'Um dia a conta chega'.
Pensei que estaria livre desse dia. Lutei. Fiz de tudo para me livrar desse dia, mas ele chegou.
Minto. Não lutei. Não me mediquei e cedi aos caprichos de Aiden por compaixão e necessidade. Necessidade de ter tudo aos meus pés. Necessidade de dar tudo a Antoine quando ela não precisava de tanto.
Compaixão por um homem que possui um lado bom. Compaixão por alguém que estivera ao meu lado quando eu estava sozinha. Por alguém que, talvez, tenha feito de tudo para que me deixassem sozinha.
Talvez eu tenha me afastado dos amigos e não tenha percebido.
Talvez...
Talvez, ele não seja um homem comum e eu não queira ver isso. Não agora que preciso dele. Eu preciso dele agora mais do que nunca. Agora que voltei ao vício é ele quem me sacia.
Meus únicos momentos de paz são ao lado de Antoine e Cassandra que não disfarça a tristeza em me ver mais magra e infeliz. Dentro da mansão, eu me cubro com moletons. Antoine não enxerga nada incomum nesse hábito. Cassandra sim. Apesar de ser adolescente é madura para sua idade. É mais do que óbvio que ela compreenda o motivo dos hematomas e de minha profunda apatia pela manhã após a histérica euforia noturna.
Aiden e eu discutimos após a noite de minha 'volta ao passado', como ele mesmo anunciara. Um brutal estupro coletivo combinado entre ele e seus amigos. Amigos sórdidos, nojentos, violentos, sem limites.
Eu hei de me vingar de todos...
Mil vezes estar de volta ao set de gravações com seis ou sete atores que me respeitavam apesar das fortes cenas de conteúdo adulto.
Dormimos em quartos separados, ainda que ele tente se desculpar por tudo.
"Não fui eu!", defende-se ele num desespero que quase me convence.
Daquela noite, nada quero recordar. Sequer o momento em que Aiden, supostamente, 'despertou' e me carregou em seus braços, retirando-me daquele antro fétido. Desacordada, ele me banhou e me vestiu. Velou meu sono e, assim que acordei, vendo-o chorar, eu me calei.
Eu me mantenho calada até então. Desde então, gravo os momentos em que me toco e os posto em um site pornográfico. Entre a culpa e o prazer, volto ao meu passado.
Desde então, frequento festas onde casais trocam de pares como trocam de roupa. Pensara estar livre, pronta para uma nova vida, no entanto, aquele que deveria me manter segura, em casa, dera início ao meu fim.
Sempre ao meu lado, Aiden sofre ao me ver nos braços de outros homens. Sofro por ele. Sofro por mim. Sofro por Vincenzo que, em vão, tenta falar comigo ao celular ou nos raríssimos momentos em que levo Antoine e Jujuba ao shopping ou à clínica onde Sweet ainda se encontra internada.
A vida é engraçada. Eu deveria estar em seu lugar. Estou tão viciada quanto ela, mas o meu vício é invisível. Não se encontram vestígios de ninfomania no sangue ou urina. Ops!
Vincenzo me corrigiria. Não é ninfomania. É 'Transtorno do Desejo Sexual Hiperativo'. Sério? Que diferença isso faz? Estou doente e me afundando cada dia, um pouco mais.
- Amiga! Vc tá triste!?
- Não tô não, Sweet. Vc é que tá eufórica demais. - Brinco sentada ao seu lado em uma cadeira em vime na varanda de seu quarto. - É por que vai ter alta amanhã?
- Siiim! Tomara que chegue logo! - Vibra ela física e emocionalmente recuperada. Estou feliz em vê-la como sempre foi. Minto. Como nunca fora antes. Agora, ela é uma mulher forte, confiante, 'limpa' há dois longos e exaustivos meses. Beijando minhas mãos impuras, ela chora. - Não tenho como te agradecer, amiga. Vc cuidou de minha filha por mim. Vc pagou por tudo isso aqui. Eu não teria como pagar por tanta coisa boa que recebi. - Intrigada, refuto.
- Não fui eu, amiga. Infelizmente, não sei nada sobre isso.
- Não?
- Não. Não foi Vincenzo?
- Não. Ele tem me ajudado muito. Tem me visitado quase todos os dias e até me ofereceu um 'trampo' na academia de boxe...- Um trampo??? Uma fisgada de ciúmes e comento. - Nossa. Que coisa fofa. Ele tem vindo sempre?
- Deixa de ser louca, amiga. Ele e eu somos amigos. Amigo que eu nunca tive. Um amigo homem, bacana, sem interesse em meu corpo. - Feliz por ela, engulo meus ciúmes. - Algo me diz que minha vida vai mudar, amiga. - Num frenesi, ela continua. - Assim que meu bebê nascer, tudo vai mudar. - Bebê!? Ela ainda está grávida!? - Eu sei que vai mudar. Vou encontrar Mimi, amiga. Eu sonhei com ela! Ela tá bem! Eu sei que tá!
- Eu sinto isso também, Sweet. - Modulo o tom de voz a fim de 'segurar sua onda'. De mãos dadas a ela, num impulso, prometo. - Vou encontrar Mimi e teremos um Natal fantástico!
- Amiga! - Exulta ela antes de me abraçar aos prantos. - Me perdoa por todo o mal que te fiz. Eu tinha inveja de vc. - SÉRIO??? DE MIM??? Entro no clima e, entre soluços, confesso.
- E eu, de vc!
Rimos e choramos juntas até suspirarmos. O silêncio é rompido pela súbita aparição de Vincenzo que, atrás de mim, indaga.
- Poderia falar com a sua amiga, Sweet? - Tragando a fumaça de um cigarro, ela sorri ao declarar.
- Tem toda a minha autorização. - Lépida, ela se levanta e, com intimidade, beija a bochecha de Vincenzo e caminha, rebolando, em direção às crianças. Conversando com Jujuba e Antoine, ela se distrai. Constrangida, nego-me a olhar para trás. Puxando uma cadeira, ele se senta diante de mim e, com ternura, me repreende.
- Mais uma queda, né? - Ferida emocionalmente, aviso.
- Se começar a tentar me humilhar eu saio daqui agora...
- Não. - Arrastando sua cadeira, ele se posiciona entre minhas pernas abertas. Estamos bem próximos. Sorrio ao sentir seu cheiro cítrico. Quanto tempo eu não o sinto...- Dess, vc só teve uma recaída. E não foi por sua culpa. Eu estive lá naquela noite.
- E por que não me salvou, cretino!?
- Eu tentei! - Refuta ele, atordoado. - Não me deixaram entrar. Eu te ouvi pedir por socorro. Lutei contra alguns, mas eram muitos e me venceram. Aiden me jogou, quase que inconsciente, no meio da rua. Obstinado, eu me levantei e o encarei. Ele não estava só. Havia algo muito maior ao seu lado. Algo que lhe emprestava forças, Dess.
- Não quero falar daquela noite...- Resmungo.
- Asmodeu é o seu nome.
- Oi??? 'As' o quê??? De quem???
- Impotente por não conseguir chegar até vc, eu estudei. Eu voltei no tempo...- Reviro os olhos enquanto ele protesta. - Não! Não faz isso! Se até agora vc não aceitou que estamos lidando com seres que não são desse plano, eu te deixo aqui e não volto mais.
- Fica. - Imploro. - Eu acredito em vc. Eu vi esse tal de...
- Asmodeus. O demônio da Luxúria.
- Eu o vi sendo invocado por Aiden. Mas Aiden não tem poder sobre ele. - Revoltado, ele comenta.
- Vc ainda o defende...
- Não. Eu o odeio pelo que fez. Mas eu não posso negar que ele tem um lado bom.
- Onde? Na Irlanda?
- Vincenzo! - Repreendo-o. Enfurecido, ele se ergue da cadeira e avisa.
- Se for começar a defender esse babaca covarde na minha frente eu é que vou sair daqui!
- Pai! - Repreende-o Antoine. Dramatizando, ele arregala os grandes olhos azuis e pergunta.
- Eu falei palavrão!?
- Falou sim! - Responde ela, gargalhando. De joelhos, ele faz cócegas em sua barriguinha enquanto lhe pede desculpas. Jujuba o abraça por trás e, com os bracinhos enroscados em seu pescoço, sobe em suas costas. Antoine, enciumada, protesta dizendo que o pai é dela. - Sai daí, Ju! Esse é o meu lugar!
- Calma aí, gente. - Diz ele abrindo um de seus sorrisos fascinantes. - Brigar por nada? Minhas costas são largas. Cabem duas. - De gatinhas, ele indaga. - Quem quer carona!? - Eletrizadas, Antoine e Jujuba o fazem de 'cavalinho' enquanto eu me 'desmancho' na cadeira. Uma olhadela em Sweet e a vejo exalar. Cacete! É sério!? Ela sente algo por ele!? Por que tanta intimidade com sua filha!? Por que se afastou da minha!? Chega! - Dess! Para de pensar merda!
