'Dess - Uma História Interessante'

'Dess - Uma História Interessante'
AMO ESCREVER

CAPÍTULO 15 - MORGANA - VOLUME I

 





SÉCULO XVII - ITÁLIA

Se eu soubesse que seria assim, não o teria aceitado. Ao me resgatar das mãos imundas do padre Antonio, Ga'al me prometera uma vida repleta de prazeres.

Não enxergo prazer algum em capinar, plantar e colher frutas, verduras e legumes. A terra é fértil. A casa é pequena, porém, encantadora, vista do lado de fora. Por dentro é úmida, fria. O oposto de suas mãos quentes que não se cansam de procurar por meu corpo. Sinto repulsa por seu toque, ainda que ele me satisfaça bastante na cama. Com Ga'al, aprendi a gostar de sexo e a não enxergá-lo como imundície ou castigo.

Ga'al é um bom homem. Bruto, tosco, mas seu coração é bom. Ao menos, costumava ser, antes de conhecer meu temperamento impulsivo, reativo e ambicioso.

Estou exausta de tanto trabalhar e nada receber além de uma vida irritantemente pacata, no campo, longe das festas nos castelos dos mais abastados. 

- É lá que eu desejo estar...- Penso alto, estirada na relva onde a brisa do mar toca meu rosto jovial.





O som das ondas que se chocam contra os rochedos me distrai, logo, não pressinto sua presença sempre ofegante. 

- Pensando em quê?

- No que devo cozinhar hoje. - Minto. - Tire suas mãos imundas de mim.

- Não posso. - Afirma Ga'al, sorrindo, deitado ao meu lado. Seu sorriso ingênuo e sua boca carnuda me fazem arfar. - Não consigo ficar perto de vc sem te tocar.

- Deverias tentar. - Sugiro, erguendo meu tronco numa vã tentativa em me livrar de suas mãos pegajosas. Sorrio enquanto ele se diverte, puxando os cadarços do corpete que cobre parte de meu vestido puído. - Eu não te quero agora, marido.

- Quer sim. Eu sinto. - Sussurra-me ele retirando seus dedos hábeis e úmidos de minhas entranhas. - Diz que me ama, Morgana.


- Não posso. Eu não minto. - Minto. - Gosto muito de vc, mas não te amo. Vc mente.

- Eu não minto, amor. - Defende-se ele contra meus lábios. Seu cheiro másculo de floresta me desperta por dentro. Suas mãos aflitas apalpam meus seios. Mordo seus lábios quentes antes de me deixar beijar por ele. Algo dentro de mim me faz tremer. Uma tremedeira gostosa de se sentir. Ainda sobre mim, ele me questiona. - O que te falta? Por que eu te vejo sempre pensando em algo que não me diz? Eu te amo, Morgana. Jamais amei alguém assim.

- Isso é um problema seu. Não meu. - Refuto. Movendo, aleatoriamente, meus pés e braços, luto contra ele que se mantem sobre mim. Incomodada com sua expressão de encantamento, ordeno. - Saia de cima de mim! Eu não te quero agora! - Minto outra vez. Sem me opor, permito que ele me invada com fúria e devassidão. De olhos fechados, ouço seus gemidos de prazer. Seu urro demorado quando seu líquido quente se espalha pelo interior de minhas coxas e seu queixo descansa em meu ombro. Ga'al fora o primeiro homem de minha vida. Minto. Literalmente, o primeiro homem fora o 'padre porco' a quem fui vendida por meus pais, aos quinze anos. Por algumas moedas de ouro e um cavalo velho, meus pais me deixaram em suas mãos onde conheci o inferno na Terra até encontrar Ga'al que o matara com uma de suas muitas poções mágicas e secretas. Devo minha vida a ele e essa dívida levaria séculos para ser paga. - Posso levantar agora ou ainda devo esperar que me use um pouco mais?

- Por que falas assim de meu amor? Por que nunca te satisfazes comigo? O que te falta?

- Tudo. - Resmungo, erguendo-me da grama fresca. Olho ao redor e inspiro profundamente o ar puro vindo da floresta que se inicia logo atrás de nossa casa. Se conhecesse meu futuro, jamais o trataria com tanta indiferença. Teria aproveitado a chance de viver uma vida nova ao lado de alguém sempre me tratara como uma princesa. No entanto, eu me nego a interpretar os sinais...- Tu me prometestes mais do que isso. Eu mereço mais do que isso. - Indignado, com suas mãos em meus ombros, ele me faz parar de caminhar. Apiedo-me do homem à minha frente quando ouço sua voz embargar.

- O que mais precisas ter além de uma boa casa, comida e um homem que te ama? Morgana! Eu te dei tudo o que possuo!

- Desejo mais! - Provoco. Ele se mantem em meu caminho. Emburrada, eu o empurro com a lateral do meu corpo e continuo a caminhar em direção à nossa casa, levando comigo, um cesto repleto de frutas que colhera em nosso pomar. - Muito mais do que isso! Muito mais do que colher frutas, legumes e hortaliças e ter de vendê-las aos aldeões em uma feira fétida e mal organizada!

- Tenhas um pouco de paciência, meu anjo. Nossa vida vai mudar.

- Quando!? Quando eu estiver velha caquética!? - Rindo de minha infantilidade, ele comenta.

- Meu amor, tu és ainda muito jovem. Aos dezessete, tu começas a viver agora.

- Então, por que eu não sinto isso!? Sinto que envelheço nesse lugar sem experimentar os prazeres da vida!

- Te acalma. Eu vou te levar a uma das festas do vilarejo. - Promete-me ele. Seus olhos claros brilham de contentamento e esperança. Quero beijar sua boca e aceitar o que a vida me oferece, mas não consigo. - Eu te prometo. Vamos dançar juntos. - Sinto-me uma megera ao refutar.

- Duvido. Vc não quer que eu seja vista por todos os nobres. - Giro nos calcanhares enquanto ele me segue, desorientado, tentando me convencer, aos gritos.

- Vou te levar à festa dos aldeões! Gente como nós! Vai ser divertido!

- Para quem!? - Berro sem olhar para trás. Sua voz impregnada pelo desânimo me deixa triste.

- Morgana, meu anjo, me ajuda a te fazer feliz. - Subo um dos degraus da varanda e, de súbito, eu o encaro com raiva em meus olhos.

- Eu quero mais, Ga'al! Estou fedendo a porco! Eu sou jovem, bonita! Mereço mais do que isso! Por que me tirastes das mãos daquele verme se não podes me dar mais do que ele me dava!?

- Por Deus! Ele te violentava! Eu nada me pareço com aquele monstro! 

- E o que tu fazes comigo!? - Com lágrimas nos olhos, ele responde.

- Amor, Morgana. Eu faço amor contigo. Se eu te machuco é porque não sei fazer de outro jeito. Me ensina...

- Não quero! - Dou-lhe as costas.

- Eu matei por tua causa! 

- Ele merecia morrer!

- Para, mulher! - Exalta-se ele logo atrás de mim. - Falas comigo! O que te falta!?

- Dinheiro! - Revolto-me sentindo a vida pulsar ao meu redor. Em tudo o que olho, vejo perfeição. Gosto de morar aqui. Gosto do vento que ruge, do penhasco que me convida a pular... - Eu preciso de dinheiro para comprar um novo vestido! Não me enxergas!? Olha como ando! Há mendigas que se vestem melhor do que eu!

- Por Deus! Não digas isso! Eu trabalho o quanto posso! Sete dias por semana eu planto, colho, cuido dos animais!

- Trabalhe mais! Venda suas poções ao povo que te pede! Venda aos nobres!

- Não posso! Tu sabes o poder que elas têm!

- Exatamente por isso, seu burro! Use de seu poder para obter poder! Eles te pagariam bem por um de seus vidrinhos!

- Nunca! Aquilo é sagrado! É perigoso! Tu o sabes!




- Tolices! Perigoso é andar como ando e ser confundida com uma rampeira qualquer! - Colérica, jogo as frutas sobre a mesa em madeira, no meio da sala, enquanto Ga'al me observa com os olhos semicerrados. - No que estás pensando!? Em como se livrar de mim!? Podes dizer! Sou ingrata!?

- Não. Tu és linda. - Replica ele, sereno. - És muito jovem e tivestes um passado muito pesado. Eu te compreendo, meu amor. Não sei como viveria sem vc...





- Um bom pensamento. Nada é para sempre.

- Não se atreva a me deixar, esposa. - Ameaça-me ele, sorrindo. - Eu não sei o que faria sem vc. Não me teste.

- Solte o meu braço. Dói.

- Fica comigo para sempre?

- Fico. - Minto, sorrindo. 

- Aonde vais?

