? De novo? 
- Não me refiro...- Revirando os olhos, ele se explica. - Não quero te machucar te empurrando, Dess. É só isso. Sai da minha frente. Eu quero olhar o mar.
- Dá pra olhar o mar daqui, marido. Fica com a gente. - Imploro com as mãos no batente da porta, insinuando-me com minha blusa 'frente única' decotada. De olhos fechados, ele infla as narinas e rosna um terceiro pedido.
- Me deixa sair...agora. - Incrédula e decepcionada, recuo. Ele passa por mim e, antes de pisar na areia, ele se imobiliza ao ouvir minha pergunta.
- Mortais têm asas ou isso é privilégio seu? - Voltando seus olhos espantados a mim, ele reage.
- De onde tirou isso!? Que papo idiota é esse de asas!?
- Vc mostrou suas asas enquanto brigava com Lúcifer no baile de Antoine. Vc me disse que, depois de ser pai, vc se tornaria mortal. Anjos que 'caem' e se tornam mortais ainda mantêm suas asas? - Descendo os degraus da varanda, avanço até ele e imploro. - Não me esconda mais nada, Vincenzo. Eu posso...eu aguento tudo, exceto, mais um segredo que me faça perder a confiança em vc.
- Não estou te escondendo nada. - Recuando, ele volta a pedir. - Me deixa em paz.

O mar está revolto. As nuvens, pesadas. Vincenzo segue em direção ao mar sem sequer olhar para trás.
 

- Vai chover, mãe. Vem. - Sem desviar meus olhos dele, comento.
- Teu pai tá estranho, filha. Me diz que ele não tá me escondendo nada. - Antoine me puxa consigo para dentro da casa até que eu perca Vincenzo de vista. - Eu preciso falar com ele, filha.
- Depois, mãe. - Um beijo em minha testa e ela aconselha. - Depois. Leo e eu estamos sovando a massa pra pizza. Me ajuda? - Inquieta, ouço o som do  primeiro trovão. Matteo, assustado, corre em minha direção e balbucia um 'Que medo!'. Abraçado a mim, ele se acalma enquanto observo o mar, tão cinza quanto o céu, se juntarem no horizonte. - Mãe!
- Ele não tá normal. - Afirmo.
- Quem? Meu maninho? 
- Seu pai, Antoine! - Entrego Matteo em seus braços e aviso antes de correr até a praia. - Se vcs estiverem me escondendo algo, eu não vou suportar a dor. Ouviram!?
Debaixo das primeiras gotas de chuva, caminho pela areia à sua procura. Chamo por seu nome, comprimindo meu peito com as mãos. Dói. Meu coração dói e eu não sei explicar o porquê. Um relâmpago atrás da montanha e a chuva desaba. Em segundos, estou encharcada e assombrada. Vincenzo simplesmente sumiu. Por quê!?
- Talvez eu posso te explicar, meu bem!
- Agora não! - Grito sem enxergá-lo com perfeição. - Eu preciso encontrar meu marido! Temos pouco tempo juntos!
- Eu sei. O terceiro dia está prestes a acabar e ele deseja ficar a sós. Isso não te parece estranho!?
- Não consigo te ver, seu merda! Apareça! 
- Abra os olhos, Adessa. Estou aqui. - Assusto-me diante de sua forma demoníaca. Sua voz gutural desdenha. - Ou deveria te chamar de Ravena, Anahita, Morgana, Eileen!? Todas as versões estúpidas de uma mulher que sempre amou o mesmo homem por não enxergar a verdade!? A verdade, querida! A verdade está diante de seus olhos e vc ainda não enxerga, imbecil!
- Do que tá falando, Lúcifer!? - As ondas furiosas se chocam contra os rochedos. A água do mar cobre meus pés. As gotas da chuva vergastam minha costas nuas. Encolho-me de frio e de medo ao ouvir sua voz sibilante indagar. 
- Por que um anjo tão bondoso não se daria bem com o Arcanjo da Cura!? Por que não o deixaram voltar ao Paraíso!? 
- Ele tentou...- Refuto, insegura. - Mas...
- Até o menino Leo é mais sagaz do que vc, medíocre!
- Para.
- Por que, em sã consciência, um anjo cheio de regalias, iria largar tudo e preferir vagar por um mundo cheio de 'macacos'!?
- Porque ele me ama! Ele me procurou! Antoine nos contou a verdade!
- A verdade dela, estúpida! 
- Só há uma verdade, miserável! Não tenta me confundir!
- Eu já te confundi, meu bem! - Afasto-me dele enquanto ele dá dois passos em minha direção. Seus chifres, seus olhos amarelos, suas longas unhas escuras me fazem arfar. - Não quero te machucar. Não agora. Quero que veja tudo e, depois, sofra por suas escolhas impulsivas. 
- Fica longe...
- Seu coração está cada vez mais fraco. Pobrezinha. E se eu te contar que o bom anjo cometeu o pecado da Inveja? 
- Mentira. - Refuto, respirando com dificuldade. - Ele jamais sentiria isso. Não o meu Vincenzo.
- Pergunte ao 'seu Vincenzo' o que ele fez para tomar o lugar de Rafael. - Voltando à forma humana, ele lamenta. - Infelizmente, sou proibido de contar a verdade e mudar o rumo da história, embora eu esteja 'em cólicas' para estragar o futuro de vcs. - Comprimo meus olhos de pavor quando sua boca imunda toca meu ouvido e murmura. -  Pergunte a ele sobre o castigo por ter ido contra as ordens do 'Todo Poderoso'. Sobre as consequências. - Ajoelhada e fraca, peço.
- Fala o que sabe. Por favor.
- Na hora certa, meu bem. - Recuando, ele olha ao redor e avisa. - Agora, ele está vindo. Tome seus remédios. Daqui por diante, teremos dias instáveis com raios e trovões. Proteja meu neto e, se despeça de Antoine. 
- Maldito. Não fale no nome dela...- Sem forças para avançar sobre ele, caída sob o peso de suas palavras e de minhas suspeitas, rastejo na areia, afastando-me dele. Puxando-me pelos cabelos, ele me faz erguer o queixo e zomba de mim, ajoelhando-se ao meu lado. 
- Não é incrível como tudo muda o tempo todo? 
Livre de sua mão, bato a testa contra a pedra próxima à rocha. Desorientada, deito-me de barriga para cima. Bebendo a água da chuva, peço por ajuda. A arritmia aumenta. Tonta, ergo-me, cambaleante. Ao longe, eu o reconheço. 
- Vincenzo?
- O que faz aqui, Dess!? Eu disse que queria ficar sozinho, cacete!
- Precisamos ficar...juntos.
- Vc é tão burra e tão bela. - De olhos fechados sob a chuva forte, suplico.
- Não minta...