- Pai!!!
- Foi mal. - Diz ele beijando sua testa e se pondo de pé. - Aonde vai?
- Pra casa. Sei lá. Fiquem à vontade.
- Não vai não. Precisamos conversar.
- Não quero! - Seus olhos se abrem desmesuradamente quando ele engrossa a voz ao afirmar.
- Eu não tô pedindo! Eu tô mandando, porra!
- PAI!!! - Berram Juju e Antoine ao mesmo tempo. Revirando os olhos, ele repete.
- Foi mal. Foi mal. Foi mal. - Imobilizada, eu o vejo beijar Sweet sem cerimônia. Inflando as narinas, eu me volto para a porta e aviso.
- Antoine, eu te espero lá fora. Não demora.
- Amiga! Não vai se despedir de mim!?
- DEPOIS! - Berro enciumada. - EU PRECISO RESPIRAR, SWEET! RESPIRAR!
Abro a porta num repente. Sigo até as escadas. Desço-as, pulando de dois em dois degraus. Enfurecida, não me canso. Corro até a saída da clínica. Diante dela, um imenso e lindo jardim.
Desorientada, jogo-me contra a grama e recosto-me a uma árvore frondosa. Inspiro e expiro de olhos fechados. Assim que os abro, eu o vejo sentado ao meu lado.
- Impossível! - Grito assustada. - Vc não poderia ter descido tão rápido assim!
- Posso sim. Posso muito mais. Basta vc deixar.
- Deixar que ferre com a minha vida!? Já ferrou! Parabéns!
- Isso tudo é porque beijei Sweet?
- Não fala nesse tom inocente comigo. Ok? - Rosno. - Eu te conheço.
- Ainda a história de que Sweet e eu temos um caso?
Levo as mãos ao rosto e silencio.
- Dess, deixa de ser boba.
- Vc pulou a janela? Só pode!
- Pulei.
- Vc não pulou a janela!?
- Pulei.
- Porra! Não me zoa! - Reclamo, ressabiada. Meus olhos se fixam nos dele quando repito num tom baixo e incrédulo. - Vc pulou a janela?
- Quer mesmo saber? - De joelhos, soco seu abdômen com meu cotovelo ao gritar 'Não!'. Surpreso, ele curva o tronco para frente enquanto me levanto sem saber o que pensar. Caminho em direção ao lago. Ralhando comigo, ele me segue. - Não adianta fugir! Nós vamos conversar!
- NÃO VOU! - Protesto retirando meus tênis. Instintivamente, dobro as pernas da calça em moletom até os joelhos, mergulhando meus pés na água. Menos alterada, peço. - Me deixa em paz. Eu tô doente.
- Ele te machucou...- Lamenta Vincenzo reparando as manchas roxas em minhas pernas. - Como vc ainda fica com um cara desse?
- Porque vc não me quis...
- Dess...
- Cala a boca! - Surpreso, ele, em silêncio, seca a água do lago que acabo de espirrar contra seu rosto. Humilhada, prossigo. - Vc teve a coragem de oferecer um emprego a Sweet no galpão de boxe!? Por que não ofereceu pra mim!? Eu estava perdida naquela noite! Estava pensando se casaria ou não com Aiden! Vc poderia ter mudado tudo e não mudou! Eu te disse que queria um emprego e vc não me ofereceu nada! Eu poderia estar trabalhando lá e o rumo de minha vida seria outro!
- Isso não é justo! Eu te ofereci mais do que um emprego! Eu te ofereci a minha vida, o meu amor! E vc escolheu o luxo, Dess! Assuma! - Desolada, sento na margem do rio. Sorrio aos peixinhos ao redor dos meus pés. Sentando-se ao meu lado, ele se mantem calado.
- Antoine vai gostar disso...- Divago. Sem olhar em seus olhos, confesso. - Eu não consigo sair disso sozinha. É mais forte do que eu e eu me odeio depois que o tesão passa.
- Eu não vou conseguir te ver nessa vida de novo, Dess. Da última vez, eu consegui te livrar disso, mas agora, tem muita coisa envolvida... - Olhando-o de cima a baixo, refuto.
- Quem me tirou dessa vida fui eu, idiota. Eu desisti sozinha. Eu larguei tudo por Antoine.
- Não tô falando dessa vida, nessa vida.
- Aaaah! Cacete! Começou!
- Eu não quero desistir de vc, Dess. Mas eu posso desistir de mim. Eu tô exausto.
- Somos dois...- Minha mão desliza na grama até se encostar na dele. Ele entrelaça seus dedos aos meus quando murmuro. - Não desista de mim. Eu preciso me manter ali. Existe alguma coisa que eu preciso descobrir. Giulia me pediu.
- Giulia!? Sua amiga morta!?
- Sim. - Movendo meus pés na água, crio ondas. - Qual a surpresa? Até parece que nunca ouviu falar de minha maldição. Os mortos me seguem, meu bem.
- Mortos e demônios.
- Vincenzo!
- Não faz isso. Vc precisa me ouvir. Vc sabe que precisa.
- Ok. - Solto o ar dos pulmões pela boca e, resignada, eu o incentivo a falar. - O que descobriu sobre essa criatura lasciva?
- Nada. Não é sobre ele que devo falar. É mais um dos muitos demônios que perambulam pela Terra. É sobre Aiden, Dess.
- Eu já sei disso, Vincenzo. - Resmungo de olho nos peixinhos. - Aiden o invocou diante de mim. Me conta uma novidade.
- Aiden se fortalece a cada criança morta. - Impactada, puxo o ar pela boca. Percebendo meu interesse, Vincenzo rosna. - Quer mais novidades?
- Não acuse sem ter provas.
- Olha pra mim, Dess! - Retirando meus pés do lago, cruzo as pernas. Temendo o que estou prestes a ouvir, eu o confronto.
- Estou olhando!
- Não é nada certo ainda...- Vacila ele. - Mas, assim como eu, existem outros que se interessam por esse assunto e reúnem provas contra um grupo de pessoas da alta sociedade que paga fortunas por uma substância que, supostamente, retarda o envelhecimento.
- Adrenocromo. - Sussurro, assustada.
- Sim. Há mitos sobre essa substância natural criada a partir da oxidação da adrenalina em nosso corpo. Ela pode ser criada em laboratórios e é usada comumente na Medicina...- Intrigada, eu o interrompo.
- Se pode ser encontrada com facilidade, por que pagariam tanto por ela?
- Não se trata da substância, Dess. Trata-se de um ritual. - Replica ele, apavorado. - Crianças são torturadas, violadas e mortas por essa gente em rituais. - Lembrando-me de Luka e de seus últimos momentos na Terra, imploro.
- Não quero mais ouvir. Por favor. Eu vi tudo...
- E não faz nada!? - Lamenta ele, num tom de desprezo. Irritada, refuto.
- O que quer que eu faça!? Eu não os conheço!
- Conhece! - Acusa Vincenzo, transtornado. - Vc fica entre eles quase todas as noites, Dess! Vc dorme ao lado do líder! Vc fode com ele!
- Cretino! - Ergo-me ofendida. Ele faz o mesmo. Pela primeira vez em anos, eu o odeio com todas as minhas forças por estar falando a verdade. Por me olhar com repulsa. Caminho de volta ao prédio em um estilo moderno. A fachada em vidro reflete Vincenzo logo atrás de mim. A porta se abre assim que piso no tapete. A voz embarga quando pergunto num tom baixo. - Já não disse tudo? Vá embora.
- Não! Minha filha tá lá dentro! Nossa filha corre perigo, Dess!
- Antoine corre perigo de qualquer forma!
- Se afastem da porta, por favor. - Pede-me a recepcionista incomodada com o abrir e fechar da porta automática. Vincenzo me puxa em sua direção. Atordoada, continuo.
- Ela corre risco estando ao seu lado porque seu amiguinho diabólico quer ter vc somente pra ele. Ela corre perigo ao meu lado porque, segundo gente maluca como vc, o meu marido é líder de um bando de gente escrota que usa como desculpa a porra de um alucinógeno, que não funciona, pra cometer pedofilia e assassinatos. - Em silêncio, ele arregala os olhos assim que indago, entredentes. - O que devo fazer, Vincenzo? Vai! Diz! Quem eu devo escolher!? Contra quem devo lutar!? Lúcifer ou Asmodeus!?
- Quanto mais nova for a criança, melhor. Quanto mais pura, melhor. - Apavorada com o tom sombrio de sua voz, eu refuto.
- Vc é louco! Me solta!
- Vc se vendeu...- Conclui ele, decepcionado. - Não é a "minha Dess".