- Vender o que tu plantastes. - Ajeitando as frutas lavadas em uma cesta, arrepio-me diante de sua imagem sob o batente da porta. Ga'al é um bom homem, mas todos têm o seu limite. Temo ultrapassar o dele. - Posso sair de casa ou tu mesmo vais vender as maçãs? - Rindo, ele diz 'não'. Beijando minha testa, ele me abençoa num sussurro.

- Que o Criador te acompanhe.

- Não acredito n'Ele. - Rosno. - Enquanto estive debaixo da estátua do 'Crucificado', presa ao 'padre porco', Ele nada fez por mim. Volto logo. Pensas no que te disse. Eu preciso de um vestido. Um não! Vários!

Despeço-me enquanto ele me observa, em pé, na varanda. Uma ligeira olhadela e o pego sorrindo. Um daqueles sorrisos tolos típicos de gente apaixonada. Enrubescida, arremesso uma maçã contra sua cabeça. Ele a pega com sua mão ágil. Sua boca carnuda devora a fruta sem que ele desvie os olhos insanos de mim. Enquanto caminho até o vilarejo penso que, com a mesma fúria que Ga'al matara o 'padre porco', por me amar demais, ele seria capaz de atos mais terríveis a fim de se vingar de mim, caso eu o traia de alguma maneira. Sob o sol da Toscana, não poderia supor que encontraria, em um mesmo dia, a Luz e a Escuridão e que ambos modificariam minha vida para sempre.




As ruas estão apinhadas de comerciantes em suas barracas enquanto passeio por entre eles, carregando meu cesto com frutas apetitosas quando, de súbito, alguém me empurra, fazendo-me deixar cair o cesto. Esbravejo ao ver minhas frutas espalhadas no chão imundo. 

- Cazzo! Onde está o pequeno demônio que me derrubou!?

- Aqui. - Alerta-me um homem elegante, trazendo-o pelo braço. Certamente, um nobre. - Ele é um ladrão?

- Nunca o vi antes. 

- Eu só estava com fome, senhora. - Defende-se o menino com uma de minhas maçãs na mão. Um aperto no peito e eu o abraço. 





- Por que não me pedistes? Eu a daria de graça.

- Perdão. - Pede-me ele, mordendo, ruidosamente, a fruta. De boca cheia, ele argumenta. - Depois de ser tratado por todos com um ladrão, eu perdi a fé no ser humano.

- Ele é seu filho?

- Ele se expressa bem, não é? Tão jovem e já sofre tanto...

- Senhorita! - Adverte-me o homem orgulhoso. - Ele é seu filho ou apenas um moleque aproveitador?

- Nem um dos dois, senhor! - Respondo, altiva. - Acabo de conhecer o rapaz e tenho a certeza de que ele não é um moleque, tampouco aproveitador. Existem pessoas aqui, no vilarejo, passando fome enquanto vcs se refestelam em seus banquetes nos castelos, indiferentes à nossa dor.

- Perdão. Eu fui rude. Então, ele não é seu filho. - Conclui ele, abrindo um sorriso conciliador. - Vcs se parecem.

- Não. - Gargalho. - Creio que seria humanamente impossível ter um filho desse tamanho. - Sem desviar os olhos do homem que me encara com altivez, pergunto ao menino. - Quantos anos tem?

- Treze.

- Viu!? - Exulto. - Mesmo que quisesse, eu não poderia ser a mãe dele.

- Não mesmo. A senhorita é muito nova.

- Senhora...- Corrijo-o. - Por favor. Eu preciso ir. - Aviso, catando as maçãs do chão, jogando-as, displicentemente, no cesto que apoio na cintura. - Vem comigo. - Digo ao menino a quem abraço. Uma ligeira reverência e me despeço do homem altivo. - Até breve.



- Espere! Tu só vendes maçãs? - Estranhando sua pergunta, respondo com outra.

- Não. Por quê?

- Porque tenho o interesse em comprá-las.

- Por que as minhas se estamos no meio de uma feira onde existem tantas outras?

- Porque as suas são, definitivamente, as mais belas.


Corando, eu sorrio, enquanto penso no quanto posso lucrar com a venda de minhas maçãs sujas a esse paspalho que supõe ter me encantado. Eu preciso de um vestido novo. Não suporto mais andar com o mesmo. Talvez ele esteja me observando agora mesmo e verificando os rasgos que já cansei de cerzir. Por que ele me olha atentamente como se estivesse lendo o que penso?

- Quanto queres pelas maçãs? Duas moedas de ouro?

- POR UM CESTO DE MAÇÃS??? ESTAIS LOUCO???

- Não. - Responde-me ele contendo um riso. - Só desejo te ajudar e, talvez, tu me ajudes de volta.

- Como??? É muito!!! Não posso aceitar!!! - Minto. Com essa quantia posso comprar o vestido dos meus sonhos!

- Sabes cozinhar?

- Sim. Muito bem. 

- E o seu novo amiguinho tem trabalho? Ou nome? - O menino antecipa-se a falar, surpreendendo-me, positivamente. 

- Antoine, senhor. Às suas ordens. 

- Sabes lidar com cavalos?

- Sim. Gosto muito deles.

- Então, esperem-me aqui, amanhã, nesse mesmo horário.

- Por que devo obedecer as ordens de um estranho!? - Dando um passo em minha direção, o homem curva seu tronco para frente e, tomando uma de minhas mãos, ele a beija em seu dorso, enquanto se apresenta.

- Giovanni, senhora. Duque de Bourbon. Perdoe-me pela indelicadeza.

- Duque!? - Indago, extasiada. - O que um duque poderia querer de mim ou de Antoine!?

- Saberás amanhã...- Diz ele, sorrindo, afastando-se, elegantemente, levando consigo, minha cobiça por dinheiro e poder. - A bela jovem não me disse seu nome. - Abrindo um sorriso malicioso, repito suas palavras.

- Saberás amanhã.





Arrasto Antoine até a nossa casa e imploro a Ga'al que o deixe morar conosco. Apesar de hesitar, no início, Ga'al se afeiçoara a Antoine com extrema rapidez, tratando-o como a um filho. Antoine me cativara logo que o vira se defender com sutileza e inteligência contra as palavras ríspidas vindas de Giovanni. Ainda muito jovem, Antoine mostra-se extremamente sábio ao lidar com o ser humano. Conhece o temperamento selvagem de Ga'al e o trata com respeito e carinho, mostrando-se interessado nas artes da Alquimia e Magia. Ao meu lado, Antoine aprende a plantar e a colher frutas, legumes e verduras e me ensina a cavalgar. Livres e felizes, galopamos juntos pela relva ao redor de nossa casa. Diante do penhasco, ele retrocede e, com receio, me adverte.

- Nunca mais cometa o mesmo erro, senhora.

- Do que falas!? - Grito montada em "Chiara", minha égua, presente de Ga'al no dia de nosso casamento. O vento esvoaça meus cabelos quando vejo Antoine fitar o horizonte antes de me responder.

- O Mal tem muitas faces, já dizia minha mãe. - Ignorando o tom sombrio de suas palavras, desconverso, saltando de Chiara . Ele faz o mesmo. Puxando os cavalos pelos cabrestos, Antoine divaga. - Não vou deixar que aconteça novamente.

- Acontecer o quê?

- Nada. - Diz ele, despertando de seu transe, puxando-me para longe do abismo que nos separa das rochas lá embaixo. 

- O que aconteceu à tua mãe?

- Contraiu a Peste e me deixou sozinho nesse mundo. - Francamente emocionada com sua tristeza, eu o abraço enquanto sussurro.

- Não chores. Já não estás só. Estarei sempre contigo. Sempre.

- Tenho medo de que algo de ruim lhe aconteça, senhora. - Confessa ele, abraçando-me.

- Não me chame de 'senhora'. Poderia ser sua irmã, mas, se te aprouver, podes me chamar de 'mãe'. - Ele recua, com lágrimas nos olhos. Com lágrimas nos meus olhos, insegura, aguardo sua resposta. - Falas algo!

- Não sei o que dizer...mãe.


Em mais uma radiante manhã em nossa pequena fazenda, ansiosa em participar da festa do vinho na aldeia, visto meu melhor vestido. Insatisfeita com sua simplicidade, reclamo com Ga'al que não se  de cansa de me desculpar por ser constantemente irritadiça com ele. Antoine o chama de 'pai', o que deixa Ga'al extremamente feliz. Seu sorriso tímido me encanta, embora nunca o tenha dito a ele. Estamos juntos na varanda de nossa casa quando Ga'al me surpreende, saltando da cerca em madeira e me convida a dançar.

- Não há música, bobão! - Enrubesço diante de seus olhos faiscantes. - Me deixe quieta! Ainda me deves um vestido! 

- Há música sim. Ouça...- Chego a parar de falar e aguçar minha audição e, nada ouvindo, resmungo.

