'Dess - Uma História Interessante'

'Dess - Uma História Interessante'
AMO ESCREVER

CAPITULO 24 - EILEEN - VOLUME II



 




- Não pense que eu vou te agradecer por isso.

- Jamais pensaria isso vindo de vc. - Zomba ele. - Uma moça tão generosa, cheia de virtudes como vc jamais me agradeceria por ter te trazido ao hospital. - Provocando risos em Antoine, em tio Enrico e em tia Celeste, Vincenzo continua a tagarelar ao lado do meu leito onde vejo minha perna direita esticada e engessada descansando sobre um travesseiro duro. Penso em como voltarei a dançar antes do concurso. Desanimada, fecho os olhos e jogo minha cabeça contra o travesseiro quando ele comenta. - Vc vai se recuperar logo. Não fraturou a perna. Houve somente uma entorse no tornozelo.

- Então, por que enfaixaram a perna toda? 

- Pra vc não tentar voar novamente. - Provocando risos em todos, ele prossegue. - Eu juro que desconhecia essa habilidade em vc. Além de bailarina, vc voa. E quica. - Penso em lhe xingar, mas minha voz embarga e eu choro com receio de perguntar sobre o bebê. Parecendo ouvir meus pensamentos, ele cochicha. - Ele está bem. Fique tranquila. - Sentando-se na beirada da cama, tia Celeste acaricia minha barriga coberta pelo lençol azul. Sorrindo, ela avisa.

- Amanhã vcs já estarão em casa, a salvo daquele monstro.

- Tia! - Repreendo-a. - Não fale...!

- Nós já sabemos, filha. - Diz tio Enrico com lágrimas nos olhos. - Nosso netinho está a caminho. 

- Meu sobrinho vai ter nome de santo. - Exulta Antoine enquanto volto a chorar. Vincenzo me abraça forte. Sinto seu cheiro de fruta cítrica. Sorrio sem que ninguém veja. Gosto de estar em seus braços. - Que tal Matthew!? Era um dos apóstolos de Jesus!

- Matteo! - Protesta tio Enrico. - Meu neto é italiano! 'Un vero italiano'!

- Não chora, filha. Vai dar tudo certo.

- Não vai, tia...- Refuto, assustada. Afofando os travesseiros em minhas costas, Vincenzo me pergunta.

- Do que tem medo?

- Aiden. Ele foi preso?

- Ainda não. - Responde Antoine, apreensiva. - Ele fugiu. Vamos ficar com vc, Eileen. Não tenha medo.

- Não tenho. Ele é quem deve ter. - Pousando sua mão sobre a minha, Vincenzo sussurra um conselho.

- Não repita o mesmo erro. Não se meta com magia novamente. Isso vai te fazer mal. - Mergulhando em seus olhos azuis e serenos, eu me perco. Exalo antes de refutar, melancólica.

- Já fez. Estou aqui. Não estou?

- Há males piores. Pode acreditar no que digo.



Após muita dor e esforço, volto a dançar. Apoiada por Antoine e Vincenzo, retorno às minhas atividades sem deixar de temer o espectro de Aiden. Eu o sinto ao meu redor aonde quer que eu vá. Onde quer que eu esteja.

Antoine copiara para mim todos os conteúdos das aulas que perdera enquanto não podia me movimentar, atrelada à cama de meu quarto onde, agora, Vincenzo tem me ensinado, com extrema paciência, o que não consigo entender. Gosto de quando ele me adverte por ser indisciplinada, então, eu o deixo ainda mais irritado ao revirar meus olhos e ignorá-lo. Se ele soubesse o quão importante tem sido em minha vida, jamais retornaria à sua terra natal. 

"Não volte nunca!", imploro enquanto ele me ensina, pela décima vez, uma das várias teorias psicanalíticas com as quais eu não me importo.

- Deveria.

- O quê?

- Se quiser se formar, precisa se importar com essas teorias. - Desconfiada, ouso perguntar.

- Cara! Vc me ouve!?

- Não entendi.

- Não desconverse! Não é a primeira vez que responde ao que pensei! Vc me ouve!?

- Vc é do tipo que acredita em Telepatia?

- Não.

- Então não ouço. Satisfeita?

- Não! Vc tem esse poder!? - Gargalhando, ele responde.

- Não é poder. É uma faculdade do cérebro.

- Eu não tenho. - Refuto, desapontada. - Deve ser bom ler o que os outros pensam.

- Nem sempre.

- Ahaam! - Salto da cama, deixando-o de olhos arregalados. - Te peguei! Vc me ouve! - Exulto, eufórica, pulando e movendo os braços como uma 'cheerleader' norte-americana. Pulo a ponto de permitir que ele veja minha lingerie por baixo do vestido. Pulo tanto que acabo torcendo o tornozelo recuperado. Do chão, urro de dor. Vincenzo me ergue em seus braços enquanto choro, arrependida. - Não vou conseguir dançar no concurso. Não vou.

- Vai sim. - Afirma ele deitando-me, cuidadosamente, em minha cama de solteiro, cobrindo minhas coxas com o lençol. - Feche os olhos.

- Tá inchando! - Grito, atordoada. - Eu não vou deixar que engessem novamente! Não vou! - Olhando-me com severidade, ele ordena num tom baixo e grave.

- Cala a boca e feche os olhos.

Obedeço. Um calor quase que insuportável queima a pele do meu pé direito. Contendo um grito de dor, abro um dos olhos e, perplexa, eu o vejo esfregar suas mãos antes de soprá-las. De olhos fechados, ele envolve meu tornozelo com suas mãos quentes e move os lábios. Está rezando? Não sei. Assim ele permanece por um bom tempo até abrir os olhos. Fecho os meus e finjo nada ter visto. Estirada na cama, percebo que a dor passou. Intrigada, indago.

- O que fez?

- Nada.

- Mentira! Eu vi!

- Eu pedi pra fechar os olhos! - Protesta ele. -  Indisciplinada!

- O que fez!? Parou de doer! Não tá inchado! - Salto da cama. Diante dele, ordeno. - Fala! O que fez!? Vc não é normal!

- Não direi nada! Vc não muda nunca, porra! Continua mimada e egoísta! 

- Não grita comigo! - Grito caminhando ao seu lado. Aborrecido, ele sai do meu quarto e segue em direção à escada que leva ao 'pub' no primeiro andar. - Para! Olha pra mim! - Seguindo-o, a custo, eu o faço parar posicionando-me no degrau abaixo dele. Exausta, sentindo dor no tornozelo e no coração, imploro. - Fica.

- Vc precisa mudar, Eileen! - Assevera ele olhando em meus olhos. - Pessoas dependem de vc! Não tenho muito tempo!

- Quem!? Do que tá falando!?

- De seus tios, de Antoine, de seu filho...e de mim. - Alheia a tudo o que ele acaba de falar, foco em sua última palavra ao perguntar após arfar.

- Vc precisa de mim?

- Sim. Mais do que imagina. Se eu não te mudar agora, não teremos um futuro. - Impactada, pergunto.

- Futuro? Vc e eu?

- Futuro, Dess. Futuro. 

- Dess!? - Enciumada e humilhada, reajo da pior maneira possível: com violência física. Um tapa em seu rosto e subo as escadas urrando de raiva. Antes de fechar a porta ruidosamente, eu o vejo se apoiar no corrimão da escada expressando tristeza em seu lindo rosto. Com um aperto no coração, berro. - NUNCA MAIS TROQUE MEU NOME! ENTENDEU!? FIQUE COM ESSA 'DESS' E ME DEIXA EM PAZ! CRETINO! - Recostada à porta do meu quarto, ainda o ouço murmurar num tom de lamento.

- Vc precisa mudar, Dess...



O 'pub' está fervilhando. Temos turistas na cidade. Turistas que procuram o nosso estabelecimento por ser famoso em oferecer o melhor 'Boxty', de toda Irlanda. Uma espécie de panqueca irlandesa com batatas.

Deliciosa!


 

Tia Celeste os recebe, efusivamente, enquanto eu o aguardo com o coração aos pulos a cada vez em que a porta é aberta. Enchendo tulipas com 'Baby Guinness', volto a sujar minhas mãos e meu vestido. Limpando as pontas de minhas botas com o pano de prato úmido, reclamo.

- Eu nunca vou aprender. Eu não nasci pra isso. 

- Concordo. - Reconhecendo sua voz efeminada, eu o encaro, assustada. - Vc nasceu para brilhar, meu bem. - Dando-me as costas, o homem se mistura entre os clientes e desaparece. Jogando meu avental sobre o balcão, eu reconheço seus cabelos lisos e finos e o persigo. Em meio ao salão, eu o perco de vista. - Estou aqui. - Diz ele ao acenar próximo à porta de entrada. 

- Espera! Não vá embora! - Olhando com desdém para os 'sinos dos ventos' acima de sua cabeça, ele comenta.

- Odeio esses sininhos contra energias negativas. Não funcionam.

- Para! Quem é vc!? - Pergunto agarrando-o pela gola de seu terno preto. Um olhar de desprezo sobre minha mão e eu o libero. - Por que veio até o 'pub'?

- Porque ele tem vindo aqui. 

- Quem!?

- Não seja boba. - Odeio seu olhar de malícia. Causa-me arrepios. - Vc sabe de quem estou falando. Do bonitão a quem chamam de Vincenzo.

- O que quer dele!? Não toque nele!

- Ora, ora. Vejo que o romance já começou...

- Não temos nada um com o outro. - Na calçada, refuto, desolada. O vento frio esvoaça meus cabelos soltos. Cruzo os braços na altura do decote do meu vestido sexy. Afinal, esperava por Vincenzo e não por esse verme diabólico. - Infelizmente, não temos nada.

- E não devem ter. - Assevera ele. - É para o seu próprio bem, querida.

- Não confio em vc. - Abrindo minha mão cerrada, mostro-lhe um punhado de sal grosso. Rindo, ele debocha.