- Eu sou...- Afirmo chocada antes de dar um tapa em seu rosto e deixá-lo sozinho. Reconhecendo que parte do que ele me dissera é verdade, choro em silêncio no quarto de Antoine, único lugar na mansão onde Aiden e a preceptora infernal não entram. Será que tem algo a ver com o Crucificado preso acima da porta? Padre Pietro me presenteara com a obra dias antes de morrer.
"Onde Ele estiver, o Mal não entra", dissera-me ele.
Se for verdade, por que o Mal tirou a sua vida diante de meus olhos!? Talvez não seja o Crucifixo que tenha poder, mas sim a fé que depositamos nele. Talvez, o poder venha de Antoine, um ser de Luz. Por que nossos caminhos se cruzaram? Eu sou escuridão. O oposto de minha filha.
- Mãe, não pensa tanto...- Resmunga Antoine bocejando. - Eu quero dormir. - Sorrindo, eu a beijo no topo da cabeça antes de me levantar e encarar meus medos do outro lado da porta. - Meu pai disse pra te pedir desculpas, mãe.
- Quando? - Sussurro ajoelhada diante de sua cama enorme onde caberia um casal. Aiden não poupara esforços a fim de redecorar o quarto de acordo com as exigências de minha filha. Há borboletas gigantescas em tom lilás por todos os cantos. Borboletas com luzes que piscam, suavemente. - Quando, filha? - Resmungando, ela responde.
- Agora, mãe.
- Filha, vc sabe que não gosto que use de telepatia. Vc é muito nova...- Bocejando, ela me interrompe.
- Eu tenho prova amanhã, mamãe...- Rindo de sua rabugice, me despeço.- Ok. Durma com os anjos. - Antes de fechar a porta e deixar Antoine sob os cuidados de Cassandra, estremeço ao ouvir seu pedido. - Não sai hoje, mãe. Eles são maus. Vão te machucar.
Aiden me aguarda no corredor. De pijama, ele me sussurra algo que não faz sentido algum.
- "Sha na na na na na na na na. It'll be all right".
Apago.
- Não quero que faça isso, esposa.
- Faço questão, marido. Estou bonita? - Indago diante do espelho. Usando um vestido longo, preto e colado ao corpo, eu encaro seu reflexo enquanto aguardo sua resposta. - Não gostou?
- Muito. - Diz Aiden abraçando-me pela cintura. Recostando seu queixo em meu ombro, ele comenta. - Vc é linda de qualquer jeito, esposa. Tem sido fiel a mim e isso não tem preço.
- Como sabe?
- Tenho informantes em todos os lugares, baby.
- Inclusive na clínica de reabilitação?
- 'Ovviamente'! - Diz ele abrindo um de seus sorrisos indecifráveis. - Gostei do tapa. Eu não teria dado um melhor. - Calçando meus scarpins, sentada na beira de nossa cama, pergunto.
- Por que não me disse que paga pela internação de Sweet?
- Porque vc não gostaria de saber o motivo.
- Qual é o motivo? Vcs têm um caso? - Demonstrando repulsa em sua fisionomia, ele ri ao responder.
- For Pete's sake! Ela não faz o meu tipo, baby! Vc sabe disso! - Ajeitando sua gravata 'borboleta', sorrio. - Meu tipo é vc. Sempre foi vc, baby. Não precisa ir hoje. Vamos ficar em casa.
- Essa não é a minha casa...baby. - Arrastando a longa saia de meu vestido, desço a escadaria lentamente. Desconfiado, ele me segue. - Qual o motivo?
- De quê?
- De pagar pela internação de alguém que te causa repulsa.
- As filhas. Elas não têm culpa das loucuras que a mãe comete.
- Qual o seu interesse pelas filhas de Sweet? Mimi já morreu. O que deseja de Juju?
- Nada. Por mais que vc pense o contrário, eu as quero longe do perigo.
- E Antoine?
- Farei o que for preciso para proteger Antoine do mal?
- Que mal? Asmodeus?
- Não. - Baixando a cabeça, ele confessa. - Há coisas piores do que ele. A Humanidade consegue ser mais maligna do que muitos demônios.
- Concordo. Todos estarão lá?
- Todos? - Indaga-me ele ao volante. - De quem está falando, baby?
- De seus amigos que participaram da minha...- Movendo meus dedos no ar, imito aspas ao mencionar num tom sarcástico. - "Volta ao passado".
- Sim. - Responde-me Aiden francamente arrependido. - Eu não queria aquilo, baby. Vc precisa acreditar em mim. Não fui eu.
- Fique calado. - Ordeno friamente, retocando o batom. - Não estrague tudo. Não agora que voltamos a nos falar. Eu acredito em vc.
- Vc está estranha. - Comenta ele. Um olhar de esguelha e refuto.
- Bobagem. Só não estou eufórica como antes.
- Pela última vez, baby. Eu não quero ir. Vamos a qualquer outro lugar. Somente nós dois, juntos. - Num tom irônico, replico.
- E perder a grande festa em sua homenagem!? Jamais! Algo me diz que teremos uma noite memorável!
- Definitivamente, vc está esquisita.
- Com medo, marido? - Encaro-o, sorrindo. - Não precisa. Eu vou te poupar.
- Posso saber o seu nome?
- 'No way, baby'. Mas eu já sei o seu.
Pisco.
Eu os saciei até a exaustão. Aguentei firme durante horas até que desistiram e, agora, descansam.
Aiden, inconformado, retira-se do salão antes do fim.
Sábia decisão.
De onde estou, aprecio cada som de seus gritos por socorro. Idiotas. Estamos a dezenas de distância da mansão mais próxima. Quem os ouvirá além de mim?
Aiden? Asmodeus? Lúcifer?
Queimem no inferno, vermes!
- Isso é por Luka.
Proclamo ao escapar com vida antes da explosão.
Minha cabeça lateja. Meu corpo todo dói. Estirada em minha cama, tateio de olhos fechados, a mesinha de cabeceira lutando por encontrar o celular, que berra aos meus ouvidos, e atirá-lo contra a parede.
Abro um dos olhos e, com a visão embaçada, reconheço seu número.
- Merda...- Sussurro ao atender. - Vc não dorme? Me deixa em paz.
- Leu o link que te enviei?
- Vincenzo, eu sequer abri os olhos! Como quer que eu leia a essa hora da madrugada!?
- São onze da manhã, Dess! Eu te enviei há duas horas! Leia!
- Não vou me submeter às suas ordens, idiota! Boa tarde!
- Não ouse desligar! É para o seu próprio bem e de Antoine!
- O que Antoine tem a ver com a porra de um link!?
- Algum problema, baby? - Pergunta-me Aiden, surgindo, subitamente, em nosso quarto. - Alguém te importuna?
- Não. - Afetando indiferença, comento. - É o Vincenzo tendo um 'ataque de pelanca'!
- Dess!
- Buona notte, stupido!
Desligo o celular com um nó na garganta. Vincenzo sofria por mim e por Antoine. O que houve? Por que ele se mostrou tão descontrolado?
- Não. Não me beija. Eu não escovei os dentes.
- Whatever...- Ronrona Aiden deitado ao meu lado. Mantendo o celular em meu peito com o visor para baixo, aguardo o melhor momento para ler o tal 'link'. Definitivamente, não é agora. - Quero te mostrar uma coisa.
- O quê? - Rumino antes de me levantar e escovar os dentes. - Outra de suas festas fantásticas?
- Não haverá mais festas, baby. Prometo. Nada que te machuque ou magoe.
- Jura? - Aguardo sua resposta, olhando-o através do espelho. - Nunca mais eu...
- Nunca mais. Acabaram-se as festas. 'I cross my heart'. - Irritada, cuspo a pasta de dente ao protestar.
- Em Português! Jure em Português!
- Juro, baby. Daqui pra frente, seremos somente vc, Antoine e eu. Ah! Eventualmente, Cassandra. - Enxaguo minha boca debaixo da água corrente e, num arroubo de felicidade, eu o enlaço pelo pescoço. Erguendo-me do chão com seus braços fortes, ele me acolhe e me pede perdão. - Nunca mais irão te machucar, baby. Prometo. - Agarrando-me ao seu pescoço, com a ingenuidade de uma criança, pergunto.
- Podemos voltar à Itália onde fomos felizes!?
- Podemos. - Assegura-me ele, risonho. Em seu colo, beijo sua bochecha. Um de seus sorrisos tímidos e ele comenta. - Antes da Itália, quero te levar a outro lugar.
- Marido! - Exclamo, receosa. Um beijo em minha boca com gosto de hortelã e ele afirma.
- Vc vai gostar, esposa. Vai gostar.
Sentada no banco traseiro ao lado de Antoine, finjo assistir a vídeos engraçados ao celular quando, na verdade, clico no link enviado por Vincenzo e sou arremessada a um site especializado em notícias sangrentas.