- Parvo...

- Dance com ele, mamãe! - Incentiva-me Antoine, aos risos. 

- Não há música! - Insisto.

- Só feche os olhos, esposa, e não estragues o nosso momento.

- Não existe 'nosso momento'! - Refuto, incomodada por seu olhar incisivo, a boca carnuda e rubra. 

- Existe sim, esposa...


- Não existe. - Insisto, rindo. - Pare de pular feito um macaco ao meu redor. Eu não vou...

- Venha, esposa. Dança comigo e me faça feliz.

- Está chovendo! - Grito, descendo os degraus da varanda, seguindo em sua direção, enfeitiçada por seu sorriso. Debaixo da chuva, pergunto, encantada. - Desde quando vc aprendeu a dançar, marido?

- Não sei. Bastou ver seu sorriso e...

- Cala a boca. - Suspiro. - E me beija...

Vencida, entrego-me ao momento idílico e me deixo levar por Ga'al que me conduz com suas mãos quentes e fortes em minhas costas. Esqueço-me, por um momento, de tudo o que me falta e concentro-me no que tenho. 



Após anos, estou feliz, dançando com meu marido e sendo aplaudida por um filho amado - um grande amigo - que o Criador me concedera.

- Amo seu jeito de ser, esposa. - Confessa-me ele, baixinho. 

- Também te amo, marido. - Enfim, sussurro. Exultando de alegria, Ga'al me ergue em seus braços. Rio, eufórica, enquanto ele me faz girar até que eu fique tonta. De volta ao chão, ele me beija, com a delicadeza de um anjo e me ama, em nossa cama, com suavidade. Dou pulos de alegria quando ele me presenteia com um dos vestidos mais lindos que já vira em minha vida. Agradeço distribuindo beijinhos em seu rosto iluminado enquanto comento. - Deve ter custado uma fortuna.

- Tu vales muito mais...

Enlevada, volto aos seus braços.

Eis um momento que deveria ser eterno, mas...nada dura para sempre. E, então, conhecera, de perto, o homem que me levaria ao fim.









Perco-me de Antoine e Ga'al em meio à multidão embriagada pelo vinho produzido pelas uvas da colheita quando, distraída, esbarro nele. Seus olhos repletos de fúria e lascívia arrepiam os pelos de minha nuca.
- Por que não viestes na manhã seguinte ao nosso encontro como te ordenei!?

- Tire suas mãos sujas de mim ou vais se arrepender, Sr. Duque! Sou mais forte do que poderias supor!

- Não estou acostumado a ser contrariado!

- Pois deverias te acostumar! - Rebato enquanto lhe dou as costas e, à procura de Antoine, caminho pela praça, iluminada por tochas. - Deixa-me em paz. Meu marido está entre nós. Se ele souber que me persegues, será o teu fim. - Usando de ironia, Giovanni, retruca.

- Devo confessar que estou morrendo de medo. - Diante da fogueira no meio da praça, ordeno, colérica.

- Falas logo o que desejas de mim e te afastas!

- Eu preciso de tua ajuda. - Rosna Giovanni com sua mão apertando meu braço. - Não te atrevas a me dar as costas. - Ainda disposta a viver feliz ao lado de Ga'al, refuto, indignada.

- Eu me atrevo a fazer o que eu quiser. Não dependo do senhor e não pretendo depender. Tenho marido e filho. Uma família que me ama e a quem desejo me dedicar até o fim dos meus dias.

- E se eu puder te oferecer algo que ainda não tens e desejas? - Recuo, temendo seu olhar insano, sua respiração ofegante. Os cabelos em desalinho denotam um certo desequilíbrio. Talvez, ele tenha algo que possa me interessar. - Morgana, deixa-me te ajudar.

- Como sabes o meu nome!? Eu não o mencionei!

- Tenho minhas fontes. - Retruca ele, largando meu braço. - Perdão. Eu me exaltei. Tenho meus motivos, mas não me dá o direito de te machucar.

- Tens razão. - Afasto-me dele. Esbarro em Antoine que parece perceber o que nos acontece. Protegendo Antoine com meu próprio corpo, considero. - Meu filho e eu devemos voltar agora...

- Fiquem! - Pede-me ele, angustiado. - Deixem que eu lhes fale sobre os meus planos e, se não os apreciarem, eu nunca mais os torturarei com a minha presença. - Enxergo desespero em seu olhar quando, após segundos em silêncio, eu concordo.

- Podes falar. Meu filho e eu o ouviremos.

- Agora tens um filho? Ele não era velho demais para...?

- Vá direto ao assunto. - Interrompo-o, aflita. Temo que Ga'al nos veja juntos. Desde que ele soubera que seria pai de um filho meu, tornara-se possessivo e ciumento em demasia. - Precisamos voltar ao nosso lar.



- Gostarias de outro trabalho que não esse de vender maçãs? Gostarias de frequentar as festas e chás entre as damas dos mais abastados castelos? - Meus olhos se fixam em seu rosto enquanto me imagino onde sempre desejara estar. A ganância e o orgulho tomam conta de mim, por segundos, enquanto ele prossegue. - Se quiserdes mudar de vida e dar luxo e conforto ao teu filho, tenho-lhe uma proposta. - Penso no filho que está em meu ventre. Em breve, minha barriga irá crescer e não serei tão hábil em colher frutos sob o sol quente. Por que ainda sinto a incômoda sensação de que ele ouve o que penso? - Gostarias de mudar a vida do pequenino que descansa em teu ventre? 

- Co como sabes que...?

- Não importa. - Diz ele, atormentado. - Encontre-me amanhã, nessa praça, e eu a levarei comigo até o meu castelo.

- E o que eu faria lá!? - Pergunto entre assustada e interessada. - Não posso ser vista com outro homem! Meu marido é bastante ciumento e...

- Ele não nos verá.

- Mamãe, não. - Pede-me Antoine, receoso. - Papai não haverá de gostar. - Eu o abraço e, esperançosa, murmuro.

- Tu vens comigo, filho. Talvez consigas trabalho e dinheiro para o teu futuro.

- Prometo muito mais. Teu filho terá estudo, assim como os filhos dos nobres. 

- Não zombes de mim...- Peço, incrédula. - Ele é apenas uma criança. Não prometas o que não puder cumprir.

- Amanhã, Morgana. Amanhã, talvez, tua vida tome um novo rumo. Não me deixes a te esperar. Eu imploro.

- Amanhã. - Prometo, selando nossos destinos.





- Aonde vamos?

- Não te preocupes. - Diz ele, sentado à minha frente, no interior da carruagem confortável e luxuosa. Sorrindo para Antoine, Giovanni graceja. - Tens uma mãe muito desconfiada.

- Ela tem seus motivos, senhor.

- E quais seriam?

- Meu pai a ama muito e tem ciúmes dela. - Voltando o olhar lascivo a mim, Giovanni murmura.

- Eu não o culpo. - Fingindo não entender o sentido de suas palavras, questiono, rispidamente.

- Estamos longe?

- Acabamos de chegar. - Avisa ele, abrindo a graciosa cortina que cobria a janela. Antoine e eu arfamos diante de seu castelo suntuoso. Deslumbrada, não percebo os degraus abaixo de meus pés ao descer da cabine e, se não fosse pela habilidade de Giovanni que me ampara em seus braços, teria caído contra o chão em terra. Mais um de seus gracejos, e eu, estupidamente, ruborizo. - Cuidado, mocinha. Da próxima vez, talvez eu não esteja aqui para te salvar.

- Ponha-me no chão. - Ordeno, insegura. Meu coração bate, violentamente, contra meu peito. Seus lábios delicados estão bem próximos aos meus. Uma súbita e inadequada vontade de provar de seu beijo me vem à mente quando volto a ordenar. - Ponha-me no chão, senhor! Eu não sou uma inválida! Posso andar!

- Em teu estado, deves te poupar de esforços. - Alerta-me ele, levando-me em seu colo até a escadaria diante da entrada de seu castelo cercado por arbustos e flores de diversas cores. Inspiro, pela primeira vez, seu perfume cítrico e encantador. - É de maçã verde. Tenho meu próprio perfumista. E...minha mãe ama flores. Ou melhor, amava até...

- Eu nada disse sobre teu perfume!!! E quanto às flores??? - Indago, desconfiada. De volta ao chão,  Antoine me abraça, cheio de temor em seus lindos olhos claros. Subimos juntos a escadaria até a grande porta em madeira que nos separa do interior do imenso salão vazio. Lustres de cristal pendem do teto, emprestando um ar fantasmagórico ao local. Deveria estar me sentindo extasiada com tanto luxo ao meu redor, mas o que sinto é medo. - Por que sua mãe deixou de gostar de plantas? - Pergunto diante de uma dentre muitas outras portas fechadas. Antes de abri-la, Giovanni, expressando tristeza e amargura em seu semblante, comenta, reticente. 

