Aos prantos, assisto o pequeno caixão descer à cova. De mãos dadas a Sweet, compartilho de sua dor. Não por meus dois filhos que não chegaram a nascer, mas por aquele que cheguei a amamentar. Doc e Adele estão ao nosso lado, consolando Sweet quando é o meu coração que sangra. E eu sequer sei o porquê.
Pobre Mimi. Eu poderia ter evitado tudo se o tivesse rejeitado quando ele se mostrou por inteiro. Eu poderia ter salvo Mimi, Luka e outras tantas crianças que partiram em sofrimento. Eu poderia ter matado Aiden naquela noite...
Vincenzo se afastara de mim. Ele lê meus pensamentos. Sabe que desconfio de seu amor. Sabe o quanto me decepcionou, embora eu não me lembre o motivo da decepção. Em minha cabeça, tudo está confuso. A chama azul dizimando os corpos contorcidos pela dor é a única lembrança clara que tenho daquela noite. O resto é um misto de gritos, tochas, lutas e sangue.
Sangue em meu curativo.
Lembro-me de Jujuba correr em direção a Vincenzo enquanto que, em minhas mãos, havia um punhal. Recordo-me de seus olhos claros e confusos antes de fugir.
Sweet não fala há dias. Pela primeira vez, ouço o som de sua voz ao gritar em profundo desespero, assim que a terra úmida cobre, para sempre, o corpo de sua filha. Afasto-me de todos tendo a certeza de ter vivenciado o mesmo em algum lugar, em algum tempo. Estou pior do que antes. Sequer consigo me recordar do que acontecera aos meus pulsos enfaixados.
Vincenzo, em silêncio, cuida dos ferimentos todos os dias. Todos os dias, ele vai à minha casa temendo que Aiden retorne. Todos os dias, trocamos olhares que dizem muito.
Antoine me obrigara a aceitá-lo por perto.
Como negar um pedido de Antoine?
Juju e Sweet dormem em meu apartamento desde que tudo acontecera. Sweet não tem a menor condição de cuidar da filha traumatizada, talvez, para sempre. Há tanta dor ao meu redor que me isolo de todos e me escondo sob a copa de uma árvore frondosa no belo cemitério que mais parece um campo de golfe. Recostada ao tronco, revejo o curativo e, intrigada, pergunto a mim mesma.
- Como aconteceu?
- Cortes horizontais nos pulsos? Deixa-me pensar. Uau. Essa é difícil até para mim.
- Hoje não. Por favor, vá embora. Não tenho forças pra te expulsar.
- Não quero ser expulso. O sol em minha pele vai me fazer bem. Dá até vontade de permanecer na Terra por algum tempo. - Sentado ao meu lado, ele volta a zombar. - E aí? Alguma ideia de como conseguiu ferir os pulsos?
- Não me lembro. - Respondo sem olhar em seus olhos. - Eu não era eu.
- Aaaah. Compreendo. Ele te usou novamente.
- Como assim!? - Eu o encaro, assustada. - Do que tá falando!?
- Aham! - Exulta Lúcifer. - Consegui sua atenção! Vc ainda se importa com aquela coisa fofa que quase te matou! - Meneando a cabeça, ele resmunga. - Estúpida.
- Vc estava lá?
- Claro!? E eu perderia a festa do século!? - Num desdém, ele comenta. - Quando souberem louvar a mim, então, terão sucesso. Asmodeus deve estar rindo de todos até agora. Idiotas. Chama azul??? Bem típico de Miguel fazer aquele teatrinho. O preferido do 'Chefão'. - Impaciente, eu lhe mostro meus pulsos e indago.
- O que eu fiz!? Por que sangra sempre!?
- Porque a outra não vai te deixar em paz enquanto não te matar!
- Que outra!? - Recuo, horrorizada. - Por que me matar!?
- Vc roubou o homem dela, meu bem. - Rosna ele bem próximo aos meus lábios. - Ela o quer de volta e não vai desistir enquanto não o tiver.
- Onde ela tá!? O que fez comigo!?
- Como vc é burra...- Bufa ele. - Ela está em vc, Adessa. Ela é uma de suas personalidades adormecidas por Vincenzo que controla tudo. Na noite do ritual, ele a invocou por ser a mais violenta. Certo de que ela mataria Aiden, ele a invocou. Só não contava com um pequeno detalhe. - Em choque, pergunto.
- Qual?
- Eileen sabe que ele ama vc e, não se contentando com o segundo lugar, fez o que fez por vingança.
- Fez o quê? - Uma gargalhada histérica e ele revela.
- Cortou os pulsos, meu bem. E teria conseguido matar seu corpo se não fosse pela intervenção do nosso santo covarde e bonitão Vincenzo.
- Ele me salvou?
- Por Jesus Cristo! - Revolta-se ele. - Vc ainda acha que ele é bom!? Que te ama!? Por que ele mesmo não tentou matar o Aiden, baby!? - Atordoada e sem forças, respondo.
- Não sei...- Erguendo-se, repentinamente, ele me encara furioso ao esclarecer.
- Covardia! Se ele cometer um pecado mortal, deverá se juntar a mim! Quantas vezes vou ter de repetir isso!? Haja saco! Vcs humanos me cansam! Fui!
- Quem criou essa lei estúpida!?
- Eu! E ele aceitou!
- Mentira! Ele não suporta sua presença!
- Bandida!
- Falido! Não tenho medo de vc!
- Pois deveria. - Diz ele, sorrindo. - Ainda tenho meus trunfos.
- Quais?
- Tolinha. Vc acha mesmo que vou revelar? Nada como o Tempo. Fui.
- Espera!
- Fala! Tem mais dois segundos!
- Liberta-o desse acordo ridículo e me leva contigo. - Tomado pela ira, ele se mostra como verdadeiramente o é.
Avançando em minha direção, ele assevera num tom de voz gutural.
- Nunca! Ele é meu! Hei de vê-lo em nossa 'Legião' em breve!
- Não, irmão. - Diz Vincenzo ao meu lado. Abatido, ele afirma. - Nunca mais eu me unirei a vc. Desista.
- E o nosso pacto!?
- Nunca houve um. Vc surtou e eu não te contrariei. Esse foi o meu erro. - Esclarece Vincenzo protegendo-me com seu corpo. - Havia um tempo em que eu me sentia feliz ao seu lado. Esse tempo acabou, irmão. Aceite.
- Nunca!
- Vá embora. - Enfurecido, Lúcifer vocifera.
- Ela conhece a verdade, Cassiel! Acha que vai te querer depois de sua covardia!?
- Ainda que não me queira, eu vou continuar a amar essa mulher pelo resto de minhas vidas e se, um dia, eu sucumbir, jamais voltaremos a ser o que já fomos, Lúcifer. - Erguendo o braço direito, Vincenzo fecha os olhos e ordena em voz baixa. - Agora, em nome do Pai, suma.
- VC É MEU! - Grita Lúcifer.
O solo racha até nossos pés antes de ele evaporar, urrando de ódio. Fraca, eu me apoio no tronco da árvore e, num fio de voz, indago.
- O que ele disse é verdade? - Vejo a resposta em seus lindos olhos tristes antes mesmo de ouvir sua voz confessar.
- Sim.
Sweet se entrega à apatia acomodada em um dos quartos de hóspedes enquanto Juju se recupera de todo mal que sofrera. Revendo suas memórias, dou graças a Deus por não ter sido tocada por mãos imundas. Aiden a protegera de todos os pedófilos como havia me prometido. Talvez, por isso, ainda guarde algum sentimento por ele. Talvez, por ter salvo a vida de Juju enquanto era somente Aiden, eu ainda esteja nesse apartamento absurdamente luxuoso e dispendioso, à sua espera. Em breve, Antoine, Cassandra e eu vamos nos mudar daqui. Por enquanto, não posso partir. Não sem antes cumprir a minha missão iniciada na noite do ritual.
Retirei todas as nossas fotos e as joguei no lixo. Estou recolhendo as roupas de Aiden e pensando em doá-las. Antoine, perspicaz, me faz mudar de ideia enquanto carrega comigo os sacos com camisas, calças e sapatos de grife de Aiden.
- Melhor vender, mamãe. - Diz ela arrastando um dos sacos pequenos pelo corredor do apartamento. Jujuba se diverte arrastando outro saco ainda menor. Sorrio ao ver Juju de volta à vida. - Ouviu o que eu falei!?
- Sim, filha.
- Outra bizarrice. - Resmunga Cassandra carregando nas costas um dos sacos pesados. - Liga não, tia. Ela tá surtando de novo. 'Bora', pirralha!
- Espera, Cassandra. - Peço, arfando. Despenteada, suada, vestindo um short curto e top, jogo-me contra o piso frio e indago, curiosa. - No que tá pensando, filha? - Jujuba e Antoine se deitam ao meu lado. Cassandra se joga contra o sofá e volta a teclar em seu celular. - Fala.
- Acho melhor vender no 'be bay'. - Aconselha ela de olhos fixos no teto.
- 'e-Bay', pirralha! - Aos risos, Cassandra a corrige. - 'e-Bay'! Desde quando vc conhece o 'e-Bay! Vc não tem acesso à internet! A tia não deixa!
- Sei lá! - Diz ela gargalhando. Juju gargalha junto sem ter a menor noção do porquê está gargalhando. Entre as duas, eu me sinto segura e feliz. - Ouvi dizer.
- De quem vc 'ouviu dizer', filha?
