'Dess - Uma História Interessante'

'Dess - Uma História Interessante'
AMO ESCREVER

CAPÍTULO 37 - IMPOTENTE

 



Há dois dias, ela não se alimenta. Não fala. Não chora. Não reage de maneira alguma. Há dois dias, eu choro por ela. Por sua dor mal disfarçada.

Tenho dormido ao seu lado, abraçada a ela que não me abraça. Não sorri. Não conversa.

Durante o sono, ela chama por Gabriel. Ela move os braços como se o quisesse salvar de alguma queda. Ela luta com os punhos fechados contra algo que a assusta e de quem eu tento protegê-la, ajoelhando-me diante do 'Crucificado' sobre o batente da porta, implorando para que Ele me deixe entrar em seus pesadelos e lutar junto a ela. Eu sei contra quem ela luta. Ao menos, imagino. A 'Legião' a deseja. Lúcifer a persegue. Fraca no corpo e na alma, talvez, eles a alcancem...

- Não vou permitir. 

- Ela ainda é forte. Seu corpo se alimenta da Fé.

- Não vejo fé em seus olhos quando ela, raramente, olha pra mim, Vincenzo. Vejo um vazio assustador. 

- Dess, ela é diferente. Fique calma. Ela vai passar por tudo isso. 

- Como pode saber!? Ela é uma criança! Precisa de cuidados! Uma terapia! Qualquer coisa que a traga de volta à vida! A mim!

- O que Antoine pode dizer a uma terapeuta, Dess!? 

- Que o seu melhor amigo morreu!

- E que quem o matou foi um 'anjo caído'!? Isso não faz sentido no mundo em que vivemos, amor! 

- Vincenzo! Olha para mim! - Ordeno às suas costas nuas e suadas. Seguindo-o, protesto. - Estou falando de nossa filha e vc sai assim!? - Um sorriso infantil e, com sua mão, ele tapa minha boca ao cochichar.

- Eu preciso trabalhar, Dess. Em casa, a gente conversa.  

- Não aceito! - Do ringue, ele refuta.

- Aceitando ou não, eu vou trabalhar. - João elogia Matteo no colo de Enrico enquanto puxo uma das cordas laterais do ringue e, num impulso, alcanço o tatame. Erguendo-me, sem jeito, eu o confronto. - Sua filha precisa de ajuda e vc não faz nada!? Ela precisa chorar! Viver sua dor! 

- Dess...

- 'Dess' é o cacete! Vc voltou pra ficar ou pretende partir novamente!? Estamos sendo um peso em sua vida!? - Um olhar sobre meu ombro e ele avisa num sussurro.

- Minha aluna chegou, Dess. Em casa, a gente conversa. 

- Atrapalho alguma coisa? - Ouvindo sua voz aveludada e sedutora, volto-me em sua direção, lentamente. Lentamente, meu ranço por ela vai tomando cada parte da minha mente, criando cenas ilícitas de sexo devasso. - Posso voltar se...

- De maneira alguma. - Diz Vincenzo, receptivo e um tanto inseguro. - Ela já estava de saída.

- 'Ela' não! - Reprovo Vincenzo sem desviar meus olhos de sua nova aluna. Deve ter a minha idade. Engulo em seco e, modulando minha voz, prossigo. - Eu tenho nome e sobrenome. Adessa Rossi, esposa dele. Vincenzo Rossi é o meu marido e seu professor. Não é interessante?

- Muito. - Concorda ela, sorrindo. Belos dentes. Abdômen lipoaspirado. Silicone nos seios. Harmonização facial na testa, cílios postiços. Botox nos lábios carnudos. Olhos escuros e o bendito cabelo ruivo. É sério!? Outra ruiva em nossas vidas!? - Vcs formam um belo casal.

- Seu cabelo é natural?

- Dess!

- Ué! Curiosidade! - Minto. - Adoro essa cor de cabelo! - Minto novamente. Vincenzo gargalha ao observar.

- Ela é assim mesmo. Gosta de conversar. Muito curiosa. Não liga não.

- Sem problemas. - Diz ela caminhando pelo tatame. - Podemos começar? Eu não sei nada de boxe. Absolutamente nada.

- Melhor assim. Sem vícios. Eu te ensino tudo. - Filho da puta!!! Ensina tudo??? - Dess, vc pode descer do ringue? - Recuando, lanço meu olhar de repulsa a Vincenzo e insisto. 

- É natural ou vc pinta?

- Dess!!! 

- Natural. - Responde-me ela enquanto Vincenzo enfaixa suas mãos com bandagens elásticas. Sinto sua raiva pairando no ar quando, enfim, despeço-me. - Ciao, bella.

- Foi um prazer te conhecer.

- Igualmente. - Minto descaradamente. Poderia arrancar fio por fio de seu cabelo 'vermelho intenso puta infernal' agora mesmoUm salto e estou fora do ringue. Um outro olhar de desprezo a Vincenzo e, num rosnado, aviso. - Te espero em casa. - Correndo até a corda lateral, ele chama por meu nome. Paro e volto meu olhar a ele que, ajoelhado, pede.

- Relaxa, Dess. É só uma aluna. Nada vai acontecer. Nada. Tenta ficar em paz.

- E por que eu não ficaria em paz, Vincenzo!? - Zombo, recuando. - Tudo o que vc me passa é paz, tranquilidade e segurança! Eu sempre posso acordar tranquila porque vc me dá a segurança de que sempre estará ao meu lado!

- Dess...- Magoada, com Matteo em meu colo, dou-lhe as costas e me despeço. - Boa aula! Fui!


- Infantil! É o que vc é!

- Foda-se! Era pra vc estar aqui, cuidando de nossa filha! Mas vc prefere fugir e interagir com aquelas vacas no ringue!

- Eu trabalho, porra! - Defende-se Vincenzo largando sua bolsa sobre o tapete felpudo. Que ódio! Ele não faz ideia do trabalho que dá para limpar esse tapete! - Vc também trabalha e eu te respeito!

- Vc já não precisa, Vincenzo! Ou se esqueceu de que é rico!? Será que não tem atraído mais alunas do que alunos exatamente por isso!? 

- Não seja idiota. Eu sou competente. - Refuta Vincenzo, ressentido. - Não tenho culpa se, no meu horário, tem mais alunas do que alunos.

- Pois então, troque de horário com o João e lide somente com homens!

- Pra sustentar teu ciúme doentio!? Nunca!

- Nossa filha precisa de ajuda e vc dando aula pra ruiva 'harmonizada'!?

- 'Harmonizada'!? Que porra é essa!?

- Esquece!!! Vá pro inferno!!! Mas, antes, tira a porra dos teus tênis imundos do meu tapete!!!

- Dess, não fala assim...

- Fica longe, Vincenzo! No momento, eu te odeio!

- Eu dei uma aula, porra! Tá gravado! Quer que eu traga o cartão de memória da câmera!?

- Não se trata disso! - Avançando em minha direção, em meio à sala, ele refuta.

- É exatamente disso que se trata! Vc pensa muito! Imagina muito! Já me viu trepando com ela porque ela é ruiva! Isso é loucura!

- Loucura é vc não ter resolvido aquele probleminha pendente que me persegue em meus sonhos justamente com a porra de uma ruiva!!!

- Do que tá falando!?

- De sua Isabella, Giovanni!!! Da porra de uma louca ruiva podre cheia de algas que quer porque quer o filho que vc roubou dela!!!

- Isso é insano!

- CONCORDO!!! RESOLVA LOGO ISSO!!!

- COMO???

- VC ERA O ANJO AQUI, MEU BEM! MINTO! VC ERA UM PADRE QUE ERA ANJO OU UM ANJO PADRE! FODA-SE! EXORCISMO! TAMBORES XAMÂNICOS! MACUMBA! SEI LÁ! SE VIRA! - Bufando, ele diz.

- Cansei...



- Alguém aqui aceitaria uma xícara de  chá? Dizem que acalma os nervos. - Esclarece Enrico com uma bandeja de prata nas mãos trêmulas. - O de cidreira é uma delícia.

- Pai...- Vincenzo, envergonhado, o abraça enquanto retiro a bandeja de suas mãos a fim de evitar um acidente. - Fica tranquilo. A gente briga, mas, depois, se entende.

- Nem sempre. - Resmungo. Um beijo na bochecha de Enrico e sussurro. - Preciso conversar com vc. 

- Claro. Quando?

- Quando puder. - Respondo sem olhar Vincenzo ao lado de Enrico. Ofendida, aviso. - Vou me deitar. Se puder, Enrico, fale comigo ainda hoje.

- Sim, filha. Me dê alguns minutos e estarei lá. - Do corredor, escuto Enrico orientar Vincenzo com quatro únicas palavras. - Brechas, meu filho. Brechas.