- Mamãe 'codô'!!! 
- Filho...- Tossindo e com frio, eu abraço Matteo enquanto Vincenzo me cobre com uma manta quadriculada. Pisco por diversas vezes e ainda vejo tudo embaçado. - O que houve?
- Vc desmaiou. Bateu com a testa em algum lugar e se resfriou. Só isso. Toma seus remédios. 
- Pra que serve esse vermelho? Eu só tomo quatro. - Bufando, ele responde.
- É pra gripe, Dess.
- Gripe não se cura com remédios. O corpo deve combater o vírus por si mesmo. 
- Concordo. Mas nada te impede de ajudar seu sistema imunológico tomando um analgésico e antitérmico. Algum problema nisso? - Fixando meus olhos em seu rosto, ainda não o reconheço. - Dess?
- Tem alguma coisa errada.
- Tá sentindo alguma dor? A testa ainda dói?
- Não. - Engolindo os comprimidos e tomando da água no copo, resmungo. - Deixa pra lá. Me deixem quieta.
- Com quem conversou na praia, Dess?
- Com o mar. - Rosno. - Me deixa, Vincenzo. Agora sou eu que não quero falar com vc. Pode ser?
- Não. Não pode. Eu quero...preciso te contar a verdade.
- Não, Vincenzo! Me deixa! Eu tô fraca! - Levo a mão ao curativo acima do meu olho esquerdo e xingo um palavrão. Assustada com seu semblante de dor, encolho-me no sofá enquanto Matteo, enfurecido, avisa.
- Mamãe 'dodói'! Fica longe!
Sentado ao lado da lareira, rindo de Matteo, Vincenzo me lança um olhar de profunda tristeza.
- Para.
- Eu preciso, esposa. Antes que seja tarde demais. - Surgindo na sala com um tabuleiro em suas mãos cobertas por um pano de prato, Antoine anuncia.
- Nunca é tarde demais pra comer pizza!!!
- CONCORDO! - Vibra Leo meio que desconcertado. Arrumando a mesa de jantar, eles ouvem uma canção na playlist do celular de Leo. Desinibidos, eles se movem ao som da música. Ela o abraça. Ele a faz jogar o tronco para trás e gargalhar. Sorrio contendo o choro.