- O que pretende fazer, meu bem? Me cozinhar?

- Não...- Sorrio formando, com o sal, um círculo no chão, ao meu redor e uma linha reta na soleira da porta do 'pub'. Diante de seu olhar intrigado, explico. - Estou me protegendo de vc e te impedindo de voltar a pisar no 'pub' dos meus tios. - Num tom de voz grave, ele refuta.

- Não seja tola. Isso não funciona comigo, criatura. Tem ideia de quem eu sou!?

- Alguém muito ruim. Tenta me tocar ou entrar no 'pub'. - Provoco. Expressando soberba, ele estica seu braço até mim. Contrariado, ele recua diante das pequenas fagulhas de fogo que escapam do escudo invisível ao redor do meu corpo. Irritado, ele investe contra o 'pub'. Mais uma vez, recua sem êxito. - Vc não vai entrar onde meus tios moram. Não mesmo.

- Interessante. - Diz ele ao me encarar. - Vc se lembra de tudo?

- Lembrar do quê? Eu aprendi isso em livros. - Ajeitando o paletó, ele força um sorriso ao argumentar.

- O sal a chuva leva. O meu poder só cresce a cada século.

- O nosso. - Proclama Vincenzo surgindo em meio à escuridão da noite chuvosa. Quero saltar sobre ele e beijar sua boca, mas me contenho diante de seu olhar severo. - Desde quando ele fala contigo?

- Essa é a segunda vez. Eu juro.

- Que lindo. - Zomba o homem, batendo palmas. - Suponho que seja a primeira briga do casal...

- Não somos um casal. 

- Mas serão. - Afirma o homem, enfurecido. Seremos??? - E quando se tornarem um só, eu estarei por perto.

- E eu estarei preparado. - Rosna Vincenzo protegendo-me com seu corpo. Devo abraçá-lo agora? Ele está fazendo isso para me proteger? De quem? Quem é essa criatura patética que o deixa transtornado? - Fica longe dela, Lúcifer ou vai sofrer as consequências.

- Lúcifer??? O...a...o??? Lúcifer que eu...??? O 'Lúcifer' da Bíblia???

- O único, meu bem. - Diz ele esgueirando-se por entre os carros, afastando-se, sibilante como uma serpente. De olhos fixos em Vincenzo, ele continua a gracejar. - Aquele que vai cobrar o pacto com o bonitão. Está preparado para pagar o preço? - Vacilante, Vincenzo responde.

- Sim. Por elas, eu farei de tudo. Dessa vez, eu não vou fugir.

- Elas??? 

- Fica quieta, Eileen! - Empurrando-o pelas costas, eu grito.

- ELAS??? DE NOVO??? DESISTO DE VC!!!

- Ui. Doeu. - Possuída pelo ódio, inveja e ciúme, avanço sobre o verme risonho e esbravejo.

- Vá pro inferno, maldito!

- Com certeza. De lá, eu verei tudo nos mínimos detalhes. Deveria ficar calado e manter minha fama de mau, mas, cuidado com o namorado homicida. Ele ainda não tem o que deseja.

- Aiden!? O que ele quer!? - Pergunto, horrorizada.

- Aquele que descansa em seu ventre.

- Não! Meu filho não!

- Suma daqui! - Ordena Vincenzo, abraçando-me com força. Num sussurro, ele adverte. - Não creia nele. É o 'Pai das Mentiras'.

- Não é verdade...- Ironiza Lúcifer. - Eu poderia ter ficado calado. É isso que dá gostar de alguns humanos. Mande lembranças minhas a Antoine. - Desvencilhando-se de meus braços, Vincenzo avança sobre ele e, descontrolado, berra ao segurá-lo pelo pescoço.

- SOME ANTES QUE EU PERCA O POUCO DE SENSATEZ QUE AINDA TENHO!

Calma. - Pede Lúcifer ajeitando a roupa, pigarreando até que sua voz volte ao normal. Algo me diz que ele nutre um sentimento estranho por Vincenzo. - Tudo a seu tempo, bonitão. Já estou indo. Creio que estaremos juntos novamente, parceiro. 'Arrivederci', Cassiel!

- MALDITO!

- Pra onde ele foi!? Ele estava aqui!

- Entra...

- Seu nome é Cassiel!?

- Entra.

- Vincenzo Cassiel!? Que porra de nome é esse!?

- Entra.

- Não me empurra! Cassiel é nome de anjo!

- Entra!

- Não! Eu não te obedeço mais! 

- Entra, Eileen! - Rosna ele. - Aiden está por perto!

- Como sabe que..??? 

Antes de terminar a pergunta, ele me joga sobre seu ombro e me carrega até o interior do 'pub' onde me sinto segura e irritantemente esperançosa.





Da calçada da faculdade, eu o avisto. Institivamente, levo minha mão à barriga e apresso o passo. Olho para trás e nada vejo além de alunos estupidamente felizes. Corro em direção ao 'pub', temendo que Aiden me surpreenda em uma das esquinas. Ele nada fizera além de acenar para mim de dentro do carro de seu primo. Fora o bastante para entender que ele não está satisfeito em ter me atropelado. O que ele ainda deseja? Já não me machucou o suficiente? Em meu filho ele não toca. Minha barriga já começa a apontar. Um sentimento avassalador vai tomando conta de mim, pouco a pouco. Tia Celeste diz que meu filho vai me modificar por completo. É óbvio que ela quis dizer que serei um ser humano melhor do que sou já que não sou um bom ser humano. Egoísta e mimada? Vincenzo é patético. É ele quem me desequilibra com suas frequentes mudanças de humor. Se gosta de mim, por que não demonstra de uma vez por todas? Se não gosta, me deixa em paz. Ao abrir a porta do 'pub', estaco.

- Cacete! O que estão fazendo!?

- O que vc acha?

- No meu 'pub'!?

- É dos seus tios. - Refuta Vincenzo abraçado a Antoine que sorri para mim. Jogo meus cadernos contra a mesa e, avançando sobre eles, ameaço.

- Saiam daqui antes que eu perca a cabeça! 

- Se perder a cabeça, tente encontrá-la debaixo das mesas. - Antoine gargalha enquanto lhe ensina os passos de nossa coreografia. NOSSA COREOGRAFIA! - Vc poderia pensar mais baixo? Estou com dificuldades aqui. - Retirando o sueter, sigo até a 'Juke Box' e a desligo, bruscamente, retirando o plugue da tomada. - Idiota! O que fez!?

- Não fala assim com ela...

- Antoine! Eu não preciso de ninguém pra me defender! Muito obrigada por mostrar nossos passos a ele!

- Mas foi ele quem me pediu, Eileen!

- E vc faz tudo o que ele pede!? Desde quando!? Desde que começaram a transar!? - Arquejando, Antoine recua. Seus olhos inocentes e marejados me fazem compreender que passei dos limites. Foda-se! Ela precisa crescer! - Por que tá me olhando desse jeito, Vincenzo!? Porque eu revelei o que vcs escondem!? - Com o dedo em riste, ele me confronta e me faz emudecer.

- Porque tenho pena do filho que carrega aí dentro! Ele não merece a mãe egocêntrica, mesquinha, pequena, invejosa e burra que vai ter! Antoine não merece ter uma amiga como vc porque vc não é amiga dela! Nunca foi! Vc a usa como um capacho! Vc a inveja porque ela é linda e talentosa, mas, infelizmente, ela é tão inocente que não percebe o mal que há em vc!

- Pare, Vincenzo. Ela tá chorando.

- Que chore, Antoine! Vc precisa enxergar, Antoine! Ela te obriga a dançar como um homem! Vc é uma linda menina! 

- Ela aceitou! - Refuto, indignada. - Eu preciso da grana do concurso! Ela não! Ela é rica!

- E vc deseja a grana dela! Vc a quer humilhar, Eileen! Ela não vai dançar como um homem!

- Vai sim!

- NÃO VAI! - Recuo, assustada com seu furor. - Por que vc não faz o papel do homem na dupla!? Por que Antoine precisa se sacrificar quando dança tão bem quanto vc!?

- Ela quis!

- Ela aceitou! - Corrige-me ele, colérico. - Ela faz o que vc manda porque te ama e não enxerga a mulher mesquinha que vc é!

- Não fale assim comigo! 

- Falo! - Confronta-me ele. A ponta de seu nariz chega a tocar o meu enquanto recuo. - Vc a suga, Eileen! Vc suga as forças de Antoine e não é capaz de fazer nada por ela! Já se perguntou o quanto ela sofre quando fica sozinha em casa!? - Revoltada, dou um passo à frente e retruco.

- Ela é rica! Tem quem cuide dela!

- Uma governanta, Eileen! Ela não tem mãe! Ela tem governante e vc tem seus pais!

- TENHO TIOS! - Corrijo-o. - MINHA MÃE BIOLÓGICA ME LARGOU NA PORTA DO 'PUB'.

- Fez bem! - Sufoco um soluço. Antoine o repreende.

- Não fala assim dela!

- Meu anjo...- Diz ele, modelando a voz, enchendo-se de ternura, voltando-se para ela. Eu o odeio por isso. Eu a odeio por ter o que eu quero ter. - Vc precisa acordar e sair dessa relação tóxica. Ela não é sua amiga.

- É sim. - Diz Antoine, sorrindo. Quem, em meio a uma briga, sorri??? - Ela é a minha melhor amiga. Sempre foi. E sempre será. Não desista. Por favor. Falta pouco.

- Pouco pra quê??? Vcs estão tramando algo contra mim??? - Lançando-me um olhar de repulsa, ele explode.

- CHEGA! - Volto a recuar, arrependida. Por que eu comecei tudo isso??? Ela é inocente!!! Por que dançavam juntos??? - Burra!!! Nós não estávamos dançando juntos!!! Ela me ensinava...! Ah! - Revirando os olhos, ele ergue os braços e despenteia os cabelos com as mãos num gesto que aprendi a amar. Um riso triste e ele me encara. - Eu cansei de vc, Eileen! Cansei! Eu não vou desistir de nós dois. Eu não posso! Mas eu posso desistir de mim! Eu vou desistir de mim!