Caminho descalça até o quarto de Antoine. Ela dorme. Sem acordá-la, cuidadosamente, retiro o tablet de seus braços cruzados sobre a barriga. Um toque na tela e sua foto aparece. Minha visão embaça. Lágrimas escorrem pelo meu rosto. Seco a tela do tablet com a barra de meu pijama. Num dos cantos do quarto, encolho-me e choro baixinho diante da 'selfie' onde Antoine e Gabriel, juntos, fazem caretas no último dia em que se viram aqui na Terra. O inesquecível dia do baile. Sem forças, continuo a chorar. Um choro sentido,  silencioso. A porta do quarto se abre. Enfio minha cabeça entre as pernas flexionadas. Impotente, deixo que ele tome o tablet de minhas mãos. Sentando-se ao meu lado, Vincenzo me pede perdão. Ouço seu arquejo de dor assim que a luz da tela se acende iluminando parte do quarto. Abraçando-me com força, ele confessa.

- Não sei como ajudar nossa filha, Dess. Me ensina. - Secando minhas lágrimas, lamento contra seu peito. 

- Eu também não sei. Vamos ter que  aprender juntos.



De volta à sala, à mesa de jantar, Enrico, Vincenzo e eu conversamos sobre Antoine. Faltam poucos minutos para a meia-noite. Esqueço-me do ciúme que me toma, quando me lembro da ruiva do boxe, e me concentro em ajudar minha filha.

- Como o Deus de vcs permite que um 'anjo caído' mate uma criança??? Isso, definitivamente, não faz sentido.

- Não foi assim, filha. 

- Como sabe?

- Meus informantes. - Esclarece Enrico antes de prosseguir. - Lúcifer não tem poder algum sobre nossas vidas, a menos que ofereçamos brechas. A mãe de Gabriel abriu brechas para que o mal fizesse morada em sua mente doentia. Mortalmente ferida pela separação entre o casal, ela cultivava pensamentos de vingança. Lúcifer e seus asseclas a cercavam, dia e noite, insuflando pensamentos destrutivos. Insinuavam que ceder a guarda de Gabriel ao pai seria um insulto à sua posição de mãe. Gabriel, inocente, aceitou o convite da mãe que já havia planejado tudo. Sua vingança seria tirar do pai zeloso, o filho amado. 

- Por que Lúcifer se preocuparia com uma mortal sem importância!?

- Porque seu filho tocou o coração de quem ele quer possuir...- Elucida Enrico num tom sinistro. - Ele percebeu os sentimentos de Antoine e o sofrimento que causaria nela, caso algo acontecesse ao menino. Quanto maior o sofrimento de Antoine, maior sua fraqueza. Logo,  mais fácil de ser atingida. Atacando a mãe, ele atingiu, indiretamente, minha neta. - Apoio meus cotovelos na mesa e, entre interessada e assustada, peço que continue. - Sem pensar nas consequências, com o carro lotado por membros invisíveis da 'Legião', a mãe sorriu antes de jogar o carro contra o poste. Segundos antes do fim, seu instinto materno quis preservar o filho quando fez o volante girar para o lado esquerdo. As mãos de alguns dos seres da 'Legião', pousaram sobre suas mãos, mudando a direção do carro. O choque contra o poste afetou, em cheio, o lado do carona e, como todos já sabem, Gabriel foi o mais prejudicado. Ainda que tenha morrido junto à mãe, ambos se encontram em locais muito distintos. Ele está entre outras crianças, correndo entre a relva fresca, ainda inconsciente do que realmente aconteceu. Pensa estar entre nós. Vive como em um sonho permanente. 

Sua mãe, infelizmente, sofre as dores do corpo físico destroçado pelo choque contra o poste, sem compreender porque ainda não foi socorrida por alguma equipe médica. Sob os castigos de Lúcifer e da 'Legião' que comemoram mais uma vitória, ela grita por Gabriel. A pobre mulher se arrependeu tarde demais.

- Nunca é tarde para a Misericórdia Divina, pai.

- Tem razão, filho. Nunca é tarde. Mas, no momento, ela vai permanecer em sofrimento. Seu arrependimento não vem pelo amor de mãe. Ela se arrepende de não ter afetado a vida do pai de Gabriel como gostaria. 

- Que apodreça no inferno...- Rosno.

- Dess. Vc não é assim. Por favor, tenha compaixão.

- Teria se tivesse morrido sozinha. Mas ela levou um pedaço de minha filha com ela. - Fixando meus olhos nas chamas da lareira, afirmo. - Farei qualquer coisa para trazer esse pedaço de volta. Minha filha não merece sofrer por uma mulher inconsequente, covarde e egoísta. 

- Dess...acorda.

- Por Antoine, literalmente, eu irei ao inferno e voltarei com o coração de merda dessa vaca.

- Gabriel está no céu, filha. Ele não sofre.

- Mas ainda se lembra da mãe e de Antoine. Enquanto a mãe sofrer, o filho sofre. Enquanto Gabriel sofrer, Antoine sofre. Preciso desatar esse nó. Minha filha não vai sofrer por essa vaca estúpida e vingativa. Não mesmo. Preciso de tempo e de paz pra traçar um plano e descer ao inferno. - Tamborilando meus dedos sobre a mesa em vidro, prossigo, meio que inconscientemente. - Lúcifer me deve muito. Nossa ligação é profunda. Eu me odeio por isso. Eu o odeio por isso. Eu vou dar um jeito de acabar com o sofrimento de minha filha mesmo que eu tenha que...- Cerro meus punhos e, sem controle, atinjo a mesa com força. - Eu preciso...

- Dess! Acorda!

- Oi?

- Que ligação é essa!? - Confusa, respondo com outra pergunta.

- Que ligação!? Não entendi!

- O que Lúcifer e vc tem em comum!?

- Nada. - Minto. Ele não me ouviu no hospital? Eu juro que pensei nisso. Ou foi quando ele voltou a casa? - Para de ficar ouvindo o que penso!

- Eu não te ouvi antes, Dess. Mas, agora, eu quero saber de tudo. 

- Não tenho nada pra contar. - Resisto. - 'Alexa', toca alguma coisa! - A burra da    'Alexa' diz não entender o que desejo. - Não olha assim pra mim, Vincenzo! Eu não tenho culpa! Nosso filho não tem culpa! 

- Dess, fica calma! Eu não disse nada! O que nosso filho tem a ver com tudo isso!?

- Nada! - Rosno.

- Filha! - Ergo-me da cadeira e, diante de 'Alexa', eu a xingo. - Vaca! Toca alguma música! - Outra resposta vaga do aparelho e o arremesso contra a parede. Olhando para o que restou dele, desespero-me com a possibilidade de ter de revelar a verdade. Uma verdade da qual não me recordo mais. Ouço os gritos de Vincenzo. Ignorando-o, cato os destroços no chão e os arremesso contra a lareira. Por trás, ele me abraça, com força. Em crise, continuo. - Estúpida! Inútil! Vc não vale nada! Nada!

- Se acalma, Dess. - Sussurra-me ele. Paro de me mover. Sua voz rouca prossegue. - Nada do que me disser vai nos separar. Vc entende isso? - Modulando o tom de voz, ele repete a pergunta enquanto as labaredas alcançam o topo da lareira. - Vc entende isso? Diga que me entende.

- Entendo. 

- Qual sua ligação com Lúcifer? - Deitada no sofá da varanda, exausta, respondo.

- Não me lembro. Alguém me contou e eu me esqueci. 

- Quem?

- Uma das vozes da minha cabeça. A mais serena e antiga. Foi ela quem tentou realizar o parto de Cassie...- Argumento com o olhar distante. - Seja lá o que ela tenha dito, eu não quero me lembrar. Tem alguma coisa a ver com nosso filho.

- Quando ela te contou e onde? - Indaga-me Vincenzo sentado à minha frente. Enrico, ao seu lado, me observa, atento. - Foi enquanto eu estava no hospital?

- Acho que sim. Foi tudo tão confuso. Eu me apavorei com Matteo em seu colo. Vc no banheiro do antigo apartamento tendo uma convulsão. O sangue em meus pulsos...

- Do que mais se lembra? - Um olhar furioso e revido.

- Do que vc se lembra, Vincenzo!? Vc esteve com ela assim que 'caiu'! - Negando com a cabeça, ele lamenta.

- Minhas memórias estão se apagando à medida em que me torno mais humano. Sei que nos aproximamos...

- E vc me engravidou e me deixou sozinha e, por algum motivo, eu pulei do penhasco.

- Vc não cometeu suicídio.

- Não pode afirmar. Pode? - Levantando-se, de súbito, ele olha para o céu estrelado e murmura. 

- Por que estou me esquecendo? Eu guardava tudo até bem pouco tempo.

- Melhor assim, filho. Humanos não conseguem guardar memórias de múltiplas vidas. É enlouquecedor. - Indignada, questiono.

- Por que eu tenho que guardar então? É justo que eu tenha que conviver com essas personalidades me sufocando o tempo todo?

- Talvez isso tenha um propósito, filha.

- Me enlouquecer, Enrico!? Parabéns! Estão conseguindo! A cada dia, eu me confundo mais e mais com o mundo de vcs e com a Justiça de Seu Deus!

- Não fale assim, filha.

