Após alguns dias no CTI do hospital diretamente ligado ao mosteiro onde Vincenzo reside e estuda, ainda sinto dores em meu útero e nas costelas. Foram quatro costelas quebradas pelas mãos delicadas de Ga'al ou devo dizer: Ragnar Lodbrok, filho de Odin?
- Me empresta seu celular, por favor?
- Aaah...não sei se posso...
- Ah! Claro que pode! - Estimulo-o com uma piscadela. - Quero ver se vai chover hoje. - Minto. - Eu amo chuva. Isso me faz pensar em Deus e em toda Sua perfeição. - Estúpido.
- Claro! Está corretíssima! - Agradeço ao enfermeiro que cuidara de mim o tempo todo ou, talvez, tenha me vigiado o tempo todo. Talvez os membros do mosteiro onde estou agora como 'convidada especial' tivessem receio de que eu invocasse Ragnar Lodbrok a fim de me raptar daqui e retornar ao inferno de onde, graças a Miguel - o Meu Anjo - conseguira escapar. Ok. Não posso me esquecer de Padre Pietro e de Vincenzo, seu pupilo irritante.
"Ragnar Lodbrok", digito no Google. Faço uma careta para o celular ao descobrir que Ragnar Lodbrok talvez não tenha existido e que sua vida e feitos são contados em vários poemas e lendas nórdicas. Não existem evidências históricas concretas de que ele tenha realmente existido. Teoricamente, Ragnar é uma junção de histórias de vários guerreiros diferentes. Dã! Grande merda. Voltara ao ponto de partida. Nada sei sobre Ga'al 'Ragnar Lodbrok'. Posso supor que tenha sido um viking extremamente violento e devasso que, ao morrer, vagara pela Terra até achar uma idiota qualquer que o invocasse e lhe pedisse por proteção. Cheio de si, orgulhoso, certamente, nomeara a si mesmo como um demônio poderoso capaz de realizar proezas, no entanto, durante o tempo em que estivera com ele, sob seu domínio, nada vira de proezas. Nunca o vira praticar algo fantástico além de partir ao meio seres tão repugnantes quanto ele. Na verdade, eu não me lembro de muita coisa. Por que estou me esquecendo do que passei durante os dois meses no cativeiro? Dois meses!? Não me lembro! Não pode ser! É muito tempo! Por que estou procurando algo a respeito desse tal de Ragnar!?
- Por que não me lembro de porra alguma!? - Penso alto.
- De quê? - Pergunta-me o enfermeiro.
- De nada. - Sorrio, sem graça. - Tome. Obrigada por me emprestar. Não sei onde deixei o meu. - Devolvo o celular ao enfermeiro que consulta o histórico de minha busca no Google e me olha com desconfiança. - É uma das séries que gostei de ver. - Minto novamente. - Gostaria de saber se ainda está no 'streaming' da Netflix. - Abro um sorriso forçado e, de costas, saio da enfermaria de onde fui liberada. Ao passar pelo corredor espelhado, espanto-me com o que vejo. - Puta que pariu! Essa não sou eu!
Aproximando-me do espelho, passo meus dedos sobre os pontos costurados em meu rosto em quase toda sua extensão. Somente a testa está sem pontos. Sou a filha de Frankstein com a noiva de Chuck. Perdi peso e meus cabelos estão um lixo. E esse camisolão!? Por San Juan Diego!
"Adessa, vc morreu".
Meu olhar é triste como se nada da Adessa antiga tivesse sobrado. Sem ela, o que eu serei a partir de agora. Uma estudante de Psicologia que perdeu aula pra cacete enquanto estava aprisionada por um demônio viking? Uma puta falida, com o rosto cheio de cicatrizes e sem vontade de viver? Encosto minha mão na barriga e posso sentir meus órgãos internos feridos, magoados assim como eu. Penso que nunca mais vou poder voltar ao meu trabalho e ganhar a grana que ganhava. Não consigo imaginar foder com alguém a menos que seja daqui a uns dois anos. Sorte minha eu ser precavida. Ter dinheiro no banco para poder sair daqui e me esconder de todos até que tudo volte ao normal.
- Sorte a minha poder te acompanhar.
- Vincenzo! - Exclamo satisfeita e incomodada quando o vejo atrás de mim, através da superfície espelhada. - Dá pra parar de ler a porra dos meus pensamentos!? Que saco!!!
- Desculpa. - Ele é ainda mais fofo quando triste. - Vou tentar parar com isso. Só não sei como. Ah! E eu não estou triste.
- Cacete!!!
Rindo, ele me persegue pelo corredor do hospital até o quarto onde eu estava. Ainda rindo, ele tenta me ajudar a catar minhas coisas espalhadas pelo cômodo. Eu as tomo dele e as jogo na mochila.
"Essa mochila é minha", estranho. "Como veio parar aqui?"
- Eu a trouxe. - Enraivecida porque ele continua a ler meus pensamentos, eu o encaro. Dentro de seus olhos azuis, eu me acalmo. Suas covinhas, seu sorriso. Emudeço, ouvindo sua explicação. - Voltei à sua casa, na noite em que vc foi à festa do seu pai...
- Oii??? Vc me seguiu naquela noite???
- Sim. - Assume ele. - E encontrei a porta aberta e tudo revirado. Foi quando comecei a te procurar e...
- A rezar?
- Também. - O jeito com que ele move a cabeça, olhando para baixo, quando está envergonhado é fofinho. Faço questão de pensar em coisas sobre ele porque sei que ele está me ouvindo. Adoraria tocar em seus cabelos sem corte, a barba por fazer. - Então...- Ele expira com força, corando. YESS! Adessa 1! Vincenzo 0! Quer ler meus pensamentos, meu bem? Então esteja preparado! - Adessa! - Ele estala os dedos diante dos meus olhos vidrados nele. Acordo. - Entra no carro. Vou te levar pra lá.
- Pra onde!? De onde surgiu esse carro!?