- Não desista. - Imploro, aos prantos. - Eu não quero que vc vá embora. Eu preciso de vc.

- Não, Eileen. Vc não precisa de mim. Vc precisa crescer e, crescer, dói. - Passando por mim, ele segue em direção à porta. Pisco os olhos embaçados e enxergo suas asas curvadas para baixo. Incrédula, caminho até ele enquanto o ouço lamentar. - Alguns aprendem pelo amor, Eileen. Outros, pela dor. Eu tentei. - Prestes a tocar suas asas, ele me lança um olhar de ternura e, antes de partir, avisa. - Quando estiver pronta pra crescer, me chama. Eu sempre estarei aqui por vc.

- Fica...- Suplico entre soluços. Antoine me abraça com força enquanto tento falar e não consigo. Ela me faz sentar à mesa quando, enfim, eu lhe peço perdão. - Eu te ofendi, amiga. Não me deixa. Vc é a melhor pessoa que conheço. Vincenzo tá certo...

- Não, Eileen. - Sentada à minha frente, Antoine estende o braço direito e, sorrindo, acaricia meu rosto lavado pelas lágrimas de um arrependimento tardio. Impulsionada por algo maior, eu confesso.

- Eu te invejo, Antoine. Eu sempre te invejei. 

- Para, Eileen.

- Eu sempre te achei melhor do que eu e vc é. E isso me deixa mal. Não deveria ser assim porque eu te amo, mas eu queria ser como vc. Eu queria ter a grana que vc tem. 

- Eu preferiria ter meus pais vivos. - Ignorando seu sofrimento, prossigo.

- Eu queria ser alegre como vc é. Eu queria ser amada por todos, mas ninguém, além de vc e dos meus tios, gosta de mim. Ninguém. Nem Vincenzo. Não me deixa, Antoine. - Imploro, recostando minha testa em suas mãos sobre a mesa. - Me perdoa. Eu sei que vc é pura. É virgem. Eu te invejo até por isso...- Emendo meu choro a um riso. Antoine ri de mim. Estamos chorando e rindo juntas quando ela me faz erguer a cabeça ao revelar.

- Vincenzo mentiu.

- Quando?

- Somos irmãos, Eileen.

- Irmãos!? Desde quando!?

- Desde que eu nasci, ué. - Gargalho, eufórica. Irmãos não transam. Ao, menos, não deveriam. - Nossa mãe é a mesma. Quando nasci, Vincenzo passou a cuidar de mim como um pai o faria. Quando nossos pais morreram, foi ele quem guiou meus passos e me orientou em tudo.

- De onde ele vem? - Sussurro, intrigada. - Ele não é normal. Tem asas. Eu vi. 

- Asas!? - Uma gargalhada e ela refuta. - Ele é um bom homem, mas não creio que já seja um santo ou anjo!

- Ele é diferente, Antoine. E vc também. Pode me contar. Sou do tipo que acredita em tudo.

- E faz tudo pra conseguir o que deseja, né? - Recuo meu tronco e, erguendo meu queixo, indago.

- Do que tá falando? - Sob a luz tênue do único lustre aceso acima de nossas cabeças, o 'pub' se torna sombrio quando a ouço responder.

- Vc usou de magia para encantar Aiden, Eileen. Vc o trouxe à sua vida.

- Não. Eu não me lembro...- Nego, aflita. - Eu eu não sabia...

- Seu lado obscuro o trouxe de volta das trevas e, com ele, Asmodeus viera junto.

- Co co como sabe disso, Antoine? Por que sua voz mudou? Eu tô ficando com medo.

- Seu filho foi concebido em uma noite de tempestade. Seu corpo não era seu e Aiden cedera o dele ao ser demoníaco. 

- Para, Antoine. - Erguendo-me da cadeira, eu a chacoalho pelos ombros. - Eu tô com medo. Acorda! - Em transe, ela continua.

- Eles o querem.

- Ninguém toca no meu filho! - Ameaço olhando ao redor. - Acorda, Antoine!

- Desfaça o acordo, Eileen e salve seu filho.

- Que acordo!?

- O que fez na noite da concepção. - Acendendo as luzes do salão, num desespero, afirmo.

- Eu não me lembro de nada!

- Não foi vc. Foi a outra.

- Que outra!? - Apavorada por não conseguir despertar Antoine, grito por meus tios. Eles não me ouvem. E nem poderiam. Estão no mercado há quilômetros de distância. Toco em Antoine. Sua pele fria como a de um cadáver me faz gritar. - Acorda, amiga! Acorda!

- Uma vida pela outra. Foi o que ele disse.

- Para de falar! Ninguém aqui vai morrer!

- Vai sim...- Um tapa em seu rosto e eu, enfim, a desperto. - O que eu fiz???

- Perdão! - Puxando-a contra meu peito, eu a abraço e volto a pedir perdão. Desnorteada, ela chora em meu ombro enquanto divago. - Não fez nada. Fica calma. Eu vou te proteger, ok? Eu vou te proteger. Custe o que custar. Eu comecei. Eu termino.



- É um menino.

- Uau! Tio Enrico vai amar, Eileen!

- Está se sentindo bem? - Pergunta-me a ginecologista deslizando o transdutor em minha barriga exposta, melada e gelada. Enquanto observa o feto através da pequena tela à sua frente, penso que, enfim, meu filho existe. Até então, era somente um sonho. Agora que o vejo pequenino e indefeso, mergulhado no líquido amniótico, meu coração bate quase tão rapidamente quanto o dele. Uma onda de emoção me toma por completo, o que me impede de falar. - Eileen? Vc está bem? - Com a voz embargando, indago.

- Ele é perfeito?

- Aparentemente sim. Preciso de mais exames a fim de fechar o diagnóstico, mas, por enquanto, posso afirmar que sim. Seu bebê é perfeito. - Tia Celeste e Antoine comemoram, histéricas. Tio Enrico chora, emocionado, no canto da sala. Rindo de todos, a ginecologista, curiosa, pergunta. - Já tem nome?

- Matteo! - Grita tio Vincenzo erguendo o braço esquerdo. Envergonhado por seu arroubo emotivo, ele baixa o braço e comenta. - Meu neto é italiano.

- Que lindo. - Diz ela. - Vc é italiana?

- Não...- Tento explicar enquanto minha tia, aos risos, me antecede.

- Meu marido e eu somos italianos. Nossa Eileen é irlandesa. 

- E o pai do bebê? - Engulo em seco diante do silêncio sepucral que se instala na pequena sala. Demonstrando solidariedade, a médica argumenta. - Não há necessidade de responder, Eileen. Eu fui indiscreta. Vc é a mãe e ponto. Se o seu pai é italiano, acho justo que o neto dele também seja.

- Obrigada. - Sorrio, emotiva. Ao som dos batimentos cardíacos de meu filho, anuncio. - Meu filho já tem nome.

- Matteo!? - Insiste tio Enrico. Um suspiro e, sorrindo, pronuncio seu nome.

- Vincenzo. 

- Uau...- Exulta Antoine. - Por essa eu não esperava.



Ainda choro ao me lembrar de suas últimas palavras antes de desaparecer de minha vida. Foram duras, mas verdadeiras. Agora, percebo o quão injusta tenho sido com Antoine. Penso em trocar de lugar com ela e permitir que ela brilhe como a garota da dupla. Certamente, ela está mais bela do que eu. Emagreci muito após a gravidez. Já não tenho mais o que vomitar. Minha pele translúcida não irá convencer o júri de que sou feliz e apaixonada pelo homem que dança comigo. Se eu me esconder por trás das roupas masculinas, talvez eu os convença de que sou um homem. Um homem arrasado, fracassado e estressado. Diabos! Por que não pensei nisso antes!? Há poucas horas para o 'Dublin Fringe Festival' e eu me encontro indecisa! 

- Eu serei o homem!

- Não!

- Sim, Antoine! Venha e vista a minha roupa!

- Não posso. Estou 'de cama', amiga. - Declara ela ao celular. Tonta, jogo-me contra a parede, escorregando até o chão. Sentada no piso frio do corredor próximo ao palco, rosno.

- Repete. O que disse!?

- Não vou poder dançar. - Desesperada, grito enquanto bailarinos passam por mim, eufóricos.

- REPETE!

- Fica calma, amiga. Vai dar tudo certo.

- COMO ASSIM, ANTOINE!? O SHOW VAI COMEÇAR DAQUI A ALGUNS MINUTOS! - Surtando, ordeno. - LEVANTA DA CAMA E VEM! VC TÁ RINDO!? ANTOINE! NÃO RIA! ANTOINE!?

- Ela desligou.

- Vc!?

- Vai amassar seu vestido se continuar aí, deitada no chão. - Respirando com dificuldade, jogo o celular contra a parede e, vencida, admito. 

- Parabéns. Vc estava certo. Não fui uma boa amiga e, agora, devem estar me punindo. Por que diabos está esticando seu braço?

- Vem. Levanta daí e deixa de ser dramática. - Mostrando-me suas covinhas, ele me faz arfar enquanto me ergue do chão. Em seu colo, sinto seu cheiro de maçã verde e seu hálito de hortelã ao comentar. - Ainda temos uma hora antes do show. Vai dar pra ensaiar.

- Ensaiar!? - Gargalho, desorientada. Jogando minha cabeça para trás, enxergo o céu azul. Tão azul quanto seus olhos que me fitam com ternura. Sério??? Encabulada, replico. - Garoto! Antoine e eu levamos meses pra decorarmos a coreografia e vc quer aprendê-la em minutos!? 

- Vc continua burra...e linda. - Diz ele após me observar com curiosidade. - Tá mais pesada.

- Não seja grosseiro. Eu emagreci.

- Não parece.