- Melhor que tu mesma vejas o motivo...



O que vejo, assim que cruzo o batente da porta do quarto da mãe de Giovanni, me faz arquejar de pavor. O quarto é imenso e luxuoso, no entanto, sinto as paredes comprimindo-nos a todos. A luz do sol que entra pela janela aberta não clareia o ambiente pesado e soturno. Respiro com dificuldade, amparada por Antoine que segura minha mão com a sua ao cochichar.

- Mamãe, o que eles fazem aqui?  - Assustada, cochicho outra pergunta.

- Vc os enxerga, filho? - Giovanni, caminha em direção à mulher com os cabelos desgrenhados, prostrada na cama enquanto declara, satisfeito.

- Eu sabia que não me enganaria quanto a vcs dois. Ambos têm um dom que, de certo, ajudaria minha mãezinha a se livrar de seus tormentos. - Beijando a testa da pobre mulher pálida como vela, ele mente. - Estás mais bela do que ontem, mamãe.



- Não caçoes de mim, filho amado. - Resmunga ela, debaixo das cobertas. Antoine demonstra seus sentimentos puros dando um passo à frente enquanto me mantenho distante, observando os vultos ameaçadores que nos cercam. - Quem é o menino? Acaso és um anjo?

- Não, senhora. Meu nome é Antoine. Escreve-se com 'i', mas o som é de 'a'. E sim. Sou de carne e osso. Ah! E cabelo, como diz minha mãe. Ela costuma dizer que poderia vender perucas com os fios de meu cabelo que varre do chão de nossa casa, todos os dias. - Rindo, a pobre mulher tenta erguer o tronco, sem êxito. Giovanni, entusiasmado com o que vê, a ajuda com seus braços, acomodando-a à cabeceira em madeira maciça. Acima de sua cabeça, um diabrete a atormenta com frases destrutivas. Do lado oposto ao do filho, um demônio imenso, sentado em uma poltrona, parece apreciar seu sofrimento. Das paredes, saem almas perdidas clamando por vingança. 



Creio que enlouqueceria de pavor se não fosse pela influência benigna de meu filho que os afasta com sua luz própria, alegrando o ambiente com suas histórias mirabolantes sobre como me conhecera e o quanto gosta de cavalgar nos pastos. 

- A senhora deveria experimentar.

- Achas que ainda posso? Eu amava cavalgar.

- Claro que podes, senhora. Eu a ajudo.

- Gosto de vc, Antoine. Onde está a tua mãe? - Penso em recuar e fugir da escuridão instalada em seu quarto quando Giovanni, como um felino astuto, pula da cama e, com uma das mãos, puxa-me consigo. Então, eu me conecto a ele...



Eu o vejo em minha mente assim que cerro os olhos, cercado por belas mulheres em magníficos vestidos. Há velas por todos os cantos, música, vinho, risos. Asas imensas, brancas e escuras. Gritos, urros de dor, gargalhadas macabras. Seu belo rosto mergulhado nas sombras. Dedos longos e finos, unhas pontiagudas e pretas. Um livro imenso aberto ao meio. Gotas vermelhas mancham o papel amarelado...



- Morgana, acorde! Responda à pergunta!

- Não compreendo...- Murmuro, ainda impactada. Sou desperta pela dor. - Larga o meu braço! Que mania de machucar meu braço!

- Minha mãe te fez uma pergunta! Responda!

- Não me dê ordens! - Refuto, indignada. - Não fale nesse tom comigo! Não sou uma de tuas admiradoras! - Erguendo as sobrancelhas, ele graceja, num tom baixo.

- Ainda não...- Desvio meu olhar de seus olhos penetrantes e, sentindo-me fraca, dirijo-me à mulher cadavérica, respondendo, enfim, à sua pergunta.

- Sim! Eu sou a mãe de Antoine, senhora!

- Mas és ainda tão jovem...

- Comecei cedo. - Retruco, observando o modo como Giovanni gargalha. Em nada se parece com Ga'al, sempre tão tímido. Giovanni gargalha despudoramente como se nada devesse a ninguém. Seu Pomo-de-Adão se move indecentemente enquanto enrubesço. Acabo de ser vista por ele e ainda sinto a incômoda sensação de que ele lera o que acabo de pensar. - Desagradável...- Rosno. 

- O que te incomoda, Morgana?

- Nada, senhora. - Minto, alcançando a mão de Antoine. Um leve puxão e eu o tenho próximo a mim quando aviso. - Precisamos partir. Foi um prazer conhecê-la. - Minto outra vez. Não há prazer algum em estar presa em um quarto sufocante, repleto de seres do outro mundo que vibram na frequência do ódio, vingança e lascívia. - Saia da minha frente, Duque de Bourbon! Antoine e eu ainda temos um longo caminho a percorrer!

- Está chovendo muito!

- Percebi...- Ironizo. - Não somos de papel e, ao contrário de vcs, os nobres, gostamos da chuva e não nos importamos em enfiar nosso pés na lama. Retire esse sorriso de superioridade do rosto, Giovanni.

- Não é de superioridade. É de interesse. - Engulo em seco.

- Não vá. - Pede-me a mulher, num lamento. - Eu gostei tanto do menino. Ele me acalma.

- Existem remédios para isso, senhora. Meu marido tem alguns maravilhosos...- Comento enquanto Giovanni se mantem diante da porta do quarto, impedindo-me de sair. Evitando rir de seu jeito moleque, alerto. - Meu filho não pode permanecer aqui. É muito novo para certos ambientes.

- Fica, Morgana. Converse com ela. - Implora-me Giovanni, de joelhos. Estou entre chutar-lhe os bagos e estapear sua face belíssima quando ele junta as mãos, em prece e declara. - Sei que tu podes salvá-la. Vcs dois podem salvar minha mãe.

- Eu não sou Jesus, Giovanni! Só Ele para salvar a sua mãe! Pare de rir e saia da minha frente! É a última vez que aviso!

- Ficas até a chuva passar, minha querida. Eu me sinto melhor ao lado de vcs. As vozes se calam. Ai...meu cabelos...- Apiedo-me da mãe de Giovanni com chumaços de seus cabelos ralos em suas mãos. - Estou morrendo e tenho medo de ser morta por eles. Eles me odeiam.

- Eles têm os seus motivos, senhora. - Atrevo-me a dizer. Atento às minhas palavras, Giovanni me encara, comovido. -  Muitos estão aqui....

- Continue. - Incentiva-me a mulher. - Por que estão aqui? Estou tão perdida! Filho, minha cabeça dói! Dói muito!

- Já tomastes o teu remédio, mamãe. Aguarda mais um tempo.

- Dóiiii! - Grita a mulher, enlouquecida pela compressão das mãos gigantescas do demônio em suas têmporas. Seja lá o que ela tenha feito em seu passado, não vou assistir a essa cena, sem nada tentar. - Me ajuda! - Inspiro profundamente e, lembrando-me dos ensinamentos de Ga'al sobre Magia, diante do ser diabólico, traço, com um pedaço de carvão catado próximo a lareira, um desenho cabalístico que o afasta, temporariamente da pobre mulher. - Passou...- Comenta ela, aliviada. - O que fizestes?



- Nada de definitivo. Talvez ele volte. Qual o seu nome, senhora? - Questiono, secando o suor de sua testa com um pano úmido e limpo. 

- Celeste. - Por Baco! Um nome celestial a um ser perseguido e torturado pelo mal!? - Ajuda-me, Morgana. Seja minha dama de companhia. Sei que seremos grandes amigas. - Em dúvida, procuro por Antoine que conversa com as almas perdidas.

- O que pensas disso, filho?

- Penso que devemos fazer o bem sempre que possível, mamãe. Gostaria de ajudar. - Cazzo! Eu não quero ficar aqui! - O que diz, mamãe?

- Vcs terão de tudo aqui. - Assegura-me Giovanni. - Um bom salário, ótimas acomodações, estudo, boas refeições. - Um olhar furtivo e ele menciona. - Lindos vestidos...

- Meu marido jamais permitiria...- Penso alto enquanto o ser demoníaco, raivoso, se aproxima de mim. Em pânico, tomo a mão de Antoine e o faço andar ao meu lado, avisando. - Meu filho e eu precisamos partir.

- Por favor! - Suplica Giovanni francamente desesperado, pulando os degraus da escadaria que nos leva ao grande salão. Percebo seus músculos cobertos pela fina camisa branca, seus cabelos sedosos, o perfume inebriante de frutas cítricas...- Ela precisa de ajuda! Fica!

- Por que eu!?

- Porque tu os vê e os domina!

- Como o sabes!?

- Eu te conheço, Morgana!