- Como quer que eu fale, Enrico!? Eu não sei como ainda não surtei! Demônios, pedofilia, sequestros, cativeiros, estupros, arcanjos, adrenocromo, 'Legião', Aiden, Eileen, Morgana, Lúcifer, Isabella, a porra de uma mãe vingativa que estraçalhou o coração da minha filha que vem a ser um querubim!? - Grito, histérica. Expirando profundamente, prossigo. - Um querubim que tá sofrendo pra cacete sem que eu possa fazer nada! Vc acha pouco ou quer mais!? Ah! E não nos esqueçamos da vaca da Celeste que vai, certamente, surgir, do nada, a qualquer momento! E ainda vai conseguir te ferrar também, Enrico! Ouça o que eu digo!

Baixando a cabeça, Enrico cruza as mãos entre as pernas abertas. Ele sofre. Arrependida, beijo suas mãos e volto a me sentar no sofá. O clima é tenso. Vincenzo é o primeiro a romper o silêncio ao insistir.

- Que ligação profunda vc tem com aquele verme? Ele é seu pai? 

- Nunca! Não seja estúpido! - Protesto, enojada. - Disso, eu tenho certeza!

- Pode se acalmar e falar comigo sem gritar?

- Tô tentando...- Tonta, solto o ar dos pulmões pela boca. Inspiro e expiro profundamente e, de olhos fechados, tento voltar a um passado muito distante. - Consigo ver a malícia em seu rosto ao me contar uma história sobre alguém que não cheguei a conhecer. Não era nessa época. Era em outra. Talvez, uma avó...ou mãe. Senti a maldade em suas palavras, mas não sei do que falava. Eram coisas terríveis. Ele machucou alguém. Uma mulher pura...- Levando a mão à testa, murmuro. - Isso dói.

- Por que nosso filho foi citado, Dess?

- Não sei. Para de me perguntar. Minha cabeça dói. - Sentada, cruzo minhas pernas e, tapando meus ouvidos com as mãos, decido. - Não quero mais falar sobre isso. Tenho medo de me lembrar. - Por que diabos eu me esqueci? Eu sabia de tudo até bem pouco tempo. - O quê?

- Eu ouvi, Dess...- Diz ele recostado à sacada em madeira. Um longo suspiro e revelo, revoltada. 

- Se vc soubesse como é insuportável saber que vc lê tudo o que penso...

- Aonde vai?

- Deitar com meus filhos. Boa noite, Enrico. Vá pro inferno, Vincenzo.

- Dess!

- Deixa ela, filho. - Antes de entrar no quarto de Antoine, consigo ouvir a voz conciliadora de Enrico apascentar. - Ela sofre muito com tudo isso. Ela é humana, sem controle sobre suas personalidades, com um dom que mais parece com uma maldição e ainda carrega o peso de conhecer a verdade sobre seu passado sombrio, ainda que não se lembre de tudo com exatidão. Ela teme pelo filho e sofre pela filha. Deixa ela, Vincenzo. No final, vai dar tudo certo.

Fecho a porta. Devastada, deito-me com Matteo na cama ao lado da cama de Antoine, onde ela costumava festejar com suas poucas amiguinhas nas 'noites das meninas'. - Beijando a cabecinha de Matteo, imploro num tom baixo.

- Volta pra mim, filha. 



Desperto. Matteo brinca no chão com seus bonecos. A cama de Antoine está vazia. Num desespero, tomo Matteo em meus braços e corro até o nosso quarto. Vincenzo ainda dorme. Percorro o corredor até a sala de estar. 

Vazia. 

Meu desespero aumenta ao constatar que a cozinha e os demais cômodos também estão vazios. Uma ideia bizarra me vem à cabeça.

"E se Antoine for, de fato, um querubim e desistindo de permanecer na Terra, partiu para o céu!?"

- Ela não pode fazer isso comigo! - Grito em meio ao jardim. Matteo se assusta e começa a chorar. Beijo sua bochecha e lhe peço perdão. - Calma, filho. Calma. A gente vai encontrar sua irmã. Ok?

Descalça, sinto a grama úmida sob meus pés. Uma súbita e desagradável sensação de morte me preenche assim que o vento frio toca meu rosto. De pijama, corro pelo vasto quintal. Apesar de distante da praia, sinto o cheiro da maresia.

"Talvez, ela tenha pulado do penhasco e desistido", sussurra-me sua voz sibilante. Sem olhar para trás, agarrada ao meu filho, continuo a correr até a casa na árvore onde Antoine e Gabriel brincaram pela última vez. Cuidadosamente, subo os degraus em madeira e, antes de abrir a porta, escuto a voz doce de Enrico contar uma história. Recostada à parede do lado de fora, sento-me no chão. Matteo me olha, curioso. - Shhh... - Sorrio, beijando sua boquinha. - Ela tá bem, filho. Escuta o vovô.

- O senhor tá inventando só pra eu ficar melhor.

- Não mesmo. Eu não minto, filha. Vc conhece nossas regras. Não conhece?

- Sim. Desculpa, vovô. Continua.

- Quando eu tinha a sua idade, eu perdi um grande amigo. Nós gostávamos de nadar no mar. Ele era destemido. E eu o admirava. 

- Ele sabia que o senhor era um anjo? - Pergunta Antoine com a voz fraca e triste. - Ele era um anjo também?

- Não. Ele não era um anjo e não sabia o que eu era. Éramos muito próximos. Ele amava o Criador e tinha um coração puro. As meninas se ouriçavam todas quando ele passava pela calçada. Ele era bonitão. - Um riso tímido e Antoine, curiosa, pergunta. 

- O que é 'ouriçada', vovô?

- Animadas, assanhadas. Mas ele não ligava pra isso àquela época. Era muito novo. Seu sonho era servir o exército...- Uma pausa e ele, num tom de lamento, conclui. - Mas não conseguiu.

- O que houve?

- Era feriado. Estávamos na areia da praia. De repente, ele olhou para uma imensa rocha próxima ao mar e me perguntou se eu teria coragem de pular lá de cima. Imediatamente, eu disse que não. Eu tinha medo.

- Mas o senhor não morreria...

- Eu não morro. Mas tenho medo. Ora bolas.

- Ele pulou?

- Sim...

- Por que tá triste, vovô?

- Porque ele pulou do topo da rocha e, ao mergulhar no mar, bateu com a cabeça em uma pedra. Sua morte foi instantânea.

- Como a do Gabriel...- Lamenta minha filha.

- Sim. Como a do Gabriel, filha. Eu fiquei tão triste quanto vc. Pensei que nunca mais veria meu grande amigo.

- E o que aconteceu?

- Eu o vi novamente! - Diz ele, entusiasmado. - Sempre que eu posso, eu o vejo!

- Como??? - Indaga Antoine, esperançosa. - Me conta, vovô!!! Eu posso voltar a ver o meu Gabriel??? - "Meu Gabriel", penso sentindo uma pontada no peito. Ela se afeiçoou muito a ele. - Conta!!!

- Claro que pode, Antoine. Quando quiser. Vc é mais forte do que eu. Vc sabe disso?

- Sim. Mas não quero que minha mãe saiba. Ela vai sofrer quando eu tiver que partir. 

- Eu sei, filha. - Sufoco um soluço, tapando minha boca com as mãos para que não me ouçam chorar. - Mas isso ainda vai demorar. Até lá, vc precisa ser forte e terminar a sua tarefa aqui na Terra. Ser feliz, é uma delas. Seus pais precisam de vc, meu anjo. Principalmente, seu maninho. - Arquejo, assustada. Por que 'principalmente' Matteo??? - Sabe como fazer para encontrar seu amiguinho?

- Não. Eu me esqueci.

- Vovô te ensina. Mas, antes, vc precisa me fazer um enorme favor. - Dramatiza Enrico. - Estou terrivelmente 'encrencado'. Preciso de ajuda.

- Que ajuda?

- Experimentar as panquecas que eu preparei. Acho que coloquei sal no lugar do açúcar. Não posso deixar que sua mãe saiba disso. Ele tem andado um pouquinho nervosa. Melhor não mexer com ela. Ela é capaz de arremessar as panquecas na minha cara. Vc me ajuda? - Após dias, ouço a risada de Antoine. Chorando, eu sorrio de felicidade. O sol da manhã incide sobre meus olhos. Não consigo enxergar o vulto em pé, diante de mim. Eu o reconheço pelo cheiro. Sentado ao meu lado, Vincenzo toma Matteo de meus braços e me beija no rosto. Sorrindo, cochicho.

- Ela tá lá dentro...rindo.

- Eu sei. - Cochicha ele em resposta. - Melhor sairmos daqui. Ela vai ficar envergonhada.

- Concordo. Vamos.


O tempo passou e Antoine voltou a ser como antes. Um pouco menos infantil. Um pouco mais introvertida. Ela ainda mantem a foto impressa de Gabriel em cima da cômoda e, todas as noites, ela reza por ele.

"Hoje eu vou te encontrar", diz ela antes de dormir. Sem compreender se esses encontros são bons ou ruins, deixo fluir. Ao menos, ela está aqui, entre nós, de volta ao colégio e às suas atividades. Após a morte de Gabriel, Antoine passou a pintar quadros. Seu talento é imenso. Paisagens, sentimentos, pessoas. Há um quarto somente para seu novo 'hobby' onde ela prefere permanecer sozinha.