- Não me irrite.

- Eis a verdadeira Eileen! - Exulta ele, levando-me em seus braços onde desejo permanecer por toda a vida. - É tempo demais.

- Não entendi. 

- Esquece. - Pondo-me no chão, ele me faz sorrir e arfar ao me convidar. - Vamos dançar?

- Aqui? Estamos no jardim! Todos vão nos ver!

- E não pra isso que estamos aqui!? - Insegura, retruco.

- Não tem música. - Sua mão em minha cintura  me eletriza. Sua voz em meu ouvido, sugere.

- Tente escutar. Ela está em todos os cantos. - Nossas mãos se unem quando ele cantarola o início da canção. - "Eu tô cansado de te esperar." - Ruborizo diante de seus caninos proeminentes, das pintas simétricas ao lado dos lábios delicados. - Consegue ouvir?



- Sim. Como faz isso?

- Não fiz nada.

- Fez sim. - Afirmo recostando meu rosto em seu peito. Ouvindo seus batimentos cardíacos acelerados, imagino que seja por estar próximo a mim. Já que estou sonhando, deixem que eu pense o que eu quiser. - Do que tá rindo?

- Felicidade. Só isso. - Borboletas farfalham em meu estômago segundos antes de ouvir sua voz doce voltar a me convidar. - Dança comigo? - Absolutamente encantada, respondo num suspiro.

Sim.





Contrariando as minhas expectativas, vencemos o concurso. Vincenzo dançara ao meu lado como se nascesse conhecendo os passos. Hesitei antes de saltar sobre ele e gritei de euforia ao ser sustentada por seus braços fortes enquanto esticava braços e pernas, retesando meu corpo. Percebera, satisfeita, que suas mãos se demoravam em meus seios enquanto éramos aplaudidos pela plateia. De volta ao chão, damos as mãos e saudamos o júri numa reverência. Não sei se fora para dar credibilidade ao clima de romance da canção ou se fora um impulso de euforia, mas, ele acaba de me dar um beijo na boca. O público vai ao delírio enquanto mal consigo mover os braços de tão perplexa que estou.

Merda. Deveria ter aproveitado e me enroscado em seu pescoço e me entregado àquele beijo quente do qual ainda sinto o gosto.

- Foi simplesmente esplêndido!

- Antoine! O que faz aqui!? Não estava doente!?

- Vc é boba mesmo! - Diz tia Celeste nos bastidores. - Ainda não percebeu!?

- O quê!? - Indago, verdadeiramente feliz, abraçando o buquê de flores que ganhara no palco. - Vcs estão me escondendo algo!

- Foi uma pequena armação, filha.

- Armação, tio!? - Lançando um olhar curioso a Vincenzo incrivelmente sexy, suado e deixando à mostra parte de seu peitoral através da blusa social, indago. - Do que estão falando, parceiro?

- O que tem de bela, tem de burra.

- Vincenzo! - Repreende-o Antoine. - Para de chamar minha de amiga de burra. Ela não é obrigada a sacar que eu te ensinei os passos pra me substituir. - Arquejo, surpreendida. - Eu queria ter te contado, amiga. Mas ele não deixou.

- Por que faria isso? Vc não gosta de mim!

- Viu!? - Diz ele rindo para Antoine. - Ela é, de fato, burra! 

- Responde.

- Eileen! - Resmunga ele, revirando os olhos. - Eu fiz porque vc precisava dançar com um homem de verdade pra ganhar a grana de que tanto precisa. Talvez, agora, vc já possa sair da cidade como sempre quis.

- Não quero mais. 

- Ué! Por quê!? - Passando por ele, abraço meu tio e caminho em direção ao carro. Antoine, tia Celeste e Vincenzo nos seguem. Ainda sentindo seu beijo e aspirando a brisa fresca da noite, respondo em voz alta.

- Não vou brigar com vc hoje. Só por hoje. Estou muito feliz e, quanto à sua pergunta, talvez, um dia, eu a responda. - Próximos ao 'pub', tio Enrico me abraça e, emocionado, comenta.

- Que bom filha. Vc merece ser feliz. Sinto que as coisas vão mudar por aqui. 

- Eu também, tio. - Confesso, animada. - Se for um sonho, tio, não deixe que me acordem.



E eu não acordei.

Desde aquele dia, Vincenzo e eu não nos separamos mais. Apesar de nossas brigas frequentes, estamos cada vez mais unidos. Já não tenho as mesmas ambições. Usara o dinheiro do prêmio com o enxoval do bebê. Vincenzo me ajudara a escolher cada roupinha, cada enfeite para o quarto.

- Dizem que é melhor montar o berço depois que o bebê nascer.

- Não acredito nisso. - Refuto, sorrindo. - Vc me ajuda a montar.

- Claro. Na verdade, eu esperava pelo convite. - Vestindo um macacão jeans largo, sento-me na cadeira de balanço e, rindo, brinco.

- Convite pra montar o berço do meu filho!? Uau! Não pensei que seria um evento! - Ajoelhando-se diante de mim, ele diz algo que me faz arfar.

- É sim. É um dos momentos mais importantes da minha vida. Mal posso esperar pelo dia de seu nascimento.

- Vincenzo, vc me deixa confusa.

- Não chora, meu anjo. - Pede-me ele enxugando minhas lágrimas com seu polegar. - Vai dar tudo certo.

- Por que mudou tanto comigo?

- Porque vc mudou muito, Eileen. Não percebe? Vc é outra mulher. - Receosa e insegura, indago.

- E vc gosta dessa nova mulher? Estou mais gorda. Descabelada...

- Mais sensível e amorosa. Tem sido uma boa amiga para Antoine e uma ótima filha. Desistiu de seu sonho por seu filho. Ele tem sorte em ter uma mãe como vc.

- Vc acha?

- Sim. - Exalo. - Vc não me respondeu porque não quis deixar a cidade depois de ganhar o concurso.

- Não te parece óbvio?

- Não.

- Por vc, Vincenzo. Eu não quero ficar longe de vc. 

- Seu filho também?

- Sim. Ele tem um nome...- Abrindo uma espaço entre minhas pernas, ele pergunta.

- Qual? Matteo?

- Vincenzo. - Ele tomba para trás. Sentando sobre o piso em madeira do meu quarto, ele apoia os cotovelos nas pernas cruzadas. Escondendo o rosto, ele sussurra.

- Não acredito...- Ajoelho-me à sua frente e, emocionada, enxugo suas lágrimas com o dorso de minhas mãos. Beijo suas bochechas com gostinho de sal e, sorrindo, confesso.

- Não teria nome melhor para o meu filho.

- Nosso.

- Oi? - Arregalo os olhos, confusa. - O que disse?

- Nosso filho, Eileen. Casa comigo?

- Mas a gente nem se conhece...

- Conhece sim.

- Eu não me lembro. Eu nem sei se vc é bom de...

- No sexo? - Estupidamente enrubesço e emudeço. Retirando a camisa, ele a arremessa contra a parede e me beija com furor. Retribuo enquanto nossas mãos brincam em me desvencilhar do macacão. Nua, eu me envergonho dos seios maiores e da barriga mais saliente. Percebendo meu constrangimento, ele beija minha barriga e acaricia meus seios, acendendo-me por dentro.

Após meses, eu transo com um homem.

Após séculos, eu faço amor com Vincenzo. Ao meu lado, deitado sobre o tapete, ele pergunta.

- Aprovado? - Rindo à toa, respondo.

- Com louvor! - Apoiando a cabeça em seu cotovelo, ele volta a me propor.

- Casa comigo?


Felicidade são momentos aos quais devemos nos agarrar com unhas e dentes porque eles passam tão rapidamente quanto vieram.

Estou me agarrando ao dia de nosso casamento com todas as minhas forças. Jamais pensei que poderia ser feliz ao lado de um homem. Jamais. Eu invejava meus tios e, agora, comemoro o amor que sinto por meu marido, ao lado deles.

Diante da capela, jogo o buquê de flores aos poucos convidados. Antoine vibra ao agarrá-lo. Não a vejo casada. É tão inocente! Mas eu torço para que ela encontre alguém tão especial quanto o homem ao meu lado. Lindo e especial como Vincenzo.

- Marido.

- Esposa. Vc está linda. - Diz ele, francamente emocionado. - Não importa quantas vezes eu me case com vc. Para mim, é sempre a primeira vez.

- Vc me diz cada coisa esquisita! - Comento, eufórica, ao sair da capela, em seus braços. Padre Pietro, amigo de Vincenzo, realizara, na pequena e bucólica capela, distante de nossa cidade, a cerimônia de nossa união. Nos degraus da escadaria, posamos para uma foto. Distraídos e animados, meus tios e Vincenzo não enxergam o que acabo de avistar. A expressão de medo em meu rosto estraga a foto que eternizará um dos momentos mais felizes da minha vida. Aiden me observa num dos cantos da praça. Como uma hiena, ele aguarda o melhor momento para atacar. 

- Vc está bem? Está tremendo.

- Vincenzo, ele tá aqui. 

- Quem!? Aiden!?

- Sim. - Cochicho. - Não deixe que meus tios saibam. Ele quer vingança.

- Fique calma. Eu estou aqui. Vc nunca mais vai ter medo desse crápula.

- Não tenho medo dele, amor. Tenho medo de mim. Me ajuda a matar a 'outra'?

- Teremos tempo, amor. Eu vou te ajudar.





Exausta, retiro os sapatos e, descalça, procuro por uma cadeira onde possa descansar. Feliz, observo meus tios andando de um lado ao outro do 'pub', servindo e conversando com os poucos convidados à festa de nosso casamento. Enfim, eu serei tão feliz quanto eles.

- Com certeza.

- Marido, vc lê meus pensamentos. - Rindo, após tomar umas duas garrafas de cerveja, ele confessa.

- Leio sim. Desde o início.