- Desde quando!? - Questiono, exasperada. Seu sorriso triste se antecipa às palavras, até então, sem sentido para mim.

- Desde que eu 'caí'...






Corremos debaixo da chuva, deixando para trás Giovanni e seu doce sorriso de despedida.

"Eu sei que vais voltar", dissera-me ele antes de largar minha mão e, tomar para si, parte de meu coração. Chegamos à nossa casa ensopados pela chuva. Antoine e eu nos entreolhamos, ansiosos, antes de abrirmos a porta de entrada.

- O que vamos fazer, mamãe? - Cochicha-me ele, preocupado. - Aquela mulher precisa de nossa ajuda. - Longe de pensar no bem-estar de Celeste, imagino-me em vestidos novos, desfilando pelas ruas do vilarejo quando sou bruscamente sacudida ainda na varanda.

- Por onde andastes, esposa!? Por que caminharam debaixo de chuva!? 

- Nós não caminhamos! Corremos! - Elucido, rispidamente. - E isso é jeito de falar comigo!? Tu me assustastes!

- No que pensavas!?

- Na chuva! - Minto, irritada.

- Desculpa, papai. Fomos visitar uma enferma.

- Enferma!? Quem!?

- Uma de tuas possíveis clientes, se tu fostes esperto! - Retruco antes de espirrar. Tomando-me em seus braços, Ga'al resmunga.

 -Vais te resfriar e fazer mal ao nosso filho! Cazzo!

- Ponha-me no chão, estúpido! Para! Não retires minha roupa diante de Antoine! 

- Tolinha. - Diz ele enquanto brinca com os cadarços de meu 'corset'. Evito seu olhar quando ele comenta, baixinho. -  Nada desejo além de te ver seca e debaixo dos lençóis. Precisas descansar.

- Estou grávida. - Refuto, erguendo os braços enquanto ele puxa meu vestido novo e molhado pela cabeça. - E não doente. 

- Estás linda. Ainda mais linda...- Suspira Ga'al observando meu corpo nu antes de cobri-lo com minha camisola velha e esgarçada. - Nosso filho terá a mãe mais linda do vilarejo.

- Aaah. Agora eu meu sinto bem melhor. - Ironizo, passando por ele, seguindo até a cozinha. - Dentre mulheres horrorosas e fedidas, eu sou a mais bela. Muito obrigada. - Resmungo, revirando os olhos, sentada à mesa em madeira. - Por que me olhas assim!? Não posso comer uma maçã!?

- Por que estás inquieta? - Abocanho a fruta, incomodada com seu olhar incisivo. Sentado à minha frente, ele me adverte num tom sombrio. - Nunca traias a minha confiança, esposa. Sou irlandês. Meu sangue é tão quente quanto o teu. Tenho um lado que tu não gostarias de descobrir.

- Que lado? - Questiono, de boca cheia. Prendo a respiração ao ouvir sua resposta.

- Um maligno.


Ga'al não se opõe à ideia de que Antoine trabalhe no castelo do Duque de Bourbon, desde que eu não vá. 

- Se mamãe não for, eu não irei. - Refuta Antoine, entristecido. - Tenho medo.

- De quê? - Indaga, suavemente, Ga'al à mesa enquanto sirvo a sopa rala, em silêncio. Em minha mente, imagino-me saboreando um faisão regado a um bom vinho. Hmmm...- O que tem naquela casa que te angustia, filho?

- Demônios, papai. Demônios vingativos. - Sento-me ao lado de Antoine e brinco com a colher apreciando sua astúcia. - Tenho medo de que me façam mal se mamãe não estiver ao meu lado. Aquela senhora me ofereceu uma pequena fortuna para lhe ensinar a montar. Com essa quantia, poderíamos comprar ovelhas, vacas. Não precisaríamos pagar caro pelo leite que consumimos e mamãe não teria de se esforçar tanto plantando e colhendo no campo. - A sopa esfria em meu prato enquanto observo, satisfeita, as diversas expressões no rosto, antes sisudo, do homem que, agora, esboça um sorriso. - Meu irmãozinho carece de cuidados. - Xeque-mate! Meu pequenino encurralou o rei! - No castelo, mamãe terá mais conforto, papai.

- Entendo...- Rosna Ga'al lançando-me um olhar soturno. - Tens razão, filho. Prometes que a protegerá do assédio do tal duque? Ele tem fama de conquistador.

- Tolices! - Enfim, eu falo. - Eu mesma saberei me defender daquele homem. Conheces o meu passado.

- Exatamente! - Exalta-se Ga'al empurrando, agressivamente, o prato vazio sobre a mesa. - Tu sofrestes nas mãos daquele padre e se não fosse por mim, ainda estarias sofrendo!

- Não fales assim comigo! Eu sei me cuidar sozinha! - Protesto, erguendo-me da cadeira. Antoine move a cabeça, desalentado. Crendo que acabo de estragar seus planos, continuo a protestar. - Deixa-me ir! Precisamos do dinheiro, homem! O que tu ganhas não é o suficiente! - Visivelmente atormentado, Ga'al se levanta da cadeira, caminhando em minha direção. Furioso, comprime sua mão em meu braço e, entredentes, avisa.

- Tu já não estás sozinha. Carregas um filho meu.

- Solta-me! Isso dói!

- Morgana, não mintas para mim. Por que desejas esse trabalho?

- Pelo dinheiro. - Rosno. - Não suporto mais essa vida sem graça que vivemos. Desejo mais. Eu mereço mais.

- Mamãe...- Lamenta Antoine.

- Mais do que o amor que tenho por ti?

- Amor não traz comida para dentro de casa, marido! - Ainda que enxergue uma imensa tristeza em seus olhos, continuo a humilhar o homem que me salvara do inferno para me jogar em outro, ainda pior...- Sopa rala, vestido velho, casa úmida! Estou farta! Quero mais do que isso! Nossos filhos merecem mais do que isso! E largas o meu braço! Está doendo! - Em silêncio, ele me mostra a mão que comprimia meu braço enquanto recua. Deveria seguir minha intuição de desfazer meu erro e beijar sua boca, pedindo-lhe perdão...mas não o faço. - Eu preciso ajudar aquela pobre mulher. - Minto. Quero me deitar em uma cama macia com lençóis de seda e me aquecer em uma lareira maior do que a nossa. Quero vestidos lindos e ostentá-los diante do povo da aldeia que me despreza por ter um passado imundo. Desejo sentir o perfume cítrico do duque ao me levantar...- Não me olhes assim. É pecado querer uma vida melhor àqueles que amo?

- Não. - Diz ele, amparado por Antoine. Com a voz embargada, ele me faz mentir. - Acaso estou entre aqueles ama?

- Sim.


- Por que nas costas!? Não vou conseguir desamarrar sozinha!

- Essa é a intenção, meu bem. - Diz Celeste, mais disposta, recostando-se à cabeceira de sua cama. Seu sorriso é plácido. Sua pele, alvíssima. Seus cabelos...um pesadelo. - É para isso que temos os serviçais. Para amarrar e desamarrar os espartilhos.

- Isso é patético. - Rumino diante do espelho sem desviar os olhos da mocinha ruiva, lutando contra os cadarços do espartilho que não me deixa respirar em paz. Há algo nela que me incomoda. Por que ela parece não gostar de mim? - Por que diabos eu precisaria de alguém para me vestir!? Estou grávida e não doente! Perdão...- Suspiro, arrependida. - Eu não queria ser rude, vossa excelência. 

- Ora! - Exclama Celeste, parecendo cansada ao rir de mim. - Não me chames de 'excelência'. Gosto de vc. Podes me chamar pelo meu nome.

- Vossa Excelência!!! - Protesta a mulher tão jovem quanto eu, logo atrás de mim. Visivelmente enciumada, ela adverte Celeste. - Ela é a sua dama de companhia e não alguém de sua família!!! - Ergo meu queixo, alisando com as mãos o tecido fino de meu vestido novo enquanto Celeste, arqueando uma de suas sobrancelhas, a repreende, rigorosamente.


- Quem tu pensas ser falando nesse tom comigo, mocinha? Saia imediatamente dos meus aposentos antes que eu perca meu bom humor e a jogue no lixo de onde te retirei. És uma serviçal. Nunca mais te esqueças disso.

- Perdão, vossa excelência. - Sussurra ela, humilhada. Levo minhas mãos à boca, francamente abalada com a maneira agressiva de lidar com a jovem que se curva diante de mim, em uma forçada reverência, ao se retirar do quarto. Antes de fechar a porta, ela me lança um olhar de ódio que me faz tremer por dentro. 




- Não fiques abalada, Morgana. Meu netinho não pode sofrer em teu ventre. Isabella não irá te importunar novamente. Eu te prometo. - Arregalo os olhos e encaro Celeste. Confusa, elevo o tom de minha voz em duas perguntas. 