- Que porra é essa? - Balbucio. Antoine resolve demonstrar seu desempenho em Língua Portuguesa ao soletrar em alto e bom som, o título da matéria.
- 'In-cên-di-o mis-te-ri-o-so na man-são'. - Seus olhinhos curiosos me fitam ao perguntar. - O que é isso, mãe? - Sério??? Com tantas palavras aleatórias no site, ela escolhe justamente as que deveriam permanecer escondidas??? Percebendo minha contrariedade, ela se indigna. - O que é??? O que eu fiz???
- Nada. - Rosno, erguendo uma das sobrancelhas. Cassandra deixa escapar um risinho do tipo 'Fez merda!' enquanto Aiden, fixando seu olhar incisivo sobre mim através do retrovisor interno, aguarda por minha resposta. Fingindo não perceber seu interesse, declaro sem pensar. - Incêndio é quando algo ou alguém pega fogo. Tipo...eu recolho todas as garrafas de vinho de um local fechado, rasgo meu vestido e com os farrapos de pano enfiados no gargalo das garrafas cheias, ateio fogo ao pano com um isqueiro de ouro. Dançando, arremesso as garrafas por todos os cantos da sala cheia de gente nojenta e aguardo até que todos sejam consumidos pelo fogo.
- Uau, tia. Isso foi sinistro.
- Concordo, Cassandra. - Diz Aiden ao volante. - Vc tá bem, baby?
- Sim. Por quê?
- Tem ideia do que acabou de falar?
- Não me lembro. Eu falei alguma coisa?
- Mamãe, vc não tá bem. Deita no meu colo. Deita. - Aérea, concordo.
- Ok...- Deitada no colo de Antoine, fora do alcance dos olhos de rapina de Aiden, digito.
"Vai tomar no cu, Vincenzo! Me deixa em paz. Vá atrás de Sweet e de seu filho!" - Em resposta, ele digita.
"Já estou aqui, idiota. O que fez, Dess? Eu sei que foi vc."
"Fiz o que e quando?"
"Leu a porra da matéria!?" - Com raiva digito tão rápido que o ruído das teclas se sobrepõe à música no carro. - Dess!?
"Li e me dei mal. Falei merda e nem sei o que falei. Fica longe de mim e de Antoine. Vai ter que encontrar tempo pra cuidar de seu filho de verdade. Fruto da foda entre vc e Sweet. Sejam felizes! #sqnunca".
"Imbecil! Em minha vida só existe uma mulher e se eu não a tiver, prefiro sucumbir."
"Pois então, sucumba! Eu estou casada. Aiden, meu marido, está me levando pra conhecer nossa nova casa. Eu sinto que tudo vai mudar pra melhor porque, ao contrário de vc, ele não promete. Ele faz."
"Dess, não me provoca. Estou por um fio..."
"Espero que esse fio enrosque em seu pau e o decepe."
"Preocupada com meu pau?" - Um riso alto e inconveniente e chamo a atenção de todos no carro. - "Vá pro inferno!"
"Eu já estou nele sem vc. E, se não conseguir ficar com vc nessa vida, eu, literalmente, voltarei a ele."
"Foda-se! Desliga! Aiden tá desconfiado!"
"Foda-se! Que ele saiba que eu sei quem ele é e o quanto ele mente pra te enganar e te manter presa a ele!"
"Me deixa...por favor. Eu tô confusa."
"Eu sei, amor. Eu estarei aqui por vc."
"COM SWEET???"
"Sim! Sweet, Jujuba e, em breve, Mimi!"
"VCS A ENCONTRARAM???"
"Ainda não. Mas estamos quase lá, Dess. Ela foi salva por algum morador próximo à mansão carbonizada. Estou quase lá! Vc estava certa, Dess. Vc é melhor do que imagina." - Emocionada, engulo o choro e tento finalizar.
"Boa sorte. Ache Mimi e tente fazer Sweet feliz. Ela merece."
"Sem chances. Eu não 'caí' por ela."
"Se caiu por mim, levante-se e faça algo que mude o curso de nossas vidas. Até lá, vou tentar ser feliz com o que tenho e não com o que vc nunca pôde me dar, infeliz."
"Dess, não a deixe voltar! Ela é perigosa!"
"Ela quem, idiota!? Mais uma pra lista dos ' mais perigosos do ano!?"
"Vc não se lembra, né? Nem poderia. Eu te fiz esquecer. Eu a fiz voltar a dormir".
"Eu não me lembro disso. Vc não fez nada disso comigo!"
"Não foi nessa vida, burra! Foi na anterior!"
"Aaah! Vá à merda! Chega dessa história! Volta pro céu e me esquece!"
"Não enquanto ela quiser voltar!"
"Ela quem, porra!?"
"Eileen!"
Gargalho movendo as pernas, aleatoriamente, antes de digitar. Chego a tocar os pés no teto do carro quando Antoine, perspicaz, gargalha junto e solta um 'Essa boa, mamãe! Mostra outra foto!", evitando que Aiden retire o celular de minhas mãos nervosas. Alterada, prossigo.
"Boa tentativa, idiota! Eu amo essa música! Dançamos muito na Irlanda quando MEU MARIDO E EU estávamos em LUA-DE-MEL! Too-ra-loo-ra-too-ra-loo-ra-ey! LOL!"
"Se eu não te amasse tanto, eu te largaria agora!"
"Tu já me largou tantas vezes! Que diferença vai fazer!?"
"Vai sentir a diferença quando ela quiser retornar e quando ele te largar!"
"Tá me deixando confusa e irritada. Aiden tá percebendo!"
"Haja o que houver, não a deixe retornar à superfície. Antoine depende de sua sanidade ou do pouco que ainda lhe restou, maluca!"
"Não me diga!? Então eu devo não deixar voltar à superfície algo do qual eu me esqueci porque vc me fez esquecer!? Otário! Tu é que é maluco! Agora eu saquei tudo! Agora eu sei que fiz a escolha certa! Aiden é o meu homem! O melhor para mim! Some!
"Ele sabe como acordar a 'outra', Dess! Ele estava presente quando eu a fiz dormir! Morávamos na Irlanda! Isso não faz muito tempo!
"Eu amei a Irlanda...". Suspiro.
"Claro! Seus tios eram de lá! Sua única família! Eles sumiram graças..."
"PARA TUDO!!! EU QUERO DESCER!!! CHEGA DESSE PAPO!!!"
"Ele não é tão bom quanto tem parecido ser! Acorda, imbecil! Até agora vc não percebeu suas mãos frias!? Geladas!?" - Perplexa e apavorada, lanço um olhar a Aiden pelo retrovisor interno. Ele me sorri, satisfeito. Ergo a cabeça e, fingindo estar entediada, minto.
- Sweet tá eufórica! Não quer desligar! Não se cansa de contar os detalhes de sua nova vida e do trampo novo no galpão de boxe. Patético...- Bufo. - Vou desligar. Ok? - Incomodada, volto a deitar a cabeça no colo de Antoine e indago.
"Por que as mãos dele são frias!? Ele nunca me disse!"
"Disse sim. Ele parecia brincar e vc preferiu acreditar que fosse brincadeira. Mas ele disse. Pergunte a ele novamente. Ele não pode mentir sobre isso. Eles o proibiram de esconder a verdade quando questionado por vc."
"ELES QUEM???"
"Aqueles que nos fazem cumprir as Leis Supremas!"
"Aaaaah...tá! NÃO ENTENDI PORRA NENHUMA! E EU JÁ PERGUNTEI COISAS SOBRE ELE E ELE NÃO RESPONDEU! Logo, sua teoria sobre meu poder não vale nada!"
"Pergunte novamente, Dess! Pergunte! Quando vai acordar desse sonho!? Quando a outra tomar conta de tudo!? Dess, a gente precisa se encontrar!?"
"Quem precisa, imediatamente, encontrar um psiquiatra é vc, Vincenzo! Fica longe da minha filha e da minha vida! Talvez eu te envie alguma mensagem de meu novo apartamento! Fui!"
Desligo, desolada e intrigada.
Que diabos de 'outra' é essa???
Estamos de volta ao meu antigo apartamento. Aiden o comprara de mim, em segredo, assim como o fizera com meu carro.
"Por que fez isso?"
"Porque vc precisava", respondera-me ele com simplicidade.
Entusiasmada por seu altruísmo, eu o vejo com outros olhos.
Longe da mansão assombrada, nossas vidas tomam outros rumos. Fizera questão de expulsar de nossa casa a preceptora infernal. Eu mesma a demiti com um certo desprezo.
Um desprezo desnecessário. Um desprezo que ela me devolveria no momento certo.