- Aaaah...- Outra crise de risos e ela responde, movendo as perninhas no ar. - Não posso falar. Meu pai disse que vc vai brigar comigo se eu falar que ainda falo com ele.
- Putz. Tu é burra 'mermo'. - Cassandra ri contra a almofada enquanto reflito sobre o que dizer.
- Burra é tu que fala 'mermo'. - Juju sai em defesa de Antoine enquanto penso em Vincenzo e na falta que ele me faz. - O certo é 'mesmo', garota! 'Mesmo'. Repete!
- Ai, tia! - Do sofá, Cassandra rumina. - Duas pirralhas ninguém merece!
Antoine e Juju rolam no chão de tanto rir quando ergo-me, de súbito, e a confronto.
- Por que ele disse isso, filha!? Responde agora!
- Mãe...
- Agora! - Insisto, exausta. - Por que vender as roupas ao invés de doá-las!? - Sorrindo, do chão, ela responde.
- Porque a gente vai precisar de dinheiro, ué! - Nervosa, vou até a cozinha e esvazio, no gargalo, um litro de água gelada e, ao retornar à sala, ainda amedrontada, indago.
- Quando!?
- Quando vc matar o monstro.
- Que monstro, Antoine!?
- O monstro que foi bonzinho com a Juju. - Uma piscadela e ela comenta. - Vc sabe quem é, né?
Soltando o ar dos pulmões pela boca, assinto com a cabeça. Devastada, arrasto os sacos de volta ao nosso quarto enquanto Cassandra cuida das crianças. Deitada sobre nossa cama, ainda choro ao me recordar de seu sorriso tímido e de nossos passeios e lanches em família. Sinto falta da segurança que tinha ao seu lado, mas eu preciso encarar que estou sozinha...novamente. O ringtone berra ao meu lado. No visor, um número desconhecido. Com receio, atendo a ligação.
- Aiden?
- Vc já deixou de me amar? Baby, me perdoa. Me deixa voltar à sua vida ou me mate de uma vez por todas. Não posso continuar a vagar pele eternidade.
- Não vai. - Respondo antes de desligar e chorar convulsivamente até pegar no sono.
O luto não tem tempo para terminar. Compreendo isso. A dor é eterna. A dor da perda de um filho é ainda pior. No entanto, Sweet não tem se esforçado muito a fim de sair de seu estado de prostração enquanto cuido de sua filha e mantenho as contas em dia com a grana que arrecadei ao vender tudo o que havia de Aiden nesse apartamento. O valor arrecadado tem pago o condomínio e as despesas com alimentos. Em breve, vai acabar e eu não faço ideia de como recomeçar.
Minha vida é uma montanha-russa de onde desejo descer e não consigo.
- Posso te ajudar e vc sabe disso.
- Como me ajudou no dia do ritual? Não. Muito obrigada.
- Não me julgue. - Pede-me Vincenzo de cabeça baixa, ajoelhado diante de mim. Sentada no sofá, eu o escuto. - Vc não conhece toda a verdade além do que aquele ser maligno te contou.
- Por que continua sangrando? - Usando outra gaze limpa, ele enfaixa meus pulsos após desinfetá-los e, sem me encarar, responde.
- Ela deseja voltar à vida.
- E...pra isso...
- Vc precisa morrer. Ou melhor, desistir de viver e, então, ela assume.
- Se eu desistir, vc protege Antoine dessa tal de Eileen? - De súbito, ele me encara e, sentando-se ao meu lado, assusta-me ao rosnar.
- Não se atreva a desistir. Eu não vou deixar. Entendeu?
- Mas...- Pressionando suas mãos em minhas têmporas, ele insiste.
- Entendeu??? Eu não a quero, Dess!!! Eu fiz a merda toda!!! Eu vou consertar!!! Ela vai voltar a dormir!!!
- E se vc não conseguir? - Sussurro contra seus lábios. - Cuida de Antoine. Por favor.
- Dess, se puder, confie em mim. - À espera de seu beijo e de seu abraço reconfortante, permaneço imóvel enquanto ele se ergue e recua. Afetando indiferença, ele afirma. - Eu vou dar um jeito em tudo.
- Aonde vai?
- Me despedir das crianças. - Desolada, eu o sigo e indago. - E quanto a Sweet? Eu não posso...- Pressionando-me contra a parede, ele assevera.
- Cuide de Antoine e, se puder, de Juju. Deixe que Sweet siga seu caminho. Ela está se aproveitando de sua bondade, Dess.
- Como sabe disso?
- Eu preciso te responder isso? - Arfando, pergunto.
- Vc leu a mente dela?
- Sim. - Diz ele com um sorriso no canto da boca. Sorriso tímido, inseguro. - Sabe que pode morar lá em casa, né? - Abrindo um sorriso patético, suspiro ao indagar.
- Na casa de praia?
- É. - Arranco seu sorriso ao perguntar 'à queima roupa'.
- Por que não matou Aiden quando pôde?
- Anjos não podem matar humanos, Dess. Essa é a verdade.
- Ele não era humano.
- Ok. - Contrariado, ele reformula a resposta. - Anjos não podem matar demônios refugiados em corpos humanos sem vida. Melhor assim? - Deixando-me no corredor, ele se despede de Antoine e de Juju sem sequer olhar para Sweet que se exibe em seu micro 'baby doll' . Antoine o segue até o elevador e, a custo, eu a afasto dele. Aos prantos, ela suplica.
- Fica com a gente, pai. - Com os olhos cheios de lágrimas, ele promete.
- Estarei sempre com vcs. Te amo, filha. - Enxugando meu rosto, fixo meus olhos nos dele na expectativa de alguma declaração de amor. Meu peito dói ao ouvir sua fria recomendação. - Ponha esse apartamento à venda, Dess. - Em silêncio, assinto com a cabeça. Antes de assistir a porta se fechar por completo, ele move seus lábios num 'te amo' silencioso.
Chorando, eu sorrio.
Sweet se revolta assim que lhe comunico minha intenção em vender meu apartamento. O que eu julgava ser fruto de seu luto por Mimi não passava de acomodação à vida de ostentação que começara a ter ao desfrutar de minhas roupas e do espaço confortável pelo qual nada pagara. Eu jamais exigiria nada em troca. Eu ainda a considero minha amiga. Uma amiga com sérios transtornos e um vício difícil de se livrar. "Um dia vc vai conhecer a verdadeira Sweet", alertara-me Vincenzo antes de partir. Com raiva e ciúmes dele, não lhe dera ouvidos. A cena bizarra entre os dois ainda habita minha mente conturbada.
Agora, que não o vejo há algum tempo, começo a reconhecer verdades em suas palavras. Ainda que eu esteja arrasada e completamente falida, ela parece invejar algo em mim. Talvez, minha proximidade com Juju ou o amor incondicional por minha filha a quem jamais abandonaria como ela o fizera, levando consigo minhas roupas, parte da minha grana e todo o carinho que tinha por ela.
Juju adoece de saudades da mãe. Com poucos recursos, duas crianças e uma adolescente sob meus cuidados, vendo meu carro. Não me importo em trabalhar a fim de mantê-las, mas não faço ideia do que posso fazer. Não retornarei à prostituição. Isso é um fato. Um outro fato é que jamais ganharei a grana que ganhava sendo garota de programa ou 'stripper'. Tendo de sair do apartamento vendido em menos de dois meses, procuro por um outro nos sites especializados ao lado de Cassandra que tem sido uma segunda mãe para Antoine e Juju.
- Devo muito a vc, Cassandra.
- 'De boas', tia. Vc me acolheu quando eu mais precisei. Agora, é a minha vez de retribuir. - Engulo o choro e, beijando o topo de sua cabeça, eu a abençoo.
- Vc vai encontrar alguém em sua vida com quem será feliz até o final.
- Assim como vc e o tio Vincenzo?
- Não...- Suspiro. - Vincenzo e eu jamais seremos felizes. Ele sequer me procurou.
- Vc que pensa...- Murmura ela sorrindo para a tela do computador. Perco a vontade de chorar e, ao arregalar meus olhos, sentada ao seu lado no sofá da sala, ordeno, eufórica.
- Fala tudo! - Rindo, ela me pede.
- Calma, tia! Eu não sei de nada!
- Sabe sim! Vc o viu!?
- Viu nada! - Intromete-se Antoine, enciumada. - Quem vê meu pai e fala com ele sou eu! - Jogando-se em meu colo, ela me olha fazendo biquinho ao declarar. - Meu pai disse pra dizer pra senhora que é hora de ir pra casa de praia porque o monstro vai chegar.
- Tia, não deixa o monstro me levar. - Sussurra Juju, fraca e triste, deitada no outro sofá em frente ao nosso. Dois dos poucos móveis que ainda nos restam. Os demais, eu já os vendi. - Ele levou Mimi. Eu não quero morrer, tia. - Saltando do sofá, deixo Antoine caída sobre as almofadas. Sob seus protestos, eu me sento ao lado de Juju e, abraçando-a com força, prometo.
- Não vai, meu bem. Ninguém vai te machucar. Eu juro.
- Vai sim. - Diz Antoine a quem eu repreendo severamente. Chorando, ela se defende. - Foi meu tio que disse isso. Eu não tenho culpa. Eu não tenho culpa.
- Putz, tia. - Lamenta Cassandra. - Que clima. - Erguendo-se do sofá, ela me ajuda ao perguntar em voz alta e entusiástica. - Quem quer assistir "Enrolados" pela trigésima vez!? - Em coro, Antoine e Juju respondem.
- Eu!!!
Eu as observo negando-me a perguntar a que tio Antoine se referiu. Que tipo de pessoa diria a uma criança que sua melhor amiga corre risco de morte!? Creio que já conheço a resposta. Volto minha atenção a Juju ao lado de Antoine que a puxa pela mão. Seguindo em direção ao quarto das crianças ainda mobiliado, eu a ouço declarar, triunfante.
- Minha mãe é a Rapunzel e meu pai é o José. - Juju refuta ao dizer que a Rapunzel é loira como Sweet. Antoine, sem a menor noção de empatia pela dor do próximo, rebate. - Não pode! Sua mãe é vagabunda! Nunca vai poder ser a Rapunzel! - Cubro o rosto com as mãos antes de encarar Cassandra que bufa ao entrar no quarto e resmungar.
- Tia, ninguém merece...
Tenho recebido convites de um fotógrafo famoso por suas fotos sensuais no meio em que costumava frequentar antes de largar a prostituição. Reflito muito antes de recusar sua proposta por medo de ter uma recaída e retornar a um mundo que custara a largar. A Ninfomania ainda vive dentro de mim, adormecida em algum canto. Não pretendo acordá-la. Não posso. Tenho de cuidar das crianças e de Cassandra. Observando os valores de imóveis à venda, percebo que, com o que tenho, não poderei comprar nada além de um apartamento minúsculo.
- Não me importo. - Digo a mim mesma deitada no colchão 'king size' sobre o chão do quarto. A cama onde Aiden e eu dormíamos, agora, pertence a outra pessoa. - Desde que Antoine esteja comigo, eu sei que vou superar tudo. - De olhos fixos no teto, em um raro momento de silêncio, inspiro sentindo seu cheiro de sândalo no ar. Olho ao redor. Arquejo de susto ao receber uma outra mensagem do fotógrafo insistente aumentando o valor da proposta inicial.
"Por que esse interesse persistente!? Eu já não sou a mesma e todos já me esqueceram!", digito, irritada.
"Porque eu quero. Tenho ótimas referências suas. Sei que suas fotos me darão lucro! Aceite!" - Intrigada, digito.
"Quem me indicou a vc!?"
"Sigilo. Vai aceitar!?" - Seguindo minha intuição, respondo, sentindo os pelos de minha nuca eriçados.
"Não!"
"Não vou desistir...". - Finaliza ele com um emoji de piscada. Ele ainda não se convenceu de que não aceitarei a proposta. Nem eu. Cerro os olhos, exausta de passar o dia procurando por emprego e somente encontrar portas fechadas. Se ao menos eu tivesse concluído minha faculdade.
- Ainda tá trancada! - Exulto por segundos. - Sério!? Com que dinheiro eu vou pagar por ela!? Merda!
"Aceite a proposta", sussurra sua voz ao meu ouvido. Rolando para o lado, eu me ergo do colchão e o alerto.
- Fica bem longe de mim e da minha família, assassino!
Mergulhada em um silêncio profundo, eu o procuro ao meu redor. Temendo sua presença, acendo a lanterna do celular e o aponto para as paredes. Corro até o closet vazio e, abrindo uma das gavetas, agarro o punhal com força. Em posição de ataque, pergunto procurando-o com meus olhos aflitos. - Como se atreve a voltar, Aiden!? Depois de tudo!? Vc realmente acha que pode me tocar depois de tudo!? - Incomodada com seu silêncio, ordeno. - FALA!
Seus dedos ágeis e habilidosos trançam meus cabelos enquanto me mantenho paralisada de pavor.
- Aiden? Fala comigo. Não me machuca.
"Nunca, baby", diz ele tocando meu pescoço com seus lábios. Sua voz rouca murmura. "Saudades".
- Eu vou te matar, Aiden. Para agora. - Empunhando a arma, imploro. - Me deixa em paz.
'Me mate agora ou me deixa ficar. Só por hoje.'
Suas mãos apalpam meus seios sob a camisola fina e curta. Sua língua quente desliza do meu queixo até os lábios. Emito um gemido de prazer enquanto movo minha mão na tentativa de golpeá-lo. Sua voz, à minha frente, explica.
'Não tenho corpo, baby. Não pode me matar sem um corpo'.
- Eu te expulso. - Digo sem convicção. - Eu te expulso da minha casa, da minha vida, Aiden. - Excitada, deixo-me levar por seus braços invisíveis que me jogam de volta ao colchão. Meu celular cai contra o piso. A lanterna se apaga. Sentindo o peso de seu corpo sobre o meu, suplico. - Suma daqui. Eu não quero te machucar. - Sua mão fria me força a largar o punhal. Sua voz serena e firme alerta.
"Vc vai me matar, baby. Eu sei disso. É preciso que me liberte, mas não hoje. Deixa-me sentir o teu gosto pela última vez".
- Aiden...- Suspiro, sentindo meu corpo latejar. - Para.
"Só por hoje", pede-me ele penetrando-me, vagarosamente.
Entre o sono e a vigília, assinto.
- Só por hoje...
Acordo com hematomas pelo corpo. Lembro-me de cada detalhe da noite passada. Envergonhada de mim mesma, demoro-me debaixo do chuveiro. A campainha toca, assustando-me. Cubro-me com um moletom dos pés até o pescoço. Caminhando até a sala, eu o vejo conversar com Cassandra. Antoine e Jujuba em seu colo me fazem arfar.
- Oi. - Cumprimento Vincenzo, insegura. Sem olhar para mim, ele pede a Cassandra que guarde algo com muito cuidado. - O quê? Do que estão falando?
- Da chave, tia. - Responde-me Cassandra sem compreender o clima tenso entre mim e Vincenzo. Embora, eu também não o compreenda, posso suspeitar que ele saiba de algo que tenha ocorrido durante a madrugada. Olhando para mim, Cassandra faz menção em me dar as chaves. - Toma.
- Não! - Protesta Vincenzo. Cassandra segura o molho em sua mão enquanto ele a adverte. - Somente vc pode ter acesso a essas chaves. Ok? Estou ajudando a vc, Cassandra. Vc é a responsável por minha filha e por Juju. É em vc que confio.
- Tio...- Lamenta Cassandra de cabeça baixa. Um olhar confuso direcionado a mim e ela replica. - Não posso fazer isso. É a tia quem cuida de mim. Eu nem sou da família.
- É sim. - Intervenho, constrangida. Abraçando Cassandra em frente a Vincenzo, afirmo. - Ela é minha filha, assim como Antoine e Juju. Todas estão sob a minha guarda. Se tiver que dizer algo, diga a mim. - Vincenzo inspira e expira antes de me encarar e informar com frieza.
- As chaves da minha casa devem ficar com ela. Infelizmente, Dess...- Engolindo em seco, ele prossegue. Sua voz embarga ao avisar. - Após um grave delito de sua parte, eu não posso mais falar com vc ou te procurar. Logo, minha única ligação com Antoine é Cassandra. Ela ainda é uma adolescente, mas tem se mostrado bastante precoce. - Antes de prosseguir com seu discurso bizarro, eu o interrompo com uma pergunta.
- Que porra de delito grave é esse!? Por quem eu fui julgada e condenada!? - Olhando-me com desprezo, ele indaga.
- Quer mesmo saber?
- SIM! - Grito, atormentada pelas cenas da noite passada. - Eu não consegui!!! Quem me condenou!? Vc!?
- Não começa, Dess...- Recuando, ele beija a bochecha de Cassandra e avisa. - Vou pegar Antoine no colégio. Eu a trago à noite. - Cassandra, absolutamente perdida, dá de ombros. Juju agarra-se à sua perna e suplica.
- Tio, não deixa o monstro me matar.
- Não vou deixar, meu anjo. - Promete ele tomando-a em seu colo. Sem olhar em meus olhos, ele volta a prometer. - Não vou deixar que aquele verme toque em vcs. Se quem deveria acabar com ele não o faz, eu o farei. - Um gesto ligeiro e Cassandra compreende que desejo ficar sozinha com Vincenzo. Levando Juju consigo, ela se tranca no quarto de Antoine enquanto penso no que dizer a ele. - Não precisa me dizer nada, Dess. Eu sei de tudo. Eu ouvi tudo. - Expressando asco em suas feições, ele rosna de ódio. - Eu ouvi tudo. Como eu já disse um dia, vcs se merecem.
- Eu não consegui...- Confesso aos prantos. - Tem algo nele que me faz ser fraca, Vincenzo. Eu não sei o que é. Me ajuda. - Tocando em suas mãos, eu imploro. - Não me deixa. Eu não sei viver sem vc.
- Vai ter que aprender, Dess.
- Vc não quer se afastar de mim. Eu sinto.
- Não quero. Mas eu sigo ordens. E a ordem é me afastar de vc até que vc se corrija.
- Quem deu essa ordem!? Corrigir do quê!?
- Não posso falar por enquanto. Mas ele vai falar com vc, pessoalmente. - Com lágrimas nos olhos, ele se despede. - Adeus.
- NÃO! - Grito, contrariada, no corredor, segurando-o pela gola de sua camisa polo. - EU NÃO VOU TE PERDER ASSIM! NÃO É JUSTO! VC PECA TAMBÉM E SOMENTE EU SOU PUNIDA!?
- Não faço as leis, Dess.
- Conveniente pra vc, né? - Desdenho. - O grande chefe já te viu espancar Sweet!?
- Para, Dess.
- NÃO! VC NÃO VAI PEGAR MINHA FILHA A MENOS QUE EU PERMITA! ENTENDEU???
- Não grite. Não sou surdo. - Rindo de nervoso, indago.
- Isso é sacanagem, né? Vc só tá me assustando?
- Não, Dess. Infelizmente não. Eu aguentei tudo calado. Ele não.
- Ele quem!? Deus do céu! O que eu fiz de tão terrível!?
- Fodeu com um assassino de crianças? - Zomba ele. - Ou será que foi com um pedófilo?
- Não! Isso ele não é!
- Ainda o defende!? Que lindo! - Sem ter o que falar, eu choro. Em choque, eu entro no elevador ao seu lado. Ansiosa, movendo os dedos das mãos aleatoriamente, aguardo por uma palavra que me dê esperanças. - Vou sentir sua falta, Dess.
- Não vá. Por favor. Me dá outra chance.
- Peça a eles...- Vejo seus lindos olhos azuis e tristes pela última vez quando ouço sua voz suave me confessar.
- Eu não quero, Dess. Mas vc ultrapassou os limites. Até mesmo os meus. Só me deixa ver Antoine. É tudo o que te peço.
- Aonde vai!? - Pergunto em frente à sua moto, impedindo-o de partir. - Como vou melhorar sem vc ao meu lado!? - Colocando seu capacete, ele me encara pela abertura em seus olhos e, num desânimo, confessa.
- Não sei. Vc tem a minha casa e o meu amor eterno. - Um riso triste e ele comenta antes de acelerar a moto e sumir de minha vida. - Li isso em algum livro. Ainda te amo, mas não gosto de quem vc é, no momento. Adeus, Dess. Espero que, um dia, a gente se reencontre.
Observo sua figura esguia sumir no horizonte sem ter noção do que viria a seguir.
De joelhos, eu o escuto, chorando convulsivamente. Sua voz grave e serena me diz.
- Vc errou por muitas vezes, filha. Durante meses, vc conhecia a verdade e, por apego aos bens materiais, permaneceu ao lado dele. Um homem capaz de sequestrar crianças. Vc mesma resgatou Mimi de seus braços e nada fez depois disso. Deveria ter aproveitado a chance que o Criador te deu e partido com sua filha. - Sem coragem de erguer os olhos, curvo meu tronco para frente, recostando a cabeça em meus joelhos dobrados. Reconheço meus erros sem forças para me defender. - Entendo que a vida na Terra é difícil, Adessa. Que sustentar uma filha sozinha é penoso, mas vc o viu por inteiro. Ele se mostrou a vc e vc o aceitou. Tendo feito isso, vc anulou minha ajuda e perpetuou a maldição.
- Perdão...- Peço entre soluços. - Não consigo matar...alguém. - Ajoelhado à minha frente, ele toca em meus cabelos e, num tom que se usa somente com crianças e loucos, ele prossegue.
- Ele já não é um homem, filha. Há séculos, ele vagueia sem rumo, ocupando um corpo que não é seu. Há séculos, ele se juntou ao ser maligno por alimentar um sentimento que o distanciou de sua humanidade. Adessa, há séculos ele morreu. Liberta-o. - Sua luz azul incandescente me cega enquanto, num fio de voz, indago.
- Por que eu?
- Porque foi por te amar que ele se perdeu.
- E eu tenho culpa?
- Não. Mas, se puder, ajude-o a se libertar. Amar é deixar o outro partir.
- Eu não o amo, senhor.
- Eu sei. Mas sente carinho por ele. Liberta-o, Adessa e, talvez, Vincenzo e vc ainda tenham uma chance de serem felizes. - Engasgando-me em meu próprio choro, pergunto.
- O senhor vai estar ao meu lado?
- Sempre. - Antes de partir, ele se ergue. Sua luz se retrai. Enxergo seu encantador sorriso quando ele me corrige.
- Não me chame de 'senhor'. Sou apenas um servo d'Ele. Até mais, Adessa.
- Adeus, Miguel.
Acordo.
Mergulho em profunda depressão sob o peso de minha culpa. Ainda que ouça os apelos de Cassandra para que eu me reanime, eu não consigo mover um músculo. Sequer para me alimentar. Dentro de mim, eu sofro por não me reerguer e lutar por minha filha ou por Juju. De dentro de mim, eu grito por ajuda enquanto, todas as noites sou usada por Aiden e seu demônio da luxúria. Ao amanhecer, sem forças ou ânimo para viver, entrego-me à Escuridão. Penso em Vincenzo. Sinto-me suja. Arranco sua imagem iluminada de minha mente imunda. Cassandra chora recostada à parede. Desesperada, ela reza por mim sem ter como pagar as contas atrasadas ou abastecer a despensa quase vazia. Juju se deita ao meu lado quando desperto do pesadelo recorrente. Antoine, estranhamente, se mantem distante, pensativa.
Talvez tenha medo de mim. Como dói ver minha filha distante. Como dói estar dentro de mim sem poder sair.
"Quero viver!", grito por dentro e, então, o horror recomeça.
Aiden me pede perdão antes de se deixar dominar por Asmodeus que me invade com violência. Onde está Miguel!? Por que não o vejo!? Ele concorda com tamanha covardia!?
Humilhada, enraivecida e impotente, luto contra Aiden. Seus olhos escuros demonstram que ele não se encontra. Encho-me de ódio, mas o ódio que sinto nada se compara à força que, juntos, ambos possuem. Com o tempo, esqueço-me de rezar. Com o tempo, torno-me escrava de Aiden, escravizado por Asmodeus. Uma ideia me vem à cabeça desnorteada.
"Se quiser me livrar de Aiden, preciso, antes, afastar Asmodeus".
Cassandra tenta me fazer tomar da sopa que preparou especialmente para mim. Meus olhos cheios de lágrimas a encaram. Chorando, ela seca minhas lágrimas com um pano de prato.
- Tia, volta. Eu sei que vc tá aí. - Implora-me a adolescente obrigada a crescer antes do tempo. - Abre a boca, tia. Vc tá fraca demais. Eu não sei o que fazer. - Num esforço hercúleo, consigo sugar o suco de laranja através do canudinho. - Volta pra gente, tia.
Não tomo banho há dias. Meu cheiro me incomoda. Percebo a força que Cassandra faz a fim de não demonstrar sua repulsa por mim. E nós éramos tão felizes e inseparáveis antes de tudo. Antes de Aiden retornar como o que ele nunca deixara de ser.
Envergonhada pelo meu estado deplorável, sussurro.
- Vá com Vincenzo. Tire Antoine e Juju daqui.
- Não posso, tia! Não vou te deixar aqui!
Antes de entrar em convulsão e ser dominada pelo mal, ordeno num grito horrendo.
- VÁ!
Devastada pela solidão, sem poder ouvir os risos inocentes de Antoine e sentir seus beijos, fixo meus olhos no teto do quarto.
Com uma das mãos, ele me faz segurar um crucifixo em madeira. Com a outra, um punhal. Sua voz baixa recita uma oração. Sem forças para mover meu pescoço, sinto seu cheiro de maçã verde. Vergonha e esperança se mesclam dentro de mim quando, num beijo casto em minha testa, ele murmura.
- Estarei contigo. Não desista, Dess. Não desista.
- Nunca...- Balbucio.
Sozinha com a minha dor, penso em cravar o punhal em meu peito e deixar que Antoine tenha uma vida normal ao lado de Vincenzo. Cassandra e Juju, igualmente, estarão bem ao seu lado.
- Concordo. - Diz Lúcifer agachado. - Meu bem, seu cheiro está insuportável. Melhor terminar com tudo o mais rápido possível e nos poupar desse fedor.
- Tem razão. - Revirando os olhos, sorrio. - Vc sempre tem razão.
- Por que diabos está rindo, idiota? Vamos. Termine logo com isso antes que eles cheguem e comecem a te usar como um pedaço podre de carne. Vamos! Pare de rir! Enfie esse punhal no peito e dê fim à sua dor, idiota. - Ainda sorrindo, eu o encaro e cantarolo.
- 'No. Nay. Never'.
- Eileen!? - Grita Lúcifer indignado observando seu sangue escapar da palma de sua mão. - Vc me feriu, bastarda! Para quê!?
Sem responder à sua pergunta, traço um círculo, com seu sangue, no chão do quarto. Do colchão, rolo até o interior do círculo de onde a invoco com a voz rouca.
- Hécate, venha em meu socorro. Traga seus cães e a sua luz e me liberta. Liberta meu corpo de homens maus e demônios lascivos. - Caçoando de mim, Lúcifer diz.
- Isso não vai dar certo, meu bem.
- E por que não daria, querido? - Indaga Hécate a quem servira durante anos. Lúcifer, receoso, afasta-se cedendo espaço à deusa que liberta seus cães ferozes. Asmodeus vai se desfazendo à medida em que os cães arrancam pedaços de sua carne sem sangue. Um grito lancinante de dor e o demônio lascivo desaparece entre a densa e escura fumaça. Ainda sem forças para me reerguer, rastejo no chão em direção a Aiden, indefeso e confuso. Ele ainda me pede perdão antes do primeiro golpe em seu Tendão de Aquiles, forçando-o a cair contra o piso frio. Hécate me ergue com seus braços e, vingativa, aconselha.
- Termine o que ela iniciou.
Tomada por uma força sobrenatural, monto sobre o corpo materializado de Aiden e o atinjo com um segundo golpe do punhal afiado em seu abdômen. Urrando, ele implora por perdão.
- Nunca. - Rosno enquanto corto seu pênis e o arremesso contra a parede.- Vc matou meu tio sem sequer ouvir sua voz. Vc tirou meu filho de mim. Vc tirou Vincenzo de mim. - Outro golpe em seu peito e, arrancando o punhal de sua carne, seu sangue espirra em meu rosto. Sarcástica, comento. - Não sabia que mortos sangravam.
- Sangram, mas não sentem dor. - Diz ele, sereno. - Pode me matar, mas eu nunca vou deixar de te amar, Adessa. - Enfurecida, protesto.
- EU NÃO SOU ADESSA! SOU EILEEN!
- Liberta-me...- Pede-me ele antes do fim.
Cravando o punhal em seu coração, eu o retiro com as próprias mãos e o jogo aos cães que o devoram em segundos. Seus olhos claros ainda me encaram. Ainda vejo seu sorriso tímido tentando acordar a 'outra'. - Não deixe que ela te domine, baby. Vc é melhor do que ela, Adessa. Adeus.
Consigo enxergar o horror em seu olhar ao me despedir.
- Adeus, Mr. Byrne.
Coberta pelo sangue de Aiden, eu acordo. Sua voz jovial me incentiva.
- Levanta, tia.
- Estou morta?
- Ainda não, mas, se não tomar um bom banho, pode ser que morra. - Forçando a garganta seca, recostada à parede, pergunto.
- O que faz aqui, Giulia? Por que não descansa?
- Agora eu vou, tia. Graças a vc, agora eu vou descansar. - Abrindo um sorriso iluminado, ela comemora. - Vc matou o monstro, tia, e libertou todas as crianças!
- Que crianças?
- Essas...
Olho ao redor e as vejo. O quarto se ilumina enquanto é preenchido por centenas de crianças que partiram cedo dessa vida sob a crueldade humana.
- Perdão. - É a última palavra que consigo dizer antes de começar a chorar e sentir o abraço carinhoso de cada uma delas. Meu coração pulsa em meu peito, violentamente. Bebo da água que Giulia me oferece em um copo limpo. Aos poucos, vou serenando minhas emoções. Beijando o topo de minha cabeça, Giulia volta a me agradecer e, antes de partir com as crianças libertas, ela adverte.
- Não se deixe dominar pela 'outra', tia. Ela perigosa.
"Quem??? Eu???"
- Dess, se acalma.
- Calma é o cacete! Quem me tirou daquele quarto!? Foi vc!? Foi seu amigo anjo!? - Enfurecida em frente ao galpão de boxe, berro. - NÃO! FUI EU! EU ME ARRASTEI ATÉ O BANHEIRO! EU ME LIMPEI DEPOIS DE DIAS FEDENDO À URINA E FEZES! EU ME ALIMENTEI COM O POUCO QUE TINHA NA DESPENSA! EU! EU, VINCENZO! SOZINHA! - Jogando o crucifixo contra seu peito, blasfemo. - Enfia isso no cu e nunca mais volte a me procurar, traidor!
- Dess! Vc não é assim! - De costas para ele, solto um riso sarcástico. - Dess? É vc?
- No. Nay. Never. - Jogando o molho das chaves de sua casa de praia contra o asfalto, ameaço. - Tenta me tirar daqui novamente e dê adeus ao seu grande amor, baby.
A casa não é tão grande, mas Antoine e eu cabemos nela. Cassandra e Juju fazem parte de nossa nova família. Quatro mulheres e um destino: viver intensamente antes de morrer.
Sweet, a vagabunda, voltara à prostituição enquanto eu acabo de receber uma oferta de trabalho como garçonete em um 'pub' na cidade. Não é incrível como o mundo gira? Não. Ele capota. Estou aqui, enchendo tulipas de cerveja enquanto os outros se divertem e bebem até caírem próximos ao meu balcão. Cassandra cuida das crianças até que eu retorne a casa de madrugada. Gosto dessa menina. É esperta como eu.
Preciso me habituar a ser chamada de 'mãe' por Antoine. Eu a amo tanto que não chega a ser difícil. Ela morreu por meu filho. Eu cuidarei dela como minha filha. 'Uma vida pela outra'. Foram suas últimas palavras...
- Vc está bem, filha?
- Claro, Doc. - Outro com quem preciso ter cuidado. Ele a conhece profundamente. - Como está Adele?
- Bem. Quer uma carona até a sua casa? - Na calçada do 'pub', respondo.
- Não! Eu tenho meu carro! - Exulto diante do Chevette bem conservado que comprei com o que restara da venda do antigo apartamento onde a 'outra' dormia ao lado de um demônio. Depois, eu é que sou má! - Gosto dele, Doc.
- E cabem todos aí?
- 'For God's sake', Doc! É claro que cabem! - Um olhar desconfiado e ele sorri ao se despedir.
- Que Deus te proteja, filha.
- Duvido muito. - Reajo, instantaneamente. - Ele nunca me protegeu antes. Por que me protegeria agora? - Estranhando meu comportamento, ele pergunta enquanto giro a chave na ignição.
- Tem falado com Vincenzo?
- 'No. Nay. Never'! Desse aí eu quero distância! - Pisando no acelerador, faço o Chevette roncar enquanto ouço Doc revelar.
- Ele está preocupado com vc, Adessa. Falou algo sobre ter que te fazer dormir.
- Dormir!? Eu!?
- Creio que precisam se encontrar.
- Acho difícil, Doc! - Gargalho antes de partir. Acenando para ele, ao volante, repito num tom baixo. - Acho difícil. Muito difícil.
- O que tá lendo, mamãe?
- Um livro bacana. - Aconchegando-se a mim sobre o pequeno sofá na minúscula sala, Antoine soletra o nome do livro após me oferecer uma xícara de chá. Eu bebo do chá enquanto a observo. Ela é tão fofinha! Uma versão infantil de minha inesquecível amiga.
- O li-vro das som-bras. - Olhando-me assustada, ela repete. - 'O livro das Sombras'!? Por que vc tá lendo isso, mãe!? Meu pai não gosta disso não! - Fechando o livro e abraçando-a com força, sussurro.
- Seu pai não sabe de nada, filha.
- Sabe sim. - Afirma ela, gargalhando. - Ele me disse seu nome. - Intrigada, eu a encaro e indago.
- Como assim, filha!? Meu nome!?
- É...
- Vc sabe meu nome. Sempre soube.
- Não. - Cochicha ela. - Eu conheço o nome da minha mãe. O seu, eu não conhecia. - Jogando-a contra as almofadas, eu me exalto.
- Para de ouvir o que aquele homem te fala ou vou proibir vc de se encontrar com ele! Entendeu!? - Saltando do sofá, ela sorri antes de me enfrentar.
- Vc não pode. Não é a minha mãe.
- ANTOINE! - Caminho em sua direção. A campainha toca. Antoine corre até a porta e a abre, de imediato. Encho-me de repulsa ao rever seu rosto maquiado exageradamente. - Sweet! O que faz aqui!? Já é tarde demais pra visitas!
- Vim buscar minha filha!
- SUA FILHA!? AQUELA QUE VC ABANDONOU DEPOIS DE ME ROUBAR!?
- Juju!!! - Berra ela cruzando o umbral da porta. Puxando-a pelos cabelos presos em um rabo-de-cavalo, eu pergunto.
- Vc faz ideia de quem eu sou!?
- Me solta, Adessa! Eu vou levar minha filha! Agora eu tenho grana e um homem pra me 'bancar'! Coisas que vc não tem!
- Aaahhh...- Comprimo os olhos, inflando as narinas. Antoine alerta em alto e bom som.
- Ih, tia! Mexeu com a pessoa errada!
- Chama Juju pra mim! - Ordena Sweet ainda tentando se desvencilhar de minhas mãos em seu aplique. - Solta, porra! Isso é caro!
- Calma, tia! - Intervém Cassandra, desorientada. - Alguém chegou!
- PAI! - Grita Antoine, afoita. - Chegou na hora certa! O barraco vai começar!
- Barraco???
- Me ajuda, Vincenzo. - Sweet implora minutos antes de eu arrancar seu aplique com um puxão violento. Do chão, ela me xinga. Em pé, eu a chuto. - Vaca!!!
- Para! - Pede Vincenzo, atordoado. - Olha as crianças! Se controla, Eileen!
- QUEM??? - Agachada diante de Sweet, eu cochicho.
- Eileen. Prazer em te conhecer. - Um tapa em seu rosto e me enfureço. De pé, eu a confronto. - COMO TEM CORAGEM DE VIR À MINHA CASA DEPOIS DE TUDO!?
- TUDO O QUÊ!? - Choraminga Sweet sobre o piso em madeira velha. - Eu quero ir embora. Cadê minha filha!?
Antoine, parecendo se divertir, afasta Juju de Sweet. Vincenzo e Cassandra nos observam, imóveis. Descalça, eu chuto as costas de Sweet enquanto prossigo.
- Vaca traiçoeira! Vc roubou o dinheiro e as roupas dela!
- Dela quem, sua louca!? - Vincenzo a ajuda a se reerguer aumentando meu ódio em força e intensidade. - Me leva daqui.
- Não! - Nega-se Vincenzo, horrorizado. - Vc fez isso à sua amiga!? - Sem lhes dar tempo para conversar, continuo a gritar.
- ELA NUNCA FOI AMIGA DE SEU GRANDE AMOR, VINCENZO! NUNCA!
- Dess, para. Volta.
- 'STRIAPACH'!!!
- O que é isso!?
- 'Vagabunda' em irlandês. - Esclarece Cassandra levando Juju e Antoine ao quarto onde todas nós dormimos juntas. - Pega leva, tia.
- Vou pegar. - Minto. Ao ouvir o ruído da porta antiga se fechar, recomeço. Avançando em sua direção, volto a estapear seu rosto enquanto rosno. - Quanto ganhou pra entregar meu corpo àqueles seus amigos!?
- Do que tá falando!?
- Dess! - Encarando Vincenzo, eu o ameaço.
- Cala a boca ou vou te matar também! - Arrasto Sweet pelo que sobrou de seus cabelos até o centro da sala e volto a interrogá-la montada sobre seu tronco. Meus joelhos imobilizam seus braços quando rumino. - Fala, vagabunda! Quanto ganhou pra deixar meu corpo ser usado por aquele bando de homens selvagens!? Foi vc quem organizou o estupro coletivo e ninguém mais sabe disso além de mim!
- Mas faz tanto tempo...- Choraminga Sweet, dissimulada. - Não tive culpa. Eu juro.
- Do que estão falando!?
- Não sabia, padre!? - Vincenzo arregala seus lindos olhos azuis. - Na noite em que vc finalmente reencontrou seu grande amor, essa vaca aqui havia nos convidado pra uma festa! Não se lembra de como nos encontrou!? NÃO SE LEMBRA!? ERA PORRA E SANGUE PRA TODOS OS LADOS QUE TE FEZ SE ESQUECER!?
- Sweet. - Enojado, ele pergunta. - É verdade? Foi vc?
- NÃO! - Grita ela, esperneando. - Não sabia que seria assim! - Um riso sarcástico e, erguendo-me, pergunto a Vincenzo.
- Viu? Essa é a puta com que vc fode e espanca! A puta que traiu, da pior maneira possível, seu grande amor, bastardo! Eu vou te odiar pelo resto da minha vida, Vincenzo. E seu amor também. - Sigo em direção ao corredor claustrofóbico do prédio antigo. Desço os degraus, até alcançar a rua. Correndo atrás de mim, ele indaga.
- Como soube disso?
- Tá na porra da minha memória. - Sentindo uma forte pontada na cabeça, continuo. - Na lixeira das nossas memórias onde vc esconde muita coisa, padre. Vc a fez se esquecer da música que rolava durante o estupro pra que ela não sofresse. Vai negar? Como era mesmo? Ah! Lembrei! "Because of my best friend"! Não é hilário!? Por causa de sua melhor amiga, ela quase morreu naquela noite, padre.
- Vc não deveria se lembrar disso, Eileen. É cruel demais.
- Pra quem!? Pra ela ou pra mim!?
- Para ambas! Eu quis te proteger também!
- NÃO QUEIRA! EU SOU FORTE PRA CACETE! - Fecho os olhos e levo a mão ao estômago. Parecendo preocupado, ele pergunta.
- O que houve? Vc está bem?
- Que gosto esquisito. - Lambendo os lábios, comento. - Que porra de gosto amargo. - Tonta, eu o vejo sorrir para mim e observar.
- Deve ser o chá surtindo efeito.
- Chá!?
- Vc precisa dormir, Eileen. - Incrédula, divago.
- Não não não. Antoine não faria isso.
- Ela não sabia, Eileen. Fui eu quem pediu. Vc precisa dormir.
- Não quero. Quero viver...- Cambaleio pela calçada. Agarrada a um poste, suplico. - Me deixa ficar. O que ela tem que eu não tenho? Por que não consegue me amar? - Abraçando-me com força, ele confessa.
- Eu te amo, Eileen. E sempre vou te amar. Vc é parte dela, assim como Morgana e Valkyria. Vcs são uma só.
- E por que não me deixa ficar?
- Porque é a vez dela, amor. É a vida dela. A sua, já passou. Vivemos momentos inesquecíveis, Eileen. Eu nunca fui tão feliz como naqueles anos. - Com a voz embargando, indago.
- Verdade? Nem com ela?
- Nem com ela. Eu nunca tive nada de tão concreto com nenhuma mulher além de vc, amor. Com vc, eu me casei e tive filhos. Eu até cantei...- Sorrimos e choramos juntos. - Vc vai sempre estar em meu coração. Todas as vezes em que eu olhar para Dess, eu estarei vendo vc.
- Promete?
- Prometo. - Em seu colo, vencida, eu peço.
- Se um dia, vcs tiveram uma filha, poderiam dar meu nome a ela?
- Vc leu meus pensamentos?
Sorrio e suplico.
- Me beija antes de eu partir...
Após sentir o gosto de seu beijo longo e emocionado, estapeio seu rosto e o xingo.
- Collach! - Acostumado aos meus arroubos, ele se defende.
- Não sou um porco. Sou um anjo de merda que vai consertar tudo. Eu prometo. Te amo, Eileen. Adeus.
Antes de perder os sentidos, vejo Sweet levar em seu colo a filha que grita por mim. Antoine, aos prantos, como uma pitonisa, avisa da calçada.
- Ela vai morrer! Deixa ela aqui, tia! Ela vai morrer se ficar com vc!
A profecia se cumpriu.
Meses após a partida de Juju de nosso apartamento, ela, atingida por uma bala perdida, perde a vida em uma comunidade onde o namorado de Sweet era o dono da 'boca de fumo'.
Espero até que todos saiam do cemitério e deixem o pequeno túmulo de Jujuba solitário e, então, choro sobre a sua lápide, pedindo-lhe perdão. Antoine e Cassandra me aguardam em casa. Jamais poderia suportar a dor de Antoine ao ver sua melhor amiga pálida, muda, morta. Seus risos me encantavam e, agora que nunca mais os ouvirei, sinto-me culpada.
Por que não evitei que Sweet a levasse? Não me recordo de como ela partiu, mas eu sei que estava lá e que, de alguma forma, fui impedida de agir.
De alguma forma, eu sou a culpada pela morte de Juju e de Mimi e, talvez, por isso, eu a tenha aceitado de volta.
Sweet ocupa o espaço deixado por Juju em meu minúsculo apartamento. Sob os protestos de Cassandra e Antoine, eu a aceitei de volta.
- Tia, eu não te entendo. - Resmunga Cassandra. - Como aceitar essa mulher aqui depois do que ela te fez? - Sem me compreender, eu a defendo.
- Ela não tem aonde ir. Foi expulsa da comunidade. Se voltar pra lá, ela morre.
- Foda-se!
- Cassandra! - Repreende-a Antoine abocanhando um pão francês com manteiga. De boca cheia, ela comenta. - Palavrão é coisa feia. Mas eu concordo com vc. Tia Sweet deve sair daqui. - Pensativa, recosto meus cotovelos sobre a mesa em vidro que trouxera do antigo apartamento. Ainda sinto a vibração da energia de Aiden ao se sentar e sorrir para mim. Onde ele deve estar agora? No inferno? - O que é, filha!?
- Eu te disse que vou pro colégio, mamãe 'cabeça oca'. - Rindo de si mesma, ela corre até o quarto. De volta com sua mochila antiga nas costas, pergunto.
- Já escovou os dentes?
- Não. Não precisa. - Com as mãos na cintura, dramatizo.
- Como é que é!? Desde quando a senhorita não escova os dentes!?
- Eles sangram, mamãe. - Dobro meus joelhos e, exausta por trabalhar durante madrugada, indago.
- Desde quando eles sangram?
- Desde que meu tio me deu a bala. - Entrando em desespero, pergunto.
- Que tio!? Que bala!? - Dirigindo meu olhar aflito a Cassandra, indago. - Alguém chegou perto dela no colégio!? Vc viu algum homem se aproximar dela!?
- Não, tia! Nunca! - Responde Cassandra assustada. Ela e Antoine estudam no mesmo colégio estadual perto de nosso novo 'velho' apartamento. - Eu tô sempre perto dela na hora do recreio! Ninguém fica perto dela! Só eu!
- E por que ninguém fica perto dela!?
- Porque eles me chamam de 'esquisita'. - Explica Antoine, amuada. - E de 'neguinha' também.
- De novo não! - Irrito-me. - Vem! Vamos escovar os dentes e ver o que acontece!
Diante de seu reflexo no espelho, eu a faço segurar a escova e, suavemente, esfregá-la em seus dentinhos de leite. - Viu? É assim que se faz, filha. Não precisa ser com força. Olha! Esse aqui tá quase caindo!
- Eu sei, mamãe. - Diz ela após cuspir no ralo da pia. Bochechando com água limpa, ela me pede para esperar erguendo seu bracinho. Outro cuspe certeiro e ela prossegue. - É porque eu não aceitei a bala dessa vez. Entendeu? - Um forte arrepio na nuca e sussurro ao me apoiar na beira da pia encardida. Por mais que eu lave, ela continua encardida.
- Não. Não entendi. Filha, quem te dá balas que fazem suas gengivas sangrarem?
- O tio Lu. - Meu coração chega a parar de susto. Contendo meu desespero, eu não a interrompo. - Ele pediu pra não falar com vc, mamãe. E eu não falei porque vc não era vc. Era a 'outra'. Agora que a 'outra' foi embora, eu posso falar pra vc. - Revirando os olhinhos, ela bufa. - Putz. Que complicado, né? - Um abraço forte e ela cochicha. - Que bom que vc voltou, mamãe. Eu até gostava da 'outra', mas vc é muito melhor. - Segurando-a pelos braços, eu a faço me encarar quando aconselho.
- Nunca mais fale com esse homem.
- O tio Lu!?
- Ele não é seu tio. É um monstro disfarçado de homem, filha. Se ele estiver aqui, me fala agora.
- Tá não. Ele só aparece quando vc não tá. - Num tom mais baixo, ela explica. - Ele tem medo de vc.
- De mim?
- É. Disse que vc é muito briguenta. - Jogo-me contra o piso frio do banheiro onde só cabem duas pessoas por vez. Lembro-me da banheira de hidromassagem em nosso antigo e imenso apartamento e penso que mergulhar nela me faria bem agora. Recosto-me à parede. A ideia de que devo pintar o teto descascado me vem à mente junto ao desânimo de ter de lutar contra outra figura sinistra. Eu não suporto mais viver entre dois mundos. - Mamãe? Vc tá bem?
- Sim. - Puxando-a pela cintura, eu a faço se sentar sobre minhas pernas cruzadas e, forçando um sorriso, afirmo. - Se vc estiver comigo, filha, eu sempre estarei bem. Entendeu?
- Sim. E o papai? Agora que o tio Aiden morreu, vc 'podia' se casar com o papai.
- 'Poderia'. - Corrijo Antoine que se delicia ao jogar a cabeça para trás e proclamar de braços abertos.
- Aleluia! Ela aceitou, papai!
- Vc tá falando com ele agora!? - Fugindo de mim, ela corre até a porta da sala antes mesmo de ouvir o som da campainha. - ANTOINE! VOLTA AQUI! - Grito seguindo seu rastro. Demoro alguns segundos até reconhecer sua fisionomia. Seu cheiro de maçã verde o precede. - O que faz aqui?
- Vim levar nossa filha ao colégio.
- Ah! Tá! Simples assim!?
- E como seria , Dess? - Pergunta-me ele, entediado. - Há mais de um mês é assim que tenho feito.
- Não me lembro disso! Eu costumava levar Antoine!
- Não era vc, mamãe...
- Aaaah tá! Era a 'outra'! Que saco essa história de 'outra'!
- Não fala assim com ela, Dess. - Repreende-me Vincenzo com Antoine em seu colo. Os lábios de Antoine tremem ao me pedir desculpas. - Se controla.
- Perdão, filha. Eu não quis gritar com vc. Foi com ele.
- Comigo??? - Antoine ri da expressão exageradamente assustada de Vincenzo enquanto raciocino. - Não pensa muito. Vai ser pior.
- Deixa eu tentar entender...
- Depois, Dess.
- AGORA! EU PRECISO ENTENDER AGORA! - Exalto-me. Antoine esconde o rosto no pescoço de Vincenzo que me censura com um olhar.
- Ela não precisa participar disso.
- Desde quando vc se tornou o 'pai do ano'!?
- Dess...
- Cala a boca e me ouve!?
- Fica no quarto, filha. - Pede Vincenzo enquanto os vejo caminhar de mãos dadas. Ao fechar a porta de nosso quarto, ele avisa num tom divertido. - Vamos chegar um pouquinho atrasados hoje. Ok?
- Ok! - Responde Antoine. - Não briga com ela, pai! Ela não tá bem da 'caixola'. - Chutando as almofadas do chão, enciumada com a cumplicidade entre ambos, eu caminho na direção de Vincenzo que se volta para mim e me segura pelos braços ao pedir num tom apaziguador.
- Para e pensa antes de agir. - Furiosa, rosno.
- Vai...tomar...no...cu.
- Essa é a Dess que eu conheço. Educada, comedida e com extenso vocabulário. - Diz ele sorrindo.
- Pois vc não é o Vincenzo que conheci! Aliás! Eu nunca te conheci, Vincenzo!
- Vc nunca me deu chances pra isso!
- Não!? Desde que te conheci na merda daquela lanchonete, eu te 'dou mole', idiota! Eu sempre quis ter uma vida com vc e vc sempre escapa das minhas mãos como sabonete molhado!
- Daí, vc preferiu se casar com um demônio!
- Daí, eu preferi dar qualidade de vida à minha filha que, por acaso, não é sua! - Aumento o tom de voz. Prestes a se desequilibrar, ele fala ainda mais alto.
- É sim! Só vc não percebeu isso ainda!
- Não me diga!? - Ironizo. - Só porque vc a leva ao colégio onde deve ser cobiçado pelas mães dos alunos, vc se acha pai dela!? Só porque vc a fez experimentar todos os sanduíches do 'Mc Donald's', vc se acha pai dela!? Ela viu todos os filmes e desenhos no cinema graças a vc que se acha o pai dela porque a mãe dela - EU - estava tentando salvar a vida de duas crianças que morreram por sua covardia!
- NÃO FALA ASSIM! EU NADA TENHO A VER COM ISSO!
- COVARDE! CANALHA! VC É UM ANJO! PODERIA TER SALVO MIMI E JUJU COM UM ESTALAR DE DEDOS E FUGIU! DEIXOU O PIOR PRA MIM! - De olhos estatelados, ele se mantem firme e calado diante de mim. Possuída pelo ódio, prossigo, aos berros. - EU TIVE QUE MATAR AIDEN! EU ME LEMBRO DE QUASE TUDO! INFELIZMENTE, EU ME LEMBRO DE QUASE TUDO, INCLUSIVE DE VC TER ME DEIXADO SOZINHA, NAQUELE QUARTO! VC ME DEIXOU SOZINHA COM DOIS DEMÔNIOS QUE ME ESTUPRAVAM POR DIAS, MESES E NADA FEZ PRA ME AJUDAR! VC NUNCA ESTEVE AO LADO DE ANTOINE QUANDO ELA VIA MONSTROS DE MADRUGADA! CADÊ O PAI DELA NOS PIORES MOMENTOS!? CADÊ, VINCENZO! - Cobrindo o rosto com minhas mãos trêmulas, imploro. - Sai daqui e me deixa viver com dignidade.
- Não vou. - Jogando-me contra o sofá, desabafo.
- Vc me disse que não podia ficar perto de mim no pior momento de minha vida. Vc deixou que me julgassem e me condenassem àquele inferno de onde saí sozinha. Agora quer ficar? Agora que tudo tá quase normal, exceto a falta de grana e a exaustão que toma conta de mim todas as vezes que tenho que lidar com demônios, monstros, espíritos e um bando de crianças racistas na porra da colégio dela!?
- Dess...- Ergo-me do sofá assim que ele se aproxima. Luto contra seu abraço até perder as forças e me entregar e recostar meu queixo em seu ombro. - Eu não podia me rebelar contra as ordens do Alto. Agora eu posso ficar contigo. Me deixa fazer parte da sua vida.
- Não vou abrir meu coração pra vc outra vez.
- Dess. Eu nunca tive uma chance com vc. Agora, eu posso.
- Agora, eu não quero.
- Por que não? O que mudou?
- Eu já não tenho coração.
- Tem, Dess. Me deixa te mostrar que a gente pode dar certo. Nós já demos certo uma vez...
- Com a 'outra'? - Recuo, com lágrimas nos olhos. - Vcs se casaram e tiveram filhos? Foram felizes? Por muito tempo?
- Não. Durou pouco e sempre foi vc, Dess. Sempre foi vc. Desde o início, eu caí por vc, não importando que corpo vc possuía ou em que época vc estivesse, sempre foi por vc.
- Para...
- Dess, agora nós temos uma chance real. - Limpo meu rosto molhado com as mãos e, entre soluços, zombo.
- Sério? Agora que só restou seu amigo Lúcifer pra machucar minha filha? Agora vc quer realmente colocar a vida dela em risco? - Um passo à frente e ele refuta.
- Ele jamais vai tocar nela novamente. Não agora que recuperei minhas forças e já não o temo. Dess, somos uma família e precisamos permanecer unidos.
- Desde quando somos uma família, Vincenzo? Desde que vc parou de surrar Sweet ou desde que seus superiores tiraram a coleira do seu pescoço? Eu não te vejo aqui há séculos. Eu nunca tive em vc um homem pra me proteger, Vincenzo. Um pai pra lutar por Antoine no colégio. - Engasgando-me em meu próprio choro, caminho até a porta que range e, abrindo-a, peço de cabeça baixa. - Vá embora e não volte mais.
- Vc preferia o Aiden, não é?
- Ao menos, ele me protegia.
- Um pedófilo demoníaco que te estuprou até o fim da vida.
- Um homem que chegou ao seu limite por eu ter traído sua confiança por sua causa. Não se lembra, Giovanni? - Magoado, ele responde.
- Lembro. Tem razão. O melhor é eu me afastar. Não temos o que eu achei que tivéssemos.
- O quê?
- Amor. O amor que encontrei em Valkyria, Morgana e Eileen, Dess. Elas morreriam por mim assim como morri por elas. - Atirando as chaves de sua casa de praia contra o chão da sala, ele se despede. - Vai precisar se refugiar de Lúcifer. E, se precisar de ajuda, invoque a alma de Aiden porque eu desisti, Dess. - Curvando o tronco para frente, demonstrando intensa dor, ele repete num tom muito baixo. - Eu desisti de vc e de mim. Adeus. - Desejando abraçá-lo e deixar que ele permaneça em nossas vidas, eu o expulso.
- Vai, covarde. Não será a primeira vez...
Eu nunca o vira chorar tanto como naquele dia de chuva antes de caminhar pela calçada até sumir. Se, ao menos, ele soubesse que tudo o que dissera não era real.
- Eu não vou permitir que Lúcifer te escravize, amor. Eu mesma vou resolver tudo sozinha e, talvez, vc volte a sentir algo por mim. Por enquanto, vou tentar respirar sem vc por perto.
Sweet, obcecada por limpeza, faxina nosso apartamento praticamente todos os dias. A culpa por ter, de certa forma, colaborado com a morte de Juju a transtornou ainda mais. Tomada pelo TOC, ela começa a interferir em nosso cotidiano, impedindo Antoine de ser criança e jogar seus brinquedos pelo quarto e sala. Cassandra já não fala com Sweet desde que Sweet avançara sobre ela e quase a matou se eu não tivesse chegado a tempo de impedir.
"Ela atirou em Juju! Eu vi!", delirava Sweet. Durante suas frequentes crises, eu a sedava com altas doses de calmantes enquanto a ouvia sorrir e cantar para Mimi e Juju.
"Ele disse que posso ter minhas filhas de volta", dissera ela antes de adormecer. Repetira essa frase por diversas vezes até que eu, intrigada, perguntasse.
- Ele quem, Sweet? Jesus?
- Não. - Seu sorriso diabólico me assusta tanto quanto sua resposta. Sentada na beira da cama que dividimos, eu a ouço, receosa. - O homem bonito com terno engomado. Ele me disse que verei minhas filhas, em breve, se eu fizer o que ele pede. - Outro risinho ao estilo 'Regan' de 'O Exorcista' e, assustada, indago.
- E o que ele quer que vc faça, Sweet?
- Não posso dizer. Não ainda...- Estapeio seu rosto na intenção de acordá-la, mas é inútil. Ela dorme durante horas e, ao acordar, o pesadelo se repete.
- O que vc quer que eu faça!? Jogá-la na rua!?
- Exatamente. Ela é louca, tia. E perigosa. Quer que algo aconteça a Antoine? - Surtada, encaro Cassandra ao meu lado no Chevette. Antes de pedir que ela esclareça o que acaba de insinuar, ela aponta o indicador para o colégio e avisa. - Tia, se controla. Antoine saiu.
Luto contra a porta do carro velho que trava. Cassandra, fora do carro, me ajuda a abrir a minha porta enquanto a empurro para o lado e a ouço gritar. - Espera, tia!
Tarde demais.
Descabelada, exausta, apavorada e descalça, caminho a passos largos até Antoine que, num tom baixo, me pede.
- Mamãe, não faz escândalo. Meu...
- Nunca...- Refuto abrindo espaço entre a multidão de mães e alunos, invadindo, colérica, a sala da diretoria. Reconhecendo a diretora, pergunto num tom alto e agressivo. - Como vcs permitem que façam 'bullying' com seus alunos!? Minha filha é chamada de 'neguinha' e 'esquisita'. POR QUÊ!? Porque é super inteligente e gosta de ajudar as pessoas!? Por que é da raça negra!? Puta que pariu! Isso é tão antiquado!
- Senhora...- Diz a diretora num tom conciliador. - Tenha calma. - Espalhando todos os papéis sobre sua mesa com minhas mãos nervosas, eu rosno.
- Tenha calma o cacete! Vcs magoam minha filha e me pedem calma! Eu já não suporto mais isso! - Antes de saltar sobre a jovem senhora, sou contida por braços fortes que envolvem minha cintura. Sua voz serena pede desculpas à diretora e justifica.
- Ela tem tido dias difíceis.
- Compreendo. - Diz a diretora, enrubescida. - Todos temos dias assim. Não é mesmo? - Ainda presa por seus braços, aspirando seu perfume, grito.
- Me solta, porra! Que diabos vc tá fazendo aqui!? - Encarando seus lindos olhos azuis, solto ar dos pulmões pela boca e, contendo meu nervosismo, eu o escuto.
- Cumprindo meu papel de pai.
- Oi???
- Vc me contou sobre o 'bullying' de nossa filha. E eu, como pai, já conversei com essa agradável senhora e resolvi o assunto. - Antes de voltar a surtar, Antoine se gruda ao braço de Vincenzo e observa.
- Meu pai é bonito, né tia!? Muiiiito bonito! - Em seu colo, ela beija sua bochecha e avisa num tom debochado. - Mas ele já tem dona. Nem adianta paquerar ele. Minha mãe e ele vão se casar. Mas ela ainda não sabe disso.
Empurrada por Cassandra, sem ânimo, chego ao carro e, sento-me no banco do carona. Ao volante, Cassandra celebra a participação especial de Vincenzo em nossas vidas. Antoine, no banco traseiro, dramatiza.
- Meu pai arrasou, mãe! Foi de sala em sala e falou pra ninguém se meter comigo porque eu tenho pai e mãe que me amam e que eu tenho poderes especiais. Ele disse que sou a 'Shuri' disfarçada. Não é legal, mãe!? Ele disse que se eu for chamada de 'neguinha' novamente, ele volta e acaba com todo mundo. - Gargalhando, ela conclui. - Meu pai é louco! Igualzinho a vc, mamãe! - Esparramando-se no assento rasgado, ela engole a risada e num tom sombrio, alerta. - Vcs vão se casar. Mas...até lá...alguém vai sofrer.
- Não. De novo não. - Jogando meu tronco para frente, recostando minha testa nos joelhos, murmuro. - Desisto.
- Pintei, ué! Não posso!?
- Não de ruivo. - Respondo estranhando meu incômodo inexplicável. A imagem de algas e rios caudalosos vem à minha mente enquanto tento me arrumar para o trabalho no 'pub'. - Ficou bonito.
- Eu sei. Ele me falou o mesmo. Disse que eu deveria me recordar de algumas coisas do passado. - Debaixo do chuveiro onde se tem somente duas estações: verão escaldante ou frio congelante, evito pensar no que acabo de ouvir. Ela, sentada no vaso sanitário, parece querer me provocar. - Ele me prometeu muita grana. Com essa grana, eu vou poder levar Mimi e Juju pra bem bem longe daqui.
- Com certeza. - Concordo porque dizem que, com loucos, não se briga. Esquivando-me de seu corpo, peço. - Dá licença. Preciso me enxugar.
- Esse banheiro é minúsculo. - Desdenha ela. - Em breve, minhas filhas e eu teremos um imenso, igual ao do seu antigo apartamento quando Aiden ainda era vivo.
- Vai sim. Deus te ouça. - Rosno ao passar por ela e ouvir seu sussurro.
- Deus não está aqui. - Um forte arrepio e ordeno.
- Sai daqui, porra! Eu tenho que trabalhar!
- Calma, amiga.
- Sai! - Empurro a porta do quarto evitando que ela entre. Tranco à maçaneta e, apavorada, peço ajuda ao 'Crucificado' preso à parede. - Salva minha filha. Por favor.
Um grito de pavor e, escancarando a porta do quarto, ainda de lingerie, corro até a sala onde encontro Cassandra e Antoine aterrorizadas num dos cantos do cômodo e, no outro, Sweet segurando uma tesoura, ostentando um sorriso macabro.
- ELA CORTOU O CABELO DE ANTOINE! EU TE DISSE, TIA! ELA É LOUCA!
Correndo em minha direção, Antoine me abraça. Eu a aperto em meus braços e, desorientada, tentando compreender o que está acontecendo diante de meus olhos aflitos, ouço Sweet confessar ainda com mechas dos cabelos de Antoine em sua mão.
- Ele me pediu. Foi só um cachinho. Que escândalo por nada.
- Larga a tesoura, Sweet. - Ordeno protegendo Antoine e Cassandra com meu corpo. - Dá pra mim. Somos amigas. Não somos?
- Sim! - Afirma ela, eufórica. - Amiga! Se eu conseguir mais, ele vai trazer Juju e Mimi de volta! Ele me prometeu! E tudo o que ele pede é um pouquinho do cabelo de Antoine! - Um riso histérico e ela comenta. - Acho uma troca justa, né!? - Minhas mãos trêmulas alcançam as suas. Num golpe rápido e certeiro, atinjo suas costas com minha perna direita e a faço cair contra o piso. Arremesso a tesoura à distância e, montada sobre o tronco de Sweet, sentindo piedade por ela, pergunto já adivinhando a resposta.
- Amiga, qual o nome desse homem tão bacana? E o que ele quer em troca da vida de Mimi e Juju?
- Sei lá! Ele só pode trazer minhas filhas de volta se eu lhe der algo de Antoine. - Seus lindos e obscuros olhos verdes se voltam para Antoine ao perguntar. - Doeu, meu bem? Perdoa a tia. Vc não quer brincar com minhas filhas de novo?
- Os dentes, tia!!! - Grita Cassandra agarrada a Antoine. - Ela pegou os dentes de leite de Antoine!!! Eu vi!!! Estão em uma caixinha na gaveta dela!!! -
- QUE PORRA ESSE HOMEM QUER COM OS DENTES E CABELOS DE MINHA FILHA, SWEET??? - Horrorizada e impaciente, eu a agarro pelas orelhas e, sem controle, movo sua cabeça que se choca contra o chão por duas vezes. Aos berros, ordeno. - O NOME DELE???
Seu sangue se espalha pelo piso em madeira quando, aos prantos e tonta, ela responde.
- Não tem nome. Tem apelido...
- QUAL??? - Afasto-me de Sweet e me recosto à parede, apavorada, assim que ouço seu nome.
- Tio Lu.
Continua...