- Seu neto??? Como assim???

- Não desmintas, por favor. Não contes a verdade. - Suplica Giovanni num sussurro, com suas mãos em minha cintura. Seus dedos deslizam até meu pescoço. Atordoada com seu perfume cítrico, não o impeço de unir meu caminho ao dele...para sempre. Num tom de voz mais alto, ele anuncia. - Nosso filho trará luz às trevas onde minha mãezinha habitava até agora. Satisfeita, mamãe!?

- Pelos céus! Um herdeiro! Um sonho realizado, filho!

- Não, senhora...- Hesito diante de sua extraordinária mudança de frequência. Há uma luz escapando de seu peito que afasta os espíritos vingativos e demônios. Devo apagar essa luz contando-lhe a verdade? Devo destruir os sonhos de Antoine em se instruir e viajar pelo mundo a fora? Devo mentir a mim mesma e fingir que estou me sacrificando pelo bem do meu filho quando minha consciência grita que sou falsa, egoísta e ambiciosa? SEJA VC MESMA. Quem disse isso??? São seus próprios pensamentos, meu bem. Somente seus pensamentos. Aproveite as oportunidades. É UM DEMÔNIO EM MINHA CABEÇA!? Tu que o dissestes. BASTA! - Senhora, esse filho não...

- Giovanni, ampara Morgana! Ela vai desmaiar!

- O que fizestes ao tocar em minha testa? - Seu sorriso enigmático é a última imagem que vejo antes de apagar com uma vela num sopro. - Ga'al...me...perdoa.



Antoine cavalga ao lado de Celeste em seu 'puro-sangue' inglês, absolutamente revigorada. Em nada se parece com mulher que encontrara no quarto sombrio quando aqui pisei pela primeira vez. Ouço sua gargalhada alegre enquanto imagino o futuro de meu filho. Um futuro brilhante já que tem tido aulas de Desenho, Canto, Linguagem, Educação Moral e Cívica e Religião. O que diria o padre, professor de Antoine, se eu lhe dissesse que sou uma espécie de bruxa que usara de magia a fim de libertar Celeste de seus demônios?

- Melhor não dizer nada. A caça às bruxa ainda não terminou.

- Diabos! De onde surgistes!? Tu me assustas o tempo todo!

- Posso me sentar?

- Claro. O banco é seu assim como tudo o que está ao nosso redor, Duque de Bourbon. Por que ri de mim o tempo todo? Isso é irritante.

- Podes me chamar de Giovanni. Eu prefiro.

- Pois eu não. Quanto maior a distância, melhor. Não ria de mim!

- Não estou rindo de vc, Morgana. - Esclarece ele, prendendo um riso infantil. - Estou sorrindo. É diferente. Tu és divertida, espontânea, totalmente diferente das mulheres que conheço. Todas se escondem debaixo de uma maquiagem pesada e sorrisos fúteis. - Desviando meus olhos de seu olhar indecifrável, refuto.

- Isso é problema delas. Não meu.

- Vistes!? - Pergunta-me ele, gargalhando sem pudor. - Tu sempre me faz rir! - Sentado ao meu lado no jardim, seus olhos absurdamente azuis brilham sob a luz do sol. Seu Pomo-de-Adão volta a chamar a minha atenção. Engulo em seco a vontade de tocar em seu pescoço e sentir seu cheirinho suave trazido pela brisa fresca da manhã. Jogando a cabeça para trás, ele mostra os dentes, os caninos proeminentes, as covinhas em seu rosto perfeito. Diabos!!! Como ele é bonito!!! Eu o odeio por isso!!! Seu riso desaparece, de súbito, quando seus olhos doces me fitam. Expressando seriedade, ele indaga. - Por que me odeias? 

- Pelos céus! Tu me ouves!? - Recuo, assustada, agarrada a um livro que desejo ler. - És um bruxo!? Como sabes que te odeio!?

- Não me odeies. Eu não sou mau. Serei eternamente grato a vc e ao seu filho pelo bem que fizeram à minha mãe. Ela está curada . Vcs a curaram.

- Não não não! - Volto a recuar enquanto ele desliza no banco, em ferro, em minha direção. Seu perfume me hipnotiza. Sua boca delicada parece me pedir para tocá-la. INFERNO! - Eu nada fiz. Se alguém a curou, esse alguém é Antoine. Meu filho é pura luz. - Sorrio, enlevada. De olhos fechados, suspiro. - Ele é um anjo na Terra.

- Concordo. E vós? O que sois? - Inspiro seu cheiro. Tonta pela proximidade de sua boca à minha, respondo, mergulhada em remorso.

- Um demônio. É por isso  que eu os expulsei da vida de tua mãe. Sou da mesma laia, do mesmo pó que eles. Meu marido sempre tenta me fazer feliz e eu estou  que sempre insatisfeita. Ele é um bom homem. Não merece a esposa que tem.

- Estás enganada! - Diz Giovanni, num rompante de fúria. - É ele quem não te merece!

- Tu não o conheces! - Um leve erguer de sobrancelhas e eu, desconfiada, pergunto. - Conheces!? Aonde vais!? Fica! Responda-me! - De pé, Giovanni recua sem desviar os olhos de mim. - De onde o conheces!? - Alcançando-o, cravo minhas mãos em seu colarinho enquanto um sorriso cafajeste surge em seu rosto. Um sorriso que me faz arfar. - Não se atreva a me deixar sem respostas.

- Te acalma. Nosso filho não pode sofrer grandes abalos.

- Ele é meu filho! Não seu! Estou farta dessa mentira! Vou acabar com tudo hoje mesmo!

- Tens certeza? E perder tudo o que já conquistastes? -  Um passo atrás e explodo sem me incomodar com a presença insidiosa da mulher ruiva atrás da árvore frondosa.

- Crápula! Eu nada consegui além de culpa e remorso!

- E vestidos caros, alimentação saudável e farta, um salário robusto, além de paz quanto ao futuro de Antoine. - De cabeça baixa, reflito. Ele tem razão. Nosso pequeno rancho conta, agora, com um gado numeroso. Nossa plantação triplicara durante o tempo em que estou aqui. Talvez seja por esse motivo que Ga'al ainda me permita trabalhar no castelo. Por dinheiro. Por dinheiro? Não. Não posso pensar isso dele. A errada sou eu. Sou eu quem deseja outro homem todas as noites ao me deitar com ele. INFERNO! - Te acalma, Morgana. Tu és tão boa que nem percebes. Eu não 'caí' à toa...- Diz ele acariciando minha bochecha com o dorso de sua mão. Esse é o primeiro contato físico entre nós dois e eu mal consigo disfarçar a tremedeira nas pernas. Recuo, enraivecida.

- Que diabos de queda é essa!? Não é a primeira vez que tu falas disso! 

- Por que carregas o livro? 

- E por que eu carregaria um livro, Giovanni!? Para ler! É óbvio! Fala-me sobre a queda! De onde caístes! Do céu!?

- Receio que não...

- Retiras esse sorriso do rosto e me digas de onde caístes! - Ignorando meu descontrole, ele toca em minha mão que segura o livro e, com ternura, questiona.

- Sabes ler? - Enrubesço, constrangida. Fingindo não ouvir sua pergunta, vibro por Antoine, movendo meus braços aleatoriamente. Antoine me sorri e continua a cavalgar ao lado de Celeste, agora, esfuziante. Diabos. Giovanni ainda espera por minha resposta, diante de mim, imóvel feito uma de suas esculturas em mármore. - Morgana...

- Não! Satisfeito!? - Dou-lhe as costas quando ele inicia uma de suas estúpidas gargalhadas. - Vá para o inferno! - Rumino enquanto ele tenta parar de rir, caminhando ao meu lado.

- E como tu pretendes ler o livro, mulher!?




- Antoine há de me ensinar...- Respondo, frustrada. Nunca tivera a oportunidade de aprender a ler ou escrever quando era pequenina e, assim que crescera, fora vendida ao 'padre porco' que, de mim, só necessitava do corpo. - Não rias de mim. Não sabes da vida que já tive.

- Perdão. - Pede-me Giovanni ajoelhado aos meus pés. Sorrio contra a minha vontade quando ouço sua promessa. - Vou te ensinar a ler e a escrever, meu anjo. Eu juro.

- Levantas...- Cochicho sentindo o farfalhar de borboletas em meu estômago. - Ou tua namorada vai te matar de ciúmes. - Giovanni lança um olhar insignificante à ruiva atrás da árvore e, com suas mãos em meus braços, ele mente. 

- Ela não é a minha namorada. Nada tenho com ela. Tu és a única que desejo, Morgana. Deixa-me entrar em tua vida.

Baixando a cabeça, encabulada, sorrio. 

Será que ele não percebera o quanto o desejo também? Um sorriso triunfante e ele declara.