- Bastardo! - Estapeio sua cabeça. Ele continua a rir de mim, sentado ao meu lado, enquanto reclamo. - Vc sempre soube que eu te queria!? Por que nunca demonstrou!? Teria poupado mais tempo!

- Vc precisava crescer, Sra. Rossi. - Um de seus sorrisos encantadores e eu me derreto. - Vem!

- Pra onde!?

- Vamos dançar! - Grita ele, eufórico. - Hoje é dia de festa! Enfim, eu me casei com vc! - Puxando-me até o meio do salão, ele ordena, num tom baixo. - Fique aí quietinha.

- Ok...- Suspiro. Vendo-o confuso diante da máquina, Antoine o ajuda a selecionar a música na 'Juke Box'. Assim que a canção tem início, ele grita um 'woohoo' e comemora, aos pulos. Eu nunca o vira tão feliz antes. Tenho tanto medo de que tudo não passe de um sonho e eu acorde a qualquer momento...- Fala sério!? Essa música é tão óbvia!

- Nosso amor é óbvio!

- Isso foi patético! - Comento aos gritos. Aos gritos, ele replica.

- Eu sei!!! A felicidade me deixa patético!!! 

- Eu tô cansada, amor!

- Come on, Eileen! Eu sempre quis dançar essa música com vc e nunca tive coragem de te convidar! - Antes de aceitar seu convite, tia Celeste, bêbada, me empurra em sua direção. Dançamos ao estilo irlandês sob palmas efusivas. Aos poucos, todos se juntam a nós e formamos um grupo coeso e frenético.

Nunca vira o 'pub' tão iluminado...



Esquecendo-me do cansaço, danço ao seu lado até arquejar de espanto.

- O que houve!? - Pergunta-me Vincenzo, preocupado. Levando a mão à barriga, comento, incrédula e radiante.

- Ele mexeu! - Ensandecido de felicidade, ele anuncia em voz alta.

- NOSSO FILHO SE MEXEU!

- AUGURI! - Berra meu tio absolutamente embriagado...e feliz. Seus olhos sorriem para mim enquanto prendo o choro. 

- Te amo...per sempre, esposa.

- Per sempre, marido. - Murmuro, abraçada a Vincenzo. De costas para a porta do 'pub', ouço o ruído sonoro do 'Sino dos Ventos'. Um forte arrepio e abraço Vincenzo com mais força. Pressentindo sua presença, imploro contra seu peito. - Não faça nada. Por favor.

Lentamente, olho ao meu redor. A escuridão vai tomando conta do ambiente, alastrando-se pelas paredes enfeitadas, cobrindo quadros, bandeiras, balcão até chegar aos nossos pés. Temendo pela vida de Vincenzo, eu o empurro contra o sofá e, voltando-me em direção à porta, declaro.

- Vcs não são bem-vindos à minha casa. - Encarando seu sorriso medonho, corro até o balcão e, com o giz do cavalete onde escrevo o cardápio do dia, desenho, com destreza, no chão do 'pub', diante de seus coturnos imundos, um símbolo de proteção. Repetindo, incessantemente, palavras ritualísticas, permaneço agachada por um tempo até que Vincenzo me desperte do transe e o confronte.

- Saia imediatamente, Aiden, ou vai se arrepender.

- Duvido muito.

- Sai! - Grito, enraivecida. Cuspo em sua face enquanto rosno. - Tenho nojo de vc, Aiden. Junte-se ao seu amigo e vá embora daqui.

- E o nosso filho, baby?

Vincenzo acerta um soco em seu nariz. Ouço o ruído de ossos se partindo. Ouço sua gargalhada infernal ao recuar e se indignar, limpando o sangue que escorre em seu queixo.

- Vim em missão de paz e sou recebido assim?

- Assassino! - Exalta-se meu tio. - Vc tentou matar Eileen e ainda tem coragem de aparecer aqui!? Suma daqui! - Contendo tio Enrico, tia Celeste lança um olhar frio a Aiden e pede, mantendo-se calma.

- Saia daqui, Aiden ou vou chamar a polícia.

- E dizer o quê? - Zomba ele, sorrindo. - Que trouxe uma bomba dentro dessa caixa? - Recuo assim que ele faz menção em entregá-la a mim. - É para o nosso filho, baby. - Horrorizada, gaguejo.

- Na não temos filhos. Vincenzo, meu marido, é o único pai do meu filho. - Um riso irônico e ele comenta.

- Sempre foi assim. Sempre criando os filhos dos outros. Não tem bagos pra gerar seus próprios filhos? 

- NÃO! - Impeço Vincenzo de avançar sobre Aiden e causar um mal maior. Abraçando-o com força, cochicho. - Ele não está só.

- Eu sei. E não tenho medo.

- Deveria...

- Some daqui, Aiden! - Grita Antoine protegendo-me com seu corpo. - Sei o que deseja, mas não o terá nessa noite. 

- Falou a garota que manca...- Surpreendendo-nos a todos, Antoine o golpeia no pescoço, erguendo a perna direita: a que manca. Estendido sobre o piso, ele ainda sorri.

- Isso é pra vc se lembrar da minha perna manca pra sempre, cretino! - Mais dois chutes em seu estômago e ela se afasta, alertando. - Não toquem no presente! Não abram a caixa!

Tarde demais. 

Um grito de horror e a amiga de tia Celeste atira a caixa aberta contra o chão. O corpo do que, a princípio, parece ser um bebê coberto por sangue, rola até o balcão, causando alvoroço entre os convidados. Antoine caminha até o corpo e nos certifica de que se trata de um boneco. Do chão, Aiden gargalha. De onde estou, grito.

- NÃO TOCA, ANTOINE! - Ela recua, assustada, enquanto observo o boneco com uma fenda aberta em seu peito. Como em um filme de horror, minúsculas baratas escapam da fenda, causando-nos repulsa. Vomitando, instintivamente, sobre o boneco, acabo por fazer a coisa certa. - O feitiço foi quebrado. - Aviso antes de dar lugar a 'outra'. - 'Dannazione'! Eu vou te matar! 

Montada sobre o corpo de Aiden, observo, apavorada, meu braço direito erguido; na mão, o gargalo de uma garrafa quebrada ao meio. As cerdas pontiagudas chegam a tocar a pele de seu pescoço quando, com extrema dificuldade, Vincenzo me arrasta pelas axilas. Vejo, impotente, meu corpo se debater. Dentro de mim, temo pela vida de meu filho. Minha garganta arde de tanto gritar e blasfemar. Com o giz em minha mão, ainda consigo escrever no piso em madeira antes de desmaiar.

"Me ajuda".






Ouço a voz doce de Vincenzo chamar por meu nome.

- Está aí?

- Sim. - Respondo em meio à escuridão. - Tenho medo. Salva nosso filho.

- Fique calma, amor. Isso não vai doer. Eu prometo. Vou te contar uma história e, assim que eu terminar de contar a história, vou contar de três até o número um e, então, vc vai acordar e de nada vai se lembrar além de sua vida atual.

- Uma história de amor?

- De muito amor...- Afirma ele, emocionado. - Nunca se esqueça de que eu sempre te amei e sempre te amarei.

- 'Anche io. Ti amo'.

Apago por um tempo inestimado. Acordo. Abro os olhos estranhando a voz de Vincenzo cantarolando o refrão de uma canção de amor. 

- 'Sha na na na na na na na na na. It'l will be all right'. Três, dois, um. Volte, Eileen. Sempre que ouvir esse comando, volte a ser a minha Eileen.

- Que diabos de música é essa!? E por que estou em nossa cama!? - Erguendo-me do colchão, refuto, incomodada. - É triste demais. Eu já não sou uma mãe solteira. - Lançando um olhar curioso aos meus tios, questiono. - A festa acabou!? Eu desmaiei!? 

- Calma, filha.

- Tia! Antoine não pode abrir a caixa!

- Não a abrimos! - Assegura-me tio Enrico. Antoine, ao seu lado, comenta.

- Vc dançou muito. Precisa descansar.

- Preciso de um banho! Vincenzo, tira esse vestido de mim! Pesa pra cacete! - Todos riem de maneira estranha, mas não me importo. Estou casada com o melhor homem do mundo e com seu filho em meu ventre. O que mais posso querer? - Tia, ainda tem alguém no 'pub'?

- Não, filha. Foram todos embora. Bêbados e de barriga cheia! - Interrompo os risos ao afirmar.

- Não não. Tem mais alguém aqui. - Descendo as escadas, apressadamente, eu o surpreendo. - Ainda aqui!? 

Vincenzo, meus tios e Antoine chegam logo em seguida. Segundos antes de eu arremessar uma garrafa de cerveja contra Aiden. Desviando-se da garrafa, ele festeja.

- Eu ouvi tudo, Vincenzo panaca!

- Maldito! - Urra Vincenzo. - Ele ouviu!

Da calçada, Aiden me acena e cantarola a mesma canção que ouvira, há pouco, antes de acordar.

"Sha na na na na na na na na na. It'll be all right".

Sem compreender a dor de meu marido, eu o beijo na boca e, insegura, indago.

- Ainda vamos ter nossa lua-de-mel na Itália? - Um sorriso triste e ele confirma.

- Claro. Foi lá onde tudo começou.





Itália revigora minhas forças, embora minha barriga esteja cada vez maior e mais pesada. Eu sempre soube que deveria pisar nesse solo, mas jamais tivera coragem antes de Vincenzo surgir em minha vida. Herdando parte da fortuna da mãe de Antoine, ele não se opõe a nada que peço. 

- Vc não me pede nada de fútil, amor. Só deseja conhecer a nossa terra.

- Nossa???

- Sim. Nossa. - Dirigindo um carro alugado, ele me leva por estradas bucólicas repletas de casas aconchegantes e um povo hospitaleiro. Em nossa primeira parada, jantamos em uma cantina tipicamente italiana onde, sem pudor, devoro dois pratos de lasanha à bolonhesa e ainda sinto que sobra espaço para a sobremesa. Do ouro lado da mesa, Vincenzo me observa como se eu fosse uma obra de arte criada por 'Michelangelo'. Envergonhada por minha gula, prometo. - Juro que vou me controlar da próxima vez.