- Enquanto vc pensava besteiras, nós andamos do quarto até aqui. Como vc pode se ausentar com tanta facilidade?
- Como vc pode ser tão idiota e ainda exorcizar demônios!?
- Boba. Por que tá me olhando assim!?
- Era vc o cara da moto cheirando à maçã verde!?
- Que cara?
- Enquanto eu corria na orla e procurava por vc, vc passou por mim...
- E eu olhei pra trás.
- Cretino! Por que não falou comigo!?
- Medo.
- De quê!? Eu esperei por vc! Eu esperei até não suportar mais a tua ausência!
- Perdão.
- Não! Não vou te perdoar! Eu voltei a fazer coisas terríveis! Coisas que já não fazia quando vc estava por perto! Quando eu ainda...ainda...nós...vc e eu...e meu...nosso...
- O quê?
- Não me lembro. O que vc fez com a minha cabeça!?
- Nada! - Defende-se ele, enquanto o seguro pela gola de sua camisa. Estou prestes a estapear seu rosto quando ele apoia sua mão em minha nuca e, modulando a voz, diz. - Eu não fiz nada, Adessa. Anda.
- Ok. - Eu o obedeço sem questionar.
- Melhor. Bem melhor assim, menina.
- Ah! Vá pro inferno! - Jogo a mochila nas costas, giro nos calcanhares e vou na direção contrária a dele, reclamando alto. - Nesse carro eu não entro! Não sei aonde vai me levar! PARA! PARA DE FAZER ISSO, GAROTO!
Puxando-me pelo braço, de volta ao carro, ele me encara e com a voz rouca e um sorriso no canto da boca, ordena.
- Entra e fica calada e, de preferência, não pensa.
- Vai à merda. - Tapando minha boca com a mão, ele avisa, bem próximo a mim. Amo seu perfume. Dá vontade de mordê-lo todinho. - O que foi, cacete?
- Primeira lição: Parar de falar tanto palavrão assim. - Com as mãos no volante de seu fusquinha simpático, ele liga o motor e, antes de passar a primeira marcha, ele finalmente me conta aonde estamos indo. - Vamos à casa de um amigo. Vc vai gostar. Tenho certeza. É o lugar mais seguro para vc, no momento, já que não sabemos dos planos do seu 'amiguinho diabólico'.
- Não fala assim. Não gosto de ironia. Principalmente, depois de tudo o que passei nas mãos dele. Por que tá fazendo isso comigo? Acha que sou culpada?
- Em parte sim, mas não quero falar nisso agora.
- MAS EU QUERO! - Viro a chave na ignição e desligo o motor. O carro 'morre' enquanto ele, impaciente, recosta a cabeça no volante. - Dá pra explicar porque vc acha que sou culpada? Culpada por ter ferimentos em todo o meu corpo e no rosto? Culpada por ter sido estuprada e espancada por Ga'al por diversas vezes? Acha que gostei de tudo isso? Que desejo mais!? Sabe quando eu vou poder voltar ao trabalho!? - Decepcionado, ele pergunta.
- Vc ainda quer voltar a trabalhar com prostituição!? Ainda quer dançar nua e depois se entregar 'praqueles' caras nojentos!? Vai continuar com os filmes pornôs e aqueles em que vc se mostra sem o menor respeito por si mesma!? Sério!?
Silencio, chocada com a forma cruel com a qual ele diz as verdades. Antes, eu não me envergonharia do que fiz para ganhar dinheiro, mas, agora, ouvindo o que fiz, de sua boca, sinto-me abaixo de qualquer outro ser humano. Sinto-me um lixo humano. Imunda. Percebendo que me magoou, ele pede desculpas. Nada falo. Olho para o lado e me enxergo na janela do carona. Seguro o choro, olhando as nuvens num céu tão azul quanto seus olhos.
- Vc sabe ser cruel quando quer. - Ressentida, continuo a olhar as nuvens, sem coragem de encará-lo. - Nunca mais fale assim comigo, por favor. Sou um ser humano. Mereço respeito. Nunca matei, roubei ou machuquei quem quer que fosse. O que fiz foi pela grana.
- Perdão. - Quase não o ouço de tão baixo que falou. Acelerando o carro, apertando o volante com força, ele meio que rosna ao confessar. - Detesto te ver na mão daqueles homens doentios...
- Uma vez puta, pra sempre puta. Preciso me sustentar e, pelo que sei, vc não vai fazer isso por mim.
- Por vc, faria qualquer coisa. - Seus olhos melancólicos estão em mim. Recosto-me ao banco do carona e não deixo de me perguntar porque tanta vontade em me ajudar. Sou uma estranha. Uma estranha que quase lhe dera um filho, mas uma estranha. - Não é não. - Discorda ele, num lamento. O carro está em movimento quando ele pensa alto, olhando para o retrovisor e murmura. - Melhor que pense assim.
- Vc tá me escondendo alguma coisa! - Exalto-me quando ele dá de ombros, num desleixo. - Vc tá me escondendo alguma coisa!? - Pergunto, desconfiada. Percebendo que ele me evita e só tem olhos para a estrada, jogo uma caixa de pasta de dente, que retiro da mochila, contra seu ombro direito. Amo o jeito como ele ri. Seu Pomo-de-Adão sobe e desce e as covinhas....aaah! As covinhas! - Fala comigo, garoto!!!
- Adessa, cala a boca. Cala. - Indignada, agarro-me à mochila e olho para a estrada. Vejo um outdoor passar por mim. Nele, a propaganda de uma marca conhecida de café, na caneca, em uma das mãos da modelo que usa somente uma calcinha e uma mini blusa. Penso que, se eu não conseguir voltar ao meu antigo trabalho, poderia tentar a carreira de modelo. Mas...com esse rosto??? - Vc é linda! De qualquer jeito.