Aiden se satisfaz ao me ver redecorar nosso apartamento, apesar de não haver necessidade alguma. Ele estava perfeito quando o vendi. Continuou perfeito quando retornamos a ele. Incentivada por ele, troco o pecado da Luxúria pelo da Vaidade, gastando uma pequena fortuna em cada cômodo. Transformara o quarto de Antoine em uma floresta mágica. Por vezes, chego a imaginar que duendes, fadas e elfos escapam das paredes e conversam com ela.
Quem sabe? Tudo é possível em se tratando de Antoine.
O que sobra de luz no quarto de Antoine, falta em nosso quarto. Aiden fizera questão de que o arquiteto o decorasse em preto e vermelho. A princípio, hesitei. Logo em seguida, ao vê-lo pronto, eu o amei. A vista da janela é fascinante. Tenho a impressão de estar dominando o mundo acima das milhões de casinhas e suas luzes acesas.
Tenho a impressão de estar sendo constantemente tentada a negar a mim mesma e aos meus princípios, e ceder a algo maligno e sem escrúpulos.
A pergunta que nunca fora respondida ainda resiste e insiste:
"De onde ele tira tanta grana?"
.
Em pouco tempo, recupero minha saúde física e defino meu corpo em uma academia super luxuosa, próxima ao galpão de boxe de Vincenzo. Do meu 'antigo novo' carro, enxergo Sweet, sorrindo aos alunos, atrás do balcão da recepção.
"Eu deveria estar ali. Não ela."
Inveja. Mais um pecado capital que cometo. Parabéns para mim.
Tento apagar esse pensamento de minha mente conturbada. Afinal, considero-me rica. Sweet, em franca reabilitação, apoia-se no trabalho e em seu amor por Jujuba, já que perdera o bebê em um aborto espontâneo, e ainda sustenta a esperança em encontrar Mimi, viva.
- NÃO! - Repreendo Antoine que, num de seus benditos arroubos de compaixão, grita por Sweet. - Ela te viu!
- Ué, mãe! - Gargalha ela com a cabeça para fora da janela. - Claro! Foi pra isso que eu gritei!
- Ha ha ha ha...- Emburrada, tranco as portas do carro e arrasto-me até a recepção. De mãos dadas a Antoine, cumprimento Sweet. - Por que não foi lá em casa ainda?
- Estou sem tempo...
- Mentira! - Acuso. - O que tá rolando!? - Da cadeira giratória, ela confessa.
- Tô mal, amiga. Eu perdi meu...- Consternada, eu a interrompo.
- Eu sei. Aiden me contou. Vc ainda é jovem. - Engulo em seco e pigarreio. A voz sai entredentes ao concluir. - Vincenzo também. Ainda podem tentar.
- Mulher, para com isso. - Diz ela, mordendo a tampa da caneta. Seus seios fartos saltam sobre o balcão. Seus olhos ainda mais verdes, brilham ao argumentar. - Eu não sei quem era o pai do meu filho...- Talvez um dos cento e um homens que te foderam! - Mas eu sei de quem ele não era. Definitivamente, Vincenzo não era o pai. - Isso não exclui a possibilidade de vcs estarem juntos e trepando! - Que cara é essa, amiga?
- Nenhuma. - Aflita, dirijo-me a Antoine. - Já falou com a tia? Agora vamos embora. Ok?
- Não! - Dramatiza Antoine. - E meu pai!? Eu quero ver meu pai!
- Vc não tem pai! Só mãe! - Rosno. - Eu já te expliquei isso! - Arrependo-me do que acabo de dizer quando vejo seus olhinhos marejados. Sweet me reprova com um olhar enquanto alguém atrás de mim ergue Antoine pelas axilas. Choramingando, ela prossegue em sua atuação melodramática. - Mamãe disse que vc não é meu pai, pai.
- Eu sou seu pai. - Afirma Vincenzo, suado, o torso nu, expondo todos os seus músculos. Sem olhar para mim, ele rumina. - O dinheiro faz muita gente perder o bom senso. Não liga, filha. Quando quiser me ver, é só me chamar e a gente se encontra em algum lugar. Ok?
- Pode me levar ao cinema!? - Antes de Vincenzo responder, eu grito um "NÃO!"
Meu grito assusta alguns alunos que passam pela catraca. Arrependo-me do grito, porém, aviso a Antoine porque não tenho coragem de encarar Vincenzo.
- Ele não tem a minha permissão pra te levar a lugar algum. - Ignorando minha presença, ele a beija na bochecha e cochicha. - Mais tarde a gente conversa. Tá bom?
- Uh-hum. - Assente Antoine de volta ao chão. Enviando beijinhos com as mãozinhas, ela se declara. - Te amo, pai. - Vincenzo finge pegar um dos beijos no ar. Antoine vibra. Ele sopra o mesmo beijo de suas mãos unidas e a faz arfar. Corroída pela dor de seu desprezo, mantenho-me calada até Sweet prorromper em prantos.
- Eu mereço...- Resmungo indo ao seu encontro. Num abraço apertado e sincero, sussurro. - Eu vou encontrar Mimi, amiga. Aguenta firme. - Beijo o topo de sua cabeça e antes de chorar, alcanço a porta da saída arrastando Antoine comigo. - Filha...me ajuda. - Imploro enxugando minhas lágrimas com o dorso de minha mão quando ouço sua voz lamentar.
- Nada restou da mulher por quem eu 'caí'. - Minha visão embaça e meu coração quase para de bater ao encarar seus olhos vazios e frios. - A única pessoa que me prende aqui é Antoine. Se algo acontecer a ela, eu sumo, mas, antes, eu me vingo de vc.
Não faço ideia de como chegara a casa ou como tivera forças para dar banho em Antoine e lhe servir o jantar. Cassandra, percebendo meu abatimento, conta-lhe histórias antes de dormir enquanto grito de dor, submersa em minha nova 'jacuzzi' com hidromassagem. Grito com todas as minhas forças até não ter forças para gritar. De volta à superfície, olho ao meu redor e tudo o que enxergo é ostentação. Quem, em sã consciência, iria assistir a uma TV de oitenta e cinco polegadas dentro de um banheiro!?
Eu.
Do meu celular, espelho a foto de Vincenzo na TV. Ainda estávamos juntos. Ainda tínhamos os mesmos objetivos. Um sentimento puro e forte nos unia antes mesmo de Antoine surgir em minha vida.
"Não se esqueça de mim. Haja o que houver, estarei contigo", é o que leio abaixo da foto. Mentira. Ele mentiu. Nada sobrou do homem dessa foto e, assim como ele mesmo afirmara, sem compaixão alguma, nada restou da mulher por quem ele era apaixonado. Por quem ele diz ter 'caído'.
- Meu anjo. - Sussurro entre soluços. - Eu não consigo tirar vc de mim...
Largo o celular sobre o porcelanato e mergulho. Ouvindo o som do silêncio, fecho os olhos. Meu corpo relaxa sob as fortes rajadas de água que escapam das laterais da banheira. Gostaria que todos pudessem ter um momento como esse. Penso que, se mãe de Luka tivesse como relaxar os nervos e o corpo após um dia cansativo e estressante de trabalho em uma banheira como essa, ela teria dito a ele que o amava. Penso que se ele, meu pobre Luka, pudesse assistir aos seus filmes e jogar seus 'games' em uma TV como essa, ele teria sido mais feliz. Com a cabeça fora d'água, murmuro.
- Eu não tive tempo de me aproximar dele. Eu errei. - Choro sem controle. Levo as mãos à boca porque não posso deixar que Aiden me ouça chorar. Desligo a TV. A foto de Vincenzo ainda está na tela do meu celular. Eu a salvo na 'nuvem' para nunca mais perder o meu amor. - O que eu posso fazer pra me redimir? - Pergunto de olhos aflitos fixos no teto onde uma réplica perfeita de um céu estrelado em uma noite escura me traz paz. Apago todas as luzes num simples comando de voz. Recostando a nuca no acrílico, imagino estar em uma praia ao lado de Antoine e Vincenzo, juntos e felizes.
Idiota.
Ele e Sweet devem estar em casa, tomando vinho, brincando com Jujuba até que ela durma e, enfim, eles possam transar a noite toda!
- INFERNO! - Enfurecida e ressentida, afundo a cabeça decidida a quebrar o recorde mundial de apneia estática. Dezenove minutos e eu, com sorte, perco os sentidos.
"Se esqueceu de mim, tia? Ainda sofro. Mimi sofre".
"Vc sumiu, Giulia. Me dá uma dica...uma pista. Eu quero ajudar, mas não faço ideia de como fazer".
"Siga o monstro. Assim que ele sair, siga o monstro".
"Que monstro, Giulia!? Volta!"
Ainda ouvindo o eco de sua voz, retorno à superfície, puxando o ar pela boca.