- Não precisa. Faça o que quiser. Sou teu escravo.

- Não fale assim ou será castigado hoje à noite.

- Mal posso esperar...- Uma gargalhada histérica e escondo meu rosto com o auxílio do guardanapo. - Quero te levar a um lugar especial.

- Aonde?

- Ao meu lar aqui na Itália.

- Sério??? Vc tem casas na Itália??? Então casei com um homem rico sem saber!!!

- Nem tanto.

Mais algumas horas de viagem no carro e, enquanto durmo, ele dirige. 

- Chegamos. - Abrindo os olhos, pergunto.

- Onde?

- À minha casa. Minha e de Antoine. - Diante de um castelo, procuro por um casebre quando ele me faz caminhar até o imenso portão preto aberto por ele com um empurrão. O portão range ao se abrir ao meio. É quando ele anuncia. - Bem-vinda ao nosso lar.

- No no nosso??? Esse castelo é seu, Vincenzo???

- Nosso. - Corrige-me ele levando-me em seu colo ao subir as escadarias. - É muito antigo, mas está bem conservado. Temos poucos funcionários. Espero que goste. - Embasbacada, ironizo.

- Aaah! Eu vou odiar!



Passamos dias tranquilos no castelo repleto de boas recordações. Posso ouvir os risos ecoando nos corredores. Vejo, também, o espírito triste de uma jovem ruiva com os cabelos molhados. Ela, infelizmente, não me enxerga, logo, não posso ajudá-la a encontrar o homem por quem ela procura. Provavelmente, seu grande amor. Não compreendo porque sinto uma enorme compaixão por ela...

- Quem é Giovanni? - Engasgando-se com o brioche à mesa enorme e farta do café da manhã, Vincenzo pergunta, intrigado.

- Por que quer saber!? 

- Não posso falar. Vai me achar maluca. - Sentando-se mais próximo a mim, ele cochicha. - Não vou não. Já sei que vê os mortos e tem o dom da 'psicometria'.

- No nay never! O que é isso!? - Rindo, ele me explica.

- É a faculdade de tocar em objetos e pessoas e sentir o que elas sentem ou já viveram. 

- Como sabe que tenho isso?

- Porque eu te conheço há muiiiito tempo, amor. - Beijando minha boca com gosto de café, ele conclui. - E te amo desde então. Dessa vez, seremos felizes. Eu prometo.

- Eu acredito, marido. - Comendo meu segundo brioche com manteiga, argumento. - Então é por isso que me sinto tão bem aqui. Percebo que havia alegria entre os que aqui viveram antes de vc e Antoine.

- Tem razão. - Diz ele num tom melancólico. - Todos fomos muito felizes aqui.

- Fomos??? - Indago de boca cheia. - Vc já morou aqui antes com outra mulher???

- Nunca. - Afirma ele rindo de meu ciúme. - Sempre foi com vc e sempre será.

- Amor, eu te amo, mas vc é esquisito com essa história de 'fomos', 'sempre'. A propósito, quem é a ruiva que chora todas as noites nos corredores da mansão? Pobrezinha. Procura pelo tal de 'Giovanni'. - Recuando o tronco, ele responde com seriedade.

- Não faço ideia. Muitos viveram e morreram aqui, amor. - Parecendo desconversar, ele acaricia minha barriga ao comentar. - Falta pouco para o nosso filho nascer.

- Amor?

- Sim.

- Vc não se importa mesmo que o pequeno Vincenzo não seja seu filho biológico?

- Não mesmo. Eu o amo como se fosse meu. Ademais, logo que o pequeno Enzo nascer, eu vou te fecundar, Sra. Rossi. - Ruborizando, provoco.

- Então, aconselho a praticarmos todos os dias.

- Mais de duas vezes ao dia. - Seu olhar lascivo me atrai como um imã poderoso. Vestindo uma longa camisola branca com mangas bufantes, salto da cadeira e monto em seu colo. Sentada sobre seu pau ereto debaixo do pijama, eu o beijo com devassidão e ronrono.

- Vamos começar agora?

- Não me pergunte outra vez...

A caminho do quarto, vou gargalhando em seu colo sem deixar de notar a ruiva que lança um olhar assustado a Vincenzo e o chama de 'Giovanni, meu amor'.

Esquisito...



Em nossa última noite na Itália, Vincenzo me convida a dançar no vasto salão iluminado por lustres de cristal belíssimos pendendo do teto abobadado. Um pouco distante, na sala de estar, o fogo lambe a lenha na lareira enquanto meu coração se comprime sem motivos.

- Tem medo do fogo?

- Não sei. Ele me incomoda. - Respondo abraçada a ele. - Eu costumava gostar.

- Posso apagar.



- Não. Deixa pra lá. - Sorrio ao observá-lo. - Vc está lindo marido. Parece ter saído de um dos livros de Jane Austen. Já leu 'Orgulho e Preconceito'?

- Muitas vezes.

- Eu amei esse vestido, 'Mr. Darcy'. Nem parece que é a primeira vez que o visto.

- Talvez não seja...

- Ai! - Reviro os olhos. - Vc e suas frases de efeito. Quase não coube. - Choramingo. - Estou uma baleia.

- Vc está tão bela quanto sempre foi...- Um sorriso tímido e ele me pede numa reverência.

- Seja minha 'Elizabeth' e dance comigo, meu grande amor. - Um beijo no dorso de minha mão e a magia acontece.


Dançamos juntos como nos bailes do século XVIII. Passos rítmicos, suaves, delicados. Há lágrimas em seus olhos ainda mais azuis. Bailando com maestria, ele me corrige com ternura quando erro. 

- Está se sentindo bem?

- Não sei, Vincenzo. Tenho a impressão de já ter vivido isso.

- Um 'déjá vu'.

- Não. - Interrompo a dança e olho ao redor. As velas acesas, os risos, um grito de horror...- É mais do que isso. Parece que eu já estive aqui e já sofri aqui também.

- Vamos parar. Foi uma péssima ideia. - Arrependida por vê-lo triste, peço desculpas.

- Devem ser os hormônios, amor. Vamos continuar. Essa é a nossa última noite na Itália. Não quero estragar tudo. - Abraçando-me com força, ele indaga ao beijar meus cabelos.

- De que tem medo? 

- De voltar à Irlanda. 

- Vamos morar em outro país.

- Não posso! - Recuo. - Meus tios precisam de mim! Estão velhos e cansados! Quem vai cuidar do 'pub'!? - Contrariado, ele refuta.

- Alguém que não seja vc, amor! Precisamos começar uma vida nova!

- Não sem meus tios...- Protesto aos prantos. - Agora que posso ajudá-los, vc quer que eu os abandone? - Baixando a cabeça, ele sorri ao comentar.

- Vc mudou mesmo.

- E isso é ruim?

- Não. Vc cresceu. Temos um futuro.

- Claro que temos. Nosso filho, vc, meus tios e eu. - Esclareço, intrigada. Apreensivo, ele concorda.

- É isso. Temos um futuro na Irlanda. E não se esqueça de Antoine.

- Nunca! Agora somos amigas e cunhadas! - Tocando as paredes do salão, debaixo de uma tocha acesa, indago. - Por que sinto que algo de muito ruim aconteceu aqui?

- Porque deve ter acontecido.

- Vc tá me escondendo alguma coisa. O que houve aqui?

- Melhor não saber, amor.

- Mas eu quero saber. - Insisto. - Eu ouço cavalos relinchando. Isso não faz sentido.

- Eu cometi um erro ao te convidar pra dançar. - Assume ele, levando as mãos aos cabelos, despenteando-os. - Eu queria reviver aquele momento, mas não deu certo. 

- Que momento!? Eu não acredito em vidas passadas, Vincenzo!

- Melhor assim.

- Me fala. Por favor.

- Quer acordar a 'outra'? - Pergunta-me ele num tom sinistro. 

- Não. Não mesmo. Por que faz isso!?

- O quê!?

- Brincar comigo! Se sabia que tudo isso poderia acordar a 'outra', por que estamos aqui, dançando!?

- Eu errei, porra! Perdão!

- Tá perdoado! - Grito arrastando a saia pomposa pelo chão do salão. Sem saber para onde ir, resmungo. - Essa roupa pesa mais do que meu vestido de noiva. Como as mulheres daquela época conseguiam ficar dentro disso por tanto tempo!?

- Vc amava vestidos novos...- Diz ele, nostálgico. Um olhar de fúria e o ameaço.

- Para de falar de mim no passado ou vai se arrepender! - Pressionando suas mãos em minhas têmporas, ele admite.

- Já me arrependi. Cometi um erro em nossa última noite. - Lastima ele. - Vamos retirar essas roupas. Que tal voltarmos à nossa cama? - Tocando em seu rosto triste, comento.

- Essa foi a nossa primeira briga de casal.

- A primeira de muitas, sra. Rossi.

- Vc não quer voltar. 

- Quero sim.

- Não quer. Eu sinto. - Empaco enquanto ele me arrasta para fora do salão. - Aonde vamos?

- Ver o céu. - Desconfiada, caminho ao seu lado. - Não fica assim. Eu amo esse lugar. É só isso.

- Não é não. Vc tá me escondendo algo. Me diz. Vc deixou de me amar? - Puxando-me para si, ele responde contra minha boca.

- Nunca. Eu nunca deixei de te amar, Eileen. Para de pensar em coisas ruins. Eu vou te proteger. Eu prometo.

Na imensa varanda, sob a luz da lua amarelada, eu suplico.

- Proteja nosso filho. Aiden não vai desistir, amor. 

- Se acalma. - Nervosa, prossigo, recostada à coluna romana em mármore. 

- Eu não sei como desfazer o pacto porque eu não me lembro de ter feito essa porcaria de pacto!