- Grrr...não adianta pedir pra vc parar de me ouvir o tempo todo, né!? E não! Eu não sou linda e, principalmente, não 'estou' linda! Estou um monstro. - Choramingo ao me olhar no espelhinho do quebra-sol do carro. - Um monstro criado por outro monstro. - Murcho no banco. Aperto um botão. O vidro desce, lentamente. O carro é antigo, mas tem botão para vidro elétrico. Que badalo!
Ele respeita meu silêncio até que eu, de súbito, jogo meu tronco para fora do carro e ele grita de pavor, tirando uma das mãos do volante e agarrando-me pela saia do vestido.
- Não vou pular, seu bobo! Só quero sentir o vento em meu rosto. Estive presa por tanto tempo... - Falo alto com meus cabelos obstruindo minha visão. - Preciso respirar todo o ar da Terra pra poder voltar ao normal. Melhor! Eu nunca fui normal! - Rio, erguendo meus braços, ajoelhada no assento com metade do tronco para fora do carro, o vento por entre os meus dedos, seu riso. Seus olhos certamente perceberam minhas coxas e o que está abaixo da saia do meu vestido. - E NEM QUERO SER! - Declaro, aos gritos, ao sol em meu rosto.
Por que ele ainda não largou a barra do meu vestido se sabe que não vou pular? Precaução ou desejo? Medo, cuidado ou vontade de me tocar?
- APOSTO QUE OUVIU, SEU IDIOTA!
- Imbecil. - Grita ele de dentro do carro em movimento. - Volta! Vc pode cair! É por precaução que estou segurando sua roupa. PRE-CAU-ÇÃO! ENTENDEU!?
- SIIIM! NÃO SOU SURDAAAH! - Volta ao banco, satisfeita. Sei que, ao menos, ele olhou minha bunda. Isso é tão infantil!!! Mas me dá uma super mega vontade em voltar a viver. Ele está aqui, do meu lado e estamos indo para algum lugar onde, talvez, ele fique comigo. - Enzo!? - Olho para ele que faz uma careta ao ouvir o apelido que acabo de lhe dar. Era o nome de nosso filho. Será que ele se esqueceu? Como eu me lembrei!? Por que a estranha sensação de que devo me lembrar de alguma coisa!? - Vc vai ficar comigo na tal casa de seu amigo?
- Uh-huh...- Responde ele, mordiscando o canto da boca. Em Linguagem não-verbal, isso indica ansiedade e desejo sexual intenso. Assisto a um canal no Youtube onde o psicanalista e cientista comportamental esculacha em seus vídeos super interessantes. - Pode significar também coceira nos lábios. Já pensou nisso ou vai perguntar ao seu 'mega power' cientista comportamental!?
- Vc estraga tudo. Não posso sonhar!? - Ele morde novamente o canto da boca. Volto a sentir que estou viva, juntando minhas coxas, tentando não despertar meu lado 'puta'. Abraço a mochila, apertando-a contra meus seios ainda doloridos. Uma corrente elétrica percorre meu corpo que volta a acordar. - Escuta! - Ergo os braços e faço um coque desajeitado no topo da cabeça enquanto pergunto. - Existe algum antídoto contra a porcaria do seu dom telepático ou vou ter que pensar em não pensar o tempo todo!? - Novamente o riso pelo qual eu daria um braço. Inspiro e expiro aliviada por estar aqui, com ele, o vento, as ondas do mar logo à minha direita. É tudo tão perfeito. Se eu não estivesse tão estragada por dentro, pensaria em transar com ele. - PARA DE ME OLHAR ASSIM! SOU SINCERA, UÉ!? - Ele abana a cabeça e não me olha. - E ME CONTA LOGO SE TEM ANTÍDOTO OU NÃO! - Enrubesço enquanto aguardo sua resposta. - Vai! Fala, garoto! - Eu acho que ele já me disse algo sobre isso e eu...eu me esqueci. Eu me esqueci!?
- Seus dedinhos dos pés se movem quanto está envergonhada. Isso é fofo, como vc mesma diria. - Exalo profundamente, imaginando que ele me observa a ponto de conhecer meus hábitos e manias. "Se eu tocar nessa boca perfeita, vc vai me empurrar ou vai me dar um beijo?". Atordoado, ele ordena. - LIGA O RÁDIO, ADESSA! LIGA O RÁDIO E ESCUTE MÚSICA EM VOLUME ALTO! ESSE É O ANTÍDOTO! - Envergonhado, ele aponta para o rádio sem olhar para mim! Rindo, eu ligo o rádio e vibro, batendo palminhas como uma foca adestrada.
- Eu já sabia, idiota! Eu sei que apanhei muito, mas não afetou a minha memória. Vc já se esqueceu do nome que eu daria ao nosso...digo...meu filho antes de tudo isso acontecer?
- Não...- Diz ele num lamento. - Enzo. Seria o nosso Enzo. - 'Nosso'? - Sim. Nosso. - Um silêncio fúnebre ameaça se instalar entre nós dois quando, eufórica, grito.
- AMO ESSA MÚSICA!
- "Truly Madly Deeply" do "Savage Garden"!? - Arregalando seus lindos olhos azuis, ele refuta.
- Por que não!? Gosto de músicas! Gosto de músicas e de outras coisas também, Adessa. Antes de ser padre, sou um homem.
- Um homem que não trepa. - Digo sem pensar. Arrependo-me, tapando a boca com a mão. Falo por entre os dedos. - Perdão. Eu não queria...
- Mas disse. Tudo bem. - Exalando profundamente, ele confirma. - É. Eu não "trepo", como vc costuma dizer. Mas...
- Fala! - Abaixo o volume do som do carro e me volto para ele. Fala alguma coisa que me dê esperanças. - Mas...?
- Já tive uma noiva antes de me tornar padre.
- Trepou com ela???
- NÃO! EU NÃO TREPEI!!! - Desviando, em fração de segundos, de um carro na contramão, ele se mostra abalado. Bato a cabeça contra a janela do carona, agora fechada, sem me importar com a dor. Retomo minha posição. Ele volta a falar baixo quando me diz algo que me enfurece ainda mais. - Eu fiz amor com ela.
- Arrrgh! Que meerrrda...
- O que foi? - Seu sorriso é irônico. Sabe que me afetou. - Por que faz isso? Vc não sabe que eu...?
- O quê? - Desviando o olhar da estrada, ele me encara com ardor. - Fala, Adessa. Vc o quê!? - Desconverso, quebrando o clima. - Fala!
- Olha pra frente, garoto!!! - Sorrindo, ele volta seus lindos olhos para a estrada enquanto tento apagar a imagem dele trepando com outra mulher além de mim. - PUTA QUE PARIU! - Com um leve erguer de sobrancelha, ele me reprova, em silêncio. - Putz! - Pigarreio e atuo, afetando tranquilidade. - Vc solta uma dessas e não diz mais nada!? Fala! Por que não se casou com ela!? - Ainda bem. Bem feito pra ela. Posso pensar à vontade porque a música ainda está rolando. Piranha! Ele é meu! Foi feito pra mim!!! SÓ PARA MIM!!! - Que coisa triste, meu Deus. - Minto absurdamente. - O que houve?
- Ela me traiu com outro. Ponto final. - Dando de ombros, ele volta a me olhar. Especificamente para a minha boca que umedeço com a língua. - O que seu especialista em "Linguagem Não Verbal" diria sobre o que acabou de fazer?
- O quê??? - Finjo não saber que ele se refere ao meu hábito de lamber os lábios, muito usado em filmes e em meu trabalho. - Não entendi.
- Vc lambeu os lábios. Isso quer dizer o que, especificamente?
- Que que que...- PORRA! MEU ROSTO ESTÁ QUEIMANDO. ESTOU CORANDO DIANTE DELE. - Que estou com sede! A gente pode parar em algum lugar pra tomar uma água?
- A gente toma em casa. - Manobrando o carro, ele estaciona diante de uma casa rústica revestida por pedras, o telhado colonial, a varanda em madeira e uma esteira num dos cantos da entrada. - Chegamos. - Anuncia ele meio que aguardando minha reação. - Gostou?
De queixo caído, assinto com a cabeça, saindo do carro e como criança que chega ao parque de diversões, corro em direção à casa.
- É como eu imagino minha casa na Itália quando juntar grana suficiente pra sumir daqui e viver em paz... - Penso alto. Ele me escuta e me conduz até o interior da casa que me surpreende ainda mais. Basicamente tudo é em pedra rústica e madeira. Sofás em couro bem no meio da sala sobre um tapete felpudo. Mesinha de Centro rústica onde deixaram, de maneira, aleatória, revistas antigas. Janelas de vidro nos quatro cantos do cômodo. Acima de nossas cabeças, um lustre pendente, de madeira e ferro, com lâmpadas imitando velas acesas. É simplesmente esplêndido!
- Não quer água!? - Diz ele, animado com meu deslumbre. Pulo de um lado para o outro, rodopiando ao redor da sala. - 'Terra chamando Adessa'!
- Uma lareira! Que máximo! - Agachada diante dela, toco no pó que restara das últimas achas de lenha. Meu peito dói. Caio para trás, apoiando-me em meus braços. Ele se ajoelha e ajuda a me sentar, perguntando-me se estou bem. - Sim. - Respondo, angustiada, olhando o pó em minhas mãos. - Não consigo me lembrar do que não me esqueci. Tá aqui dentro. - Levo a mão ao peito e choro. - As cinzas. Por que dói quando me lembro das cinzas? - Abraçada a ele, continuo a chorar e a me perguntar. - Por que dói tanto!? - Ouço-o engolir em seco. Sinto suas mãos em meus cabelos, seu beijo no topo de minha cabeça. - Faz parar. Faz parar. Tá doendo muito! Por que eu sinto que vivi isso em algum momento em minha vida? Eu não consigo me lembrar de nada e não consigo esquecer a dor! FAZ PARAR!
Estamos sentados diante da lareira apagada e tudo em que penso é na dor que as cinzas em minhas mãos me causam.
- Tô ficando louca. - Olho em seus olhos e imploro. - Faz parar.
- Sim. Eu faço. Senta aqui e relaxa. - Deitada sobre o sofá, relaxo meu corpo, embora a mente esteja trabalhando arduamente a fim de perfurar um muro de concreto que não me permite voltar no Tempo. Descobriria o motivo da dor relacionada ao fogo após alguns anos, em outra vida. - Inspira e expira profundamente e ouça, atentamente, a minha voz. - Entrego-me aos seus comandos sem jamais suspeitar de suas intenções. Afinal, ele é o melhor homem que já conhecera nessa vida. Seus olhos me fixam incisivamente e seu indicador toca em um ponto específico em minha testa quando ele, modulando a voz, pergunta. - Adessa, vc me ouve?
- Sim. - Respondo de olhos fechados. - Ouço algumas palavras que parecem pertencer a algum dialeto porque não as reconheço como qualquer outra que já tenha ouvido. Deveria estar em transe, mas arrisco. - Isso é gaélico?
- Vc precisa colaborar, Adessa. - Odeio quando ele me repreende. - Inspire e expire profundamente, relaxando todas as partes de seu corpo.
- Tá. - Estranhamente, relaxo quase que instantaneamente ao ouvir sua voz cantarolando em um dialeto tão antigo quanto minhas poucas lembranças. Sinto-me flutuar sobre o sofá, mas não tenho medo. Confio nele... tipo...completamente. Estou naquele estado entre a vigília e o sono quando murmuro. - Eu tô...
- Vou contar de dez a um e quando vc acordar, não terá nenhuma lembrança de sua vida passada...comigo. Vc entende o que eu digo, Adessa?
- Sim.
- Vc vai se esquecer de tudo o que vivemos no século XVII. Das mortes, das cinzas de meu corpo e de Antoine. Morgana, vc me ouve?
- Sì! Ti sento bene. - Bocejo ao afirmar que o ouço perfeitamente. Antes mesmo de ouvir o número dez e apagar, eu o escuto ordenar que devo me esquecer de tudo o que vivera com Ga'al e os sentimentos que me mantém presa a ele.
- Vc só vai se lembrar de todo o amor que eu te dei e do quanto foi feliz comigo. Só vai sentir a felicidade sem se lembrar do quanto sofreu e do porquê de ter sofrido tanto no final de nossas vidas no século XVII. Vc está me ouvindo, Morgana?
- Sì.
- Esqueça Ragnar ou Ga'al e da vida que tiveram juntos antes da Escuridão tomar conta de tudo. Lembre-se do nosso amor e de tudo o que eu significo para vc. De tudo o que vc significa para mim. Entendeu o que digo, Adessa? Seremos somente vc e eu...
- Sim.
- Ragnar nunca existiu. Esqueça a morte que tivera enquanto Morgana.
Acordo. Estou faminta, deitada em uma cama enorme com lençóis branquinhos cheirando à lavanda. Afofo o travesseiro onde recosto minha cabeça e aprecio o quarto onde ele me hospeda. Simples, rústico e lindo. Uma janela enorme em madeira me deixa ver o mar, logo adiante. Há uma piscina e, à sua esquerda, uma churrasqueira com tijolinhos. Seja lá quem for o dono dessa casa, tem grana. A grama onde pisara ao entrar ontem, foi cortada recentemente e, à direita, consigo ver uma estufa meio que embaçada.
- Putz! Era disso que eu precisava! - Espreguiço-me na cama, sorrindo para o teto. Desvio o olhar para a porta e, logo acima dela, o Crucificado me encara com sua expressão de tristeza. Nunca entendera porque O retratam assim, sempre tão triste, pregado na cruz. Por que não modificam tudo? Por que não esculpem estátuas dele como o 'Jesus' de Mel Gibson em "A Paixão de Cristo"?
Aposto que lucrariam muito mais e curariam muito mais. Não dá para sair de uma depressão, abrindo os olhos ao acordar e ver seu ídolo pregado à cruz, estampando tristeza e fracasso em seu rosto quando Ele venceu a Morte e deixara aos habitantes da Terra uma mensagem que não se apaga. O 'Jesus' que imagino em minha mente jamais seria 'bloqueado' ou 'cancelado' em qualquer rede social.
Mas, se eles preferem repassar a imagem de um homem vencido pela Escuridão, quem sou eu para questioná-los?
- Buongiorno, Vincenzo! - Carrego no sotaque de meu 'Italiano' aprendido em aulas no Youtube. - Come va?
Recostada ao batente da porta da cozinha espetacular, eu o aprecio, sentado à mesa farta com pães, bolos, leite e café. Ele está com a calça de moletom sem camisa. EU DISSE: SEM CAMISA! POR QUÊ??? Que peitoral é esse!? Que pelezinha macia! PUTA QUE PARIU! POSSO TOCAR!? Abanando a cabeça como se estivesse lidando com uma louca sem cura, ele puxa a cadeira para que eu me sente. Há um momento...uma fração de segundos em que nossos corpos ficam muito próximos antes de eu me sentar. Meu coração bate, acelerado. Impulsiva, ponho a mão em seu peito e sinto seu coração palpitar como o meu. Sorrio e, ao me sentar, comento, observando a mesa bem posta.
- Isso é fofo. - Ele ri, tentando não cuspir o pão em sua boca.
- Vc é tão boba. - Diz ele, levando o guardanapo à boca. - Boba e...
- Completa! - Belisco seu braço forte enquanto ele ri e geme de dor. - Boba e...? COMPLETA!
- E chata! Boba e chata! Come o pão. Tá fresquinho. - Murcho enquanto ele parte, com a faca, o pão francês ao meio e faz menção em retirar o miolo. Leva um susto quando eu o alerto:
- Não se atreva a retirar o miolo! Eu amo pão com miolo! - Abocanho o pão com manteiga. Pão branquinho e quentinho, do jeito que eu gosto. - Não preciso ler seus pensamentos para adivinhar o que tá pensando agora. NÃO! EU NÃO VOU ENGORDAR, MEU BEM! Eu pratico esportes.
- Sério? - Uau! Que olhar foi esse!? Tão relaxadamente sexy! - Quais? - Termino de mastigar e tomo um gole de café até parar de ouvir meu coração bater na boca.
- Ué!? Vc não sabe!?
- Deveria!?
- É claro que sim! Vc parece saber tudo de mim. Meus hábitos, manias, o pão branquinho, o café com adoçante, as roupas que estão em minha mala... - Vou falando enquanto belisco um pedaço de bolo porque, além de faminta, estou nervosa. Ridiculamente nervosa. Sei que ele está me olhando e está inquieto, logo, continuo. - Sabe de coisas que eu jamais pensei que saberia. A propósito, quem vestiu esse camisolão do século XV em mim? Eu não me lembro de ter trocado de roupa ontem à noite. Foi vc?
Ainda bem que estou com a boca ocupada, caso contrário, estaria rindo do jeito como ele me olha, procurando, urgentemente, resposta às minhas observações.
- O gato comeu sua língua, Vincenzo!?
- Fui eu, Adessa. - Ele rosna meu nome e, sem desviar o olhar de mim, argumenta. - Eu te vesti. Algum problema?
- Não teria se vc não tivesse que me despir antes, né? - Um gole de café e estou pronta para o golpe final. - Vc me viu nua? Não fique encabulado. Não seria a primeira vez. Lembra de quando me deu um banho naquela noite da festa onde eu fui...?
- Lembro! E não quero falar nisso! Pode ser!?
- Claro. Tá zangado comigo? Por que está inquieto?
- Não estou. - Passando a mão nos cabelos em desalinho, ele bufa e repete. - Não estou. Vc precisa estudar um pouco mais essa coisa de 'Linguagem Não-Verbal". Sabia? - Confronta-me ele, cruzando as mãos debaixo do queixo, apoiando os cotovelos na mesa em madeira. Paro de comer, limpando minha boca com o guardanapo e o encaro, voltando-me para ele, sentada na cadeira. - Quer me perguntar algo mais ou já está satisfeita? - Sinto seu hálito de café. Delicioso. - Fala!
- Nem um pouco! - Apertando meus lábios, solto o ar pelas narinas. Puxo a cadeira e me aproximo ainda mais dele. Ficamos em silêncio, um de frente para o outro e, dessa vez, antes de pensar e dar tempo para que ele arranje uma boa desculpa, eu falo. Arqueando uma das sobrancelhas, deixo minha mágoa sair através de minha boca. - Só vou ficar satisfeita quando vc me disser como soube de tantos detalhes sobre o que faço na boate após o show e sobre meus filmes caseiros e os pornôs. Ontem, no carro, vc me magoou quando narrou, com perfeição, o que fazia antes do meu sequestro. - Ele recua a cabeça e se recosta na cadeira. As mãos continuam cruzadas, agora, sobre a mesa. Há um brilho em seus olhos, quando ele os move ligeiramente. Brilho que não consigo decifrar. Sem me importar, prossigo. - Vc voltou a me assistir na boate, Vincenzo? Vc já viu algum dos meus filmes? Fala! Vc os assistiu pra ver a mulher suja que eu sou? Me viu no palco trepando com aqueles homens pra jogar na minha cara que eu mereci ser estuprada por um demônio devasso!? Foi por isso!? Pra me humilhar!?
- Para, Adessa!
- Vc me trouxe pra cá pra me jogar na cara que sou uma puta e que mereço tudo o que aconteceu!? Que jamais serei amada por alguém como vc!? Um padre santificado, um homem puro, sem pensamentos tortos!?
- PARA!
- NÃO QUERO! - Ergo-me da cadeira, chutando-a. Em pé, aos prantos, pergunto. - Foram seus superiores que te obrigaram a me trazer aqui e a me tornar uma mulher digna!? Foi o seu deus que te prometeu um lugarzinho no céu se vc conseguir me converter!? Por que tem vergonha de mim!? Por que não olha pra mim como mulher!? Por que não me deixou onde estava quando me encontrou naquela festa onde eu fui largada pelos homens com quem trepei!? Por que se mete na minha vida se eu não presto!? Por que sumiu da minha vida quando nosso filho morreu!? Como eu fui parar nas mãos daquele verme se eu não o queria em minha vida!? Quem fez a porra do pacto com ele, afinal!? Meu pai ou eu mesma!? Por que eu sinto que te conheço há mais tempo do que parece!? Por que vc não move um músculo de seu rosto!? PORRA! - Inspiro, revirando os olhos. - E eu não consigo me lembrar da forma como eu fiquei presa a Ga'al! Algo me diz que fui eu quem o invocou, mas eu não me lembro disso! MERDA! MERDA! Eu sei que vc já assistiu aos meus vídeos! Eu sei só não me lembro como! MERDA! Desde que vc entrou na minha vida, eu não sei mais quem eu sou!
- Quer que eu saia dela? - Pergunta-me ele, de pé, bem próximo a mim. Posso jurar que há lágrimas em seus olhos, mas estou extremamente irritada com tudo. Inclusive, comigo mesma. - Quer que eu saia de sua vida!? - Desorientada, procuro pela saída da casa, andando, correndo na grama molhada pela chuva fina que cai sobre as árvores enfileiradas, cobertas pelos musgos. Volto a um Tempo onde homens brutos urravam e guerreavam cobertos por peles de animais. De onde vem essa lembrança!? Do meu passado ou de alguma das várias séries vikings que assisto na Netflix!?
- Não vou enlouquecer!
Corro em direção ao mar que parece me chamar. Ouço o som das ondas contra as rochas, sentindo uma pontada em meu peito. Piso na areia fofa e molhada enquanto ele grita por meu nome, logo atrás de mim. Tenho ódio dele. Ódio por me mostrar que não valho nada. Nada para ele. Ódio de mim por concordar com ele.
- Adessa! - Ele me alcança, puxando-me pelo braço enquanto luto para nadar até o horizonte e sumir...para sempre. - Sai da água, por favor. Volta. Vamos conversar.
- Não quero! - Grito fora do mar de onde ele me arrastou. Os pingos da chuva açoitam minhas costas, o vento ruge. - Não toca em mim. - Minhas lágrimas se misturam aos pingos da chuva grossa que ensopa meus cabelos. Minha camisola grudara-se ao meu corpo. Tremendo-me toda, eu o empurro. - Quero ir embora daqui! Quero sumir! Quero morrer e não te ver nunca mais!
- Eu não quero isso! - Grita ele contra o vento. - Quero que viva! Que seja feliz!
- Não posso! - Grito mais alto. - Não dá! Vc estragou tudo!
- Deixa eu consertar! Volta pra casa! Vc vai adoecer! Olha como vc tá tremendo!
Meus seios estão bem visíveis e meus mamilos, túrgidos. O tecido da camisola é fino, logo, mostra meu corpo como se estivesse nua. Debaixo da chuva, ele me escaneia, de cima a baixo e se demora nos seios. Mordiscando o canto da boca, ele se entrega.
- EU SABIA!!! - Gargalho, curvando meu tronco para frente. - PU-TA-QUE-PA-RIU!
Pulo, eufórica, erguendo os braços como uma líder de torcida norte-americana. Não consigo parar de rir de sua expressão atônita. Aponto o indicador para ele e, rindo muito, eu me gabo.
- Sou uma ótima atriz! Bobo! Acha mesmo que eu iria me matar nessa praia!? Nem onda ela tem!!!
Continuo a pular e a festejar de costas para ele.
- Filha da puta...
- Por San Juan Diego! - Giro meu pescoço e, sem enxergar com clareza, sua expressão por conta da chuva intensa, eu o repreendo. - Um palavrão??? Que feio!!! - Rindo de olhos fechados, não percebo quando ele vem em minha direção e me joga contra seu ombro, erguendo-me. - PARA! NÃO TEM GRAÇA! - Minto. Estou amando ser carregada por ele. - ME TIRA DAQUI OU VAI SE ARREPENDER!
- Que meda! - Diz ele, refazendo o mesmo percurso de volta à casa. - Pode bater à vontade, menininha mimada! - Grita ele enquanto eu soco suas costas definidas por músculos super durinhos. Eu os estudara na Faculdade, mas tocar os dele é muiiiito melhor. - Para de me alisar, Adessa. É melhor parar...- Num tom de aviso, ele repete. - É melhor parar.
- Por quê? - Molhando o chão da sala com nossas roupas ensopadas, meio que rindo, meio que excitada, não consigo tirar os olhos de seu tórax definido, agora, molhadinho. - Vai me bater?
- Para de lamber sua boca, por favor. Esse truquezinho não cola comigo!
- Aonde vai!?
Alucinado, ele anda pelos corredores da casa e eu o sigo, louca por um beijo seu.
- Para! Fala comigo! - O ruído da chuva no telhado me faz lembrar de algo que me une a ele, profundamente. - Por que tá mexendo aí!? Olha pra mim!!! - Num ímpeto de paixão, retiro o camisolão pela cabeça e exponho meu corpo nu enquanto imploro, num sussurro. - Para de remexer esse armário e olha pra mim...por favor. Eu preciso de vc.
- Tô vendo! - Vocifera ele, com as mãos ocupadas com material de primeiros socorros, apontando, com seu queixo, diretamente para minha vagina. Sem compreender seu olhar assustado, sentindo-me úmida por dentro, fico ali, parada, nua, diante dele, quando eu o ouço me repreender como um pai o faria à sua filhinha desastrada. - Adessa! Olha o que vc fez! Tá sangrando! Vc rompeu algum ponto interno em seu êxtase infantil!
- Hein!?
Não acredito...
Olho para baixo e, o que eu pensava ser meu gozo é sangue. Sangue descendo por minhas coxas, manchando o camisolão branco que uso para me cobrir. Sangue de minhas entranhas ainda feridas. Olho para o espelho e encaro a verdade. Não sou mais a puta desejada por todos. Sou um monstro. Eu me odeio por pensar que teria qualquer chance com ele. Sou um monstro retalhado por dentro e por fora.
- Eu vou cuidar de vc, meu anjo.
Um beijo casto em meu rosto e me permito mergulhar na banheira onde ele me acomoda, com cuidado e carinho. O mesmo carinho que ele devota aos doentes de quem cuida ou dos exorcizados que já deve ter salvo.
- Vc é boba, Adessa. Boba, burra e linda. - Sussurra ele com uma toalhinha de rosto na mão. Há velas acesas em todos os cantos do banheiro. Inclusive, sobre a banheira em cobre onde estou imersa. Espremendo a toalha molhada sobre minha cabeça, ele ri quando sopro a água que esguicha de minha boca. - Como consegue?
- O quê? - Desanimada, pergunto. - Fazer papel de besta? É fácil. Depois te ensino.
- Como consegue ser tantas em uma só? Como consegue me hipnotizar e me deixar tonto, desorientado feito criança?
"EU!?"
- De tanto tentar, vc vai conseguir.
"De tanto tentar, vc vai conseguir"
Sério!?
Enrubesço.
Baixo a cabeça, guardando minha euforia enquanto ele me limpa e cuida dos meus ferimentos. É estranho ser a mulher puta para tantos homens e ser tão infantil diante do homem que vc ama.
Ele usa das plantas e ervas da estufa para me curar. Eu o vira misturar os componentes dos unguentos sobre a minha pele antes remendada. Eu tomei das poções mágicas que ele me dera de beber a fim de curar o interior do meu corpo, agora, refeito. Perfeito. Não sinto dores físicas nem emocionais. Estamos mais próximos do que nunca, embora eu não o tenha incomodado com minha estranha fascinação por ele. No entanto, basta olhar em seus olhos azuis e uma dorzinha lá no fundo do meu coração me lembra de algo que não quer se apagar, apesar da hipnose realizada no dia das cinzas na lareira.
A mesma lareira acesa que nos aquece, agora, enquanto conversamos sobre músicas, livros e vinhos...
- Já é a terceira taça! - Alerta-me ele, emborcando a garrafa de seu vinho chique que está me deixando tonta. Uma tonteira gostosa que, somente os bons vinhos proporcionam. - Vai acabar falando ou fazendo besteira. - Gargalho, meio que bêbada, esvaziando a quarta taça com o bojo grande e a borda mais fechada. Enooorme! Do tipo que vc pode beber dois litros 'de boas', sem perceber. - Quer ir pra cama?
- Sério!? Vc diz...ca ca cama!? Tipo...cama...eu sozinha ou...?
- Adessa. - Sua voz rouca mencionando meu nome não ameniza em nada a vontade que tenho em, ao menos, lhe dar um beijo. - Não posso.
- Aaah...é! - Ergo as duas sobrancelhas por duas vezes, olhando para o teto, o que o faz rir. - Eles não te deixam. Hmmmm...entendi. Fazer o quê? - Dou de ombros e, com a taça vazia, peço mais. - Só mais um pouco! Por favor! E liga o som porque estou prestes a pensar em bobagens.
- Eu quero ouvir.
- NÃO! - Ergo-me, rindo à toa, cambaleando, agarrando-me aos braços do sofá, alcançando o aparelho de som antigo no lado oposto ao da lareira. - PARA DE RIR DE MIM! - Nunca foi tão difícil falar como agora. As palavras saem entarameladas, porém, ainda assim, eu berro. - EU NÃO SOU UMA CRIANÇA!
- Deixa eu ouvir seus pensamentos. - Porra! Assim não dá! Ele está logo atrás de mim quando sussurra esse pedido em minha orelha direita. Eu preciso me esquecer de que já fui puta. Eu preciso me esquecer de que já fui puta. Eu preciso me esquecer de que já fui puta. - Vc não é puta. Nunca foi. Vc era uma profissional do sexo. Eu fui extremamente grosseiro ao dizer o que disse no carro, no dia em que chegamos e, se quiser saber da verdade, eu assisti aos seus filmes e fui, uma única vez, ao seu show no "California".
- Tá de sacanagem!? - Suspiro enquanto tento sintonizar alguma estação de rádio que preste. Preciso me concentrar nessa simples tarefa, caso contrário, vou pular no pescoço dele e me esquecer de me lembrar de que eu não sou mais a puta que já fui...ou ainda sou. AH! SEI LÁ! - PORRA! EU AMO ESSA MÚSICA!!!
- A mesma que tocou no rádio enquanto estávamos vindo pra cá. Lembra?
- CA-RA-CA! "Truly, Madly, Deeply". É o Universo querendo dizer algo pra gente! Entende??? Vc se liga nisso???
- Vc tá muito bêbada, Adessa. Deixa eu te levar pra cama.
- Pode me chamar de "Dess".
- Dess??? Desde quando te chamam assim!?
- Faz uns...vinte...quinze? NÃO! - Levo a mão à minha cabeça como se isso me fizesse pensar melhor. Os números estão volitando em minha mente e já me esqueci do motivo pelo qual estou calculando. - Minha mãe morreu quando eu tinha 15 anos, logo, há uns...- De súbito, eu o empurro com força. Ele se espanta ao mesmo tempo em que se apoia na parede para não cair sobre o tapete felpudo que me parece bastante atraente visto pelo prisma em que me encontro. Lanço a ele meu olhar furioso e grito, excitada. - PARA DE ME OLHAR ASSIM! EU NÃO CONSIGO CALCULAR COM ESSA MÚSICA E COM VC ME OLHANDO DESSE JEITO, TUDO AO MESMO TEMPO! - Inspiro e expiro e, então, eu o respondo. - Há sete anos. Há sete anos que não me chamam de "Dess".
- Então...- Meu queixo cai à medida em que ele se aproxima, andando, sinuosamente como uma pantera negra prestes a atacar. PU-TA-QUE-PA-RI-UH! - Vc só tem 22 aninhos?
- Tá me zoando ou pe pe pergunta 'de boas'? Preciso respirar!
- Preciso dançar.
- Dançar!? VC??? - Revirando os olhos, ele bufa e repete a velha frase.
- Antes de ser padre, eu sou homem. Já dancei e ainda danço. Meu gosto é um tanto seletivo, como vc diria: "tipo" o seu. Gostamos de boa música. Já reparei isso em vc durante o tempo em que estamos aqui. Durante o tempo em que te vi dançar sozinha.
- Viu!?
- Espiei. Espiava vc dançar na cozinha enquanto cozinhava. No quarto, na praia...de biquini. - Ele revira os olhos uma segunda vez e sorri. - Vc dança muiiito bem!
Eu tô ficando louca ou ele tá flertando comigo??? PORRA! EU NÃO SUPORTO MAIS BANCAR A BOA MOÇA! EU SOU PUTA! Uma puta que quer somente um homem na vida e esse homem está me encarando com desejo em seus olhos fixos nos meus.
- Acho que vou cair se deixar de me apoiar nesse sofá. - Rio meio que sem graça. - Não vou chegar ao quarto.
- Deixa eu te guiar.
- Deixo.
Nossos corpos se encostam. Ele me toma em seus braços. Sua mão está em minha cintura e a outra entre minhas escápulas. Juro que vou morrer se ele me largar agora porque acabo de envolver seu pescoço com meus braços. As mãos soltas, trêmulas, geladas. A música rola e, por incrível que possa parecer, a dançarina perde o ritmo e se atrapalha. É ele quem me guia enquanto dançamos juntinhos uma das músicas mais sexys que já ouvi e dancei. Minto. Nunca a dançara antes. Nem mesmo em meus shows, o que torna esse momento, inesquecível porque eu só dancei - e estou dançando - essa música com ele que se mostra um exímio dançarino.
Deus, se eu estiver dormindo, não me acorda. Quero morrer aqui, em seus braços, inspirando profundamente seu cheirinho de 'maçã verde', a um triz de lamber sua nuca bem definida pelo cabelo recém-cortado. Posso pensar o que quiser? Será que ele não me ouve, de verdade?
- O gato comeu sua língua, Dess? - Sussurra ele, encostando a ponta de seu nariz perfeito em minha nuca com os pelos eriçados. Vai parecer ridículo. Eu sei. Vindo de uma puta, vai parecer ridículo o que estou sentindo agora, mas é real. Estou morrendo de medo de falar ou fazer qualquer coisa que estrague esse momento. Não consigo mover minha boca. Não quero desgrudá-la de sua camisa branca de algodão que cobre seus ombros onde meu queixo cabe com perfeição. Eu sabia que vc foi feito pra mim. Eu sabia! - Dess, fala comigo.
- Não na na não consigo. - Confesso antes de me agarrar ao seu pescoço com mais força e intensidade. Choro feito criança ao sentir suas mãos percorrendo minhas costas, de cima a baixo. Tudo tudo tudo o que imaginei sobre ele desde que o vira pela primeira vez é verdade. Ele me quer. Ele gosta de mim. - Vo vo vo...NÃO RIA!
- Eu gosto de vc. Te amo. - Recuo, desconectando-me dele como se houvesse levado um choque. Ele me olha meio que sem nada entender. - Disse alguma coisa errada?
- Vc jamais disse algo tão perfeito. - Passo minhas mãos em meus cabelos e, nervosamente, faço um coque no topo da cabeça. Fixo meus olhos úmidos nos dele e, morrendo de medo de ser humilhada com um simples 'não', peço, baixinho...
- Me beija.
CONTINUA...