- Amanhã começaremos nossas aulas!

- Será que Isabella ouvira algo sobre meu filho não ser o seu? - Indago, num cochicho. Sussurrando, ele me assusta ao dizer.

- Ouvindo ou não, ela haverá de se calar. Não te preocupes.


Já consigo ler e escrever graças à boa vontade de Giovanni que não desistira de mim, mesmo quando, num dos muitos arroubos de irritabilidade, eu o xingasse e o estapeasse. No lugar de me punir como se pune serviçais rebeldes, ele apenas sorria e me prometia que estaria ao meu lado...para sempre. Eu acreditava em suas palavras e palavras têm força. Não poderia imaginar que o Universo nos colocaria, lado a lado, no fim.

- Agora é a minha vez de retribuir sua bondade.

- Como assim, senhora?

- Retiras esse sorriso cafajeste de teu rosto. - Cochicho ao seu ouvido. - Não é o que pensas. Jamais me deitarei contigo. Sou casada e, ademais, muitas se deitaram ao teu lado. Uma, em especial, te venera e é capaz de tudo para ter o teu amor.

- Porém, nunca o terá. Meu amor já tem dona. - Emudeço. Sou salva pelo risos eufóricos de Celeste abraçada a Antoine, em meio ao imenso salão agora, limpo e redecorado com flores frescas. - O que ela deseja?

- Dançar...- Revela Giovanni, felicíssimo, seguindo em sua direção. Ele a ama de verdade. Um bom filho sempre conquista mães idiotas como eu. - Mamãe, me concede a honra dessa dança?

- Não, filho. Dessa vez eu tenho o meu par. Antoine dançará comigo e, tu dançarás com Morgana.

- Não posso! - Protesto.

- Por quê? Não tens pernas!? - Um ligeiro aceno aos músicos e Celeste guia Antoine que solta risinhos, num êxtase. - Ele tem o dom para a Dança! - Comenta Celeste, rodopiando em volta do salão enquanto Giovanni estende seus braços à minha espera.

- Vem. Me ensina a dançar.

- Tenho medo. Nunca estive em um baile. Talvez eu não saiba...- Puxando-me contra seu corpo quente, ele sussurra. 

- Somente dance, Morgana. Tu és especial. Vais brilhar em nossos bailes. Basta me seguir. Pronta?

- Sim. - Respondo insegura. Os músicos iniciam uma canção alegre que fala de amor. Entre risos e erros, divirto-me abraçada a ele e, ao seu lado, aprendo a dançar.



- Amo essa canção. - Observo enquanto rodopio, bato palmas e me curvo em reverência. Tudo é tão divertido e leve! Tão diferente da vida que levo no campo! - Se Ga'al me vir aqui, estarei perdida! - Um reverência e ele comenta, puxando-me para si.

- Descansas. Ele não tem permissão para entrar em nossa propriedade. Por que estás sem fôlego?

- Essa porcaria de espartilho não me deixa respirar. - Minto. Estou arfando feito asmática em crise por estar tão próxima a ele. Suas mãos passeiam em minhas costas, seus dedos se unem aos meus...- Pare de me olhar assim, Duque de Bourbon. Receio que estejamos próximos demais.





- Bobagem. Isso é próximo demais. - Afirma ele ao som de uma valsa. Um beijo casto em minha bochecha e me sinto flutuar em seus braços. De olhos fechados, confio em seus passos. Celeste e Antoine batem palmas, eufóricos. Abro os olhos e, envaidecida, constato que estou bailando como as damas da corte em seus vestidos pomposos. De súbito, paramos. - Cansastes!? 

- Não...- Recuo levando a mão à boca. - Estou enjoada. Perdão. - Às pressas, corro até o pátio, na área externa do castelo, e vomito. Ajoelhada, com o tronco curvado para frente, enxergo seus pés descalços. Antes de ouvir os passos apressados de Antoine e Giovanni vindos em minha direção, eu a ouço me amaldiçoar.

- Vais sofrer muito por ter me tirado o homem que amo.

- Isabella, eu nada tenho com Giovanni. - Defendo-me da mulher ruiva e raivosa que se esconde nas sombras dos arbustos. - Não te preocupas com isso. Ele é teu.

- Não mais, vagabunda! - Ergo-me assustada. Ela avança em minha direção, furiosa. - Ele já não me deseja como antes. Ele vai te usar e te largar como ele o fez a mim e, quando esse dia chegar, eu estarei aqui para gargalhar de sua desgraça.

- Não digas isso...- Lamento. - Eu não o quero.

- Mentira! Eu a vi dançando com ele! Ele a beijou!

- No rosto!

- Tu o desejas! Ele me olhava do jeito que te olha!

- Algum problema, Morgana? Essa mulher te importuna?

- Não. - Afasto-me de Isabella e abraço Antoine. Giovanni a pega pelo braço e, bruscamente, a puxa para longe. Compadecida, eu a defendo. - Ela não me fez nada. Deixe-a em paz. 


De onde estou, percebo que estão discutindo. Celeste, distante, pede ao filho que se afaste de Isabella segundos antes de vê-la cuspir em seu rosto. Giovanni ergue o braço, colérico. Antoine arqueja de pavor. Desorientada, corro até Giovanni a tempo de segurar a mão que marcaria o belo rosto de Isabella com um tapa violento. - Não faças isso. É covardia. Não é certo. - Um sorriso nasce no canto de sua boca quando ele murmura sem desviar o olhar sombrio de Isabella. - Não te preocupes. Ela aprecia. - Isabella me olha com desdém e, antes de desaparecer na escuridão da noite, avisa, triunfante.

- Seu príncipe não é tão perfeito quanto aparenta.





Do homem com quem dançara na varanda de nossa casa quase nada sobrara. Ga'al mostra-se recluso, desconfiado ainda que eu procure satisfazer seus desejos. Talvez por culpa em desejar Giovanni. Talvez pelo medo de que Giovanni seja, de fato, um homem violento a ponto de espancar suas amantes. Talvez por querer me afastar do castelo e de tudo o que ele me oferece e já não ter forças para lutar contra meus sentimentos. Talvez eu queira satisfazer Ga'al porque ainda o amo. Amo uma parte dele. Uma pequena parte que ainda me observa enquanto preparo, contente, um guisado de carne e especiarias compradas com o meu próprio salário.

- Gosto do seu sorriso, marido. - Comento, junto ao fogão à lenha, enquanto provo do caldo na colher de pau. Apreciando o gosto, de olhos fechados, prossigo. - Sempre gostei. Gosto de sua boca carnuda e da forma como sorri, envergonhado. Provas! - Sugando o caldo quente da colher, ele umedece os lábios e, por segundos, revejo o homem com quem me casei e que sempre me desculpava por estar constantemente reclamando de tudo. - Gostastes?

- Sim. Muito. - Responde-me ele com os olhos vidrados em mim. O sol do outono incide sobre seu rosto onde percebo traços de ternura. - Esposa...

- O quê?


Num arroubo de paixão ou loucura, ele me puxa pela cintura e arfando, propõe.

- Vamos fugir daqui? Tu e eu e nossos filhos? - Perplexa, afasto-me do fogã e recosto-me á mesa. Decidido a me convencer, ele beija minha boca com ardor e, acariciando minha barriga, ele implora. - Vamos recomeçar do zero e nos distanciarmos do mal?

- De que falas!? Que mal!? Nós nunca estivemos tão bem quanto agora e tu pensas em fugir!? 

- Morgana, eu sinto que algo de ruim vai acontecer. - Sussurra ele contra meus lábios. Um outro beijo acalorado e, repentinamente, uma avalanche de imagens inundam minha mente transtornada enquanto suas mãos se mantém em minha cintura. 



Sufoco um soluço ao enxergar sombras ao seu redor durante o tempo em que trabalha na estufa. As diversas sombras se condensam em uma única, em um salão sombrio. Vejo tochas acesas, celas. Ouço vozes, gritos de pavor. Eu o vejo caminhar pelas ruas da cidade, na escuridão da noite e, ao seu lado, a sombra perversa que o deixa inquieto. Ao abrir a porta de uma taberna com mesas vazias, a sombra ao seu lado ganha vida enquanto ele toma um gole do vinho no caneco. Um ser demoníaco lhe sugere algo aos ouvidos. Enfurecido, ele devolve o caneco ao galpão em madeira. De imediato, dedos delicados pousam sobre o dorso de sua mão. De esguelha, Ga'al a observa. Aos poucos, seus olhos se fixam na figura à sua frente, então, eu identifico sua voz. - Esposa! Acorda! Ouves o que te peço! Eu não quero te perder! - Horrorizada, recuo e o acuso.

- Por que tens te encontrado com Isabella!? 

- Como sabes disso!?

- Não te importa! O que tens com aquela mulher!? - Altero o tom da voz, verdadeiramente enciumada. Eu não consigo acreditar que ele me tenha me traído com outra mulher! Com a colher de pau em riste, eu protesto. - Eu não admito que tu me traias com aquela mulher! Não com ela! Nunca!

- Eu nunca te traí, mulher! - Defende-se ele, alterado. - Eu jamais pensei em outra mulher além de ti! 

- Então o que fazias na taberna ao lado dela!? No que tens pensado para atrair aquele ser!? Eu não te conheço mais, Ga'al! - Exalto-me, arremessando a colher em seu tórax exposto. Ele ameaça sorrir. Deveria ter aproveitado essa brecha e terminado a discussão, beijado sua boca entreaberta e me entregar ao homem fogoso e terno, pela última vez. Mas não o fiz. Cerro os punhos e distribuo socos em seus braços bronzeados pelo sol, tão distintos da pele alva de Giovanni. Giovanni, amante de Isabella que, agora, deseja o meu marido! Que diabos essa mulher tem que eu não tenho!? - Saibas que se tu me traíres com ela, eu te mato! Não! Eu te abandono e levo meus filhos comigo!

Em silêncio, observo a mudança em sua expressão facial. Vai do contentamento ao desespero e do desespero, passa, bruscamente, para a fúria nos olhos escuros quando rosna, apertando meu braço com força.

- É isso o que desejas!? Fugir daqui e ir morar, em definitivo, no castelo do duque por quem estás apaixonada!? - Cubro o rosto com as mãos, tentando não demonstrar meus verdadeiros sentimentos que, agora, estão absolutamente confusos. Com ódio e inveja da mulher que julgo ter os dois homens da minha vida, berro.

- Mentira! Foi Isabella quem te disse isso!? Aquela vagabunda!? - Descontrolada, choramingo. - Por que com ela, marido? - Sinto a delicadeza de seu toque em meu queixo pela última vez quando ele, pacientemente, confessa.

- Eu nada tive com ela, esposa. É em ti que penso o tempo todo. Em nossa família. Em nosso filho em tua barriga. Em teu corpo nu em nossa cama....- Enrubesço diante de seu olhar cativante. Outra chance que deixara escapar. ESTÚPIDA! - Eu conheci Isabella há pouco. Eu estava caminhando apressado, atravessando uma das vielas da cidade, quando esbarrei nela. A pobre mulher caiu sobre a poça de lama na rua e eu a ajudei a se levantar. Olha para mim. Olha em meus olhos. Usa de teu dom e vejas se minto. - Jamais deveria ter erguido os olhos e encarado seu rosto expressando decepção profunda. - Esposa? O que sentes agora? Por que tanta raiva? - Um riso triste e ele, enfim, enxerga uma parte da verdade. - Não é de mim que sentes ciúmes. É dele. Não é?

- Não. De onde tirastes essa ideia!? Não tenho ciúmes! Tenho ódio dela!

- Por quê!?

- Ela quer ter o que é meu!

- O duque!? - Comprimindo os olhos, respondo.

- Não, idiota! Você! Tu és o meu marido! Somente meu! Giovanni é um...- Hesitante, continuo, desviando meus olhos de seu olhar inquietante. - Amigo. Ele é somente um amigo. Ele me ensinou a ler e a escrever e a...- Sorrio ao me lembrar da canção que Giovanni e eu dançamos juntos. Inebriada, descuido-me. Tarde demais, noto a presença insidiosa do ser demoníaco que se junta a Ga'al, endurecendo suas feições quando ele me incita a falar.

- O que mais o duque te ensinou, esposa? - Assustada com o tom soturno em sua voz, murmuro.

- A dançar. Por que ouves as palavras de um demônio, marido? Onde está a tua fé em teu Deus? - Ainda mais assombrada, ouço a voz demoníaca responder através de Ga'al.

- Teu marido deixou de acreditar n'Ele desde que tu o traístes com aquele duque. Isabella tinha razão. Tu és a amante de Giovanni, puttana.

- Não creias nisso, marido! Reaja! - Num desespero, sacudo Ga'al com minhas mãos em seus braços. Um brusco movimento, ele se livra de minhas mãos enquanto a sua vai de encontro ao meu rosto. Meu pescoço gira. Caio contra o piso úmido no exato momento em que Antoine entra pela porta da sala. Arrastando-me no chão, alerto num sussurro. - Te afastas. Ele não está só. 

- Não, papai! - Grita Antoine segundos antes de eu ser atingida pela bota de Ga'al contra meu ventre. Cuspo sangue, encolhida de dor. Antoine se ajoelha ao meu lado, protegendo-me dos chutes de Ga'al ainda possuído pela entidade maligna. Revolto-me quando um dos chutes atinge o queixo de nosso filho que ainda implora. - Acorda, papai.

- Ga'al retorna! - Ordeno, erguendo-me do chão. Secando o sangue que brota de minha boca, grito. - Tu és mais forte do que ele! Retorna!

- Tu te enganas, puttana. - Revela, sarcasticamente, a entidade transfigurando o rosto de Ga'al. - Sou tão forte quanto ele. Ele que me invocou por tua culpa. És a única culpada por tudo o que acontecer daqui por diante.

- Nunca! - Repreendo-o enquanto traço, com um pedaço de carvão, um pentagrama de proteção, no chão da sala. Há sangue escorrendo pelo interior de minhas coxas quando, angustiada, proclamo. - Eu te expulso, maldito! Deixa meu marido em paz! Ele é um bom homem!

- Já fui...esposa.

- Ga'al?

- Sim. Sou eu quem o comanda.

- Vamos fugir, amor! - Suplico, de joelhos. - Eu nunca te traí! Salva nosso filho em meu ventre! Volta!

- Tarde demais, Morgana. Eu os vi juntos. Eu os vi na cama.

- Impossível!!! - Refuto agarrando-me em sua camisa, manchando-a de sangue. Recosto-me em seu peito. Inspiro seu cheiro de floresta. Aos prantos, murmuro. - Eu nada fiz além de dançar, marido. Te afastas dele.

- E o beijo?

- Foi no rosto. - Defendo-me.

- Então eu não devo me preocupar porque um outro homem te beijou no rosto. - Argumenta ele, irônico. - Entendo.

- Foi um único beijo. - Confesso. - No rosto e sem meu consentimento.

- Agora estamos tranquilos.

- Ga'al, tu me assustas.

- Isso é bom. Talvez o duque te possa acalmar.

- Eu não o quero. Quero meu esposo de volta.

- Que lástima. Logo agora?

- Tu não és assim, esposo. Falas comigo. 

- Não posso. Não mais. - Lamenta ele. - Tu me deixastes aqui, sozinho, com tempo suficiente para pensar no que fazias no castelo. Não te lembrastes de mim enquanto sorrias ao lado dele. Enquanto te deixavas tocar por ele. Agora é tarde.

- Ainda não. Antoine e eu iremos contigo a qualquer lugar. Te afastas desse ser demoníaco. Ele mente. - Afirmo, abraçando seu corpo trêmulo. - Eu jamais te traí, marido. - Minto, arrependida. - Vamos fugir do mal.

- Tarde demais. Somos um só agora. Está feito. Nós nos unimos na noite em que Isabella me contou tudo.

- Ela mente! - Refuto, desorientada. A possibilidade de perder Ga'al e seu amor ingênuo e leal me tira do prumo. - Ela é a amante de Giovanni! Tem ciúmes de mim!

- Por que ela deveria? Afinal, foi somente um beijo no rosto! Um inocente beijo entre amigos! - Grita ele desvencilhando-se de mim como se eu tivesse contraído a Peste. Rosnando, ele alerta. - Não encostas a tua mão suja em mim, cobra peçonhenta.

- Eu não te traí. Perdão. - Peço antes de ser empurrada por suas mãos que costumavam me acariciar. Do chão, eu me humilho. -  Me dê mais uma chance. Pelos nossos filhos.

- Mamãe...- Sussurra Antoine, apavorado. Com sua ajuda, ergo-me do chão, afastando-me de Ga'al que, lentamente, abre um sorriso macabro ao anunciar.

- Agora tu vais conhecer, esposa.

- O quê? - Pergunto, vencida.

- Meu lado maligno.


Ga'al se deixara possuir pela entidade e nos expulsara de nossa casa sem permitir que eu levasse comigo sequer minha escova de cabelo. Antoine se mostrara ainda mais compassivo ao se despedir do pai com um longo abraço amoroso que quase o livrara do ser demoníaco. 

Quase...



Continua...


CAPÍTULO 36 - SOZINHA

  Dessa vez, não vou culpá-lo pelo abandono. A culpa é minha. Eu o provoquei. Eu acordei o monstro que ainda habita nele. Vincenzo não é tão...