- Ele já foi desfeito. - Sufocando um soluço, indago.

- Como sabe!? Quem o desfez!? Seu amigo Lúcifer!? - Afastando-se de mim, ele refuta.

- Ele nunca foi meu amigo e nunca será. Tenho amigos de verdade. Ao menos um. - Fixando seus olhos no céu estrelado, ele une as mãos em prece e declara. - Ele desfez o pacto. Nosso filho está livre.

- Jura!?

- Sim.

- Por quem!?

- Um amigo.

- Qual o nome!?

- Miguel. Vc não o conhece...ainda. - Voltando a me abraçar, ele mente. - Vai dar tudo certo, amor. Confia em mim.

- Confio. 

Nossa última noite na Itália foi a mais ardente de todas. De todas as formas, nós nos amamos. Eu nunca o vira tão despudorado antes. Enquanto descanso ao seu lado na imensa cama com dossel em madeira, procuro sanar minha dúvida.

- Vincenzo?

- Sim...

- Por que ficou preocupado quando viu Aiden cantarolar aquela canção?

- Esqueça isso, amor. - Eu o assusto ao montar sobre ele e protestar.

- Não mesmo! Me conta tudo! Somos um só agora! Se esqueceu!?

- Tem razão. - De olhos fechados, ele confessa. - Talvez ele conheça o poder daquele refrão. Talvez não.

- E qual seria?

- O de acordar a 'outra'. Satisfeita agora?

- Não mesmo. - Retirando a camisola, eu a arremesso contra o fantasma da ruiva colérica. Expondo meus seios fartos e a barriga proeminente, declaro. - Estou longe de me satisfazer, marido. 

- De novo!? - Pergunta-me ele, sorrindo. Gemendo de prazer, respondo.

- Não! Novamente!




Nosso filho chega ao mundo em um dia ensolarado. Meu pequeno irlandês italiano nascera forte e saudável, cercado de amor por todos os lados. Não me canso de observar cada parte de seu corpinho, os dedinhos dos pés e das mãos enquanto Vincenzo, Antoine e meus tios tentam, a todo custo, esconder algo de mim. Absolutamente feliz e confiante, aceito a proposta de Vincenzo em mudar o nome de nosso filho para Enzo a fim de não confundi-lo.

- Enzo é perfeito. - Sussurro enquanto o coloco em seu berço em nossa nova casa, próxima ao 'pub'. Dormindo, Enzo parece um anjo. Curvado sobre o berço, Vincenzo o acaricia. Procuro não comentar sobre o sinal no dorso de sua mãozinha, embora Vincenzo já tenha ouvido meus pensamentos e tentado me convencer de que todos têm sinais e que eles nada significam, em sua maioria. - Em sua maioria? E se nosso filho fizer parte da minoria? - Contendo o choro, cravo as mãos nas grades do berço ao murmurar, horrorizada. - E se essa cruz invertida significar algo? - Revirando os lindos olhos, ele replica num tom divertido.

- Cruz invertida!? Amor, onde vc vê essa cruz!? Parece mais com a letra 'T' em minúsculo! E só fica invertida se vc olhar de outro ângulo! - Jogada contra a cadeira de balanço onde eu o amamento, desabo. Dias e dias de um silêncio avassalador e, enfim, compartilho meus medos.

- Não, amor. É mais do que um 't'. - Entre soluços, afirmo. - É uma cruz. Eu sei que é.

- Que seja. - Diz Vincenzo ajoelhado entre minhas pernas. Enxugando minhas lágrimas, ele, arrebatado por sua fé, enche-me de esperanças. - Que seja a cruz do Salvador. Do Cristo. Nosso filho nasceu abençoado, Eileen. É protegido por Jesus. Nunca houve alguém como Ele. - Seus olhos brilham ao prosseguir. - Sua voz mansa nos atraía a todos. Sua luz nos cegava até que...- Observando meu olhar de desconfiança, ele hesita. - Desculpa.

- Continue. Eu sei que estava lá. Sei que é um anjo. Continue. - Minutos de silêncio precedem suas palavras. Enxugando suas lágrimas, eu o incentivo. - Continue, amor. Me diz que vc estava do lado certo.

- Estava. Eu o acompanhei durante os sermões e, infelizmente, durante o calvário, mas jamais me atrevi a falar com Ele. 

- Por que não?

- Vergonha. - Engolindo em seco, sua voz embarga antes de prosseguir. - Eu sempre fui confundido com um dos membros da 'Legião'. 'Caí' por amor e não por odiar o Criador.

- 'Caiu'? Do céu? Por amor a quem?

- A vc.

- A mim!? O que eu tenho de especial!?

- Tudo...- Diz ele ao me beijar. - Eu sempre te amei.

- Isso é lindo. Como 'caiu'?

- Havia uma rebelião...

- Já sei. - Interrompo Vincenzo estirado no tapete felpudo. - Conheço essa história. Vc já me contou sobre isso antes?

- Sim. Mas não nessa vida. - Inebriada por sua voz melodiosa deixo escapar um 'Aaah. Claro'. A luz do abajur se expande enquanto ele confessa. - Eu vi quando Lúcifer se aproximou de Judas e nada fiz para impedir...

- Vc não é Deus, amor. - Refuto deitada ao seu lado. -Não poderia mudar o curso da História.

- Faz sentido. 

- Por que tá me olhando assim!?

- Vc acredita em tudo o que digo!? - Abafo o som de minha gargalhada estridente ao responder.

- E eu tenho outra opção!? É mergulhar em seu mundo maluco ou internar o pai dos meus filhos! - Rimos juntos até que ele, de súbito, erga seu tronco e me encare com aquele olhar de menino travesso que tanto amo.



- Nossos filhos!?

- Sim, 'Mr. Darcy'. Seu filho cresce dentro de mim.

Emocionado, ele emudece e me abraça forte ao sussurrar.

- Dessa vez, seremos felizes pra sempre, amor. - Choro em seu ombro, ao afirmar, cheia de dúvidas.

- Pra sempre.



Como bons católicos, meus tios cuidaram de todos os detalhes do batismo de Enzo, a cada dia mais fofo. Risonho, ele conquista a todos que o veem. Em nada se parece com o pai biológico que, segundo os boatos, tem ganho muito dinheiro com negócios ilícitos. Pouco me importo. Eu o quero distante de minha família, embora eu o sinta por perto enquanto seguro Enzo em meu colo diante da pia batismal. Tia Celeste cedera seu lugar de madrinha a Antoine que, a princípio relutou em separar o casal. Tio Enrico a convencera de que Celeste não precisa de títulos. Sempre será a avó presente.

- Tenho certeza de que vc será a melhor madrinha que Enzo poderia ter.

- Obrigada, tio. - Diz Antoine, emocionada ao segurar Enzo em seus braços. Parecendo ausente, ela fala com ele. - Eu daria a vida por vc, meu anjo.

Padre Pietro após o batismo, abraça Vincenzo e, com um certo temor, adverte num tom baixo. 

- Cuide dele e não o deixe se desviar do Caminho. - Com Enzo em meu colo, tomada pelo medo, assusto Vincenzo ao confrontar padre Pietro.

- Que caminho, padre!? Do que estão falando!? 

- Calma, Eileen!

- Me Solta, Vincenzo! - Enzo chora em meu colo. Tio Enrico me abraça protegendo-o de uma possível queda enquanto me desespero. - É a marca! Não é, padre!? O senhor viu a marca e sabe o que ela significa! A cruz invertida!

- Dio mio...- Murmura tia Celeste ao fazer o sinal da cruz. - Essa conversa de  novo, filha!? - Tomando Enzo de meus braços, ela refuta, indignada. - Meu neto não tem cruz nenhuma na mãozinha! - Beijando com ternura o dorso da mão de meu filho, ela conversa com ele com sua voz doce. - Mamãe tá vendo coisas, né? Vc não tem marca nenhuma. Isso é a porcaria de um traço com outro traço menor cortando traço maior. Ponto. - Erguendo seus olhos serenos, ela me encara ao ordenar. - Esqueça esse assunto, Eileen. Hoje é dia de festa.

- Vcs não entendem...- Choramingo. - Ele corre perigo. - Próxima á saída da capela, Vincenzo me segura pelos braços e, tentando me acalmar, afirma.

- Eu não vou deixar que nada aconteça a ele. Entendeu?

- Filha...- Diz padre Pietro erguendo meu queixo com seu indicador, forçando-me a encará-lo. - O conselho que dei ao seu marido é o que dou a todos os pais. Não há nada de cabalístico em pedir que os pais não deixem que seus filhos se desvirtuem num mundo como o de hoje. Há muitas tentações. Só isso.

- Abençoa nosso filho, padre.



Posando para uma foto, Antoine, contente, segura seu afilhado nos braços. Meus tios conversam com padre Pietro enquanto discuto com Vincenzo, em um dos degraus da escadaria em frente à capela, que se preocupa com o sol forte sob a pele branca e delicada de Enzo. "Só mais uma!", grito irritada. Como sempre, Vincenzo cede aos meus caprichos e se afasta, risonho. 

A culpa e o remorso me acompanhariam até o fim. Eu deveria estar em seu lugar...

- Eu quero que pegue o chafariz!

- E eu quero sair daqui com nossos filhos...- Reclama Vincenzo, sorrindo. Um beijo em sua boca e desço os degraus. De costas para ele, peço, empolgada.

- Só aperta o botão quando eu estiver lá!


Do último degrau, assisto a tudo.

O Tempo para. Meu coração deixa de bater quando a ouço dizer assim que o arremessa em meus braços.

- Uma vida pela outra.

Vejo seu sorriso puro pela última vez. 



Antoine partira dessa vida por amar demais. 