- Siga o monstro? De quem ela fala? - AINDA HÁ DÚVIDAS??? LEVANTE-SE! VISTA-SE! ELE ESTÁ PRESTES A SAIR! Quem fala comigo? Eu não reconheço a sua voz. Não é a de Lúcifer. CLARO QUE NÃO! SOU MAIS FORTE DO QUE ELE, EILEEN".
Em choque, deixo Antoine com Cassandra e, ainda com meus cabelos úmidos, monto uma tocaia em meu carro do lado oposto do prédio até que eu o vejo sair com o seu. Contrariando todas as minhas crenças de que ele é um bom homem, eu o sigo pelas ruas da cidade até sair dela. Sem que ele me perceba, eu o sigo de longe. Estradas de areia, pedras e lama escorregadia exigem muito do meu carro com tração nas quatro rodas. Ainda assim, não desisto. O espírito de Giulia, ao meu lado, me força a continuar. Após quase uma hora dirigindo, enfim, ele estaciona em frente a um casebre.
"É isso aí, tia!", diz Giulia antes de evaporar. Estaciono a uma certa distância e o observo através do binóculo lilás de Antoine. Ele entra na casa simples onde é bem recebido por uma senhora opulenta que lhe sorri. Após um breve cumprimento, ele fecha a porta.
Receosa, saio do carro e caminho, cuidadosamente sob o sol poente. O céu de um azul estonteante misturado a um rosa de tirar o fôlego se contrapõe ao clima tenso. Recosto-me à casa em madeira. Agachada, chamo a atenção de um cachorro raivoso. Num rompante de ódio, rosno para ele e, estranhamente, ele me obedece e recua, grunhindo. Agachada debaixo da janela, ouço ruídos. Eles conversam sobre algo. Apuro minha audição e então, meu mundo desaba.
- Tem alimentado a menina?
- Como o senhor mandou, patrão.
- Ela ainda chora muito? - Indaga Aiden com frieza na voz.
- Agora não. Acho que se cansou. Quer ver a menina?
- Por que acha que vim aqui, estúpida!? Para te ver!?
Sentada no chão em madeira, tento raciocinar e não consigo. Tento conter minha impulsividade e, quase, não consigo. Lembro-me dos livros que já li e tento seguir os passos das heroínas. De gatinhas, circulo a casa até chegar a um janela fosca e imunda. Ergo-me, cuidadosamente, para não ser vista. Espio através da janela. De costas para mim, uma criança sentada no chão, brinca, sem ânimo. Sua boneca tem os cabelos tão desgrenhados quanto os dela. Longos e desgrenhados fios cor de mel.
- É Mimi! - Sussurro entre assombrada e empolgada. - O que eu faço!?
A porta do quarto se abre. Eu me escondo. A voz de Aiden ecoa no cômodo enquanto ele a chama pelo nome. Ela o chama de 'tio'. 'Tio'!? Que tipo de refém chama seu sequestrador com tanto carinho!? Já sei! 'Síndrome de Estocolmo'! Pobre Mimi! Uma olhadela e os vejo conversar num tom muito baixo. Diabos! O que faço!? Eu o confronto ou deixo que ele parta e, então, eu a levo comigo!? Não tive tempo de decidir. Ao me sentar, deparo-me com uma espingarda apontada para a minha testa. A jovem atraente me fita com desdém ao engatilhar a arma e a encostar em minha testa.
- Atira e eu te mato. - Rosno. Creio que foi a coisa mais estúpida que já falei em toda a minha vida. Mas... surtiu efeito. Ela leva segundos para tentar me compreender. Segundos onde ergo minha perna direita e chuto, com força, o cano da espingarda para o lado. Movida pelo medo e pela fúria, eu acerto meu punho direito cerrado bem no meio de seu pescoço. Ela me olha com espanto antes de cair, inconsciente, no chão. Sem se mover, eu chuto suas costelas até me exaurir. Tomo sua espingarda e, antes de me virar em direção à porta, Aiden a segura pelo cano. Aparentando decepção, ele pergunta.
- Por que me seguiu, baby? Vc acaba de colocar a vida de Mimi em risco.
- OIII???
Abraçada a Mimi, sentada em uma cadeira desconfortável, ouço sua narrativa. Tremendo de raiva e medo, observo a senhora, de pé, em um dos cantos da cabana. Há algo nela que me incomoda.
- Eles a matariam naquela noite, baby.
- Como sabe disso, Aiden!? Vc faz parte desse grupo de pedófilos e assassinos!?
- Não. Sou um infiltrado. - Semicerrando os olhos, indago, incrédula.
- É sério que vc quer que eu acredite nessa historinha ridícula!? Vc me entregou a eles, Aiden! Fazia parte do plano me entregar a eles como um pedaço de carne!? Vc se deixou dominar por aquele demônio!
- Shhh. Vai assustar a menina.
- Não se faça de bobo! Não me faça de boba! - Revolto-me ao me erguer e proteger Mimi com meu corpo. - Quem hospeda um ser demoníaco não salva crianças, Aiden! - Perdendo a paciência, ele refuta.
- Pois eu salvei! Eu mergulhei no rio quando a líder do grupo a empurrou! Eles a queriam morta e eu cometi o grande erro de salvar Mimi por vc! Por vc! - Gritando mais do que ele, pergunto.
- Por que por mim!?
- Vc me disse ser madrinha delas...- Um suspiro e ele indaga, ofendido. - Não se lembra?
- E quanto ao Luka!? Por que não o salvou também!? - Descontrolado, ele berra.
- POR QUE EU SOU SOMENTE UM, PORRA! AINDA NÃO CONSIGO ESTAR EM DOIS LUGARES AO MESMO TEMPO! - Estarrecida e desconfiada, volto a me sentar. Agarro-me a Mimi que chora em meu colo.
- Quero minha mãe, tia.
- Eu vou te levar, meu anjo. - Um olhar de desprezo a Aiden e volto a afirmar. - Eu vou te levar. Vou te tirar daqui.
- Não faça isso. - Pede-me Aiden num tom sombrio. - Se eles souberem que Mimi está viva, Antoine será a próxima.
- O QUÊ??? - Largo Mimi e, como um vampiro sedento, salto sobre Aiden. Ele cambaleia e cai contra o chão. Sem controle, eu o golpeio no rosto, montada em seu tronco, até que meus punhos sangrem. Sem mover um músculo do corpo ou do rosto, ele pergunta.
- Acabou?
- NINGUÉM TOCA NA MINHA FILHA! ENTENDEU!? - Enfurecida, avanço contra a velha com olhos de crocodilo. - A SENHORA ENTENDEU? DIGA AO SEU MESTRE QUE DESISTA DE ANTOINE! DESISTA! DESISTA! DESISTA! - Aiden contem meu ataque de pânico prendendo meus braços com um forte abraço. Sua voz calma e firme ordena.
- Te acalma, baby. Te acalma. Eu vou dar um jeito nisso. Confia em mim!?
Desorientada, alucinada, apavorada, fragilizada e com Mimi chorando diante de mim, minto.
- Sim.
Levo Mimi em meu colo até meu carro e a deito no banco traseiro. Aiden se aproxima de mim e me pede para levar Mimi consigo.
- É mais seguro. - Alega ele.
- Tenta tirar ela de mim! - Provoco aos prantos. - Não sei e não quero saber o porquê de ter mantido essa criança aqui por tanto tempo, longe da mãe e da irmã. Elas sofreram, Aiden.
- Baby, foi por Antoine...
- Não tem desculpas, Aiden. Arrancar uma criança de sua mãe é um crime brutal.
- Mesmo que fosse para salvar a vida dela!? - Confusa e abalada, eu entro no carro e tranco as portas. Socando a janela do meu lado, ele implora.
- Não me deixa, esposa! Eu fiz por Antoine! Eles a matariam se soubessem que Mimi sobreviveu!
- POR QUÊ!? - Berro dentro do carro.
- Porque ela é o alvo! Ela é pura e tem poderes! - À beira de outro ataque de nervos, minhas mãos se agarram ao volante enquanto imploro, aos gritos.
- ME DEIXEM EM PAZ!
- Abre a porta, baby...- Apesar de seus olhos marejados, ainda desconfio de sua versão.
Nada faz sentido. Nada, no momento, faz sentido, além de levar Mimi até Sweet. Baixando a janela, sem olhar em seus olhos, aviso.
- Se eu souber que vc tá metido com essa gente escrota, Aiden, eu mesma te mato.
- Não pode...- Lamenta ele.
- Por quê?
- Mortos não morrem.
Aterrorizada, enfio o pé no acelerador e o deixo para trás sem a menor vontade de olhar pelo retrovisor externo.
O ódio que sinto por ele dificilmente vai se extinguir.
E o medo também...
