- Ninguém me toca! - Aviso, aos gritos. Das palmas de minhas mãos, escapam raios azuis violáceos. Atinjo um dos seres animalescos com dois raios super potentes. Outros se aproximam sem esconderem seus desejos devassos. Penso em meu filho e no quão poderosa eu me sinto de volta à Escuridão dos meus sonhos estranhos. Dessa vez, sou a protagonista que caminha, cautelosamente, por um extenso corredor de paredes em pedra, iluminado por tochas acesas. O local é quente e claustrofóbico.
Ao final do túnel, logo abaixo de mim, sentado em um trono de pedra, um homem belíssimo com traços finos em seu rosto angelical. Ele me sorri sem o menor resquício de lascívia. Como em um palco, a luz de um holofote incide sobre ele. Ao seu lado, mulheres nuas disputam sua atenção. Desprezando-as com um breve olhar, ele me pede para caminhar em sua direção.
- Pra quê!? - Questiono ouvindo meu eco ressoar pelas paredes disformes. O som do alvoroço causado pela plateia demoníaca, batendo palmas, me incomoda. Com extrema habilidade, escalo um rochedo até fincar meus pés descalços no chão lodoso. Meu camisolão branco com mangas bufantes está manchado de sangue na altura do meu ventre. Sem me importar com a presença do homem que ri de mim, ou com a de seus vassalos, procuro por vestígios de ferimentos em meu corpo. Nada encontro. - Meu filho está bem. - Certifico-me, aliviada.
- E por que não estaria?
- Não sei. Não me lembro dessa mancha...- Refuto em frente ao jovem homem que me observa, intrigado. - Onde estou? Quem é vc?
- Ora. Vamos lá, Adessa. - Revira ele os olhos claros e castanhos. - Surpreenda-me com seus poderes. Vc pode mais do que isso.
- Estou no inferno?
Uma salva de palmas vinda da plateia me faz recuar. Rostos cadavéricos, medonhos, sofridos me fitam com os olhos sem expressão. Uma das mulheres me cerca, lambendo meu pescoço. Rosnando, eu a empurro.
- Nojenta! Dá pra tirar ela daqui?
- Claro, meu anjo. - Um gesto ligeiro e a mulher rasteja no chão lodoso até desaparecer. Ratazanas e cobras se espalham pelo palco em madeira. Um grito de horror e subo em uma das pedras, contendo minha ânsia de vômito. - Perdão. Vou te poupar de minha realidade e ir direto ao assunto.
- Estou sonhando?
- Sim.
- Quem é vc?
- Ora. Me poupe. Vc sabe quem eu sou.
- Lúcifer???
- Não. J.C. - Ironiza ele.
- Não brinca comigo. - Ralho, enojada com o balé bizarro dos ratos e cobras que se agrupam ao redor de seu trono. - Quero ir embora. Ainda não morri. Eu acho...
- Não. Vc está vivíssima, meu bem. - Enfatiza ele, piscando lentamente. Seus cílios são longos e espessos. - Viu? Não sou tão feio quanto dizem por aí.
- Não. Não é. Por que estou aqui?
- Porque queria te ver pessoalmente.
- Por quê?
- Por que não?
- Eu te conheço? Digo...além do que aprendi nos livros?
- Sim. Mas não se lembra e é bom que continue assim. Vc era tão pequenina! Um anjinho demoníaco! - Seu riso é elegante assim como seu modo de gesticular com as mãos, braços, pernas que se cruzam ao me encarar e profetizar. - Vc ainda vai sofrer muito, meu anjo. É uma pena que eu não possa interferir nos planos de meu Pai...
- Vc diz...? - Seus olhos fitam o céu plúmbeo acima de nossas cabeças antes de assentir, levemente sensibilizado. - Deus??? É o Seu Pai??? Não é coisa de gente maluca???
- Não há nada de maluco em sofrer por um erro que não cometi!
- Calma. Eu não quis...
- Eu sei que não. Qualquer dia, eu te direi a verdade. Agora não. Agora eu preciso acertar as contas com alguém que conhece.
- Por que tá me olhando assim???
- Olhando como!?
- Como se eu soubesse quem é.
- Vc sabe que eu sei que vc sabe, meu anjo.
- Por que me chama assim? Desde quando o 'Anjo Caído' tem carinho por alguém?
- Desde que vc nasceu. Assim como Vincenzo, eu sigo seus passos.
- Eu não sou novela pra ser seguida. - É sério!? Eu não acredito. Acabo de fazer com que o demônio mais temido de todos os Tempos ria de uma piada sem graça. Será que ele também lê meus pensamentos?
- Teve graça sim. - Diz ele ainda rindo. - E sim! Eu leio seus pensamentos e o de todos os seres ridículos da Terra. Vivos e mortos. Bons e maus, o que torna a minha vida um saco! - Sorrio, sentindo uma certa empatia por ele. - Obrigado. Mas prefiro ser odiado e temido.
- Não tenho medo de vc.
- Que bom porque eu vou precisar de sua ajudinha.
- Como?
- Vc vai levar um recadinho ao seu 'bofe' na Terra.
- Não tenho ninguém. - Refuto, magoada. - Ele não é mais nada meu. Ele fugiu de mim. Não sei onde está.
- Eu vou te dizer.
- Eu não quero vê-lo novamente. Eu o odeio.
- Meu bem, meu bem. De ódio, amor, mágoas, erros e acertos, eu entendo. Ainda não terminou. Pode acreditar.
- Por que disse que Vincenzo me segue?
- Porque é verdade.
- Simples assim???
- Just like that, darling. Ele é um viajante no Tempo sempre à sua procura.
- Pra quê?
- Sei lá! - Refuta ele, dando de ombros. - Vai entender cabeça de gente louca! O que ele tem de beleza tem de loucura!
- Eu preciso me afastar dele.
- Querer não é poder. Não é mesmo?
- Preciso mudar de vida.
- Nisso eu posso ajudar.
- Como? Preciso vender minha alma a vc?
- For God's Sake! Isso é patético, como vc mesma diria! - Imobilizo-me de pavor ao sentir uma de suas serpentes entre meus pés. Sua língua bifurcada me ameaça quando ele ordena em voz alta. - Se afasta dela!
- Uau...- Expiro enquanto a serpente recua, célere. - Se ela me picasse eu morreria aqui?
- Adessa, meu bem, não 'viaja'! Nós não temos muito tempo!
- Não entendi...
- Acorda! - Odeio quando estalam os dedos entre meus olhos. Eu não sou louca, tampouco boba! - Eu sei. Mas vc precisa parar de se entregar dessa maneira! Qualquer um pode te hipnotizar se souber como fazê-lo! Vc se ausenta com facilidade e isso, em seu mundo, é perigoso!
- Do que tá falando!?
- Do seu Vincenzo, Dess. - Responde-me Lúcifer, erguendo-se de seu trono, caminhando até mim com elegância e chamas em seus olhos. - Ele te prende quando vc menos espera e te faz de boba.
- Não. Ele não faria isso. - Defendo o pai de meu filho enquanto recuo. - Ele é louco, mas não é mau.
- Ah...não??? Por que não se lembra do pacto entre mim e o bonitão???
- Pacto???
- Pacto, Adessa!!! Pacto!!!
- Não grita! Eu não sou surda!
- Mas é tola...- Cochicha ele em meu ouvido. Labaredas de chamas vermelhas ardem em nosso entorno enquanto ele prossegue. - Abra seus olhos, Adessa. O Mal tem várias faces. Não sou a única. Diga a seu grande amor que eu espero pelo pagamento de sua dívida ou vou contar tudo o que sei. Inclusive os detalhes de como ele te conquistou...
- Ele me salvou da morte. Foi assim que eu o conheci.
- Tem ideia de como ele chegou até vc naquele quartinho imundo? Ou de como teve forças para lutar contra tantos homens, sozinho? Percebe que ele está sempre à sua disposição quando vc precisa dele? Vc grita por socorro e ele aparece...do nada. Não acha que isso é, no mínimo, estranho?
- Não vou te ouvir. - Afirmo, cheia de temor. - Vc é o 'Pai das Mentiras'. Por que me trouxe aqui?
- Ok. Direto ao assunto. Volte ao corpo e, assim que puder, diga ao padrezinho de merda que eu vou cobrar o valor de nosso acordo. Entendeu?
- Sim. Entendi. E o que ele pediu a vc?
- Sigilo total, meu anjo. - Reviro os olhos, contrariada. Arquejo ao ouvi-lo dizer. - Ah...perdão. Ele já não é um padre. Pediu para sair. Saiu. Agora ele é um homem livre e pode se casar com vc...se ele quiser...é claro.
- Outra mentira. Ele me diria se fosse verdade. - Vacilo antes de prosseguir. - Ele me procuraria. Eu sei que sim.
- Certamente, querida. Assim que puder, ele vai te procurar e, quando isso acontecer, dê a ele o recado. E, por favor, não banque a otária novamente.
- Não vou. - Bocejo, sonolenta. - O que ele te pediu de tão importante? Não precisa dizer tudo. Eu preciso saber de alguma coisa. Não quero que ele queime no inferno. - Olho ao redor. As chamas estão bem próximas aos nossos corpos. Uma sensação de pânico comprime meu coração enquanto ele continua a sussurrar.
- O inferno não é aqui, Adessa. O inferno está na consciência de cada ser humano, mas vcs não têm consciência de nada. - Resmungando, ele retorna ao seu trono, atraindo as ratazanas e serpentes consigo. De costas para mim, ele me alerta. - Fique de olhos e ouvidos atentos. Dias de tormentas estão por vir.
- O que quer dizer com isso!?
- Adessa, está na hora de acordar...
Risos eufóricos ecoam dentre da caverna claustrofóbica. A turba barulhenta o aplaude num frenesi diabólico quando volto a perguntar.
- Qual foi o pacto!? Como eu posso ajudar Vincenzo!?
- Não pode. E ele já te contou, mas vc se esqueceu porque ele te fez esquecer. Ele sempre te faz esquecer do que não o agrada.