Seu caixão desce à cova sob os pingos da chuva fria. Antoine amava dias chuvosos. Vincenzo chora, de joelhos, a perda da irmã, minha única e melhor amiga. Meu filho, salvo pela madrinha, dorme tranquilo, no colo de tia Celeste. Não suporto a dor de Vincenzo. A dor que eu lhe causei. Movida pelo remorso recuo assim que o coveiro joga, displicente, a primeira pá de terra sobre o caixão fechado. O lindo rosto de Antoine ficara irreconhecível após ser arrastado por quilômetros. Longe de todos, ouço os urros de Vincenzo e me culpo. Minhas lágrimas se misturam à chuva. Meu vestido preto se gruda ao corpo. Deitada sobre a relva, recordo-me de nossos dias na faculdade. Vincenzo, mais um vez, urra de dor e de ódio. Nunca o vira tão transtornado antes.

- E vai piorar.

- Te afastas de mim, víbora. - Agachado ao lado da grande árvore, ele destila seu veneno.

- Vincenzo deseja vingança, meu bem. Ele não pode matar humanos, mas tu podes matar aquele que esmagou a cabecinha de nossa pobre Antoine. - Num tom irônico, Lúcifer comenta. - Quando Aiden a atropelou não imaginava o tamanho do estrago que faria. Quem poderia supor que ela ficaria presa ao capô do veículo?

- Vá embora. - Rosno tapando os ouvidos com minhas mãos sujas de terra. - Suma de nossas vidas ou vai se arrepender. - Avançando até mim, ele me assusta ao sussurrar bem próximo ao meu ouvido.

- Vingue-se ou serei obrigado a assistir à queda de Vincenzo. E, enfim, ele será meu. - Erguendo meu tronco, encaro seus olhos em chamas ao indagar.

- Como assim? 

- Se o nosso querido Vincenzo praticar um ato de maldade, ele deverá voltar à 'Legião'. Esse é o pacto. - Sorrindo maliciosamente, ele exulta. - Mal posso esperar por esse momento.

- Não vou deixar. - Refuto, de pé. - Meu Vincenzo não vai pecar. 

- Vão deixar que Aiden escape, impune, dessa vez!? Que lástima! - Sem perceber, decreto o fim da minha história.

- Não. Dessa vez, ele vai ter o que merece. Por que me disse isso? Se eu o salvar, vc nunca o terá ao seu lado. - Afastando-se, ele evapora, mas ainda consigo ouvir sua resposta intrigante.

- Talvez porque vc mereça sofrer mais do que ele...



Eu preciso continuar a viver. Não quero morrer. Quero o que nunca mais teremos: a inocência do início. Os dias sem temor...sem ressentimentos.

- Vc me culpa. Eu sei. 

- Não seja boba. Eu jamais te culparia. - Diz Vincenzo ao meu lado, no balcão do 'pub' vazio, após uma noite cansativa. Enxugando os copos, ele divaga. - Antoine veio ao mundo para cumprir uma missão. E ela cumpriu.

- Salvou nosso filho.

- E nos uniu novamente. - Um sorriso triste e ele comenta. - Para de pensar bobagens. Eu te conheço, Eileen. Vc não é má. Sempre foi impulsiva, mas nunca foi má. - Em seu carrinho, Enzo brinca com os dedinhos das mãos, sob os cuidados de tia Celeste, descabelada e sorridente. Tio Enrico me sorri com os olhos enquanto varre o salão. Um aperto no peito e pergunto num tom baixo.

- Desistiu da vingança? - Com outra pergunta, ele me faz calar e chorar.

- Como posso pensar em vingança se eu tenho tudo com que eu sempre sonhei? - Acariciando minha barriga, ele renova minhas esperanças. - Nossa filha está a caminho e eu não me lembro de ter sido tão feliz em todas as minhas vidas, amor. Vamos viver o presente. - Eu o abraço forte e, entre soluços, suplico. 

- Nunca mais me deixe, amor.

- Nunca. 

'Nunca' é tempo demais. Um olhar ao redor e percebo que nunca fora merecedora de tanto amor. Um amor que transborda e me dá forças para agir no momento certo.

Ou quase...

Os espectros infernais o precedem, espalhando-se pelas paredes do 'pub' como erva daninha. Com um chute brutal, ele estilhaça o vidro da porta. O 'sino dos ventos' anuncia o início do fim. O primeiro a ser atingido pelos disparos de seu revólver é tio Enrico. Seu corpo tomba contra o piso salpicado de vermelho enquanto tia Celeste, aos gritos, se joga sobre seu grande amor. Em choque, eu a vejo chacoalhar meu tio como quem sacode um boneco de pano. Vincenzo pula do balcão e, com agilidade, impede o primo de Aiden de disparar contra tia Celeste. A cadeira em madeira se parte ao meio ao atingir sua cabeça. Num gesto ligeiro, Vincenzo pressiona sua mão sobre a mão do primo de Aiden e o faz atirar contra si mesmo. Outro corpo estirado no piso quadriculado. O choro estridente de Enzo me tira do transe. Meu instinto materno me guia até o carrinho de onde retiro nosso filho. Com ele em meu colo, encaro os olhos escuros e coléricos de Aiden. 

- Nosso filho? - Horrorizada com seu tom de voz gutural, penso em subir as escadas e proteger Enzo do ser infernal que se une a Aiden. Solto um grito de pavor ao me virar em direção à escada que me levaria ao segundo andar e, novamente, encarar Aiden. Sua voz maliciosa indaga. - Com medo de mim?

- Aiden! Não! - Grito enquanto recuo agarrada ao meu filho. - Não toca nele!

- É meu filho. - Abrindo um lento sorriso sinistro, ele se corrige. - Nosso.

- Nunca! - Impulsiva, eu o provoco. - Esse filho é de Vincenzo, meu marido! Assim como o que carrego em meu ventre! - Tomado pela fúria, ele cerra os punhos e me atinge com um soco no queixo. Tonta, cambaleio entre as mesas. Vincenzo me ampara tomando de mim, nosso filho. Caio ao lado do corpo sem vida de Tio Enrico. Suas bochechas, sempre rosadas, estão pálidas. Tia Celeste, em choque, sorri ao afirmar.

- Ele vai acordar. Tem estado cansado, meu pobre Enrico. 

- Perdão...- Suspiro ao manchar minhas mãos com seu sangue. - Eu poderia ter evitado tudo.

- Não. - Refuta ela, sem ânimo, recostada à parede. - Eu deveria ter te impedido de conhecer Vincenzo, mas não consegui. Eu sempre soube que ele seria o seu fim.

- Não! Ele me deu razão pra viver! Ele me mudou, tia! - Um outro disparo e comprimo meus olhos. Desesperada, engatinho, no chão escorregadio, até Vincenzo. Um tapa em seu rosto e ordeno. - VOLTA! NÃO SE ATREVA A MORRER! 

- Nosso filho...- Murmura ele golfando sangue pela boca. Pressiono com minha mão suja, o ferimento em seu abdômen por onde seu sangue escapa. Atrás de Vincenzo, pressionado por seu corpo contra a parede, nosso Enzo chora. Desorientada, eu o recebo de suas mãos trêmulas. Ouço sua voz doce e sofrida pela última vez ao ordenar. - Fuja.

- Nunca! Eu vou te salvar! - Apertando Enzo contra meu peito, protesto. - Vc é um anjo! Reaja, Cassiel!

- Tarde demais, baby...- Diz Aiden agachado ao meu lado. Observando, curiosamente, os momentos finais de Vincenzo, ele ironiza. - O filho que carrega em seu ventre o enfraqueceu. Que pena. Agora, somos nós três. Vc, nosso filho e eu.

- Não se eu puder impedir.

Dois tiros de espingarda e tia Celeste se vinga ao abrir dois enormes buracos na testa de Aiden. Seu sangue maldito  respinga em meu rosto enquanto seu corpo pesado tomba para trás. Erguendo-me do chão, tia Celeste acolhe Enzo em seus braços e me aconselha.

- Se despeça do seu amor. Vá. Eu não tive essa chance.

Chorando convulsivamente, volto a estapear o rosto de Vincenzo e a ordenar, histérica.

- Volta! Eu não posso viver sem vc!

- Então, não viva, vagabunda.

Puxo o ar pela boca. Meus olhos arregalados procuram por meu filho. A dor excruciante me impede de falar. Um ponto em minhas costas queima como fogo. Desorientada, olho para trás. Seu sorriso maligno me faz compreender que é o fim. Um segundo golpe em meu ventre e curvo meu tronco para frente. Deitada, em posição fetal, urro de dor ao retirar o punhal de minha carne. De mãos dadas a Vincenzo, desisto de lutar. Sei que minha tia vai cuidar de nosso filho. Sei que, sem Vincenzo, não vale a pena viver. Nossa filha já deve estar morta. Engasgando-me com meu próprio sangue, lanço um último olhar aflito ao meu pequeno Enzo antes de exalar.

 É quando o ouço cantarolar.

- 'Sha na na na na na na na na na. It'll be all right'. Volte pra mim, Morgana.

- Sono qui...- Aviso ao retornar do mundo dos mortos e, utilizando-me uma última vez do corpo da pequena 'puttana', ergo minha mão ensanguentada e cravo o punhal no coração de Aiden. Ainda admiro sua adorável expressão de incredulidade antes de me despedir e retornar ao meu mundo. - Nos vemos no inferno, 'Mr. Byrne'.


DIAS ATUAIS

- Acorda, mamãe! Para de gritar!

- Quem é vc!?

- Antoine, mamãe! Antoine! - Puxando o ar pela boca, eu a aperto contra meu peito. Sob seus protestos, permaneço abraçada a ela por minutos até parar de chorar e suplicar.

- Nunca mais saia da minha vida.

- Nunca. - Confirma ela, sorrindo.

Mas 'nunca' é tempo demais.

Continua...
















CAPÍTULO 35 - INJUSTO

  Na sala de espera do mesmo hospital onde Vincenzo voltara à vida, aguardo, ao lado de Liam e Enrico, ao desenlace da tragédia. Vincenzo, d...