Subo as escadas até o terceiro andar. Mimi dorme em meu colo. Apesar do cansaço físico e emocional, estou feliz. Mimi está viva e aparentemente saudável. Bato à porta por três vezes. Exaurida, aguardo que a abram. Jujuba é a primeira a gritar e pular, eufórica.
Sweet se ajoelha, sem palavras. Chorando convulsivamente, ela não vem ao encontro da filha. Caminho até o meio da sala e deito Mimi no sofá. Desabo ao lado dela. Choro cobrindo o rosto com as mãos. Estou destruída por dentro. Não sei mais em quem confiar.
- Vc conseguiu. - Reconhecendo sua voz, nada falo. - Obrigada, Dess. - Assim que Vincenzo se senta ao meu lado, eu me levanto. Ignorando sua presença, beijo Jujuba e Sweet e, antes de partir, aconselho.
- Cuidem dela. Ela perdeu muito peso, mas ninguém a tocou. Eu garanto. Adeus.
- Dess!
Do corredor, destroçada, eu alerto.
- Fica longe. Da mulher que vc conheceu, nada mais restou.
Aiden e eu não nos falamos desde que encontrara Mimi. Ele, ressentido. Eu, magoada e desconfiada. Sweet festeja o retorno de sua filha com uma festa em seu apartamento. Deixo Antoine em sua casa, porém, assim que meus olhos o veem, invento uma desculpa qualquer e cochicho ao ouvido de Antoine.
- Mamãe te pega mais tarde. Ok? Me liga.
- Meu pai me leva, mãe. - Contenho minha raiva, decepção e ciúme e engulo um 'NÃO!" bem alto. - Eu vou de moto! Vai ser legal!
- Não, filha. É perigoso. - Demonstrando minha contrariedade, ela revira os olhinhos e, emburrada, se cala. - Quando quiser voltar, me liga. - Um beijo em sua bochecha e me despeço. - Te amo.
- Te amo, mamãe. - Puxando-me pelo braço, ela avisa num cochicho. - A Giulia disse que ainda não acabou.
Desço as escadas do prédio antigo refletindo sobre as últimas palavras de Antoine quando sufoco um soluço. Minha voz tremula ao indagar.
- Como chegou até aqui se não foi pela escada?
- Quer mesmo saber? Eu já te falei antes.
- Pulando a janela?
- Sim.
- Grande coisa. - Ironizo. - Já vi coisas piores. Posso passar?
- Não até me perdoar, Dess.
- Vincenzo...- Exalo. - Eu não quero brigar, discutir. Eu nunca estive tão cansada quanto agora. Eu só quero dormir pra sempre e só acordar quando tudo acabar.
- Isso é um sinal de 'Depressão', Dess. - Usando de sarcasmo, replico.
- Não me diga. E por que será? Minha vida é tão calma e tranquila.
- Eu não queria ter dito...- Incomodada com sua presença, eu o interrompo.
- Mas disse. Passado. Morreu. Me deixa passar.
- Se quisesse passar, já teria chutado meu saco e fugido.
- Não sou mais a mesma...
- É sim. Só está cansada de tanto lutar...- De cabeça baixa, sinto o toque suave do dorso de sua mão em meu rosto. Suspiro contendo o choro. Engulo em seco antes de pedir mais uma vez.
- Me deixa passar.
- Me escuta, pelo amor de Deus.
- Fala.
- Eu nada sinto por Sweet além de compaixão e amizade.
- Já não me importo. - Refuto, friamente. - Quero ir pra casa.
- Descubra quem Aiden é. Vc tem o poder. Vc já faz ideia do que ele é, Dess. Liberte-o ou o destrua. Pelo bem de nossa filha. - Solto um risinho cínico, eu o encaro e o confronto.
- Quer me falar de luta, Vincenzo? Vc que se diz um anjo e foge de Lúcifer ao invés de enfrentá-lo por amor à sua suposta filha? Vc que nos largou nas mãos de Aiden por não querer se dar ao trabalho em escolher entre praticar o mal ou cuidar de sua família? Vc que se escondia debaixo da batina de padre Pietro e agora banca o pai das filhas de Sweet pra não deixar que aquele demônio exilado pense que ainda nos quer em sua vida!? Quanta coragem! Devo continuar a ouvir seus sábios conselhos ou já posso ir embora!? - Recuando, ele murmura.
- Vc tem razão, Dess. - Dando-lhe as costas, meu coração se parte ao meio ao afirmar.
- Eu sei. E eu que faria de tudo por vc...
Angustiada, abro a porta da sala. Aiden, deitado no sofá, assiste - ou finge assistir - a um filme na TV. Em silêncio, passo por ele e sigo até o quarto de hóspedes transformado em um estúdio de dança. Um pouco menos luxuoso do que o da mansão macabra, porém, com os mesmos recursos.
Inutilmente, tento conter as lágrimas que escorrem do meu rosto. Diante da parede espelhada, eu me desconheço. Não encontro o brilho nos olhos quando ainda o amava. Eu o amava e o admirava como o homem que me salvaria de todo o mal. Hoje, eu me apiedo dele assim como de Aiden...e de mim.
Descalça, alongo meu tronco e pernas. Meus braços se movem sem ânimo. Escolho uma canção tão triste quanto meu coração.
Arrisco dois saltos e desisto. Rodopio ao redor da sala e, ao me olhar no espelho, encolho-me como um pássaro debaixo de uma tempestade. Caminho na ponta dos pés até a barra onde volto a chorar.
Recuo, saltitando. Em uma tentativa patética em saltar e alçar voo, caio contra o piso frio. Choro convulsivamente. Minhas costas se movem enquanto escondo minha cabeça entre as pernas esticadas. Meus cabelos soltos cobrem meu rosto quando ouço sua voz chamar meu nome.
- Deixa eu te ajudar...
- Em quê? - Choramingo movendo os dedos dos pés. - Eu não consigo mais.
- Consegue sim. - Diz Aiden agachado ao meu lado. - Basta um professor disciplinado que te mantenha focada no que realmente interessa. Lembra de como nos conhecemos?
- No teatro...- Suspiro após sorrir. - Onde tudo começou.
- Ainda não acabou, baby. Venha.
- Aiden não...- Estendendo seu braço, ele insiste.
- Venha! Eu vou te guiar! Confia em mim, baby!
E ele me guiou.
Ensaiamos e dançamos juntos após eu adquirir a segurança que me faltava. Revivemos a coreografia de "Moulin Rouge" e enquanto eu repetia os passos, ele me incitava a continuar...a não desistir. Suas mãos tocavam minha cintura. Seus braços sustentavam os meus. Seus olhos me encaravam através do espelho. Um riso tímido e eu ruborizava. Sua insistência vencia minha indiferença. Ao contrário de Vincenzo, Aiden não se cansa de tentar conquistar o que ainda não tem. Erguendo-me do chão, ele me faz girar como no dia em que nos conhecemos. Abro os braços e fecho os olhos e volto a um tempo em que eu era livre e destemida. Um tempo longe desse em que vivo agora. Um tempo onde o impossível não existia. Onde eu burlava regras e semeava discórdias.
De onde me veio essa memória?
Gargalho antes de pisar no chão em madeira corrida. Suspiro diante de sua elegante reverência.
- Vc sabe dançar. Gosto disso.
- Vc me ensinou, baby. Não faz muito tempo.
- Vc e suas esquisitices...
- Ainda não acabou. - Alerta-me ele exigindo mais de meu corpo, de minha técnica.
Estou amando cada momento!
Após saltos, piruetas e giros, finalizo com um 'Arabesque' que o faz me aplaudir, esfuziante.
- A bailarina que conheci ainda está aí. - Afirma ele tocando seu indicador em meu peito. - Nunca a deixe morrer, baby.
- Vc me ajudou...- Replico, exausta e feliz. - Obrigada.
- Proponho uma trégua. - Diz ele apoiando-se na barra, escondendo um riso tímido. Foi assim que ele me conquistou. - Nenhuma resposta? - Ruborizando, novamente, respondo.
- Proposta aceita.
Dessa vez, não estou sozinha em minha 'jacuzzi'. Aiden está comigo. De uma maneira muito especial, fizemos as pazes.
Sua boca suculenta passeara por todas as partes do meu corpo até chegar à minha boca. Num beijo de tirar o fôlego, ele me pede perdão.
- Shhh...- Sussurro contra seus lábios. - Agora não. Vamos fingir que nada aconteceu.
Sorrindo, ele volta a me beijar e a jurar que serei somente dele. Sorrindo, ele faz amor comigo pela primeira vez. Pela primeira vez, ele me trata com delicadeza e uma terna paixão. Após muitos dias, eu não o vejo com receio. Não enxergo o sequestrador de crianças ou o ser maligno que o domina. Não o imagino retornando do mundo dos mortos para me atormentar. Permito-me não pensar em como ele ganha a fortuna que gasta comigo e com Antoine.