Seco minhas lágrimas ainda no sofá. Vincenzo continua a me encarar. Mantendo meus olhos fixos nos dele, sussurro.
- Não me machuca.
- Nunca. - Diz ele num tom quase inaudível. - Mais tarde? - Assentindo com a cabeça, ganho um beijo de Matteo, enciumado com a presença do pai.
- Papai mau?
- Não, filho. - Mordo o canto da boca e, arfando, lamento. - Papai bobo.

Sentiria falta daquele sorriso tímido...
Pra sempre.


- Ele era tudo o que eu queria ser. Era amado pelo Criador. Possuía o dom da Cura. Era belíssimo, porém, um tanto soberbo. Eu não conseguia compreender como um arcanjo poderia se sentir superior a outros e não ser corrigido por nosso 'Pai'. Miguel percebia minha contrariedade. Há algo nele que me fascina até hoje. Miguel entende os defeitos do próximo e ainda os aceita. Seu exército se especializou em proteger a Humanidade do Mal. O Mal libertado por Lúcifer e seus rebelados. 
- Foi ele quem te livrou da jaula?
- Sim. 
- Por que te prenderam?
- Porque ousei tocar em um arcanjo. 
- Tocar? - Revirando seus lindos olhos tristes, ele assume.
- Eu atingi Rafael com um soco em seu queixo. - Prendendo o riso, ele argumenta. - Não se toca em arcanjos. Eu perdi o controle.
- E seu pai!? Enrico era um arcanjo e vcs se abraçavam o tempo todo!
- Meu pai...- Um suspiro e ele lamenta. - Meu pai. Meu grande amigo. Enrico fazia parte de outra categoria: os missionários. Ele se ofereceu pra descer à Terra e cuidar, pessoalmente, dos humanos que sofriam. Não se importava em ser tocado. Muito pelo contrário, era através de seu abraço que ele acalmava almas.
- Seu pai era iluminado. - Comento ao expirar. - Sinto tanto a falta dele.
- Eu também.
- Por que Miguel te libertou?
- Ele confiou em mim e eu o magoei, novamente.
- Como?
- Eu tentei ser como Rafael. Descia à Terra e curava alguns aldeões.
- E transava com suas mulheres, né?
- Dess...
- A verdade, Vincenzo. Somente a verdade.
- Sim. Minha compulsão por sexo violento nasceu nessa época. Eu me arrependo do que fui. Odeio admitir isso, mas, eu invejei Rafael por tudo o que tinha. Por tudo o representava e me deixei convencer pelo primeiro anjo a ser criado por Deus. O primeiro a se revoltar contra Ele. O mais lindo e impuro de todos.
- Vc e Lúcifer juntos!? - Apressando-se em se defender, ele revela.
- Por pouco tempo, Dess! Eu recuei antes de me juntar a ele, mas, foi tarde demais. 'Caímos' juntos. - Recostado à parede, ele baixa a cabeça e apoia os cotovelos sobre os joelhos flexionados. Um breve momento de silêncio e observo seu abatimento. Antoine recolhe os pratos da mesa, entre curiosa e receosa, pergunta.
- Tudo bem por aí?
- Tudo, filha. Estamos tendo uma conversa de adultos e vc sabe que...
- Putz, mãe! É serio!? Essa é bem antiga, hein!? 
- Mas ainda tá valendo, Antoine. Não se meta nos assuntos de adultos. - Alerto tentando compreender o olhar que ela lança ao pai. - Seu irmão tá sozinho. Vc e o Leo poderiam...?
- Tá, mãe...- Resmunga ela com os pratos sujos nas mãos. - Já vou sair da sala. Gostaram da pizza? - Erguendo a cabeça, Vincenzo a olha com temor. 
- Amamos. - Respondo num rosnado. - Agora, 'vaza'.
- Minha mãe é tão carinhosa...- Debocha ela ao lado de Leo, a caminho da cozinha. Voltando minha atenção a Vincenzo, prossigo com meu interrogatório.
- Por que não te reconheceram nos portões do Paraíso?
- Porque eu já não era o mesmo. A Inveja e a Ira haviam me corrompido, me transformado em um ser sem luz. Por isso, vaguei pela Terra, sem rumo, por séculos e séculos até...
- Até? 
Jogando-se ao meu lado no sofá da sala, ele se cobre com parte de minha manta e responde.
- Até encontrar, dentro de mim, um sentimento que me transformaria em algo melhor.
- Ah...tá.
- Boba.
- O quê?
- Foi por vc que eu me transformei em alguém melhor. - Observando as ondas do mar pela janela, considero.
- Acho que essa época já passou. Vc não parece o mesmo de antes. Tá tão distante...
- Não sou. Não posso ser, Dess. Com o amor, veio o medo. Eu nunca havia sentido medo antes de começar a te amar. Antes de formarmos uma família. Isso dá medo. Perder tudo...
- Ei! Olha pra mim! -  Escondendo seu rosto em meu ombro, ele confessa.
- Tô com muito medo, Dess. Sei que coisas ruins podem acontecer a qualquer momento e eu já não sou nada. Nada do que já fui. Eu sequer sabia que ainda tinha asas. Foi vc quem me lembrou disso. Como vou defender vcs?
- Não me importo com quem já foi. - Minhas mãos em suas têmporas o obrigam a olhar para mim quando aviso. - Enquanto vc estiver ao nosso lado, nada vai nos acontecer. Nosso Deus não vai permitir.
- Nosso???
- É!!! Nosso!!! Ele misericordioso, Vincenzo. Ele já te perdoou. Tenho certeza de que Ele vai te dar uma nova chance. Olha pra mim. Não chora...
- Ele já me deu muitas, Dess. E eu estraguei todas.
- Não. - Refuto, obstinada. - Somos uma família. Não somos? Quem me ajudou a construir essa família? Eu não fiz Matteo sozinha. 
- Não. Eu estava lá. E, por isso, sou imensamente grato ao nosso Deus. Finalmente, vc O aceitou. - Inspiro e expiro profundamente e, entredentes, alerto.
- Desde que Ele não tire vc de mim...
Um beijo cheio de paixão e temor e ele me pede.
- Haja o que houver, nunca deixe de acreditar n'Ele, Dess. Eu errei. Eu devo ser punido. As regras devem ser cumpridas.
- Para! Não quero que comece com esse papo!
- Calma, Dess. Eu preciso te preparar...- Erguendo-me do sofá, ordeno.
- Cala a boca! Chega desse papo, porra!
- Dess! - De pé, diante dele, ordeno.
- Responda apenas mais uma única pergunta. O que Antoine sussurrou em seu ouvido? Ela mentiu sobre o seu passado?
- São duas perguntas, Dess. - Enlaçando seus braços em minha cintura, ele abre um sorriso cafajeste e responde a uma delas. - Não. Ela não poderia mentir. Vai contra sua natureza. Ela não conhecia meu lado obscuro. - Recostando meu queixo em seu ombro, insisto.
- O que ela sussurrou em seu ouvido, marido?
Antes que ele possa responder, Antoine invade a sala, eufórica. Saltitante como a criança que amava borboletas e fadas, ela proclama, exultante.
- Olhem o que acabo de receber! - Mostrando-nos a mão direita espalmada, ela parece aguardar por minha reação. Com a boca semiaberta, observo o reflexo das chamas da lareira na aliança dourada em seu dedo anelar. Que porra é essa!? - MÃE! FALA ALGUMA COISA!
- Eu!?
- Vcs dois...!? - Indaga Vincenzo, atordoado. - Isso é um anel de noivado!?
- Não, tio! 'Pega leve'! - Rindo, Leo elucida. - É uma aliança de compromisso!
- Compromisso!? 
- Dess...
- Compromisso com o quê!? Com quem!? Por quê!? 
- Dess!
- 'Dess' é o cacete!? - Protesto puxando Antoine pelo braço direito, retirando o anel de seu dedo, examinando-o, meticulosamente. O nome 'Leo' está gravado em seu espaço interno. Ao lado do nome, o símbolo do 'Infinito'. Engolindo em seco, ouvindo os risos de Leo e Antoine que se divertem com meu desespero, enfim, falo algo. - Não entendi!
- Puta que pariu, Dess! Eles estão legalmente namorando! Tá difícil ou quer que eu desenhe!?
- Não pode!
- Mãe! - Recuando até a janela, dramatizo. 
- Ninguém me pediu! Até bem pouco tempo, vc disse que Leo era seu melhor e único amigo! Que não queria beijar sua boca e eu acreditei! Vc o beijou na boca, NA MINHA FRENTE, e eu aceitei! Agora vem com essa de namoro!? Aliança!? Não me diga que vai se casar daqui a duas semanas quando já estiver com vinte anos!?
- Mãe...- Compassiva, Antoine me abraça enquanto choro de emoção e medo. Tomando o anel de minha mão, ela o desliza em seu dedo. - Não fica assim. Nós ainda não terminamos o ritual. - Arregalando os olhos úmidos, pergunto.
- Vai ter mais alguma coisa!? Para tudo!
- Ajoelhando-se diante de mim, Leo me reverencia antes de fazer o pedido, oficialmente.
- Tia. Posso namorar sua filha e, mais tarde...bem mais tarde. Bem mais tarde, ser o homem mais feliz da Terra casando-me com ela? - Eu o faço se erguer e, num abraço forte, aos prantos, digo um 'sim'. Ele não sabe. Ela não sabe? Ninguém percebeu que isso não vai acontecer!? - Tia. - Sussurra-me ele. - Vai dar tudo certo. Prometo.






Outro homem em nossa família a prometer o que não poderia cumprir.
Enquanto tento parar de chorar, Antoine e Leo dançam, juntos, felizes, radiantes, no centro da sala.
Vincenzo me abraça por trás e me sussurra.
- Ela puxou a vc, Dess. Dança muito bem. - Soluçando, comento.
- E ele deve ter tido aulas com vc, tadinho. Duro feito um graveto. - Um beijo em minha bochecha e Vincenzo me pede com ternura.
- Aproveite cada segundo, Dess. Como se fosse o último. - Deixo-me embalar por ele no ritmo da canção e da emoção que toma conta da pequena e aconchegante sala. Quase me esqueço de tudo o que nos ameaça até ouvir suas últimas palavras. - Aproveite o dia. 'Carpe Diem'.
- 'Carpe Diem'!? - Grito ao empurrar Vincenzo e correr pelos cômodos da casa à procura de Matteo. Estilhaço o clima romântico ao berrar, num desespero. - MATTEO SUMIU!
Ainda ouço o flashback enquanto pulo os degraus da escada da varanda, fincando meus pés na areia molhada. Correndo com todas as minhas forças, sou ultrapassada por Vincenzo. Ele vê o mesmo que eu. Ele teme o mesmo que eu.  Enfurecido, Vincenzo ordena assim que o encara.
- Em nome do Criador, solta meu filho!
- Seja feita a tua vontade, Cassiel. - Zomba Lúcifer. Ainda ouço um 'mamãe' amedrontado antes de assistir o maldito arremessar Matteo ao mar bravio. Sem hesitar, mergulho no oceano sombrio, nadando sob as ondas. Em meio à escuridão, enxergo, acima de mim, uma luz diáfana ao redor de seu corpinho, boiando de barriga para cima. Submergindo, encho os pulmões de ar ao inspirar pela boca e o agarro em meus braços enquanto ele chora e balbucia um 'monstro mau'. Movendo minhas pernas, tremendo de ódio e frio, sussurro.
- Mamãe tá aqui. Calma, filho.
Com um dos braços, livre, vou nadando até cruzar a zona de arrebentação das ondas onde Leo me aguarda, aflito. Tomando Matteo de meus braços, ele se afasta, de costas. Ele não enxerga o perigo. De costas, ele não enxerga o que vejo. Alcançando a areia, ergo-me a tempo de assistir a grande lança de fogo cruzar a distância que separa Lúcifer de Vincenzo e de Antoine, logo atrás de seu pai. Instintivamente, corro até Vincenzo. Um breve olhar de pavor e ele ordena.
- Fique onde está, Dess!
Um arquejo de horror e estaco.
Um longo gemido de dor e, de joelhos, pergunto olhando as nuvens cinzas e revoltas sobre nossas cabeças.
- Por que, Senhor?

Um raio mais intenso do que o normal atinge Lúcifer que, antes de desaparecer, gargalha, triunfante.


Continua...






EPÍLOGO

  Abro os olhos. Encaro o teto do quarto, tentando não me recordar do sonho. Um sonho ruim. Chove lá fora. Dentro do quarto, faz frio. Meu c...