Cassie e sua barriga arredondada posam para Antoine. Deitada em um divã acolchoado, Cassie tagarela sobre o que ainda falta para o enxoval. Inquieta, ela pergunta se já pode se levantar.

- Preciso ir ao banheiro. - Cochicha ela, aos risos. Aproximando-se de Antoine, ela tenta ver a obra na tela. Arrastando o cavalete, Antoine a impede. - Por que não, pirralha!? - Num tom soturno, ela responde.

- Ainda não terminei. Vá ao banheiro e, quando voltar, eu te mostro.

- Sim, senhora. - Uma gargalhada e ela corre até o banheiro enquanto me aproximo da tela. Levo a mão à boca contendo um grito de horror. Antoine com sua paleta na mão me lança um olhar inquietante ao comentar.

- Melhor rasgar. Ela não vai gostar desse. - O que é isso, filha!? - Pergunto, assustada.

- Eu pinto o que vejo, mãe. - Dando de ombros, ela rasga o que havia pintado e inicia uma nova obra traçando riscos coloridos no papel em branco. Catando, num desespero, o que restou da imagem de Cassie no chão do ateliê, preocupo-me com a frieza da resposta de Antoine. Dentro da lata de lixo, há algo que ainda me faz tremer de pavor. De volta do banheiro, Cassie se joga sobre o divã e, revirando os olhos, indaga, curiosa.

- Já posso ver, 'Da Vinci'? - Sorrindo, Antoine responde. 

- Ainda não. Só mais um pouquinho. - Desapontada, Cassie indaga.

- Mas...não estava pronto!?

- Estava. - Respondo, sem jeito. - Mas ela é perfeccionista. Vai recomeçar.

- Jesus...- Dramática, Cassie joga a cabeça para trás enquanto saio da sala ao avisar.

- Vou preparar um lanche. Já volto.

Agarrada à lata de lixo, choro de nervoso. Tranco a porta do banheiro, em meu quarto. De joelhos, no piso frio, com as mãos trêmulas, vou montando o quebra-cabeças com os pedaços da tela rasgada sobre os ladrilhos. 

- Não não não não! - Recuo assim que encaro a imagem pintada por Antoine. - Meu Deus, não! - Recostada à parede, abraço meus joelhos e murmuro, desolada. - Quando isso vai ter um fim?



- Olha isso!

- Não dá pra ver direito, Dess.

- Qual parte não entendeu, Vincenzo!? - Mostrando-lhe a tela remendada com durex, fixo meu indicador em um ponto específico. Encarando-o, apavorada, pergunto. - Não reconhece essa sombra atrás de Cassie!? Presta atenção, Vincenzo! - Negando com a cabeça, ele resiste. 

- Coisa de criança, Dess. Não significa nada. - Ele tenta me abraçar. Recuo, irritada. Desapontada, eu me excedo e estapeio seu rosto. Peço desculpas e saio do quarto. Ofendido, ele me segue, aos gritos. - De novo, Dess!? Porra! Vc quer sempre brigar por algo!? Nunca está satisfeita!? Estamos bem! Nossa filha está bem! Cassie e o bebê estão bem! Nosso filho está bem! O que vc quer agora, Dess!? O que quer encontrar agora!? Outro problema!? - Revoltada, eu me viro e o refuto.

- Não! Eu quero uma solução, Vincenzo! Uma solução pra porra dessa perseguição dos infernos antes que algo de ruim aconteça a Cassie ou ao bebê! Vc não percebe o que essa ruiva pintada por Antoine deseja!? Não a reconhece, Vincenzo!? Do fundo do seu coração, vc não a reconhece!? Quando vai tomar uma decisão de macho e acabar com tudo isso!?

- Não fala assim comigo. - Rosna ele. - Me respeita.

- Não dá...- Lamento. - Não dá pra respeitar um homem que sabe que sua amante morta vaga pela nossa casa e nos ameaça. Não dá mesmo, Vincenzo. Sinto muito. - Jogando a pintura na lareira da sala, observando o fogo lamber o papel, aviso num tom sombrio. - Se não fizer algo pra afastar essa Isabella de nossas vidas, eu vou me afastar de vc e levo nossos filhos comigo.

- Dess!

- Me solta. - Agarrando-me pelo braço, ele implora. 

- Não faz isso.

- Me solta...agora. - Rosno, fixando meus olhos nos dele. - Já senti tudo por vc, exceto vergonha, Vincenzo. Eu tô com vergonha por sua covardia. - Afastando-se de mim, ele passa as mãos pelos cabelos num ato de nervosismo. Desnorteado, ele diz.

- Eu vou fazer. Me ajuda? Eu preciso de vc pra fazer isso. Já não sei como me comunicar com o 'Outro Lado'. Vc sabe. Me ajuda, Dess. Por favor. - Unindo-me a ele num abraço, sussurro.

- Ajudo. Tem que ser hoje.

- Ok. 

- Hoje, Vincenzo. Aqui, nessa sala. Às três da manhã. 




Todos estão dormindo, exceto Vincenzo e eu. Visto meu camisolão longo com mangas bufantes. Obrigo Vincenzo a vestir sua camisa social branca, mangas longas e um decote em 'V'. Intrigado, ele pergunta o porquê. 

- Vc vai entender. - Estendendo minha mão a ele, eu o convido. - Venha. Já vai começar.

- O que, Dess? - Sinto seu desconforto enquanto caminhamos pelo corredor, em direção à sala. - Dess?

- Um anjo medroso? - Zombo diante das chamas ardentes lambendo as achas em nossa lareira. - Hilário. - Sentando-me sobre o tapete felpudo, eu o puxo pela calça do pijama. Ele se senta ao meu lado, sorrindo. Num tom baixo, aviso. - Não brinque com isso. É coisa séria.

- Não estou brincando. Gosto de ver esse seu lado místico. Me excita...

- Estúpido. - Engulo um riso. - Eu preciso me concentrar. Feche os olhos e cale a boca.

- Sim, mestre. - Um tapa em sua cabeça e volto a adverti-lo.

- Aconteça o que acontecer, termine o que começamos em outra época e, não largue a minha mão.

- Porra. Tá me dando medo. Outra época? É esse o motivo de nossas roupas?

- Sim. Cala a boca. Não estamos sozinhos. - Um riso e ele confirma. 

- Não mesmo. Meu pai tá ali, atrás...

- Puta que pariu. - Resmungo.

- Desculpa, filha. Eu não pude evitar. 

- Sem problema, Enrico. - Num canto sombrio, ele comenta, inibido. 

- Talvez precisem de uma ajudinha. Eu estarei por aqui. Qualquer coisa, é só me chamar.

- Ok. Peça ao seu filho pra se concentrar. Por favor.

- Vincenzo! - Engolindo o riso, Vincenzo  se recompõe mantendo o tronco ereto. De olhos fechados, avisa. 

- Estou pronto. - Das mãos de Enrico, recebo um pequeno crucifixo em madeira. As chamas se refletem em seus olhos preocupados quando Vincenzo pergunta. - Pra que isso? Um exorcismo?

- É bento. - Esclarece Enrico. - Só por precaução. - Recuando, ele nos deseja sorte.

- Obrigada. Vamos precisar. Cuide de nossos filhos...por favor.

- Certamente. - Um olhar repreensivo a Vincenzo e ele ordena. - Concentre-se, filho. Lembre-se de quem vc já foi.

- Ok. - De olhos fechados, ele volta a erguer o tronco, cruzando as pernas. Eu o imito. Inspiro e expiro profundamente e me deixo guiar por meus instintos mais antigos e profundos. Recito palavras de poder de mãos dadas a Vincenzo. Na mão livre, o crucifixo. Repito as palavras num ritmo cada vez mais rápido e intenso até sentir uma forte descarga elétrica percorrer meu corpo e passar ao de Vincenzo que pressiona minha mão, com força. Um tremor no chão e nossos corpos levitam. 



Um vento forte e frio sopra em nossa direção. Meus cabelos esvoaçam. Sinto o receio de Vincenzo, de pé, ao meu lado. Abro os olhos. Deixo escapar um arquejo de espanto. Vincenzo abre seus olhos e, antes de olhar ao seu redor, me encara ao perguntar.

- Vc está bem?

- Não. Olha. - Seus olhos assustados se fixam no castelo à nossa frente ao sussurrar.

- Caralho. Que merda é essa?

- Não solta a minha mão. 

- Onde estamos, Dess? 

- Cacete! Sei lá! Eu me concentrei em Isabella e aqui estamos!

- Viagem no Tempo!? - Sentindo frio, sussurro.

- Tá mais pra 'Universo Paralelo'. Vincenzo, não solta a minha mão. - Peço forçando-o a caminhar, cuidadosamente, sobre a estrada lodosa e escorregadia. Abraçando-me, ele adverte.

- Não estamos sozinhos.

- Eu sei. Continua. 

- Tô tentando. Deveria ter calçado os tênis.

- Vincenzo! Não brinca!

- Esse chão é nojento, Dess. - Cochicha ele. Cochichando, pergunto.

- Tá ouvindo? Vincenzo. Vc ouve? 

- Tá de sacanagem!? Isso é música!? - Subimos a longa escadaria do castelo até chegarmos à varanda. A visão é medonha. Tudo coberto por mofo: do piso às sacadas. Árvores, arbustos ressequidos. Do salão onde Matteo nasceu em um dia ensolarado, vem uma canção triste e, estranhamente, atual. - 'Radiohead'??? 



Uma versão macabra da banda canta 'Creep'. Sem plateia, eles gemem e cantam e nos desnorteiam com seus acordes infernais. 

- Vem! Vamos sair daqui, Dess! - Grita Vincenzo, apavorado. Eu o sigo. Ele para a dois passos dos degraus. Na varanda imunda, ouvimos seu sussurro sofrido. 

- 'I wish i was special.'

- Isabella?

- Giovanni. - Destacando-se do cenário dantesco, ela se mostra perfeita. Bela, altiva, cabelos limpos, soltos ao vento. Um vestido de camponesa medieval ressaltando sua cintura fina, os seios fartos. Um sorriso lascivo e ela vem ao nosso encontro. Parecendo desconhecer a realidade, ela pergunta. - Por que me trocou por ela? Vc a ama? Teu filho está aqui, Giovanni, em meu ventre. Vem comigo, amor. Ainda podemos fugir e formar uma família. Tu me prometestes. Lembras? - Aperto a mão de Vincenzo que, calado, recua. Seu coração acelerado me faz perceber seu arrependimento, sua culpa. - Tu me amas, Giovanni. Ontem mesmo dormimos juntos. - Olhando-me com desprezo, ela ordena. - Deixe que ela vá. Esse é o nosso mundo. - Avançando em minha direção, ela me ameaça com um punhal em sua mão esquerda. Canhota? Sweet também era canhota. - Puttana!

- Solta isso! - Rosna Vincenzo pressionando o pulso de Isabella com sua mão livre. - Eu mandei soltar. 

- Isso dói. - Reclama ela, aos risos. - É assim que tu gostas. Não é?

- Cala-te! 

- Vincenzo! Não solte a minha mão! - Tomado pela fúria, ele a faz largar o punhal e atinge seu belo rosto com um soco. Cuspindo sangue, ela continua a rir. Chamando por seu nome, eu tento trazer meu marido de volta, mas Vincenzo não reage. É Giovanni quem o comanda agora. É Giovanni quem espanca Isabella diante de mim. Um homem completamente diferente daquele que amo. Seus olhos escuros me assustam. Ainda assim, puxando-o pela camisa, imploro. - Para! Vincenzo! Para! Volta, Vincenzo!



- Ele é meu...- Diz ela antes de cambalear, cair e bater com a cabeça em uma pedra pontiaguda. Erguendo os braços, ela chama por seu nome e pede ajuda. - Aiutami...- Segundos antes de cravar o punhal no coração de Isabella, encosto a cruz benta de Enrico no peito de Vincenzo e ordeno.

- Por nossos filhos, Vincenzo! Acorda! - Largando o punhal, desorientado, ele me pergunta. 

- O que eu faço agora, Dess? - Movida pela compaixão, afago seu rosto e, revendo seus olhos azuis, respondo.

- O que deveria ter feito há séculos. Peça perdão. - Recuando, deixo Vincenzo e Isabella a sós. De longe, eu os ouço, comovida.

- Não me deixas morrer aqui, sozinha. Tenho medo.

- Não vou. - Promete Vincenzo. - Vc não está sozinha, Isabella. Eu sempre te amei. Antes de Morgana, eu te amei. Do meu jeito, eu te amei, mas acabou, 'cara mia'. Agora, meu coração pertence a DessPerdão. - Golfando sangue, ela insiste.

- Vc não me ama mais!? Eu não quero viver assim! - De súbito, ela se ergue e corre em direção ao rio ao lado do castelo. Atirando-se na água escura, ela grita. - Sem vc, eu não quero viver! - Puta que pariu. Não dificulta. - 'Ti odio'! - Vincenzo, em terra firme, mantem sua mão presa a de Isabella que luta contra a correnteza e mãos cadavéricas que emergem e se grudam ao seu corpo. Agarrada à cintura de Vincenzo, luto para que ele não caia no rio enquanto o incentivo, aos gritos. 

- Continua! Fala tudo!

- Eu te amo, Isabella. - Declara ele, confuso. - Amo seus cabelos sob a luz do sol. Amo seu riso espontâneo, seu jeito estranho de dançar, seu carinho, suas carícias...- Vincenzo. Já deu. - Te amei, mas acabou. Isabella, vc precisa seguir adiante e nunca mais retornar. - Num esforço hercúleo, ele a retira do rio. Deitada sobre a terra úmida, ela sorri. Sua voz fraca, agradece.

- Eu sempre quis ouvir isso de ti, Giovanni. Grazie, mio amore. - De joelhos, ele murmura.

- Siga em paz, Isabella. Vc sempre vai fazer parte de minhas vidas. - Recuando, resmungo, dando as costas ao casal.

- Ok. Tudo certo. Final feliz. Mas, eu não sou obrigada a ouvir isso. 

- Concordo. - Sufoco um soluço assim que reconheço sua voz. - Um final muito clichê para alguém como vc, meu bem. Precisamos de mais drama.

- Lúcifer!? 

- Dess! - Grita Vincenzo antes de ser empurrado contra o rio e se agarrar a um tronco seco, prestes a se romper. Recuo, em direção a Vincenzo que, sem forças para lutar contra as mãos de corpos que tentam afogá-lo, solta a mão de Isabella. O corpo da ruiva apaixonada é sugado para o fundo da água lamacenta. Sem pestanejar, salto sobre a terra e alcanço os braços de Vincenzo. - Me solta, Dess...

- NUNCA!

- Que lindo...- Ironiza Lúcifer. - Mas, vcs estão em meu reino. Aqui, eu posso tudo, inclusive, matar o traidor. - Quase sem forças, sentindo meus dedos escorregarem pela pele do antebraço de Vincenzo, grito de costas para o maldito.

- Vc é o traidor aqui, Lúcifer. Vc traiu o Seu Criador! Aquele que te amou! Cuspiu no prato em que comeu, seu filho da puta! Invejoso! Covarde! Que o Teu Pai nunca Te perdoe!

- Dess...deixa eu ir. - Pede-me Vincenzo, afundando-se na lama fétida até o pescoço. Horrorizada, ainda vejo seu nariz, boca e os olhos. 

- Aonde vc for, eu vou. - Murmuro sem esperanças. 

- Não. Volta...nossos filhos. - Sua cabeça afunda. Suas mãos soltam meus braços. Minha mão segura seus dedos. Chego a molhar meus cabelos numa última tentativa em puxar Vincenzo de volta. Agachado ao meu lado, Lúcifer zomba de meu esforço. 

- Que pena. O bonitão vai se afogar.

- Maldito...- Rosno. Com metade do meu corpo imerso no rio, ainda estou presa a Vincenzo e ao galho seco. Meus pés fincados nas pedras me dão apoio e equilíbrio. Apavorada, ouço o lamento de dor dos corpos afogados.  Penso em Matteo e Antoine. Escorrego nas pedras. O peso do corpo de Vincenzo me arrasta para longe da margem. Não desisto. O sorriso de Matteo me empresta forças para reagir. Com um braço, prendo  Vincenzo, a mim, pelo pescoço. Com o outro, agarro-me a um tronco, de volta à margem. O tronco se parte ao meio. Lúcifer observa minha luta pela vida, caminhando, lentamente, à beira do rio. - Eu não vou desistir. - Aviso bebendo da água podre. Exausta, prestes a me entregar e me deixar arrastar pela correnteza junto ao homem que amo, pressiono, em uma das mãos, o crucifixo bento e, em pensamento, peço que nos ajudem.

- Ninguém vai te escutar daqui, meu bem. - Antes de afundar, eu o vejo surgir atrás de Lúcifer. 

- Ops! Errou novamente! 

Presa a Vincenzo, movendo minhas pernas, volto a superfície e, mais confiante, eu o vejo chutar as costas de Lúcifer que, surpreendido, perdendo o equilíbrio, cai no mesmo rio e por ele, é arrastado.

Enrico estende-me suas mãos e, num único movimento, nos retira da água lamacenta. O corpo inerte de Vincenzo estirado na terra úmida me faz gritar de pavor. Enrico me afasta dele e, com ternura, avisa

O pior já passou. 

Volto a respirar assim que revejo os lindos olhos azuis do homem que amo, abertos e vívidos. Felizes e sujos, nos abraçamos.

- Pensei que fosse te perder...- Diz ele, emocionado. Choro, ainda em seus braços. Enrico nos observa, em silêncio, por um tempo até sugerir. 

- Melhor sairmos daqui antes que o portal se feche.

- QUE PORTAL???

- Aquele ali. - Enrico aponta seu indicador a um círculo azulado que se fecha, aos poucos.

- Puta que pariu! 

Corremos juntos e atravessamos o círculo que se fecha assim que caímos contra o tapete felpudo e, agora, imundo, de nossa sala de jantar. 

Abraçando Enrico, sussurro.

- Obrigada. Se não fosse por vc...- Ruborizando, ele me corrige com um de seus crucifixos que reluz em suas mãos.

- Se não fosse por Ele, filha. Por Ele.



Abraçados, em nossa banheira com hidromassagem, relaxamos após a sinistra aventura. Vincenzo esfrega minhas costas com uma toalha de rosto umedecida enquanto tomo vinho no gargalo. Rindo, ele toma a garrafa de minha mão e faz o mesmo. Ajoelho-me entre suas pernas e enxaguo seus cabelos por duas vezes. 
- Tá tão sujo assim?
- Nem me fale...
- Sabe que seus peitos estão na minha cara, né?
- Sei! - Gargalho. - Mas tu tá tão cansado que nem assim vai rolar hoje! 
- Pode ser. Minha vez. - Diz ele ao me fazer sentar entre suas pernas e lavar meus cabelos, massageando meu couro cabeludo. De costas para ele, reviro os olhos de prazer. - Gostando? - Ronrona ele.
- Sim. Muito. - Enxaguando meus cabelos, ele me faz deitar em seu peito. Suas mãos acariciam meus seios e, logo em seguida, me puxam para si. Um forte abraço e ele se declara. 
- Eu te amo. Sabia?
- Sim. Eu também te amo.
- Mais do que nunca, Dess. Eu nunca passei por nada como o que passamos hoje. Nem enquanto era um anjo. Foi surreal. Vc salvou a minha vida, amor.
- E vc, a minha. - Eletrizado, ele prossegue.
- Eu digo 'literalmente', Dess. Eu me afogaria em um rio no mundo dos mortos. O que poderia ter acontecido se vc não tivesse lutado por mim!? - Dois longos goles do vinho no gargalo e respondo.
- Eu jamais desistiria de lutar por vc. Morreríamos juntos.
- Dess! - Exulta ele tomando de mim a garrafa. - Vc entende o que eu digo!?
- Vincenzo, para de falar. Por favor. - Encolho-me e, abraçando meus joelhos, aos prantos, imploro. - Eu não quero mais pensar nisso. - Em silêncio, ele me abraça forte e me pede perdão. - Não precisa. Eu só quero me esquecer de tudo e voltar a viver em paz.
- Nós iremos, Dess. Eu prometo. - De volta ao seu peito, com o corpo coberto por espumas, relaxo. - Daqui por diante, vai dar tudo certo, amor. - Meus lábios procuram pelos seus. Nosso beijo é longo e repleto de paixão e cumplicidade. Ele lava minhas lágrimas espirrando água em meu rosto. Sorrio. - Estamos livres, Dess. Isso é o que importa.
- Sim. Livres. - Repito erguendo-me da banheira. Cubro-me com minha toalha e, tocando com os pés o piso do banheiro,  em porcelanato imitando ladrilho hidráulico, eu o convido a se deitar. Ele se ergue da banheira. Eu enxugo, pacientemente, seu corpo, beijando sua boca. - Tá frio, né?
- Sim. Esfriou. De repente. - Concorda ele cobrindo-se com seu roupão. Antes de vestir o meu, 'Alexa' desperta sem comando. Assustados, ouvimos sua voz metálica anunciar.
"Tocando 'Creep' de 'Radioheads'."  
Arremessando a garrafa de vinho vazia contra 'Alexa', Vincenzo se descontrola ao gritar.
- Chega! Acabou! Aqui, vc não pisa nunca mais Isabella! Em nome do Criador, eu te expulso! - Abraçando-o com força, eu sussurro.
- Calma, amor. Ela não tá aqui. Já passou. Foi uma coincidência. Ok? Acabou. Confia em mim. Vamos deitar?
- Vamos. Eu só quero que esse dia termine bem.
Debaixo do edredom, concordo.
- Somos dois.
- Tem certeza de que ela...?
- Absoluta. Ela não está mais entre nós. - Percebendo que ele adormeceu, concluo, sentindo um aperto no peito. - Ela não...

- Não é certo! Não é justo com ele, Antoine!
- Mas, mãe...
- Não. Não vem com esse 'mas, mãe'! Vc, mais do que eu, sabe o que é certo e o que é errado. Manter seu amigo morto entre dois mundos é mais do que errado. É injusto e cruel. - Ajoelhando-me diante dela, olho em seus olhos e imploro. - Liberta ele, filha. Eu sei que dói muito se separar de quem a gente ama, mas, não é certo manter Gabriel entre dois mundos quando ele precisa seguir adiante pra ser feliz. Vc não o ama!? Não quer que ele seja feliz!? Ele já não sofreu o suficiente, filha!? - Confusa, ela chora e confessa.
- Eu não sei o que fazer, mãe. Ele sente falta do pai dele. Ele me pede pra procurar pelo pai dele e eu não consigo ajudar. Fico triste porque ele tá triste.
- Ok. Se vc não sabe. Eu sei o que fazer. - Refuto. - Vc é um anjo, filha. Mais do que um anjo. Não está acostumada às dores do corpo físico como eu estou. Se eu te disser que ele precisa seguir adiante para ser feliz, vc vai acreditar em mim e libertá-lo de seu domínio?
- Eu tenho medo de nunca mais ver meu grande amigo...
- Isso nunca vai acontecer. Somos eternos, filha. Somos eternos. Liberta Gabriel. Ele tem perambulado pelos corredores de nossa casa à procura de seu pai amado. Apesar de ser uma alma de luz, ele se vê obrigado a resgatar a mãe sofrida que ainda se encontra nas trevas. Vc acha isso justo? 
- Não...- Lamenta Antoine, aos prantos. - Eu só queria...
- Vc o queria por perto, filha. Mas, se ele estiver por perto, ele não vai alcançar a Luz. A Paz que ele merece. Vc entende isso?
- Sim. Como vc sabe disso, mamãe?
- Não sei como sei. Só sei que sei. Sei que te amo mais do que a mim mesma e te ver errar me dá medo, filha. Vc é muito mais do que eu. Do que seu pai. Do que seu avô. Vc é pura Luz, filha. Liberta Gabriel e, quando quiserem se encontrar, que seja em um outro mundo. Um mundo bem melhor do que onde vivemos. Nosso planeta é nocivo, filha. Vc já deve ter sentido isso.
- Sim. Vc tem razão, mãe. Me ajuda. Eu não quero me separar dele.
- Não precisa. "Não corra atrás de borboletas. Cuida do teu jardim para que elas venham até vc". - Um instante de silêncio e rimos juntas. 
- De onde vc tirou isso, mãe!?
- Sei lá! Li em algum lugar, achei bonito e guardei!
Deitadas sobre o tapete felpudo de seu quarto, rimos até arquejarmos de tristeza. Eu a abraço e, finalmente, reencontro minha Antoine. A filha doce, meiga, cheia de vida e compaixão com quem convivi durante anos. - O que sente, filha?
- Que vc tá certa, mamãe. Preciso libertar meu amigo. Ele é uma borboleta. Se eu cuidar bem do meu jardim, dos meus sentimentos, ele vai voltar, quando puder. Até lá, eu não posso usar dos meus poderes pra forçá-lo a ficar do meu lado.
- É isso, filha. - Beijando sua testa, sentindo-a próxima ao meu coração, repito. - É isso. É exatamente isso, filha. Liberta teu amigo e, quando ele voltar, vcs dois serão ainda mais felizes.
- Te amo, mãe...- Minha voz embarga. Ainda que eu queira dizer o mesmo, eu a aperto contra meu peito e sussurro.
- Também.

Antoine volta a alegrar nossos dias com suas gargalhadas e cenas dramáticas. Vincenzo volta ao seu ringue e à ruiva que me faz inflar as narinas mesmo que eu não a veja. Ele me conta tudo. Desde que vivenciamos a experiência bizarra em algum universo paralelo, ele não me esconde nada. 

Suponho. 

- Ela não tem jeito pra lutar, mas eu preciso incentivá-la. Afinal, é minha aluna.

- Vc poderia passar sua aluna ao João. - Proponho. - Ele precisa da comissão. Acaba de ter o segundo filho.

- Não seja ridícula, Dess. - Diz ele diante de nossos amigos reunidos no último jantar antes do parto de Cassie. A cesárea será amanhã. Liam e Cassie optaram por antecipar o parto a fim de evitarem outra tragédia. À mesa, Liam, Doc, Adele, Antoine, Enrico, Cassie e Vincenzo riem de mim. Matteo fixa seus olhinhos claros e inocentes nos meus enquanto experimenta um pedaço de cenoura crua. - Isso é uma clara demonstração de insegurança que vc não deveria ter depois de tudo o que vivenciamos.

- Do que estão falando? - Pergunta Cassie, feliz e inflada como um balão de festa de aniversário. - Me conta, tia. Que experiência foi essa? Mais uma das suas múltiplas aventuras com seres do 'Outro Lado'?

- Tipo isso...- Desconverso. Não quero que ela se exalte. Prestes a parir, sua pressão sistólica oscila. - Bobagem dele. Eu só queria ajudar o João e sua família.

- Mentira. - Refuta Vincenzo. - Vc tem ciúme da ruiva porque ela te lembra a porra da Isabella que te lembra de Sweet que te faz pensar que eu tive algum envolvimento físico com ela.

- Envolvimento físico? Tipo...Educação Física? - Indaga Antoine, inocentemente. - Não, filha. - Respondo, lançando meu olhar penetrante a Vincenzo. - Não tem nada a ver com Educação Física. Tem a ver com não ter vergonha na cara.

- Dess! Ela é minha aluna!

- Não deveria ser! Vc não precisa disso!

- Se pensar assim, vc também não precisa dar aulas de Dança!

- Vincenzo! - Um tapa em sua cabeça e o refuto. - São coisas absolutamente diferentes uma da outra! Eu ensino jovens a dançar! Não finjo que luto com uma vaca ruiva falsa cheia de silicone e botox na cara!



- Botox...- Repete Vincenzo, aos risos. - Vc cismou com isso. - Exaltada, prossigo.

- Vc não percebeu que ela não tem expressão facial!? Ela não move as sobrancelhas, idiota!

- Eu não olho pra cara dela, Dess!

- Aham!!! Vc olha para o corpo da vaca!!! Confessou!!! - Enfurecida, pressiono a taça de vinho em minha mão. Doc, à minha frente, prevendo o perigo, retira, cuidadosamente, a taça de minha mão e, rindo, comenta.

- Vcs são hilários...

- Ele não vale nada, Doc!

- Ele não mente, meu anjo. Vincenzo só tem olhos para vc. - Arremessando um guardanapo no rosto de Vincenzo, rosno.

- Duvido. 

- Vc sabe que de corações eu entendo...- Alerta-me Doc ao lado de Adele que volta a se embriagar. Talvez, ela queira fugir de algo ou revelar algo. Não sei. Meus olhos se fixam nela enquanto Doc prossegue. - Eu nunca vi um casal brigar tanto quanto vcs e se manterem unidos e felizes por tanto tempo.

- A gente brinca de brigar, Doc. Ela sabe que sou todo dela. De corpo e alma. - Comovida, sussurro.

- Idiota. Cala a boca.

- Vem calar. - Provoca-me ele. Um sorriso cafajeste e me pego arfando. Cassie bate palmas, eufórica. Liam a observa, com uma certa apreensão. Enrico se mantem calado durante o jantar. De vez em quando, ele lança um olhar indecifrável sobre Matteo. Não estou confortável. Há uma densa nuvem sobre nossas cabeças e as únicas pessoas que parecem tranquilas são Antoine e Vincenzo. Será que ele não percebe nada? Ao meu lado, ele me beija na bochecha e sussurra. - Para de pensar tanto. É óbvio que eu sinto.

- Sente o que, papai?

- Que vc é muito 'abelhuda'! - Repreendo Antoine do lado oposto da mesa. - O que já disse sobre...? - Cassie e Antoine completam minha célebre frase em uníssono.

- 'Se meter em conversa de adultos'! - Todos riem, exceto Liam e eu. Adele toma outra taça de vinho. Doc a repreende, discretamente. - Ela bebe porque tá triste, tio Doc. 

- Antoine!!!

- Foi mal...- Diz ela, cobrindo o rosto com o guardanapo. Minha repreensão foi tão severa quanto suas palavras foram verdadeiras. Adele está triste e Antoine percebera sua tristeza desde o início. Vincenzo resmunga um 'desnecessário'. Arrependida, eu a vejo pedir desculpas a Doc. - Eu não queria dizer isso, tio. - Doc a abraça com força e pede para que ela não chore. 

- Não tem problema. Vc disse o que pensava. 

Lançando um olhar de repulsa a Vincenzo, ergo-me da cadeira.

- Desnecessário é vc. - Rosno. Ele ri erguendo os braços na defensiva. Antes de falar algo, eu ordeno. - Fica quieto. - Dando a volta ao redor da longa mesa retangular, ajoelho-me diante de Antoine e lhe peço perdão. 

- Eu não quis gritar, filha. Foi só um susto. 

- Eu sei, mãe. - Choraminga ela, secando suas lágrimas com o guardanapo. Vincenzo transmuta o clima tenso contando piadas sem graça. Enrico colabora com suas risadas hilárias. Ainda agachada diante de Antoine, ouço sua voz embargar ao declarar num tom baixo. - Eu tô nervosa.

- Por que, filha? - Cochichando, ela revela algo impactante. 

- Alguém aqui vai morrer. - Levando a mão ao peito, desequilibro-me e caio de bunda no chão. Antoine vem em meu socorro e meio que me tranquiliza ao informar. - Não vai ser agora, mamãe. Vai levar tempo.

- Como sabe disso, filha?

- Não posso falar. Ela me pediu segredo.

- Ela quem, Antoine!? - Atraindo a atenção de todos, recosto-me à parede e minto. - Tá tudo bem. Eu...eu tenho que resolver um probleminha no colégio de Antoine. Bullying novamente. - Puxando Antoine pelo braço, repito a pergunta num tom de voz baixíssimo. - Ela quem!?

- A vovó.

- Puta...que...pariu. - Escondo meu rosto entre as mãos e reflito. - Não é possível. - Erguendo a cabeça, eu encaro Antoine ao indagar, num nervosismo. - Ela voltou!? Quando vc a viu!? Onde!? - Antes de prosseguir o interrogatório,  Vincenzo me ergue em seus braços e sussurra.

- Disfarça, Dess. Não vamos estragar essa noite. Depois a gente conversa. Ok?

- Me põe no chão, canalha! Vc sabia!? Vc sabia!

- Dess...

- Dança com ela, tio! - Pede Cassie, alheia a tudo. - Joga um flashback no som e termina com essa discussão boba! - Aflita, percebo que todos estão olhando para mim. Ainda nos braços de Vincenzo, controle meu instinto de gritar que não aguento mais tanta pressão todos os dias. Obviamente, ouvindo meus pensamentos, ele sorri e me convida a dançar.

- Vamos dar um jeito nisso também. Juntos. Ok? 

- Ok. - Desanimada, recuso-me a dançar. - Não dá. Não agora. Desculpa, amor.

- Aaaah...- Lamenta Cassie erguendo-se, com dificuldade, da cadeira. Vindo em nossa direção, ela comenta. - Eu gosto tanto de ver vcs dois dançando.

- Ele é muito duro. - Forço um sorriso. - Não dá pra dançar.

- Duro é o meu...- Tapo sua boca com minha mão. Um riso histérico de Cassie e repreendo Vincenzo. - Acho que alguém aqui bebeu demais. - Sorrindo, ele refuta.

- Acho que alguém aqui bebeu 'de menos'. Desde quando 'Adessa Love' se recusa a dançar?

- Para, Vincenzo! Não gostei da insinuação!

- Mas gostou de dançar com a versão mais jovem de Aiden no seu trabalho.  - Argumenta ele, magoado. - Não me pergunte como eu sei. Só sei que sei. - Um olhar a Antoine e ela, erguendo os braços na defensiva, declara.

- Não sei de nada. Não falei nada pra ninguém. 

- Se vc viu, sabe que eu fui, praticamente, forçada a dançar.

- Já ouviu falar na palavra: 'Não. Obrigado'?

- São duas palavras, bastardo. 'Não' e 'Obrigado'!

- Não fuja do assunto!

- Não briguem! - Ordena Antoine. - Olhem as brechas! As brechas!

- Antoine tem razão. - Argumenta Enrico com um olhar de tristeza. - As brechas dão o espaço que o inimigo necessita para entrar em nossas vidas.

- No caso, a 'inimiga'! - Resmungo antes de me jogar contra o chão, impedindo que Cassie bata com a cabeça no piso em madeira. Um súbito desmaio e, segurando sua cabeça entre minhas pernas, percebo sangue na parte inferior de seu vestido. - De novo não!

- Não mesmo! - Grita Liam tomando-a em seus braços. Um ligeiro olhar e ele ordena. - Pegue a bolsa dela no quarto de nosso filho! - Em choque, imobilizada, eu o ouço gritar. - AGORA!

- Ok! - Corro até o quarto do bebê. Estaco diante do berço montado. Afofando o travesseirinho dele, Celeste me lança um olhar maligno. Pensando em recuar, avanço sobre ela e a empurro contra a parede. Minha mão em seu pescoço a estrangula enquanto aviso. - Fica longe deles ou eu te envio pro inferno pra sempre. Entendeu? - De súbito, ela some. Atormentada, procuro pela bolsa que Cassie mantem arrumada há semanas com todas as roupinhas e acessórios para o bebê. Corro até a porta. Antes de atravessar o umbral, alcanço a  estátua em bronze de Arcanjo Miguel pisando na cabeça de Lúcifer. um presente meu a ela, e imploro. - Salve a criança e a Cassie. Por favor.




A estátua de Arcanjo Miguel é a primeira visão de Cassie ao abrir os olhos no quarto da Maternidade. Ainda abatida por ter sido submetida a uma cesárea de emergência onde havia risco de morte tanto para Cassie quanto para o bebê, ela sorri. Extremamente fraca por ter perdido muito sangue durante o parto, ela comemora sua vitória ao segurar seu pequeno filho nos braços. Emocionada, eu choro. 
- Um milagre, Cassie. Mais um milagre em nossas vidas. Por que não me contou sobre os riscos que corria? Eu teria sido mais presente. - Verificando mãos e pés de seu filho, ela o admira ao sussurrar.
- Não se liga nisso, tia. Ele é perfeito. Eu não queria te dar mais trabalho do que já dei.
- Vc é patética...- A voz embargando de felicidade pergunta. - Dez dedinhos nos pés e nas mãos?
- Tudo perfeito, tia. - Sussurra ela, sorrindo. - Eu nunca pensei que poderia ser tão feliz. - Liam a beija na testa. Sinto sua apreensão assim que toco suas mãos e o felicito. 
- Parabéns, papai. Seu filho é lindo. Já tem nome ou ainda vão levar alguns meses pensando no assunto? - Uma gargalhada espontânea e Cassie sente dor nos pontos da cesárea. - É normal. Dói mesmo. - Minto. A dor que ela sente é além do normal. Uma gravidez ectópica com sucesso é absolutamente rara. Normalmente, há lesões nos órgãos internos da mãe. Sem conseguir me conter, deixo Antoine tagarelar sobre as novidades no colégio com Cassie e, próxima a Liam, pergunto. - Por que vc tá assim, Liam? Houve algum problema com Cassie ou com o bebê?
- Não. - Responde-me ele, emocionado. - Milagrosamente, ambos estão perfeitos. Terão de permanecer aqui por alguns dias, mas estão perfeitos. Cassie está se agarrando ao nosso filho com todas as suas forças. Ela nunca mais vai poder ter filhos. Retiraram tudo. Absolutamente todos os órgãos ligados à reprodução. Como ela costumava dizer, antes de engravidar, ela está oca por dentro. 
- E vc tem medo de perder o seu filho?
- Mais do que perder nosso filho, tenho medo de perder a mãe dele. Há forças estranhas no ar, Adessa. Eu sinto.
- Somos dois a sentirmos isso. - Um forte abraço e sussurro. - Nada...ninguém vai tocar em Cassie ou em seu filho. Eu prometo.
- Do que falam? Quero participar. - Queixa-se Cassie com o bebê, em seu berço, ao lado de sua cama. Daqui, quase não o vejo envolvido por almofadas, cabeceiras com enchimento e laterais, lençóis, fronhas, e enfeites decorativos. - Estão me escondendo alguma coisa?
- Não! - Minto. - É vc quem tá escondendo o nome do meu afilhado! Estou esperando há meses!

- Ok. Vou revelar. - Um sorriso pálido e, enfim, seu nome. - É Sean! Significa 'Deus é gracioso'. E Ele não é mesmo!? Eu pensei que nunca seria mãe novamente e Deus nos deu o pequeno 'Sean'.
- Porra, Dess. Vai chorar de novo?
- Vá tomar no...
- Mamãe! Olha o Sean! Ele é ainda muito pequeno pra ouvir palavrões!
- Ok. - Concordo entre lágrimas. - Pelo Sean, eu vou me calar. Agora. - Aviso. - Lá em casa, vc vai ouvir muito mais, Sr. Rossi. 
- Lá em casa, vc pode fazer o que quiser comigo, Dess. O que quiser...
- Putz...- Resmunga Antoine. - Mais safadeza. 


- Puta que pariu...
- O que, mãe!?
- Seu pai...- Suspiro ao volante. 
- O que tem ele!? Já tá vindo!
- Eu sei...- Arquejo enquanto ele caminha pelo estacionamento do hospital em nossa direção. - Ele continua lindo. - Antoine gargalha e concorda.
- Meu pai é um 'pão'!
- 'Pão'!? Essa é antiga, filha! De onde tirou isso!?
- Meu avô. 
- Aaah...seu avô. - Mordo o canto da boca assim que Vincenzo abre a porta do carro e, displicentemente, se joga contra o banco do carona. - O que foi?
- Tá babando...
- Vá à merda! Vc ouviu...!?
- Tudo...
Antoine e Vincenzo riem de mim enquanto manobro o carro e dirijo até a saída do estacionamento. 
- Vc não faz ideia do quanto é bonita, Dess. Deveria se olhar mais no espelho.
- Odeio espelhos. 
- Por que, amor? - Sua mão pousa em minha coxa. Há tanta ternura em suas palavras...- Vc não consegue enxergar sua beleza?
- Não. Espelhos só me dizem coisas ruins. Odeio espelhos.
- As vozes voltaram? - Uma olhadela no retrovisor e observo Antoine digitando em seu tablet, com fones em seus ouvidos. - Dess?
- Elas nunca partiram. - Confesso. - Não sei por quanto tempo vou suportar, Vincenzo. 
- Vamos vencer isso juntos, Dess. - Afirma ele entrelaçando seus dedos à minha direita antes do sinal verde surgir no semáforo acima de nossas cabeças. 




- O que elas te falaram sobre o nosso filho, Dess? Me conta tudo. Eu sou o pai. Tenho direito de saber.
- Não quero falar sobre isso. - Aviso enquanto descasco batatas debaixo da água da torneira da pia da cozinha. Ao meu lado, ele lava as verduras. Procuro não pensar no que ouvira sobre Matteo, mas, em vão, Vincenzo ouve tudo. Todos os meus pensamentos mais escondidos e temidos. - Para! Eu não quero que ouça nada! Eu não quero falar sobre nada! Vamos preparar um almoço simples, num sábado frio e chuvoso, onde todos nós somos felizes e sem problemas. Ok?
- Ok. - Concorda ele, desconfiado. - Uma família feliz e sem problemas, Dess. Como quiser.
Derrubando cadeiras, Matteo invade a cozinha, rindo de algo em suas mãozinhas unidas. Antoine, assustada, vem logo atrás.
- Eu tentei salvar, mãe! Eu tentei!
- Do que tá falando, filha!?
Largo a faca e as batatas e encaro Antoine. Há medo em suas feições. Em silêncio, aguardo Vincenzo, com carinho, abrir as mãos de Matteo. Olhando em seus olhinhos, ele pede. 
- Dá pro papai. Dá?
Vincenzo arqueja assim que as mãos de Matteo se abrem. Recuando, esbarro nos pratos sobre a pia. Alguns caem contra o chão. Sob a luz do sol entrando pela janela, os cacos parecem diamantes. Diamantes espalhados pelo piso em madeira. O horror faz com que eu queira  me ausentar. O grito de Vincenzo chamando por meu nome me puxa de volta à cozinha. 
- É só um pássaro morto, Dess! Um pássaro morto que ele pegou sem querer!
- Não, pai! - Refuta Antoine. - É bem pior do que isso! Eu vi! Ele...! - Ajoelhando-me sobre os cacos, sorrindo, encaro Antoine ao corrigi-la, apertando seus braços com minhas mãos úmidas.
- É só um pássaro morto, filha. Vc não viu o que acha que viu. Vc pensou ter visto. Entendeu? - Coagida, ela concorda.
- Sim, mamãe. 
Correndo em direção a Enrico, ela chora em seu colo. Vincenzo arremessa o pássaro morto pela janela. Lava as mãozinhas de Matteo enquanto permaneço ajoelhada, impactada, sentindo mais dor no coração do que em meus joelhos manchando o chão de vermelho. Enrico me lança um olhar de compaixão e tristeza profunda ao argumentar.
- Eles estavam brincando no jardim. O gato surgiu com o pássaro na boca. Eu tentei impedir que Matteo tocasse no pássaro ainda vivo, cuspido na grama. Antoine tentou reanimar o pássaro. Matteo roubou o pássaro de sua mão e correu. - Um sorriso triste e ele conclui. - Coisa de criança. O pássaro sufocou em suas mãozinhas. Só isso.
- Vovô...- Lamenta Antoine. - Não foi...
- Foi isso, meu anjo. Sua mãe tem razão. Vc não viu o que pensa que viu. Venha. Vamos conversar.
Destruída por dentro, vejo meu filho caminhar até a sala e brincar com seu ursinho predileto. Ao som de sua música predileta, ele ensaia alguns passos, flexionando as pernas fofas. A mesma música que dançamos quase todos os dias.



Vincenzo me diz coisas que não escuto enquanto limpa os ferimentos dos meus joelhos. Há sangue no chão. Sangue. Sangue impuro. Sangue que passa de geração à geração. Sangue de antepassados. Sangue de mãe para filho. Sangue que eu preciso limpar.
De um jeito ou de outro, eu vou limpar seu sangue, filho.
- Eu vou...
- Dess, olha pra mim e esquece esse assunto! Entendeu!? - Ordena-me Vincenzo levando-me em seus braços até o quarto. Seu coração acelerado me diz que ele teme o que eu temo também. - Vamos dar um jeito nisso juntos. Ok? Juntos! Sempre juntos!
- Ok.


Continua...











CAPÍTULO 41 - ATAQUES

  Vincenzo me disse que, se estivermos juntos, nada vai nos destruir. Ele precisa saber o que vi. Precisa conhecer a verdade. Precisa me aju...