Após dias, eu o abraço. Abraço o homem que respira, ofegante enquanto suas mãos deslizam em minhas costas. Seus olhos procuram, aflitos, pelos meus ao me pedir que nunca o deixe.
- Responde, esposa. - Sentada em seu colo, eu o sinto dentro de mim. Agarrando-me em seus cabelos, cavalgo sobre seu pau até me saciar e responder num gemido.
- Não vou deixar, marido.
- De onde vem? - Surpreso, ele sorri. Tentando desconversar, Aiden argumenta.
- Estamos tão bem agora, baby. Por que tocar nesse assunto?
- Porque eu quero saber mais sobre o homem que amo. Não posso? - Seus olhos claros brilham. Emocionado, ele apoia o cotovelo em seu travesseiro e, arqueja, ao perguntar.
- O que disse!? Repete!
- Qual parte? - Brinco. Rindo como criança, ele move a cabeça e a esconde debaixo do travesseiro. Amo esses gestos nele. Embora tenha horror à resposta, eu repito a pergunta. - De onde veio, amor? Sei que não pode negar respostas a mim.
- Foi ele quem te disse isso. - Rosna Aiden contra o travesseiro. - Aquele escroto metido a anjo. Eu o odeio.
- Por quê? O que ele te fez? Não me olha assim. Eu não o quero defender. Eu quero te conhecer. Quero saber mais sobre vc, Aiden. O que quis dizer com "mortos não morrem"?
- Exatamente isso. - Um riso nervoso e ele repete. - Que mortos não morrem porque já estão mortos, baby.
- Não acho graça...- Resmungo cobrindo meu corpo nu com o lençol em seda egípcia. De costas para ele, aviso. - Estou esperando respostas...- Encaixando seu corpo ao meu, ele hesita.
- Vai continuar a me amar se souber da verdade? - Abraçando-me com força, suas mãos frias tocam em minha barriga. Seus lábios quentes roçam meu pescoço. Sua voz grave sussurra, aflita. - Fala, esposa. Vai continuar a me amar se souber que não sou normal? - De olhos fechados, respondo.
- Sim. A menos que vc seja um deles...
- Deles quem?
- Os assassinos pedófilos. Os que mataram Luka enquanto vc salvava Mimi. - Forçando-me a virar meu corpo em sua direção, ele me pede para abrir os olhos. Eu os abro. Metendo-se debaixo do meu lençol, ele me aquece com seu corpo sem desviar seus olhos claros dos meus. Um beijo seu me acende por dentro. Contendo meu impulso insano por mais sexo, insisto. - Por que suas mãos são frias, Aiden? Me diz a verdade. Sou forte.
- Eu sei que é. Eu conheço a tua força. Vc me afastou com a tua magia.
- Quando?
- Não se lembra?
- Em outra vida?
- Não. Nessa vida. - Deitando-se sobre o meu corpo, ele afasta minhas pernas e me penetra, vagarosamente. Seus olhos escurecem à medida em que vou perdendo o meu controle e me entregando a ele. Entre excitada e assustada, fixo meus olhos na lareira. As chamas lambem os tijolos enquanto meu corpo sacode sob suas fortes estocadas. De súbito, ele para de se mover e me encara ao lamentar. - Vc me expulsou de sua vida, baby. Eu não sabia como lidar com meu amor por vc. Eu te fiz sofrer porque não sabia mais agir como um homem. Então, comecei a agir como um animal...
- Sai de mim, Aiden...- Movendo-se lentamente, ele me faz gozar e, então, orgulhoso, prossegue, num tom sombrio.
- Vc sentiu minha falta. Apesar de ter me amaldiçoado, sentiu minha falta e me chamou de volta. De volta à sua vida. - Um forte arrepio e o empurro com minhas mãos em seu tórax. Seu corpo cai ao lado do meu. Aproveito meu rápido momento de lucidez e escapo de sua voracidade, escorregando pela beirada da cama. Enrolada no lençol, em pé, diante dele, ainda arfando e desejando sua boca em minha pele, ordeno.
- Me diz quem vc é, Aiden! Agora! - Caminhando, lentamente, ao redor da cama, ele vem em minha direção. Há uma aura escura ao redor de seu corpo nu. Ela se expande e retrai, causando-me pavor. - Aiden! Não se aproxima!
- Eu não vou te machucar. - Diz ele, parado a alguns metros de mim. Parecendo alheio a tudo, inclusive ao meu medo, ele divaga. - Eu prometi a eles. Eles me deram uma nova chance e eu a aproveitei. - Recostada à parede ao lado da cama, indago, aflita.
- Eles quem, Aiden? Volta pra mim. Não quero mais saber de nada.
- Agora é tarde. Eu preciso falar. Eu preciso me mostrar a vc e ser aceito. Se eu não for aceito por vc, serei obrigado a me afastar...pra sempre. - Um urro de dor e, olhando em meu olhos, ele confessa. - Eu não quero partir. Não agora que eu consegui o seu amor. Não é justo...- De joelhos, ele ergue os olhos ao teto e lamenta. - Não é justo. Ela disse que me ama.
- Com quem tá falando?
- Quer saber quem eu sou? - Erguendo-se, de súbito, ele me alcança e me toca no queixo. - Quer saber por que minhas mãos são frias? - Arrependida, digo que não. Angustiado, ele replica. - É tarde, baby. Tenho medo. Tanto medo...- Tocada por seu sofrimento, acaricio seu rosto ainda que não o reconheça como o de Aiden. Seus traços, antes finos, agora se moldam e se mesclam à aura esfumaçada.
- Quem é vc? - A voz gutural responde.
- Uma alma sem rumo à procura da mulher amada. No princípio, chamavam-me por um nome. Um nome humano. Eu fui humano antes de partir. Eu me uni a Asmodeus por ciúmes, baby. Vcs me provocaram e eu me destruí vivendo sozinho por muitos anos. Então, o fim chegou e, com ele, o acerto de contas.
- Para...- Imploro entre soluços. Sem me ouvir, ele continua.
- Preso à Escuridão, passaram a me considerar um demônio. Mas eu não era um demônio. Era uma alma humana, aflita, procurando por vc...- Sufoco um soluço assim que o reconheço.
- Ga'al!?
Envergonhado, ele recua e suplica.
- Não precisa ser assim. Vc não precisa me aceitar como sou ou como fui. - Confuso, ele cobre seu rosto com os braços escamosos. Num tom de voz baixo, ele argumenta. - Posso ser o Aiden que vc disse amar, se vc o ama de verdade. Eles vão permitir que eu continue na Terra se vc o amar de verdade ou...
- Ou?
- Me liberte da maldição e eu partirei para sempre...
- Que maldição? - Indago aos prantos. - Quando eu te amaldiçoei? Quando te fiz tanto mal?
- Não importa. O tempo passa. Eles precisam de uma resposta.
- Eles quem!?
- Ainda me quer em sua vida? - Evitando olhar em seus olhos em chamas, certifico-me.
- Não fará mal a Antoine?
- Nunca!
- Não pode me machucar como antes?
- Não. Eles não permitiriam e eu não o desejo. Eu te amo, esposa. Vc ainda me quer em sua vida? Tenho sua permissão para fazer parte dela? Agora eles nos ouvem...
Sufocando minha intuição, cedo ao meu instinto selvagem. Seu rosto volta a se transmutar, então, encaro seus olhos claros e seu sorriso tímido ao revelar.
- Pode. Volte à minha vida como Aiden e me prometa ficar longe de Vincenzo. - Magoado, ele pergunta.
- Vc ainda o ama?
- Não sei. Talvez. Mas eu também te amo e eu te escolho agora. Não quero que briguem por mim.
- Está feito. - Voltando à sua forma humana, ele me explica. - Esse corpo não é meu. Eu o tomei de alguém que...
- Alguém que já morreu!? - Apoiando seus braços na parede, ele me encurrala. Penso em fugir e nunca mais voltar a vê-lo, mas desisto. Algo em mim diz que lhe devo algo. - Por isso, suas mãos são frias?
- Sim. - Admite ele dando de ombros. - É a única parte que não consigo aquecer. - Vencendo o medo, tomo suas mãos entre as minhas e, liberando o ar quente de meus pulmões, eu as sopro. Abrindo um sorriso triste, ele agradece. - Eu não vou te decepcionar. Prometo.
E eu acreditei.
Aiden está me curando com pequenas doses de meu próprio veneno.
Absolutamente satisfeita por ele e por seu inextinguível apetite sexual, aquieto meu corpo.
Minha alma, ainda perdida, aguarda pelo momento certo de agir.
De volta à capela, hesito antes de entrar. O 'Crucificado' parece me olhar e perguntar: