'Dess - Uma História Interessante'

'Dess - Uma História Interessante'
AMO ESCREVER

CAPÍTULO 10 - EL TANGO DE ROXANNE

 


Hoje é o primeiro dia. O primeiro de muitos dias sem ele. Sem pensar nele. Sem esperar por ele. Sem depender de seu sorriso para continuar a viver. 

Hoje, eu decido que vou me curar dele, de uma vez por todas, ainda que ele, Vincenzo, tenha me ligado constantemente. Confiro o número de ligações no celular que abraço, cheia de saudades, como se fosse ele...



- Vinte e duas ligações em um só dia!? - Exulto. - Acho que estamos fazendo falta na vida do papai, filho. - Há exatos trinta dias que eu não o vejo. Estou, praticamente, me desintoxicando dele como se ele fosse a minha droga...meu vício. Por que vc não pode ser normal? Merda! - Alô! - Eu o atendo, irritada. - Vincenzo! Eu preciso dormir! Para de ligar!

- Não posso. - Diz ele do outro lado da linha. - Preciso saber como vc está. Por que não me atende, Dess!? Por que não abre a porta pra mim!?

- Porque vc é louco e eu preciso me livrar dessa dependência doentia que é gostar de vc! Boa noite!

- Não! Não desliga! Deixa eu ouvir a sua voz mais um pouco...

- Puta merda! Vc tá bêbado!?

- Não...

- Vincenzo! - Repreendo-o num tom de voz mais alto. - Vc está bêbado!? Desde quando vc bebe!?

- Não estou. - Defende-se ele com a voz entaramelada. - Estou com saudades de vc, idiota. Vc me faz falta. Muita falta. - Diz ele após soluçar. Acho fofo e triste. - Dess...fala comigo. Vai... - Vacilo, enxugando minhas lágrimas com as mangas do pijama. Inspiro e expiro, olhando sua foto ao lado de minha cama. Ele é tão lindo! Por que precisa ser doido!? - Dess? Ainda tá aí?





- Me deixa em paz. Eu já não sou a mesma...

- Mentira! Vc ainda me ama! Eu sei!

- Não mesmo! Seu narcisista filho da puta! - Aponto o controle remoto para a TV e aumento o seu som a fim de que ele não ouça meus pensamentos e saiba que eu ainda o amo. - Tenho outros planos para a minha vida e vc não está neles, Vincenzo!

- Não desliga! Por favor!

- Vincenzo! Vc me expulsou da sua vida como um maldito demônio! Vc me usou e me humilhou em nosso último encontro! Vc me pediu...- Minha voz embarga de ódio e vergonha. Assoo o nariz, então, prossigo, ouvindo sua respiração do outro lado da linha. - Vc se lembra do que escreveu naquele bilhete, Vincenzo? No bilhete junto à grana que me deixou quando me abandonou naquele quarto no 'Moulin Rouge'!?

- Me perdoa por isso, Dess. Eu não estava bem.

- Vc nunca tá bem, Vincenzo! Vc está doente e eu gostaria de te dizer que vc poderia se curar caso se tratasse, mas não vai! Narcisistas não se curam, seu bosta! Por que vc me machuca tanto!? Me deixa em paz! Por favor!

- Eu tô tentando...mas não consigo. Dess, me perdoa.

- Fica longe de mim. 

- Não dá! Eu preciso ficar por perto!

- Por que, Vincenzo!? Eu sei me cuidar sozinha!

- Não sabe, Dess. Um dia vc vai me entender. Agora não...

- Vc tá bêbado! - Constato, indignada. - Vincenzo, vc não bebia! Com quem vc tá andando!?

- Eu não bebo. Foi só hoje, amor...

- NÃO CHAMA DE AMOR!!!

- Não grita, Dess. Eu tô bêbado. Não surdo.

- Bêbado cretino! Eu não posso ficar nervosa! Desliga!

- Agora não, Dess. Deixa eu te ouvir mais um pouco...

- Eu não gosto de mim quando estou com vc. - Exalo. - Eu preciso ser mais adulta. Agora mais do que nunca.

- Por que agora mais do que nunca? O que quer dizer com isso, Dess?

- Quero dizer "Suma da minha vida, canalha"!

- Dess..

- Durma com os anjos!!! - Engulo em seco ao desligar o celular e sentir uma pontada em meu peito. - Eu não posso ceder a vc novamente, Vincenzo. Não posso. Preciso me curar. Preciso cuidar do nosso filho...amor.



Substituo o vinho por uma xícara de chá de camomila. Eu a tomo, aos poucos, ouvindo um flashback que me faz chorar ainda mais porque, se vc precisa se afundar na tristeza, melhor que seja ao som de uma boa música triste como a que ouço agora. Coincidentemente, o cantor pede para que sua namorada não desligue o telefone e ela o desliga, deixando-o falar sozinho...


- Não desliga, idiota! Ele só quer que vc saiba que é bonita, estúpida! - Aos, prantos, brigo com a mulher que desliga o telefone na cara do cantor. Penso em como viver sem Vincenzo, ainda que eu não tenha vivido, de fato, com ele. - Ele não me quis. Ele não me disse que havia largado o sacerdócio! Ele não me quis!!! - Engasgo-me com meu próprio choro. Sinto-me patética...e abandonada. - Por quê, meu filho!? Por quê!? Seu pai é um monstro! - Deito-me na mesma cama onde o nosso primeiro filho fora fecundado. Lembro-me da noite em que o segundo
fora gerado com amor. Tanto amor! - Só eu o amava. - Concluo, alisando minha barriga. - Narcisistas não amam, filho. Será que ele vai te amar!? Não! Esquece, filho! É lógico que vai! Acho que com filhos, o lance é outro! Tem que ser! Outra mensagem, Vincenzo!?Tenha dó!

"Creio que isso possa te interessar, meu anjo. Durma com Jesus. Conte comigo...sempre." 

- É do tio Doc, filho! - Entusiasmada, abro o link descrito na mensagem e leio seu conteúdo. Algo sobre uma companhia de dança à procura de novos bailarinos. - Seu tio é fofo...- Suspiro. - Mas não dá, né? - Desanimada, digito uma mensagem em resposta.
 
"Doc, meu grande amigo, não posso aparecer lá, barriguda! Eles não irão me aceitar sequer para me inscrever! Obrigada pela lembrança! Te amo!"

Indignado, ele me envia outra mensagem.

"Te amo nada! Amanhã eu te levo até eles! Esteja pronta no horário marcado para as audições! Durmam com os anjos, querida! Dê um beijo no meu netinho!"

Desligo, atordoada. Não há como negar uma ordem de Doc. Ele quer o melhor para mim sem saber o que eu desejo, de verdade. Na realidade, nem eu mesma sei o que desejo...além de ter Vincenzo ao meu lado.

PORRA! EU AINDA NÃO ESTOU CURADA! 

Arrisco uma olhadela no site pornográfico onde postava meus vídeos caseiros e, tomada por uma força superior, deleto meu perfil com mais de vinte mil seguidores.
- Chega! Eu preciso mudar em tudo! Tudo mesmo! Agora é pra valer, filho! Me ajudem, por favor. Não quero mais errar...

- Doc, não vai dar certo! Eu estou grávida!
- Disso eu já sabia, meu anjo...
- Doc! Eles vão ver a minha barriga!
- Não vão não, Adessa. Ela não aparece com roupas largas. Esse macacão está perfeito. - Doc parece fazer questão em não me entender. Isso me deixa absolutamente irritada quando retruco. 
- Doc! Eles não são uma companhia de dança! Eles são "A Companhia de Dança"!

- E vc é a melhor bailarina que conheço, Adessa! Não tenha medo, filha. - Argumenta Doc segurando minha mão gelada. - Basta entrar no teatro e ver o que eles querem. Se der, deu. Se não der, não deu. Ok?

- Eles são de "Juilliard", Doc! Olha aqui! No Cartaz!
- E vc é do "California"! E daí!?

Gargalho de olhos fechados diante da inocência de meu amigo. Ele não conhece 'Juilliard School' e sua reputação. A melhor Escola de Ensino Superior de Dança, Música e Dramaturgia do mundo! O que alunos da "Juilliard" estariam fazendo aqui bem longe de Nova York!? Um temor toma conta de mim quando dou meia volta e me deparo com a fachada iluminada do teatro que jamais abrira suas portas ao público. 'Um teatro fantasma', era o que diziam os moradores do meu bairro assim que me mudara para cá. - Meu anjo. Acorda. No que tá pensando?
- Um frio estranho...
- É medo, boba. Vc consegue. - Apoia-me Doc. - Vai!



- Parece super fácil pra vc, Doc! Eu não encaro uma audição desde que nasci! Meu sonho sempre foi esse e, por incrível que pareça, agora que estão bem próximos, literalmente, próximos demais, não sei se vou conseguir. Não sei...eu não tenho coragem.
- Se não for, eu vou te empurrar. - Ameaça ele, sorrindo. 
- Não se atreva, Doc. Estão olhando pra gente.
- Vou contar até dez. Um, dois...

- Doc! Não tem graça! - Protesto, de costas para o teatro quando sinto mãos em meus ombros. Outro forte arrepio e, num giro, eu o vejo pela primeira vez. Segundos de silêncio, então apuro minha visão. Cerro os olhos e, por mais que eu tente, nada capto vindo dele. Nenhuma imagem, memória...nada. - Oi. 
- Olá! Seja bem-vinda!
- Não. Eu não vou entrar. - Digo, sem graça, ainda procurando por Doc que sumira, repentinamente. - Eu vim...
- Veio? - Suas sobrancelhas arqueadas lhe conferem um ar misterioso. Seu sorriso me causa falta de ar. - Vc está bem, querida? Me parece cansada.
- Não. - Minto. Eu estou exausta! Vomito todos os dias, pela manhã e, no restante do dia, mantenho-me enjoada! Isso te parece cansativo!? - Imagina! Eu estou super bem! Foi um prazer...
- Venha! Vc precisa conhecer o teatro! É fabuloso!
- Foi o que pensei! - Hesito ao focar em sua mão no meu pulso. - Eu nunca o vi antes aqui...no bairro!
- For God's Sake! O que quer dizer com isso!?
- Seu sotaque não é dos Estados Unidos. - Concluo, desconfiada. - De onde vc é?
- Irlanda. Vc tem bom ouvido. Um ponto pra vc, Adessa. - Exulta ele. Curvando-se levemente até mim, ele sussurra. - O berço da Magia.
- O quê!?
- A Irlanda.
- Eu não me lembro de ter dito meu nome a vc. - Rosno.
- Não disse. Eu o ouvi. Seu amigo te chamou e eu o ouvi. Vai rosnar para mim novamente ou podemos ser amigos?
Um riso estridente e estou chamando a atenção dos alunos no palco. Tudo o que eu não queria está acontecendo. Meus hormônios à flor da pele me desorientam justo quando eu deveria manter a calma. 
- Perdão. Eu não estou muito bem nos últimos dias. Por que tá me olhando assim?
- Assim como, querida?
- Como se eu fosse louca e vc precisasse de cautela para falar comigo.

Rindo, ele me parece ainda mais sedutor. Deve ser um de seus muitos risos ou o único. Ele ri como quem não gostaria de ter rido. Como se tivesse vergonha de rir quando não há nenhum motivo para não rir porque seu riso é perfeito. Seus dentes são perfeitos. A expressão de seriedade após o riso é perfeitamente intimidante. Por que diabos estou pensando nisso!?

- Adessa, vc pensa muito. - Diz ele, puxando-me pela mão. As minhas estão frias e suadas. As dele são ágeis, fortes, ligeiras ao apresentar. - Eis a nossa Companhia de Dança! - Cochichando, ele volta a se aproximar de mim. - Não se deixe intimidar. Não são tão bons quanto parecem.


Sorrio aos jovens que me encaram com seus olhos incisivos, astutos e um tanto ariscos.

- Essa é minha amiga Adessa! - Diz ele num tom de imposição. - Espero que a tratem bem. - Recuo, envergonhada. - O que foi, meu bem?
- Pelo amor de Deus! Pra que isso!? Eu não te conheço! E eu sequer dancei! Agora...eles vão me odiar! Sem contar que eu poderia ser mãe deles! 

Uma gargalhada sonora e ele me olha, meio que encantado. 
- Vc é simplesmente esplêndida.
- Já ouvi isso em algum lugar. Na verdade, eu ouvi e já falei. É de algum filme?
- Pode ser. Mas vc é real e sabe dançar e eles não precisam te amar. Ok? Basta que te invejem...à distância.
- Vc é estranho. - Digo olhando-o nos olhos. - Mas é legal.
- Vc também é um pouquinho esquisita. Mas é bonita. Empatamos. 
- E quem é vc!? 



Segundos de hesitação e ele, enfim, responde.

- Sou o coreógrafo. 
- E o coreógrafo tem nome!?
- Tem sim.
- E...?
- E o quê!?
- Seu nome!!!
- É. Vc, de fato, está nervosa hoje. - Constata ele, sorrindo. Um sorriso lindo e incômodo. Parece-me que ele gosta mesmo de sorrir. - Quem sabe eu diga se me perguntar com carinho?
- Ai...- Solto o ar pela boca e, então, percebo o quão grosseira estou sendo com alguém de quem sequer sei o nome. - Perdão...novamente. Vamos recomeçar?
- Perfeito! - Exulta ele, com as mãos na cintura. Traços finos em seu rosto, um sorriso no canto da boca carnuda. O corpo escultural coberto por uma calça jeans surrada, uma camisa branca com mangas longas e decote em 'V' e os pés descalços. Gosto dos pés dele. Pés de bailarino. - Sou Aiden! Prazer em conhecê-la...- Seus olhos me encaram enquanto sua boca beija o dorso de minha mão, em uma reverência extremamente teatral. 
- Adessa. - Eu o cumprimento, forçando um sorriso. Estou me tremendo toda por dentro, mas não posso deixar que ele perceba. Fala alguma coisa, idiota! O homem está esperando! Ele não para de te olhar! FALA! - Então...eu passei aqui, por acaso, e...vi...o...a...o outdoor?
- Não. Não há outdoors por aí.
- Aaah...tá. Então...
- O que viu, Adessa? - Pergunta-me ele, abrindo os grandes olhos verdes...ou seriam castanhos claríssimos? - O que a trouxe aqui?
- Ah...tá. Então...- De costas para o homem, lamento. - Meu amigo foi embora e nem se despediu. Isso é estranho... 
- Ele deve estar lá fora, esperando por vc. Olhe para mim. - Sem me dar conta, eu o obedeço.
- Oi...- Diante dele, eu evito seu olhar penetrante. - Nossa! Esse teatro é lindo! 
- É sim. E...vc veio até ele para...?
- Ah! Pra tentar dançar, mas não vai dar não!


- Tenho a certeza de que vai sim. Por que não tenta se enturmar? Já estamos no palco e eu a apresentei aos alunos.
- Nossa. Sou péssima nisso. - Falo com ele enquanto observo o local. Há música no ar. Inspiro profundamente tentando encobrir o nervosismo. Uma súbita pontada em meu ventre. Arquejo, levando as mãos à boca. Meu filho acaba de se mover pela primeira vez e o pai dele não está aqui para vivenciar esse momento. MEU FILHO SE MEXEU! ELE ESTÁ VIVO! Não. Não chora, idiota! Não agora! Não! - Perdão. Não sei porque estou chorando.
- Deve ser pela melodia do tango. É belíssima. Ponto pra vc, Adessa. Dois a zero!
- Aaah...que bobagem...- Assoo o nariz, ruidosamente, com o lenço que ele acaba de me emprestar. - Eu normalmente sou equilibrada. - Minto. - É que hoje...sei lá...hoje...


- Vc se desequilibrou.
- Exatamente! - Rimos juntos até que eu sinta meu rosto queimar de vergonha. Ele está me olhando com uma de suas expressões enigmáticas e isso, de fato, me incomoda. - Vc poderia parar de me olhar assim!?
- Assim como!? - Nossa! Ele é extremamente expressivo! Expressivamente sexy!
- Desse jeito! - Aponto para o seu rosto sem me importar com o julgamento de seus alunos que se alongam enquanto cochicham sobre mim. Serpentes enroscadas em seus ninhos! - Não gosto quando me olham assim!
- Adessa, meu anjo. Me perdoa se te ofendi, mas eu não entendo. Eu não te entendo. - Defende-se ele, erguendo os braços na defensiva. - O que eu estou fazendo de errado!? Me diz e eu conserto!
Baixo a cabeça, cobrindo meu rosto com as mãos. Lágrimas escorrem de meus olhos sem que eu tenha controle sobre elas. Procuro pela escadaria por onde subi até o palco. Quero correr dele e de todos os alunos idiotas que riem de mim e de meu descontrole inesperado. - Aonde vai, Adessa!?
- Foi um erro ter vindo aqui! - Grito ainda à procura das escadas. Ando de um lado ao outro sem me recordar do que devo fazer. Olho ao redor e ouço gargalhadas vindas dos camarotes vazios. Devo estar enlouquecendo aqui dentro. - Preciso respirar. - Aviso, puxando o ar pela boca, num desespero. Aiden me ampara com as mãos em meus cotovelos. Recostando sua testa na minha, ele me pede desculpas. - Não faça isso. Fui eu a culpada. Eu não estou bem. De verdade. Estou em uma fase difícil. Não deveria ter vindo. Perdão por ocupar seu tempo.
- Vc veio na hora certa, Adessa. Não vá embora. Fica.
- Eu preciso...- Arquejo antes de pedir num tom baixo. - Me tira daqui. Por favor. - Ele se volta para o grupo de alunos e, num tom severo, ele os repreende. 
- Saiam agora e não voltem mais.

Vê-los sair, um por um, me deixa aliviada, apesar de me apiedar deles. São tão jovens...

- Aiden, eu mal cheguei e já estou causando transtornos. Me deixa ir embora e vc volta a ensaiar com seus alunos.
- No way. Estou procurando pela bailarina principal e, acredito que, hoje, o Universo está conspirando a meu favor. - Gosto da forma como ele me olha agora. Há bondade e simplicidade em suas feições e no toque de seus dedos em meu rosto. Muito melhor do que antes...- Gostaria de visitar a galeria de fotos antes de me mostrar como dança bem?
- Eu não vou dançar pra vc! - Protesto, entre risos. - Nem morta! Não mesmo!
- Vai sim, senhorita...ou devo chamá-la de 'senhora'?
- Ah...- Faço uma careta e respondo. - Nem uma, nem outra. Me chama de Adessa mesmo. 
- Perfeito. Vamos à galeria de fotos? - Indaga-me ele, oferecendo-me o braço. Deixo-me levar por ele, caminhando em uma sala ampla atrás do palco onde fotos do corpo de ballet estão expostas. Ele me faz andar em seu ritmo, como se estivéssemos dançando em um dos bailes do século XVII. Estou me divertindo com seu jeito peculiar em me tirar da crise de claustrofobia que quase me alcançou quando me deparo com um quadro que me faz arfar. - Gostou?
- Bizarro. - Sussurro, intrigada. - Digo...é bastante interessante, mas sugere-me algo meio que maligno. Não sei...- Deslizo a mão pela garganta até os meus seios. Um calafrio e eu o ouço explicar.

- Não se impressione. Isso é a arte de um dos alunos. A bailarina foi fotografada durante uma de nossas apresentações e ele, macabro, desenhou o bode para amedrontar...- Revirando os olhos, ele argumenta. - Parece que ele atingiu seu objetivo, não é?
- Não. - Sorrio. - Já vi coisa bem pior. Pode acreditar. Esse bode é um gatinho manhoso diante do que já passei.
- Hmmm. Interessante. - Seus olhos estão fixos nos meus quando sugere. - Vc poderia compartilhar comigo suas experiências a esse respeito. O que acha?
- Quem sabe algum dia, senhor? - Eu o reverencio com um 'pliê'. Ele bate palmas, entusiasmado. - Viu? Não sou tão ruim assim. Já pode me dar um lugar em sua companhia de dança. 
- É o que tenho pensado desde que eu te vi lá fora.
- Posso cuidar das roupas dos bailarinos enquanto viajamos o mundo todo! - Exclamo, de olhos fechados. - Tudo o que desejo é ir embora daqui e não olhar para trás! Que tal Itália!? Ou Irlanda!?
- Perfetto! - Mais palmas enquanto rodopio em meio ao salão sob seu olhar esfuziante até me deparar com outro quadro que me faz gritar de pavor. - O que foi!? Adessa!!!
- Me tira daqui!!! Eu não quero ver esse homem!!! Não quero!!!
- Calma, meu anjo! É só uma pintura a óleo!
- Não! - Desespero-me, aos gritos. - Eu o conheço! Não sei de onde ou quando, mas eu o conheço e o odeio!!! Me solta!!! Eu quero ir embora!!!

 - Perdão. Eu te levo até a saída. 

Caminhamos lado a lado, em silêncio. Um silêncio barulhento demais para me deixar calada.

- Quem era aquele homem, Aiden!? Algum ancestral seu!?
- Não. - Responde-me ele, desorientado. - Eu não faço ideia de quem ele é. Juro. Por que ficou tão perturbada? Era só uma pintura a óleo de alguém que gosta de 'maratonar' séries de vikings na Netflix. Adessa, olha pra mim. 
- Fala. - Sua mãos estão em meu rosto quando ele, num sussurro, me pede.
- Não vá antes de fazer o que veio fazer aqui. Por favor. Eu gostaria de te ver dançar. Não deixe que a porcaria do rosto de um babaca te impeça de dançar. -Quero voltar à minha casa e chorar e, talvez, ligar para Vincenzo e...
- Eu não sou nada...ninguém. Por que esse interesse?
- Não se subestime! 
- Não aperta meus braços.
- Desculpa. - Recuando, ele cruza os braços, encabulado. - Não sei lidar com mulheres.
- Sério? Não parece. 
- Por quê? - Outro sorriso no canto da boca e eu o respondo.
- Porque vc é bonitão, simpático, gentil. Vc está mentindo ou é cego e não percebeu que muitas mulheres gostariam de sair com vc.
- Não penso nisso agora.
- Faz bem. O amor é pra poucos. A maioria sofre. Vai por mim. Foca no seu trabalho. É o melhor a ser feito.
- É nisso que estou pensando agora. Não gosto de te ver falando assim de si mesma. Vc vale muito, Adessa.
- Diga isso à minha autoestima. Ela mora abaixo do salto de meus tênis.
- Não deveria. Vc é bela, jovem e dança muito bem.
- Não sou tão bela assim...- Refuto, ressabiada. - E nem tão jovem. Como sabe que danço bem? É a primeira vez que ponho meus pés aqui.
- Eu intuo. Imagino que dance muito bem. Me mostra?


Jesus, Maria e José! Ele é uma perdição! Sweet Child,  aqui, já o teria devorado vivo...
- Vamos?
- Ok. - Seguro sua mão e, absolutamente desnorteada, deixo-me levar...uma segunda vez.
- Eu não sei o que vc quer que eu dance! - Grito no centro do palco a Aiden que desaparece e, repentinamente, surge na cabine onde, supostamente, alguém controla o som durante os espetáculos. Quase me sinto no 'California' pedindo ao DJ que deixe a música rolar. Quase... - Aiden! Isso não vai dar certo!
- Adessa...- Diz ele curvando-se em frente ao microfone, com fones de ouvido, os olhos incisivos sobre mim. - Apenas dance. Ouça a música que eu escolher e dance como quiser e, por favor, pare de sentir medo.
- EU NÃO VOU CONSEGUIR!
 
Ouço o eco do meu berro se espalhar pelo teatro vazio. Num desânimo, acaricio minha barriga escondida pelo macacão jeans largo. Meus pés descalços sentem o piso em madeira. Meus cabelos cobrem o meu rosto quando reconheço a canção que paira no ar. Como ele sabe que amo essa canção? 



- Me ajude a dançar, filho...

Um leve movimento de seu corpinho dentro de mim e eu sorrio, encantada. Ergo os braços curvados para dentro. O queixo aponta para a cabine. Os olhos percorrem as cadeiras da plateia quando os holofotes são acesos e apontam para mim. A luz forte me cega, logo, fecho os olhos e me entrego à música, deslizando sobre o piso liso, saltitando, rodopiando, movendo-me com a leveza de uma borboleta. A canção é linda e triste, tema do filme baseado no livro homônimo "Um Dia". Narra a história de um casal, seus encontros e desencontros em um final surpreendente. Misturo piruetas aos saltos vibrantes, rápidos e animados, mais conhecidos como 'allegros' e, ao final, vivenciando a dor da perda, abraço-me fortemente. Evitando chorar ao me lembrar de Vincenzo, arrisco-me num 'penché', elevando a perna esquerda para trás. Apoiando o peso do meu corpo sobre a perna direita, toco o solo com uma das mãos, temendo cair e estragar tudo. 


Permaneço parada nessa posição até ouvir as palmas esfuziantes dos alunos que me observam, extasiados. Recuo, envergonhada diante dos jovens bailarinos quando sou erguida, subitamente, pelos braços fortes de Aiden e suas mãos em minha cintura. Vibrando de alegria, ele grita, sorrindo.
- Eu sabia! Eu sabia que vc seria perfeita desde que te vi pela primeira vez!
- Me ponha no chão. - Peço, enrubescendo. Ele me faz girar no ar. Ergo os braços e desfruto de minutos de pura alegria. Uma alegria que nunca tivera quando ainda era bem jovem e fora proibida por meus pais de frequentar as aulas de Ballet por serem consideradas 'um luxo' para meninas pobres como eu. Talvez, se eu tivesse seguido adiante, eu não precisaria vender meu corpo e, certamente, não me tornaria uma ninfomaníaca perseguida por um demônio devasso. Putz! Vc precisa pensar nisso agora??? Se deixe levar! Curta o momento! Não! Isso não me parece real! É muito bom para ser verdade! - ME PONHA NO CHÃO, POR FAVOR!
- Claro...- De volta ao chão, peço desculpas.
- Eu tenho me descontrolado ultimamente. Perdão por ser grosseira quando vc tenta me ajudar.
- Não peça perdão, meu anjo. Eu te compreendo. - Sério!? Vc sabe que estou grávida de um homem que me abandonou e que, por acaso, não sabe que é o pai do meu filho e, se souber, não vai acreditar porque, ao invés de ser uma bailarina de sucesso e respeitada por todos, eu sou uma puta, atriz pornô e stripper na porra de uma boate de quinta categoria!? Vc realmente me compreende!? - Adessa, quando eu digo que te entendo é porque eu te entendo e não me pergunte como. Ok?
- Desculpa.
- Se me pedir desculpas mais uma vez, eu vou te fazer girar até vc vomitar...
- Não me olha assim! - Alerto. - Não gosto. - Minto. Não é uma questão de gostar ou não. Eu me sinto nua quando ele me olha da forma como continua a me olhar agora. - Merda! Para!

Uma piscadela e eu explodo. Atordoada, cato minha mochila no palco e corro em direção à saída. Ele me segue, pedindo que eu pare e converse com ele.

- Não tenho tempo, Aiden! - Retruco, dando-lhe as costas. - Eu preciso trabalhar. Preciso pagar minhas contas. Sou grata por me fazer sonhar. - Paro e permito que ele me ultrapasse. - Obrigada por esse momento que acabo de viver. - Digo olhando em seus olhos. Arfando de cansaço e emoção, sussurro. - Foi incrível, Aiden. Devo essa a vc. Adeus.
- Não vai! - Grita ele, segurando-me pelo braço. Sem olhar para trás, aviso. - Eu não volto mais aqui. Meu tempo acabou, Aiden. A época de sonhar, passou. Preciso encarar a minha realidade e viver com ela.
- Do que tá falando!? Vc é uma ótima bailarina! Fica com a gente!
- Sai da frente, Aiden. Eu tô atrasada.
- Pra quê!? O que é mais importante do que sua carreira!?
- Carreira!? - Solto uma gargalhada sarcástica que morre em um suspiro. - Eu não tenho carreira, Aiden. Não como bailarina. Meu mundo é outro e eu não quero que o conheça. Dá pra largar o meu braço? Tá doendo.
- Não. - Recusa-se ele no portão de saída do teatro tomado pela sombras de uma noite sem luar. Não se parece em nada com o teatro que chamara minha atenção há pouco. Onde está o Doc!? Por que o Tempo parece ter parado!? Por que a estranha sensação de que estou saindo de um sonho ou entrando em um pesadelo!? Por que ele continua a me segurar pelo braço e a me olhar com fúria em seus olhos!? - Não vá, Adessa. Fica. Vc foi feliz enquanto dançava. Junte-se a nós. Vc pode mudar de vida. Mudar a sua vida e ser quem vc sempre quis ser. Me dá uma chance...
- Como assim!? - Puxo meu braço, desconfiada. - Chance de quê!? - Pigarreando, ele se recompõe, soltando o ar pela boca, ajeitando a gola em 'V'
- Me dê uma chance de te ajudar. Vc nasceu para dançar, Adessa. - Lanço um olhar de pavor para os degraus da escadaria logo abaixo enquanto ele tenta me convencer a ficar. - Vc estudou Ballet em algum momento de sua vida adulta?
- Não...- Tomada pelo pânico, vou descendo a escadaria, segurando-me no corrimão em metal, voltando a um passado recente e doloroso. - Nunca. Eu nunca tive grana pra isso e...quando tive, não tinha tempo ou vontade...sei lá. Eu preciso me concentrar em não cair...- Penso alto.
- Por quê? Deixa eu te ajudar. - Aceito sua ajuda. Ele me faz descer degrau por degrau como se eu fosse uma anciã de noventa anos de idade com artrose, artrite e reumatismo severos. - Vem, querida. Eu não vou te deixar cair.
- Obrigada. Vc é um cara legal, Aiden. - Comento ao pisar na calçada, livre de uma queda fatal para o meu bebê. Meu filho não vai morrer assim novamente. - Putz! Eu não contava com essa chuva! 
- Se cubra! - Ele dificulta o meu raciocínio ao retirar sua blusa branca a fim de cobrir minha cabeça. Seu torso nu e musculoso se molha à medida em que a chuva se intensifica. Por mais que eu tente, não consigo desviar meus olhos da pele suave e alva diante de mim. - Adessa! Entra e fica até a chuva passar!
- NÃO! - Grito meio que histérica. Confusa, recuo à medida em que ele se aproxima. - Se afasta! Eu preciso trabalhar! Cadê o Doc!? DOC! 
- Ele deve ter ido embora! - Grita Aiden debaixo da chuva torrencial. - ENTRA!
- NÃO! EU VOU EMBORA! - Berro, andando de costas. - OBRIGADA POR TUDO! FOI UMA TARDE INESQUECÍVEL! 
- VC É INESQUECÍVEL! - Desiste ele, sorrindo. - EU VOU TE ESPERAR! VAMOS COMEÇAR A ENSAIAR AMANHÃ! 
- BOM ENSAIO! - Aceno, de longe, ainda à procura de Doc que estranhamente desapareceu. Sem saber o que dizer diante de sua expressão enigmática e de seu corpo imóvel mesmo debaixo dos pingos grossos da chuva, grito após um forte arrepio. - SE DER, EU PASSO POR AQUI! OBRIGADA! FOI INESQUECÍVEL!
- VC É INESQUECÍVEL, ADESSA! IMPIEDOSAMENTE INESQUECÍVEL!


Inesquecível seria o final daquela semana. Absolutamente inesquecível.


- 'Impiedosamente inesquecível'!? O que ele quis dizer com isso, filho? Aquela coisa de ficar parado debaixo da chuva me assustou. Te assustou também? Filho, se mexe novamente. Por favor. Vai. Não quer? Já sei. Vc é como a mamãe! Só se move com música, né? Entendi... - Bocejo, massageando meu ventre. Caminho até a sala após um banho demorado e morno. Meus cabelos estão úmidos. Ainda sinto o frio por ter caminhado sozinha, debaixo de chuva, até o prédio onde moro. Ainda me preocupo com Doc que não atende às minhas ligações.

"Amigo! Fala comigo, por favor! Por que sumiu sem me avisar? Vc está bem? Fala comigo, por favor!"

Um toque no celular e envio a mensagem. Espero que ele me responda ainda hoje, antes de dormir. Ligo o som da sala para espantar um mau presságio. Sob a luz tênue do abajur, movo meu corpo, embalando meu bebê. 

- Dança com a mamãe, filho. Dança. - Cacete. Deixa a criança em paz. Ela está dormindo. - Estou com medo. Ela não se moveu desde que estava no teatro. - Não seja ridícula. Ele não tem sequer cinco meses de vida e vc já quer que ele pule em seu ventre!? - Ele se moveu hoje! Eu senti! Eu não sou louca! - Falo comigo mesma, de olhos fechados. Sorrio voltando ao palco onde eu brilhei por instantes...- Foi incrível! 

"Foi!", sussurra a voz em meu ouvido. 

Assustada, tropeço na mesinha no centro da sala e caio de costas contra o tapete felpudo. A temperatura da sala cai bruscamente. Exalo de dor. Fumaça sai da minha boca como se estivesse nas ruas de Washington em pleno inverno. Ergo-me, vagarosamente. Uma rajada de vento morno toca em meu rosto. Meu coração bate na garganta.

- Não! Não vou passar por isso novamente! Não é justo! Não toca em mim! - Protesto num tom alto, agarrando com minhas mãos, o crucifixo pendendo da gargantilha em ouro. Eu o deixo à mostra, sobre a camisa de meu pijama enquanto observo tudo ao meu redor. Um silêncio aterrador precede o horror ao ouvir sua voz murmurar.

"Sinto sua falta, Adessa".

Grito enquanto corro até o hall. Sentindo sua presença atrás de mim, brigo com o trinco da porta repetindo em alto e bom som a oração de São Bento, uma das poucas que conheço. Apavorada, imploro por socorro quando reconheço outra voz que me acalma quando grita.

- Se afasta da porta, Dess!!!

Num solavanco, a porta se escancara. Então, eu o vejo novamente. Ele. Sempre ele...

- Me ajuda! Ele tá aqui!
- Onde!?
- Não sei! 
- Ele apareceu pra vc!?
- Não...eu só...ouvi...
- Ouviu o que, Dess!?
- Ele disse que sentia minha falta.
- Vc o chamou!? Vc o invocou!?
- Eu odeio quando me olha assim! É óbvio que não, seu estúpido!
- Fica calma, por favor. - Atormentado, ele olha ao redor e volta a me perguntar. - Onde ele está!?
- NÃO SEI! - Prorrompo num choro patético, encolhida num canto da sala e, aos soluços, repito. - EU NÃO SEI, DROGA! EU NÃO SEI! ELE ESTAVA AQUI! AGORA NÃO ESTÁ! SEI LÁ!
- Fica calma, amor...
- Não me chama assim. Por favor...- Choramingo. - Isso é passado.
- Não é não. 
- Procura por ele, Vincenzo! - Aponto para o corredor. Ele deve estar aqui!
- Me espera aqui. Ok? - Suas mãos descansam em meus braços. Volto a sentir o calor de seus sentimentos conturbados. - Dess! Me espera aqui! Entendeu!?
- Uh-huh...
Vincenzo vasculha os cômodos do meu apartamento, um por um, fortemente decidido a me proteger de outro ataque de Ga'al. Ouço seus gritos repletos de ira ao procurar por ele. Desistindo de encontrar o demônio, Vincenzo caminha ao meu encontro, recompondo-se. 
- Vc não o achou? - Pergunto entre desolada e aliviada. - Ele estava aqui.

- Não está mais, Dess...- Abrindo um sorriso compassivo, ele afaga meu rosto com as mãos. - Ele não está aqui. Fica tranquila.
- Como sabe?
- Eu sinto. Ele se foi. 
- Foi?
- Como sabe!? - Insisto.
- Não sei! Só sei que sei!
- Aaaah...tá. Ele se foi.
- Sim.

Fragilizada, eu permito que Vincenzo me abrace. Choro em seus braços que me abraçam com força. Seus lábios beijam o topo de minha cabeça, minhas bochechas. Desvio meus lábios dos seus, ainda que anseie por seu beijo quando afirmo, chorosa.

- Eu tô com medo, Vincenzo. Ele não pode me tocar. Não é justo. Eu nunca mais fiz coisas erradas. Nunca mais dei brechas. Não é justo.
- Não é, amor. - Concorda ele, beijando minha testa. - Eu não vou deixar que nada de mau te aconteça...- Sua mão toca minha barriga quando ele me surpreende ao concluir. - Nada de mau vai acontecer a vc nem ao nosso filho.
- Nosso filho!? Como sabe!?
- Eu te ouvi, amor. Eu sempre te ouço...
- Odeio isso em vc.

Um sorriso cafajeste e vomito em sua camisa em malha branca.


- Vc não o conhece, Dess. - Irritada, refuto.
- E vc o conhece muito! Foram amigos na infância!?
- Não, palerma! Mas é óbvio que ele quer mais do que uma nova bailarina, Dess!
- Não entendi! - Cuspo a água que lava meu rosto. Fecho a torneira da pia e, ressentida, pergunto ao seu reflexo no espelho. - Então nenhum homem pode se aproximar de mim sem querer que eu trepe com ele!? É assim!? Porque eu sou...ou fui...puta, não posso ter amigos sinceros!? Existe alguma placa no meu rosto onde se lê: "Mantenha distância! Puta raivosa"!?

- Fica calma, Dess. Cuidado com o bebê. - Pede-me ele, deitado em meu sofá. Daqui, de onde estou, sinto o cheiro de seu perfume cítrico e enxergo sua expressão de triunfo, seu peitoral musculoso. - Não seja boba. Eu não me sinto vitorioso em nada. Eu estou sem jeito de lidar com vc. Só isso.

- Não parece! - Grito com as mãos na cintura. - Eu não sei como vc chegou até aqui e não quero saber, Vincenzo! Vc pode, por favor, sair da minha vida novamente!?
- Vc não quer isso! Quer? - Indaga-me ele, inseguro. - Vc ainda me ama, Dess. Eu ainda te amo. Temos um filho pra cuidar...
- Eu tenho um filho pra cuidar! - Esclareço retirando sua camisa suja de vômito de cima do meu tapete felpudo onde, há pouco, caí de costas. Isso me faz lembrar de Ga'al e de sua influência sobre Vincenzo e de como essa história terminou: com a morte de meu filho quando rolei escada abaixo. - Vincenzo, sai daqui! - Aponto o indicador para a porta da sala, aberta por ele. Como ele abriu a minha porta!? Com a chave que vc lhe deu, imbecil! Não é possível! Ele pode entrar e sair da minha casa quando quiser!? - Que merda, Vincenzo! Me dá as chaves e 'vaza'!!! - Erguendo-se do sofá, ele me alcança num repente e, tocando no topo de minha cabeça, questiona-me afetando preocupação.
- Com quem anda falando nessa cabecinha de melão, Dess! Eu ouço mais do que a sua voz!
- Não te interessa. - Argumento, indecisa. - Não sei do que tá falando. Nunca falou sozinho!? Quer me chamar de louca além de puta!?
- Dess, para. Me ouça.
- Tira a porra do teu pé da porta e me deixa em paz!
- Eu não vou embora! - Grita ele, do corredor, fora do meu apartamento. - Vc precisa de ajuda! Vc precisa de mim!
- Cacete! - Berro empurrando a porta com as costas, cedendo espaço para ele que não desiste de tentar entrar novamente. - Isso é típico de um narcisista perdendo sua presa! Vai embora, Vincenzo! Tá me machucando!
- Onde!? - Suas mãos contra a porta se conectam ao meu cérebro que capta suas emoções. Ele parece sofrer...de verdade. - Dess! Onde dói!? Eu não saio daqui até que vc fique bem!
- Eu estava bem...- Murmuro enquanto deslizo as costas contra a porta, sentando-me no piso frio do hall. - Eu estava bem até ver vc de novo, Vincenzo. O que vc tem que me faz ser fraca? 
- Amor, Dess. - Responde-me ele, sentado ao meu lado, contra a porta fechada. Sentindo o toque de seus lábios em minha bochecha, estremeço ao ouvir sua voz ronronar. - Amor. Eu tenho amor por vc, Dess. Eu não deixo de pensar em vc. Eu nunca deixei. 
- Vc me irrita com essas frases patéticas de efeito "Eu sempre", "Eu nunca". Me poupa. Não toca...
Sua mão pousa sobre minha barriga quando sua voz doce pergunta.
- Qual vai ser o nome de nosso filho?
- Não te interessa. - Amo ouvir seu riso infantil novamente. - E, por favor, finja que não tá ouvindo meus pensamentos. Eu tô cansada demais pra brigar com vc.
- Então não briga, amor. 
- Não me olha assim.
- Assim como?
- Como se nunca fosse me abandonar porque eu sei que vai.
- Não vou. Não fala assim.

- Ah. Perdão. Por que eu falaria assim? Não tenho motivos, né? Vc é linear. Uma pessoa de quem se espera a mesma postura. Uma pessoa em quem confiar plenamente. Do tipo que não escreve bilhetes devastadores. Do tipo que não humilha a mãe dos teus filhos. Tá rindo por que, infeliz?
- Gostei do título: "A mãe dos teus filhos". Desde quando vc toma chá?
- Desde que vc nos abandonou pela última vez, Vincenzo Rossi. Aceita uma xícara?
- Por que não?
- Por que tá mexendo no meu som!?
- Porque eu preciso dançar...- Meu queixo cai enquanto ele caminha até mim e, sussurrando, conclui. - Com vc.
- Não faz sentido, Vincenzo. - Comento sentindo seus  braços enlaçando minhas costas. Nossas mãos se unem, os dedos se entrelaçam e eu, tentando raciocinar, repito. - Não faz sentido, Vincenzo! Eu quase fui atacada por um demônio. Vc invade meu apartamento...
- Pra te salvar. - Interrompe-me ele, colando seu rosto ao meu, cantarolando o refrão de uma canção antiga. - Vc já ouviu essa música? Gosta dela?
- Vincenzo! - Grito em seu ouvido. Ele resmunga. - Não! Eu não vou parar de falar! Não faz sentido! Vc tá parecendo desesperado!
- Eu estou! Eu não quero te perder, caralho!
- Não fala palavrão perto do nosso filho, cacete!
- Não falo. Dança comigo?
- Não! Não me toca! - Recuo, assustada. - Merda! Nada disso faz sentido!
- Desde quando nosso amor precisa fazer sentido, Dess!?
- Desde que eu acordei e percebi que vc é maluco!
- Eu sou maluco por vc, porra!
- Não fala palavrão!
- Não falo se vc não falar!
- Tá me ameaçando!? Não ria!
- Vc é incrível. - Diz ele em meio a uma crise risos. Arregalo meus olhos, indignada. Aguardando que ele se recomponha, penso alto.
- Vc tá esquisito.
- Eu tô com medo. - Assume ele voltando à seriedade. - Medo, Dess.
- De quem!? Ga'al!?
- Não. De te perder...pra sempre.
- Idiota! Não adianta vir com esse papinho furado! Eu estou me curando de vc! Fica atento! - Assumindo uma atitude sombria, ele comenta.
- Vc ainda consegue me surpreender, Dess. Ano após ano. Século após século...

- Do que tá falando? Isso não faz sentido.

- Vc já disse isso, Dess. Dança, meu amor. Dança comigo, por favor.

- Vc tá estranho, Vincenzo. Olha para mim. - Dentro de seus olhos azuis eu vou me perder e vou me entregar a ele. Atordoada, retruco. - Não olha! E para de cantar! Isso não faz sentido! E não revire os olhos, Vincenzo!
- Eu olho ou não pra vc?
- Não! Vc poderia me largar!? Estamos próximos demais! Por que diabos escolheu essa música!? Ela me incomoda!


- O que ela te lembra, Dess? De quem vc se lembra?
- Por que tá modulando o tom da voz!? Acha que sou estúpida!? Vc não pode me hipnotizar se eu não quiser!
- Eu nunca te hipnotizei. - Afirma ele guiando meus passos ao som da música lenta e romântica. Se eu me concentrar, posso voltar a um tempo...um tempo em que...um tempo...- Quando? Onde, Dess? Vc se lembra dessa música?
- Sim...mas não posso...
- Pode, Dess. Vc deve se lembrar de mim...de vc...de nós dois...juntos. Lembra? Ouça a música, meu amor. Ouça.





Memórias de um tempo em que fomos felizes juntos chegam à superfície de minha mente conturbada enquanto eu me calo e me deixo levar por Vincenzo que canta uma das canções dos "Beatles" em uníssono com o cantor. Exalo ao sentir o vento frio em meu rosto, o aroma de lavanda no ar. A imagem de um imenso lustre sobre nossas cabeças, candeeiros presos às paredes ao nosso redor. O sorriso encantador de uma bela mulher em seu vestido modulando a cintura. 
- Onde estamos? - Sussurro, assombrada.
- Em algum lugar do passado. Ouça a canção, Dess. Ouça.




- Vincenzo? Francesco!?
- Sou eu. Giovanni. 
- Giovanni??? 
- Não se esqueça de mim, Dess. Não se esqueça, minha Morgana. Eu te amo. Sempre vou te amar.
- Isso não faz sentido. Por que dói tanto, Giovanni???
- Porque sofremos juntos e, por isso, devemos permanecer juntos.
- Isso...não faz sentido...
- Eu sei. Vc vai se esquecer de tudo.
- Vou?
- Sim. Exceto de seu amor por mim.
- Sim. Te amo, Giovanni.
- Te amo, minha Morgana. Agora acorda e continue a viver e a me amar.
- Eu...?
- Acorda, Dess. A música acabou. - Um estalo entre meus olhos e eu me encaixo em meu corpo. Desconfiada, eu recuo até a parede ao lado da janela. À procura de ar, eu a escancaro enquanto esbravejo.
- O que fez comigo, Vincenzo!? Por que eu tô me sentindo esquisita!?


- Esquisita como!?
- Não me olha assim! Vc fez alguma coisa! - Afirmo enquanto arrumo meus cabelos em um coque desalinhado. Vincenzo se mantem imóvel diante de mim. Um sorriso enigmático baila em seu rosto quando eu, em uma pergunta, o acuso. - Vc fez alguma coisa comigo, Vincenzo!? Não me olha como se eu fosse louca!
- Não tô olhando, amor. Vc só está grávida. São os hormônios. Cadê meu chá?
- Chá??? Que chá???
- Vc me ofereceu uma xícara de chá. - Seu sorriso inocente ainda me faz suspirar, o que é patético. - Não é não. Vc ainda me ama. Isso não é nada patético.
- Eu não te amo, Vincenzo. Isso é uma doença e eu vou me curar...
- Desde que continue a me amar. - Dando de ombros, ele segue até a cozinha e, de lá, chama por meu nome. 
- O quê!?
- O chá!
- Aaah tá...
Eu o observo com os olhos semicerrados enquanto ele parece apreciar o chá de camomila. Um beijo casto em meu rosto e ele se despede, confiante.

Por que eu sinto que jamais vou me desconectar dele? Por que vc é otária!?

- Não! - Digo a mim mesma, acariciando minha barriga. - É porque temos algo em comum. Não é filho? 



Apesar das várias tentativas em me seduzir, Vincenzo não voltara à minha vida sem rumo. Ainda o amo muito e, certamente, ele conhece a verdade e, a verdade é que eu nunca estarei livre dele...do meu vício. A verdade é que eu penso nele na metade do meu dia e, na outra metade, penso em como sustentar nosso filho sem trabalhar com o que trabalhava antes de ser mãe...novamente.
Tenho dançado no "California" sem me exibir, nua. O que ganho já não é o suficiente e, em breve, estampando minha barriga volumosa, não poderei, sequer dançar, logo, perderei minha única fonte de renda. Ainda tenho uma boa quantia como reserva, mas, se eu continuar a gastar mais do que ganho, vou 'torrar' minha reserva. Penso em retomar os vídeos caseiros, mas, indubitavelmente, isso me levaria de volta à doença da qual desejo me livrar. A Ninfomania perdera espaço em minha vida desde que Antoine, meu filho, voltara aos meus dias de Escuridão, trazendo Luz consigo. Desde que soubera de sua existência, a fome por sexo fora dizimada por completo. Sequer por Vincenzo eu tenho desejos libidinosos. Penso nele como o pai do meu filho. Como o homem da minha vida. Um homem que jamais terei ao meu lado. Um homem com um transtorno de personalidade sem cura...
- Eu! - Ergo o braço, num impulso. Arrependo-me assim que percebo suas expressões maliciosas incidirem sobre mim. 'Serpentes enroscados em seus ninhos'. - Eu conheço um. - Respondo ao professor que me aguarda, pacientemente. Gosto da maneira como sorri com os olhos; do jeito como move, graciosamente, as mãos e, principalmente, da humildade com que trata a todos, inclusive, a mim. - Eu conheço um narcisista, professor.
- Interessante. - Diz ele, aproximando-se da cadeira acolchoada onde me encontro, acuada. - Ele te ouve? Ele te ouve sem competir com vc? Sem querer ser mais do que vc, mesmo no sofrimento?


- Sim. - Respondo, num tom baixo. - Por que essas perguntas?
- Porque narcisistas não costumam ouvir, Adessa. Narcisistas só ouvem a si mesmos. Eles sempre dirão que são melhores do que vc ou que sofrem mais. Se vc disser a um deles que está doente, ele vai te responder que já está morto.

Risos ecoam entre as paredes da ampla sala do auditório. Enrico, o Professor em Psiquiatria, convidado a palestrar sobre 'Transtornos de Personalidade' na faculdade para a qual desejo retornar, parece conhecer o que vai dentro de mim. Parece defender Vincenzo de meu diagnóstico de puta metida à psicóloga. Diante de mim, ele sorri e, cochichando, ele me questiona.
- Está certa de que conhece algum narcisista? Talvez ele tenha algum transtorno mental, meu anjo, o que é melhor, embora pareça terrível, do que ter um transtorno de personalidade. Já pensou nisso?

Ainda pensando em suas palavras, corro até ele, em meio ao estacionamento do campus. Resfolegando feito égua prestes a parir, eu o alcanço. Sem se assustar com minha chegada intempestiva, ele me olha com mansidão nos olhos azuis como os de Vincenzo. Eu o conheço de algum lugar? Poderia jurar que sim...


- Me perdoa, professor. Eu preciso saber de uma coisa.

Um toque em seu braço fora do paletó e minha mente se inunda de lembranças.


Um riso de criança no banco traseiro do carro. O olhar apaixonado de uma linda mulher madura sentada ao seu lado. Suas mãos ao volante minutos antes da colisão contra a luz que cega seus olhos...

- Meu Deus! - Exclamo, aturdida. Minhas pernas enfraquecem enquanto meu corpo todo se eletrifica. - O que houve...!?

Retirando, carinhosamente, minha mão de seu braço, ele desfaz a conexão e me ampara, impedindo minha queda. Ele me guia até um banco em cimento, próximo ao seu carro, e me instrui a inspirar e expirar lenta e profundamente. 

- Vc está tendo uma crise de ansiedade, querida. Não se preocupe. Isso é normal em seu estado.
- Que estado!? - Indago, incrédula. - Como sabe que estou...!?
- Grávida? - Dando de ombros, ele responde à sua pergunta. - Sei lá. Não sei. Só sei que sei. Vc está. Não está?
- Credo! É a mesma frase de Vincenzo!
- E quem seria esse Vincenzo?
- Por que está fingindo que não o conhece!?
- Por que vc não volta a respirar como te ensinei? Vai causar danos ao bebê.
- Por que tá tão calmo!? 
- Porque vc está nervosa. Alguém aqui precisa manter o controle da situação. Concorda? Vc está grávida?
- Estou! Eu te conheço de algum lugar!?
- Creio que não, filha. - Diz ele, num lamento. - Moro bem longe daqui. Em outro estado. Em outro país.
- Onde!? Por que veio palestrar aqui morando tão longe!?
- Porque precisava. Estou de férias nesse país, então, o reitor me convidou. - Seus olhos me sorriem quando me questiona. - Por que não viria?
- Por que viria!? Essa não é uma faculdade importante! Sequer é uma universidade federal! Estamos distantes de onde tudo acontece!
- Engano seu, meu anjo. Tudo acontece aqui. Basta olhar ao seu redor. Enquanto conversamos, o Tempo para.
- Vc é estranho, professor Enrico. Mas é bacana.
- Pessoas são estranhas, Adessa, até que a gente as entenda. 
- Vc conhece Vincenzo?
- Por que o conheceria?
- Porque eu sinto que sim...
- Será? Talvez.
- Isso tá parecendo conversa de bêbado. - Comento enquanto ele retira um lenço, em algodão, do bolso de seu paletó e o segura com uma das mãos. - Pra quem é o lenço!? Vc não vai me fazer cheirar clorofórmio. Né!? 
- Não! - Diz ele, entre risos. - Não mesmo! Vc é simplesmente esplêndida!
- Putz! É a segunda vez que me dizem isso em menos de uma semana! Isso dá medo! - Lágrimas enchem meus olhos sem que eu saiba o porquê. Aceito o lenço de sua mão estendida. Como ele sabia que eu iria chorar? - Obrigada. - Digo enquanto assoo o nariz. - Estou chorando feito boba. Tenho medo de tudo. Eu não era assim, professor.



- Não se preocupe com isso. É natural. Seus hormônios estão em ebulição. - Refuta ele, num suspiro. - Me perdoe se te assustei. É que vc é especial, Adessa. Não se deixe enganar pelas aparências, filha. 

- Não entendi.
- Nem tudo o que reluz é ouro. - Revirando os olhos, eu o faço rir novamente quando pergunto.
- Será que vc poderia ser um pouquinho mais direto? Ir logo ao ponto?
- Nem todos os que se aproximam de vc te querem bem. Nem todos os que te parecem desorientados são maus.
- Ai cacete! Isso não me ajuda em nada! Vc e Jesus falam em  parábolas e eu tô precisando de conselhos mais incisivos!
- Eu não posso te aconselhar a nada, meu anjo. Eu não te conheço. Sei que vc tem um amigo que vc classifica como narcisista.
- E que vc já o liberou desse transtorno sem ao menos conhecê-lo. - Assevero. - Vc o conhece!? Conhece Vincenzo Rossi!? - Exalando, ele diz que não. - Por que eu sinto que vcs se conhecem?
- Por que vc tem uma imaginação fértil? - Erguendo-se do banco, ele beija o topo de minha cabeça e me aconselha. - Adessa, aprenda a conter seus impulsos e, então, vc verá a verdade.
- Putz! Outra parábola!?

- Ok! Algo direto!? - Diz ele em pé, próximo ao seu carro. O vento frio despenteia seus cabelos lisos e curtos enquanto inspiro profundamente à espera de seu conselho. - Seja o mais racional que puder quando estiver com seu amigo. Seja uma pedra. Uma pedra cinza. Não reaja ao que ele te disser ou demonstrar. Se ele for um narcisista de verdade, ele, provavelmente, vai surtar e, se ele surtar, afaste-se dele, filha. Tente ser feliz sem ele, embora eu creia que vcs tenham nascido um para o outro. - Estranhando suas últimas palavras, eu me levanto do banco no mesmo instante em que meu bebê se move, novamente, em meu ventre. Extasiada, desvio meu olhar de Enrico e afago minha barriga. Rindo de felicidade, ergo a cabeça e meus olhos o procuram ao meu redor. Eu não o encontro. Enrico sumira como fumaça levada pelo vento que, agora, ruge, esvoaçando meus cabelos. 
- Eu não suporto mais essa coisa de falar com fantasmas! Não é possível! Ele palestrou para outros alunos! - Palestrou mesmo ou vc imaginou tudo isso? - Vc é louca! Eu estava lá! Ele estava aqui! Eu o toquei e vi tudo! - Viu até o final? Até o final do acidente de carro? - Cala a boca. - Ordeno à voz em minha cabeça. - Eu não vou permitir que vc me enlouqueça.
- Falando sozinha?
- Aiden!? O que faz por aqui!?
- Eu te segui.
- Mentira! - Exclamo num grito. Ele tenta esconder um riso, o que o torna ainda mais atraente. Uma pena não gostar de mulheres. Sweet adoraria fo...trepar com ele. Somente a Sweet? Cala a boca. Eu já te proibi de falar comigo! - Me me fala a verdade! Por que vc tá aqui!?
- Se acalme, Adessa. Eu tenho amigos aqui. Ou vc acha que sou uma alma solitária e demoníaca vagando no Tempo e Espaço à procura de alguém que eu amo?
- Que ideia esquisita!
- Concordo. Está com fome?
- Muita! - Arrependo-me de minha impulsividade tarde demais. Eu não queria que ele pensasse que sou desequilibrada noventa e nove por cento dos meus dias. Por que ele acaba de me convidar para lanchar? Porque vc disse que estava com fome! Caraca! Como vc é surtada! - Não. Obrigada. Acho melhor comer em casa. 
- Faço questão de te mostrar os prazeres da vida...
- Não entendi...novamente.
- Comida, querida. Comida. Gosta de massas?
- Amo! - Exulto, saltitante. - Eu amo tudo o que me faz lembrar da Itália!
- Perfetto! Venga con me!
- Dove andremo?
- Parabéns! Além de uma linda e talentosa bailarina, parla italiano!


- Quase nada. 'Meu italiano' é digno de pena. Mas, quando eu estiver lá...- Ergo uma das mãos, pedindo um tempo, enquanto sugo um fio de macarrão ao molho branco, longo demais. Ele me observa, sentado à mesa, à minha frente, com aquela expressão de quem lida com loucos perigosos. Odeio isso em todos! - Então...- Engulo a porção da massa em minha boca e, evitando seu olhar, prossigo. - Quando eu estiver na Itália, eu aperfeiçoo 'meu italiano'. Vc poderia parar de me olhar assim?
- Mio Dio. - Revira ele os olhos. - Isso de novo? Vc precisa se cuidar, Adessa. Como vc acha que eu te olhei? - Não posso dizer que ele me olhou com luxúria porque ele é gay e, provavelmente, vai rir na minha cara, logo, invento.
- Como se eu fosse louca e eu não sou.
- Tá parecendo. - Ele ri de minha expressão de contrariedade e, tocando com suas mãos, as minhas, indaga. - Vc tem passado bem? 
- Como assim?
- O bebê está perfeito?
- Diabos! - Puxo minhas mãos num repente. Indignada, pergunto. - Agora todos sabem que estou grávida!? Minha barriga tá tão grande assim!? Eu vomito todos os dias! Não é possível que eu tenha engordado tanto!
- Não está, Adessa. Calma. - Refuta ele, recuando seu tronco, recostando-se no espaldar da cadeira. - Vc está perfeita. Não dá para saber que vc está grávida. Sua barriga ainda não aparece. Ao menos, não com roupas. Talvez, nua, eu a veja melhor. - Solto uma risada estridente e, levando o guardanapo à boca, murmuro.
- Vc detestaria me ver nua. Pode acreditar. Não faz seu estilo. - Uma arqueada em suas sobrancelhas e, dando de ombros, ele diz.
- Vc quem disse isso. Não eu. Mas...vamos falar de negócios.


- Negócios!?
- Sim. Gostaria de ver a senhorita no ensaio de amanhã. Giusto!?
- Não posso. Preciso trabalhar.
- Em quê? - Pergunta-me ele, aproximando seu rosto do meu. - Em que vc trabalha, querida? Talvez eu possa te ajudar.
- Não. Não mesmo. 
- Pode falar. Eu não tenho nenhum tipo de preconceito.
- Como sabia que eu estava grávida?
- Intuição. Mulheres grávidas exalam um cheiro diferente...- Inspirando profundamente, ele cerra os olhos, parecendo apreciar algo. Que esquisito! - Vc tem esse cheiro, Adessa. Um cheiro de lavanda mesclado algo cítrico.
- Nunca ouvi isso...- Resmungo enquanto degusto o macarrão ainda fumegante. De boca cheia, concluo. - Vc é mais do que estranho. É bizarro, mas eu gosto disso em vc.
- Que bom. 
- Não vai comer? 
- Não. Quer o meu?
- Aceito! - Trocamos os pratos enquanto ele volta a me observar. Não o censuro. Estou devorando o segundo prato de macarrão ao molho branco diante de um coreógrafo de Juilliard. Provavelmente, já perdi meu lugar como a bailarina do ano. Deixa pra lá. Meu filho e eu estamos famintos! - Negócios!? - Comento, tapando com a mão, a boca cheia. - Fale de negócios enquanto eu como! Isso aqui tá muito bom!
- Vc tem alguém que a sustente financeiramente?
- Não mesmo. Eu pago as minhas contas com a minha grana. Grana suada...- Rindo, complemento. - E põe suada nisso!


- Então, talvez vc goste de minha proposta.
- Qual?
- Coma devagar, Adessa. Mastigue com calma. Engula com calma. O mundo não vai acabar hoje.
- Ok, chefe. Fala logo sobre o trabalho. Eu preciso de grana. - Seus olhos faíscam antes de me falar sobre a oferta. - Parla!!!
- Tenho um amigo fotógrafo que gosta de modelos grávidas.
- Sei. Desenvolva. - Não sei porque não estou gostando do rumo dessa conversa, mas...vou continuar a comer até que ele chegue ao ponto. - Por que parou? Continua! - Seu pescoço faz 'crack' quando ele se alonga. Um tanto contrariado, ele prossegue, tamborilando os dedos sobre a mesa. - Iiih! Vc tá me dando medo! Conta!
- Ele paga bem a modelos grávidas e...
- E?
- Sem roupas. 
- Tá de sacanagem comigo!? - Empurro o prato, erguendo-me, subitamente. - Vc nem me conhece e quer que eu tire fotos pelada pra um cara que eu nunca vi antes!? E quanto ao fato de eu ser uma ótima bailarina!? Desistiu de mim!?
- Vc poderia se sentar, por favor?
- Não. - Cato um guardanapo sobre a mesa e, de maneira agressiva, limpo minha boca sem batom. - Quero ir embora. Preciso voltar pra casa e pensar na vida. Aiden...- Sentado, ele pousa seus olhos sombrios sobre mim, esboçando um sorriso no canto de sua boca carnuda. - Vc não me conhece. Não sabe nada da minha vida. Não tem culpa por tentar me ajudar e eu te juro que vc não me ofendeu com essa proposta. Em outra fase de minha vida, eu não pensaria duas vezes antes de aceitá-la, mas agora não. 
- Espera. Não sai assim.
- Solta meu braço. - Peço, educadamente. - É sério. Eu preciso descansar um pouco antes do trampo. Talvez, um dia, eu te conte tudo sobre a minha vida. Por enquanto, saiba que ela não tem nada parecido com a magia que foi dançar naquele palco. 
- Adessa, não tem nada de errado em posar para um fotógrafo profissional. Ele paga bem.
- Nós estamos atrapalhando o movimento dos garçons! Larga meu braço!
Esbarro em todas as mesas até chegar à saída da cantina. Não me lembro de ter subido degraus da escadaria quando entrei, mas aqui estão eles novamente, causando-me pavor. Engulo em seco e, pondo a mão sobre a minha barriga, solto o ar pela boca e agarro o corrimão com a mão livre. Ninguém vai morrer hoje, filho. Penso em descer os degraus quando, de súbito, sou erguida do chão por seus braços fortes. Assustada e surpreendida, ordeno.
- Me põe no chão, Aiden! Isso é patético!
- Patético é te ver descendo os degraus como um velhinha de cem anos.
- Me põe no chão! Agora!
- Cala a boca, Adessa. - Sussurra ele em meu ouvido. Inspiro, pela primeira vez, seu perfume amadeirado...exótico...afrodisíaco. No entanto, muito abaixo do cheirinho de maçã verde do pai do meu filho. Onde está Vincenzo que não me salva de mim mesma!? - Já chegamos. Quer que eu te leve no colo até sua casa? Para mim, seria um prazer.
- Ora! - Salto de seus braços e, constrangida, protesto. - Não seja ridículo! Eu...eu...eu às vezes me perco em meus pensamentos e...
- Vc sempre se perde em seus pensamentos, querida. Por favor, me perdoa se te ofendi. - Diante de seu sorriso meigo, eu desarmo.
- Eu que te peço desculpas. Eu tô sempre me alterando com vc e vc não merece isso. Vc quer me ajudar. Eu sinto. - Minto. - Mas eu não posso aceitar sua proposta de trabalho. Tenho uma doença que preciso curar.
- Doença???
- Não quero falar dela agora.
- São somente fotos. Ele não vai te tocar. Eu estarei lá.


Uma crise de risos me faz curvar o tronco para frente, apoiando meu braço em seu ombro. Choro de tanto rir até que o riso vai morrendo e eu, me recompondo. Aiden não se move até que eu o encare e, mais uma vez, me desculpe. 
- O que foi que eu disse de tão engraçado?
- Nada. Perdão. Eu não quero ficar aqui. - Choramingo. - Quero ir pra casa. Aqui na rua tá frio. Eu preciso me deitar.
- Eu entendo. Eu te levo.
- Não precisa. É aqui perto.
- Melhor ainda. Eu te acompanho. Não quero te ver sozinha por aí, gargalhando feito louca. 
- Eu não sou louca. - Afirmo, aos risos. - Eu só me pareço com uma. É sério que vc vai continuar a andar do meu lado?
- Se vc me permitir...
- Ah...tá! Tô tão cansada que não tenho forças pra brigar com vc. Faz o que quiser. Mas eu não vou te convidar pra subir! Vc fica na entrada do meu prédio! Entendeu!?
- Em alto e bom som, chefe.


- Vc é fofinho...
- Só mais uma tragada e chega, Adessa.
- Me passa aí, vai...
- Vc está grávida, mulher. Se controla.
- Se controla. Se controla. - Solto uma gargalhada enquanto faço círculos de fumaça com a boca em um oval perfeito. - Isso é absolutamente fantáaaastico.
- Meu anjo, chega.
- Devolve meu cigarrinho. Eu tô super bem. Já percebeu que essa música é fantáaaastica?
- Já. E vc tá muito doidona. Não deve fazer bem ao bebê.
- Eu só dei duas traga...tra...tragadas. Não faz sentido. Ouve a música. Sente o som...

- Para de fumar e dança pra mim.
- Não...
- Por...favor...
- Uau. Se vc não fosse gay, eu te apresentaria a Sweet Child. Ela ama homens como vc. Não ria! É verdade!
- Adessa, quem te disse que sou gay?
- Vc! Ué!? - Deitados em meu tapete felpudo, rimos do que acabamos de falar, embora eu não saiba ao certo o que acabei de falar porque estou muito tonta e leve e pensando naquele idiota que não fora capaz de fumar um 'baseado' comigo. PRECONCEITUOSO DA PORRA! - Por que tá me olhando assim, Aiden? 
- Porque vc é linda e fica ainda mais atraente quando está relaxada.
- Qual é a cor dos seus olhos, cara? Eles mudam de cor ou eu não tô enxergando direito?
- Olhe bem nos meus olhos e diga o que vê.
- Não quero. - Fecho os meus olhos segundos após enxergar faíscas nos de Aiden. Que porra é essa!? Para de fumar maconha e se levanta daí! Agora! - Para de me olhar assim!
- Diga o que vê, Adessa. Olhe para mim. Eu te imploro. Vc me enxerga? - Ergo meu tronco e, sem forças, tombo para o lado. Aiden me faz sentar diante dele e, jogando meu 'baseado' no cinzeiro da mesinha no centro da sala, volta a me pedir num lamento. - Me olha. Vc consegue me ver, Adessa. Vc se lembra de mim?
- Que papo é esse, Aiden? Não tô gostando. Sai da minha casa.
- Me desculpa. Eu me deixei levar pelo som e pela erva. - Levantando-se, ele se apruma, pigarreando. Estendendo sua mão, ele me puxa para si, ajeitando meus cabelos com os dedos ágeis e, como um cabeleireiro experiente, prende meus fios em um coque no topo da cabeça. - Assim fica bem melhor, meu anjo. - Um beijo em minha testa e ele se despede. - Perdão pela oferta de trabalho. Eu te ofendi.
- Não...
- Te vejo amanhã no teatro?
- Espera!
- Te vejo amanhã no teatro. - Afirma ele, antes de entrar no elevador e sumir, deixando-me sozinha e sem saber o que pensar.
Corro até o banheiro e vomito no vaso sanitário. Retiro minhas roupas e me demoro debaixo do chuveiro. A água morna relaxa meus músculos tensos. Enxugo-me na toalha que deixo cair no chão e visto uma das camisas de Vincenzo. Sentindo seu cheiro de maçã verde, observo meu reflexo no espelho embaçado. Afasto-me dele e solto um grito de horror quando leio o que mãos invisíveis escrevem no espaço fosco.

"Não se esqueça de mim, Adessa."

Cambaleando, alcanço a cama e, exausta, jogo-me contra o colchão. Os olhos de Aiden surgem entre uma densa fumaça antes de eu perder os sentidos e dormir...

Profundamente.

- Não se aproxime de mim. Vc não tem o direito de me tocar.
- Eu não vou te tocar, Adessa. Só quero te ver de perto.
- Já viu. Me deixa voltar. Eu quero voltar!
- Vc se sente inatingível. Desde quando acha que tem o poder de me repelir?
- Desde que meu filho e eu fomos abençoados por Miguel, o Arcanjo! Peça às cobras que saiam do meu caminho! Eu quero voltar!
- Peça vc mesma. - Diz Ga'al, num desdém. - Vc é tão poderosa...
Ergo meu braço. Minha mão segura um chicote que acaba de se materializar diante de meus olhos incrédulos. Inflando o peito, eu o faço estalar sobre o piso em terra, afastando as serpentes do meu caminho. 

'Serpentes enroscados em seus ninhos'.

- Parabéns, querida. Aproveite seus dias de poder. Eles irão terminar.
- Não mesmo! De agora em diante, vc não tem mais acesso à minha vida! Estou livre de vc e de sua devassidão nojenta!
- Se vc diz isso...
- Fica longe de mim e do meu filho, Ga'al! Longe! Longe! - Acordo aos gritos, com a camisa do meu pijama molhada de suor. - Fica longe de mim e do meu filho, seu verme. - Repito num tom baixo, olhando ao meu redor. Nenhum vestígio dele dentro do quarto. - Graças a Deus, filho. Nada de ruim vai acontecer a vc.

E eu acreditei em minhas próprias crenças...

- Vc me pediu para ir embora, Adessa. E eu fui.
- Quando, Doc? Eu nunca te pediria isso. Eu estava com medo. Vc sumiu...de repente antes mesmo de eu entrar no teatro.
- Tem certeza de que não se lembra de nada?
- De que, Doc!? Tá me assustando!
- Vc estava estranha naquele momento. Falou de uma forma estranha...
- Como???
- Fica calma, meu anjo. Cuidado com o bebê. - Exaurida, explodo.
- Eu não aguento mais todo mundo me pedindo pra ficar calma por causa do meu filho, Doc! O que eu te disse!? Eu não sou uma criança e não sou louca também!
- Vc me disse pra 'vazar' e te deixar em paz com aquele homem. - Revela Doc, amuado. Perplexa e arrependida por ter gritado com meu melhor amigo, peço desculpas. Estou cansada de pedir desculpas. - Não chora, filha.
- Doc, eu nunca falaria assim com vc. - Impulsiva, eu o abraço, aos prantos. - Me perdoa. - Peço contra sua blusa. - Tem certeza de que eu disse isso?
- Não tem importância, filha. Já passou. Eu estranhei, mas já passou. - Afastando-me, carinhosamente, ele me observa e sorrindo, conclui. - Vcs estão bem. É isso o que importa. 
- Eu nunca diria isso a vc, Doc.
- Dizer o que a quem!?
- Não é da sua conta. - Refuta Doc diante da aparição inesperada, intempestiva e indiscreta de Sweet Child entre nós dois. - Não conte nada a ela, Adessa.
- Velho babão. Se ela quiser contar, ela conta. Vc não é o pai dela.
- E vc não é amiga dela também.
- Parem de discutir por minha causa.
- Eu gosto dela e ela sabe!
- Vc a inveja e ela sabe!
- Doc! - Imploro entre ambos. - Para com isso! Que bobagem!
- Foi ele quem começou. - Refuta Sweet, furiosa.
- E vc termina, Sweet! - Ordeno. - Depois a gente se fala, Doc.
- Cuidado com ela. - Sussurra-me ele. - Ela quer o que é seu. - Sorrindo, cochicho.
- Eu não tenho nada, Doc. Então ela se ferrou.

Doc me beija na testa enquanto percebo a reação de raiva no belo rosto de Sweet. Não poderia entender porque ela me inveja. Pode ter o homem que quiser e tem ganhado muita grana com meus antigos clientes e o trabalho no 'Moulin Rouge'. Sério!? Por que eu me lembrei daquele lugar desagradável!? - NÃO! AINDA NÃO! 
- Responde direito, amiga! Eu só perguntei...
- Porque quer saber se estive com o coreógrafo da companhia de dança e se fui aceita entre eles! Não! Ainda não! Eis a resposta!
- Ele é bonitão? - Abro um sorriso sarcástico e me calo. Impaciente, ela me acompanha enquanto sigo de volta ao camarim. Em cólicas, ela volta a me perguntar. - É bonitão!? É gostoso ou não!?
- Faz seu tipo...eu diria. Mas...
- Mas o quê!? Fala!
- Não me empurra!!! Quer que eu caia e machuque meu filho!? - Por frações de segundos, vejo em seu semblante o que não gostaria de ter visto, logo, mudo de assunto. - Ele é gay. Uma pena porque ele é um espetáculo!
- Me apresente a ele, amiga!
- Eu disse que ele é gay. - Rosno. - Desiste. 
- Vamos ver se continua gay depois de me conhecer...
- Não seja patética! Orientações sexuais não são mudadas porque vc quer! Se ele gosta de homens, vai continuar a gostar mesmo...- Bufando, reviro os olhos. Sentando-me na cadeira em frente ao grande espelho iluminado, continuo. - Mesmo depois de te conhecer, Sweeeet.
- Veremos.
- Vc 'se acha', né!? - Pergunto ao seu reflexo. 
- Não, meu bem. Eu me encontro. Eu sei quem eu sou e sei o que quero e, quando quero algo, eu consigo. 
- Mesmo que isso magoe outras pessoas? - Lembro-me da noite do leilão...de Vincenzo e ela...no mesmo quarto, por horas. QUE ÓDIO! - Mesmo que isso magoe suas amigas?
- Sim. - Por que sinto que ela pensou o mesmo que eu? Porque talvez ela tenha pensado. Encarando-a incisivamente, ela faz uma ressalva num tom que me soa meio que...falso. - Mas não com vc. Eu nunca a magoaria...amiga.
- Aaaah...tá. - Desajeitada, ela se despede, deixando-me sozinha com minhas suspeitas. Não são suspeitas. São lembranças de algo que eu não consigo me lembrar. Que merda! Ela já fez algo contra mim! Aaah...sei lá! - Fala, Sweet!
- Tá na minha hora de tirar a roupa e ganhar muita grana. Fui!

Olho-me no espelho do camarim e me sinto feia. Diante de Sweet, com seu corpo delineado, eu me sinto um lixo. Por que ela tem o poder de me deixar sem ânimo? Por que ela te inveja? Ela te suga? Não. Ela não tem o que invejar em mim. Estou gorda, os seios imensos e já não tenho a fama de ser a stripper mais bem paga desse lugar. Porque vc não tira a roupa toda e não trepa com todos os homens da plateia como ela faz. E não pretendo voltar a fazer isso, mesmo após o nascimento do meu filho. 
- E eu já te pedi pra calar a boca dentro da minha cabeça, porra! ENTRA!
- Falando sozinha de novo? Tá me assustando.
- Aiden! - Ergo-me num solavanco. - O que vc faz aqui, merda!? - Sorte a minha não ter retirado o macacão de mecânico com o qual dançara no palco há pouco. A última coisa que desejo é que ele me compare a Sweet. Vou perder feio. - Eu te pedi pra não me seguir. - Rosno. - O que vc quer!? Me humilhar!? Outro homem me humilhando eu não vou aguentar!
- For God's Sake! Vou te receitar ansiolíticos! Vc está cada vez mais nervosa!
- Sai daqui! - Arremesso minha bota contra ele. Rindo, ele desvia seu corpo da bota. - Não ria! Não tem graça!
- Para! Por favor! - Grita ele, desviando-se da escova de cabelo que voa em sua direção. - Vc é muito doida!
- Não toca em mim! Eu te odeio!
- Adessa, calma. - Pede-me ele, segurando em minhas mãos. Ofegante, eu solto o ar pela boca, procurando me acalmar pelo bem do meu filho. - Eu não te segui, querida. Eu já sabia que dançava aqui.
- OI??? VC JÁ ME VIU DANÇANDO??? AQUI???


- O que vc acha? Por que eu te convidei para dançar comigo?
- Eu não acredito...- Exalo de volta à cadeira. Uma desagradável sensação de vergonha e raiva me calam por segundos. Não sei o que pensar. - Sai daqui...por favor.
- Adessa...- Diz ele, serenamente, puxando outra cadeira, sentando-se ao meu lado. - Eu não me importo com o que faz ou porque faz. Eu desejo a bailarina.
- Deseja? - Questiono, de cabeça baixa. - Como?



- Como vc quiser, meu anjo. Como...
- Amiga!!! - Interrompe-nos Sweet, suada e assanhada. - Esse seria o famoso coreógrafo???

Cerro os olhos e enfio minha cabeça entre as pernas abertas. Inspiro e expiro, contendo minha ânsia de vômito. Há um peso absurdo sobre meus ombros. Tudo o que desejo é sair daqui e voltar ao meu apartamento e chorar...em paz. - Fala, amiga!

- Não consegue enxergar que ela não está bem?  - Ergo minha cabeça, francamente surpreendida com a atitude de Aiden. - Que tipo de amiga é vc? 

- Do tipo que gosta de conhecer os amigos da minha amiga. - Encolho-me novamente enquanto Sweet, ainda exalando feromônios após seu ritual de acasalamento no palco do 'California', estende sua mão, cumprimentando Aiden. - Meu nome é Sweet Child. É um prazer quase que sexual.
- Sou Aiden. - Prendo um riso quando Aiden deixa de apertar a mão de Sweet, solta no ar. Desde quando eu me tornei má? - Vamos sair daqui, Adessa? Vc precisa de ar puro.
- E eu preciso te conhecer melhor, Aiden. Seu nome é Italiano?
Baixo a cabeça enquanto Aiden solta uma gargalhada mais do que sonora: É uma afronta auditiva!
- Não, querida. É do Alasca.
- Por que tá rindo, amiga??? Ele tá me zoando???
- Desculpa, Sweet. - Uma longa inspiração e volto à seriedade sem compreender a estranha animosidade entre Aiden e Sweet. - O nome dele é irlandês. Não me puxa, Aiden!
- Espera um pouco! - Pede Sweet, irritada. - Por que não quer falar comigo!? Eu não faço o seu tipo!?
- Sweet!!! - Eu a reprovo. - Que desagradável!!! Eu já te disse...
- Que ele é gay!? - Meneando a cabeça, ela abre um sorriso irônico ao proclamar. - Ele é tão gay quanto o seu padreco, amiga. 
- Não dê ouvidos a ela, Adessa!

Aiden me arrasta para fora do camarim quando meu sangue ferve e forço-me a retornar e encarar Sweet, confrontando-a. 
- O que quer dizer com isso!? O que rolou no quarto naquela noite do leilão!? FALA, SWEET!
- Adessa, vamos!
- Me solta, Aiden! - Com as mãos no pescoço de Sweet, rosno. - Fala tudo!
Quase sem respirar, ela ainda esboça um sorriso e sussurra.
- De tudo...um pouco.
- Filha da puta!
- Chega! - Grita Doc. - Deixa ela comigo, Aiden. Obrigada por sua preocupação.
- Ela...
- Obrigada por sua preocupação. - Insiste Doc, inflando o peitoral, demostrando contrariedade em suas feições enquanto me impede de socar o rosto de Sweet. - Quando ela estiver mais calma, ela fala com vc.
- Adessa...


- Aiden...- Choramingo no colo de Doc que me leva para fora do 'California'. Dentro de seu carro, eu choro convulsivamente. Choro de raiva, ódio, tristeza, vergonha e inferioridade. - Eles transaram, Doc. Aquela vaca e o pai do meu filho transaram e ele disse que não.
- Não acredite no que aquela mulher diz, filha. Ela não quer o seu bem. Quando vai acreditar em mim?
- Vc acha que ela mentiu? - Agarro-me em um fio de esperança, ainda que meus instintos gritem o contrário. - Ela mentiu, Doc?
- Claro que sim, meu anjo. - Diz ele, acariciando meus cabelos em desalinho. - Vc precisa descansar. Amanhã será um novo dia. Acredite.
- Eu acredito. Eu preciso acreditar.




Decidida, escancaro a porta do auditório e, reconhecendo Aiden e seus alunos no palco, grito, enfurecida.

- Ainda posso ensaiar com vcs!?

Um de seus sorrisos enigmáticos e ele responde, descendo as escadas, vindo em minha direção.



- Claro que sim. Nós te esperávamos, meu anjo. Junte-se a nós e se esqueça do mundo lá fora. Diga que aceita a minha proposta e eu mudo a sua vida.

Magoada, devastada e sem ligar para o sentido das palavras, eu apenas digo.

- Eu aceito.

Extasiada, assisto aos ensaios da adaptação dramática da canção original 'Roxanne' da banda "The Police", para o filme "Moulin Rouge".

'Moulin Rouge', 'Moulin Rouge'. Sempre 'Moulin Rouge'

Novamente me vem à cabeça a lembrança da noite em que fora sordidamente traída pelo homem que amei. Talvez essa raiva me seja útil ao interpretar a personagem principal da trama que narra a história de uma prostituta que se vende a um ser maligno sem deixar de amar o homem que sofre ao perdê-la. 

Sob o comando de Aiden, arrisco meus primeiros passos. O ritmo marcante do Tango, a melodia impregnada de dor e paixão...a voz de Aiden em meu ouvido impelindo-me a libertar o que há de mais sombrio dentro de mim, me faz arfar. Suas mãos em meus punhos, seus olhos nos meus. O ambiente soturno em que estamos mergulhados. Tudo me faz sentir que estou me afundando em um mundo distante da luz. 


Ainda assim, eu quero...eu sei que posso interpretar a prostituta gananciosa já que sou burra demais para imitá-la na vida real. Burra demais em confiar em Vincenzo e em sua suposta lealdade a mim e ao nosso filho. 
Aiden me faz repetir os primeiros passos por diversas vezes e parece nunca estar satisfeito. O que ele deseja? Me cansar até a morte? Não se lembra de que estou grávida?
- Adessa! Repita! Vc errou o passo!
- Eu tô cansada, Aiden. - Enxugo minhas lágrimas com o dorso da mão antes de perguntar. - A gente não pode parar um pouco?
- É assim que deseja mudar de vida!? Chorando por um homem que te traiu!?
- De onde tirou isso? Eu só tô pedindo pra...
- Vc pensa nele, Adessa! 
- Larga meu pulso, Aiden! Vc tá descontrolado!
- Não vou largar! Dance! Grite! Tire esse homem do seu coração!
- Aiden! Para! - Puxando-me para si, ele me envolve com seus braços. Seus lábios estão bem próximos aos meus quando balbucia.
- Quantas vezes ele vai precisar te trair pra que vc entenda que ele não te ama? Quanto séculos passarão até que enxergue a verdade?
- Vc é louco. - Amedrontada e imobilizada, reajo, cuspindo em seu rosto. - Me solta! Vc tá machucando o meu bebê! - Ele fixa seus olhos nos meus. É quando os vejo mudar de cor. Ao meu redor, seus alunos se movem como serpentes. Acima de nossas cabeças, percebo vultos, ouço risadas diabólicas. - Me solta...- Suplico, sem forças. - Eu tô com medo. Por Deus, me solta.
- Não precisa ter medo de mim, meu anjo. Eu jamais te faria mal como ele te fez.
- Vc não sabe de nada, Aiden. Vc não me conhece. Vc não conhece Vincenzo. Não conhece a nossa história. Por favor, me larga. Eu estou passando mal.

- NÃO OUVIU O QUE ELA DISSE!?

Reconheço a voz que vem da porta de entrada do auditório. Logo atrás de mim, volto a ouvi-la. 
- Larga ela agora, caralho!
- Eu te conheço. - Diz Aiden, livrando-me de seus braços.
- Digo o mesmo. - Responde Vincenzo diante de Aiden. Posso cortar a tensão entre ambos com uma lâmina afiada. Desde quando eles se conhecem!? Por que os alunos sumiram tão repentinamente!? - Pra onde tá indo, Dess!? Me espera!

- VÃO PRO INFERNO! ODEIO VCS DOIS! EU ME ODEIO! QUE ÓDIO!


Retiro as sapatilhas de ponta e corro, descalça contra a chuva fora do teatro. Desço a escadaria sem pensar no medo que tenho em cair. Ouço os gritos de Vincenzo e corro ainda mais rápido. Paro diante dos carros que cruzam o asfalto, enxergando-os com os olhos embaçados. E eu ainda pensei que poderia ser feliz. Que poderia mudar o rumo da minha vida, largando o mundo da prostituição.
- IDIOTA! - Grito antes de pôr os pés na faixa de pedestres. Vincenzo me alcança e me puxa de volta à calçada. - Me deixa em paz, Vincenzo! Vc tá sempre na hora errada, no local errado, fazendo merda!
- Eu te salvei daquele surtado!
- Eu não preciso que me salvem, traidor!
- Do que tá falando!?
- Vc transou com Sweet naquela noite maldita! Seu porco nojento!
- Vamos sair da chuva! Vc não pode se resfriar!
- MENTIROSO FILHO DA PUTA! CONFESSA!
- NÃO VOU CONFESSAR NADA! EU NÃO TE TRAÍ! NUNCA!
- NÃO TOCA EM MIM, PORRA! EU TENHO NOJO DE VC!
- PARA DE ANDAR, DESS! VAI ESCORREGAR!
- FODA-SE! EU VOU PRA MINHA CASA E ME ESQUECER DE QUE UM DIA EU TE CONHECI!

Tremendo de frio, raiva e decepção, sinto a garganta arder enquanto vejo Aiden no topo da escadaria, observando-nos com um sorriso sinistro em seu rosto pálido. Por que não me socorre? Por que parece ter medo de Vincenzo? O que conversaram enquanto eu saía do teatro? 
- Dess, acorda. - Estendendo os braços, ele fala com cautela, após uma olhadela para o asfalto. - Fica parada aí. Eu vou até vc. Ok? Não se mexe.
- Não se aproxima de mim, Vincenzo. Vc tá me matando aos poucos.

Um passo em falso e tropeço em um buraco. Tombo contra o chão molhado pela chuva. Sweet surge ao lado de Vincenzo. Enraivecida, ergo-me antes da luz me cegar por completo. Ouço o ruído de freios segundos antes de ouvir o grito de pavor de Vincenzo.  Um forte baque sacode meu corpo. Sinto-me leve e frágil antes da dor insuportável me lançar na escuridão. 
'Meu filho', penso enquanto lâmpadas fluorescentes passam pelo teto cinza, mais céleres do que meus olhos podem acompanhar. Alguém aperta a minha mão e me diz.

- Eu não vou te abandonar, meu anjo.



E, como Aiden dissera ao me conhecer, minha semana terminaria 'impiedosamente inesquecível'.


Continua...














CAPÍTULO 37 - IMPOTENTE

  Há dois dias, ela não se alimenta. Não fala. Não chora. Não reage de maneira alguma. Há dois dias, eu choro por ela. Por sua dor mal disfa...