- Por que ele faria isso!? É ridículo!
- Concordo. Talvez ele não queira ser visto como um psicopata que persegue sua presa. Vai entender?
- Psicopata!? Não entendi! Apague o fogo, por favor! Tenho medo!
- Não tenha, meu anjo. Esse fogo não vai te queimar como o outro te queimou. Agora volta e, se puder, abra os olhos e não banque a otária.
- Ainda não me respondeu...!!!
Caio de volta ao meu corpo. Abro os olhos. Perturbada, ainda posso ouvir suas últimas recomendações.
" Por favor, não banque a otária!"
- Merda. Que sonho esquisito. Preciso falar com seu pai, filho. - Penso alto, acariciando minha barriga, um pouquinho maior do que ontem.
COMO???
Fixo meus olhos distantes na parede pintada de azul enquanto ouço um sussurro entrar pela janela aberta.
"Procure-o no galpão".
- Recado de quem? - Com as mãos ao volante, aguardo por sua resposta pondo a cabeça para fora da janela do meu carro. - Fica calma. Não precisa se lembrar do nome. - Sorrio quando a vejo estalar os dedos como se isso ligasse e desligasse o interruptor de sua memória. - Se lembra da mensagem?
- Sim! - Com as mãos em prece, ela olha para o céu e agradece. - Lembrei! Ele disse pra vc ter cuidado. Muito cuidado com alguém. Só não me lembro quem.
- Aaah tá. Sem problemas. - Digo à mãe de Giulia, extremamente envelhecida após a morte da filha. Ela tem trabalhado bastante para manter cafeteria em funcionamento. De onde estou, vejo o desenho, em grafite, do rosto de Giulia, estampado na fachada. Tão diferente de como a vi em seu último dia na Terra...- Não precisa se lembrar de nada, querida. - Beijo o dorso de sua mão, percebendo a dor que carrega por dentro. Perder um filho é a pior dor do mundo. Giro a chave na ignição. Sorrio quando vejo seus olhos se movendo de um lado ao outro como se estivesse tentando captar alguma outra mensagem que tenha se esquecido. Vencida, ela lamenta.
- Eu não me lembro do nome do moço, mas vou rezar por vc, minha filha. Que Jesus te proteja! - Sua mão no topo de minha cabeça me traz paz. Pergunto, mais uma vez, o nome de quem me dera a mensagem. Ela volta a olhar para o céu e, dando pulinhos, grita. - Lembrei! Rafael? - Passando as mãos pelos cabelos presos, demonstra indecisão. - Uriel? Nossa Senhora! Minha cabeça tá cada vez pior!
- Miguel!? - Arrisco, engolindo em seco.
- Isso!!! Miguel!!! É o mesmo nome do anjo pra quem eu acendo minhas velas. Ele deve estar guardando minha Giulia lá no céu...
- Sem dúvida. - Afirmo, com os olhos úmidos. - Ela está ao lado dele. Preciso ir. Qualquer problema, me liga.
- Eu nunca vou conseguir te agradecer por tudo o que me deu. - Confessa ela, segurando-me pelo braço.
- Não precisa. Era pra ser da Giulia, mas Deus a levou. - Minto. Giulia teria outra cafeteria no ponto mais badalado da cidade. Era seu sonho. Eu já havia alugado a casa quando tudo aconteceu...tão de repente. Tentando apagar o rosto medonho de Jack de minha memória, aviso. - Antes do meu filho nascer, eu volto. Ok? - Despeço-me, acelerando, vagarosamente. Aceno, olhando-a pelo retrovisor. Freio antes de colidir com outro carro na rua transversal quando a ouço gritar.
"Ga'al. Esse é o nome! Ga'al!"
Ainda digerindo o teor macabro da mensagem que acabo de receber, dirijo, sem saber o o porquê, até o galpão de boxe do homem que mais odeio no momento.
Só que não...
Basta vê-lo novamente e toda a dor, raiva e paixão voltam à tona. Toda porcaria de amor que ainda sinto por ele me inunda e não me deixa respirar. Por que estou aqui, novamente? Ele desaparece, sem me dar notícias e eu ainda me dou ao trabalho de vir atrás dele porque temo por sua vida!? E ele estava aqui o tempo todo!? EU MEREÇO FICAR SOZINHA MESMO!!! Por San Juan Diego! Esse homem é como o vinho! Fica melhor com o tempo!!!
- Bo bo bom dia pra vc também. - Gaguejo quando o vejo em cima do ringue, de onde, rispidamente, me pergunta.
- O que quer dessa vez?
- Nada! - Arrependo-me de ter vindo. Arrependo-me de ter conhecido ele e de tentar ajudá-lo porque ele se transformou em um monstro sem alma. Ele não estava assim em meu sonho! Meu Deus! Quantos sonhos eu já tive!? Qual deles eu vim contar!? Diabos! O que ele tem!? Por que tanta agressividade!? - Esquece! Finja que eu não estive aqui! - Giro nos calcanhares e dirijo-me à mesma porta por onde acabara de entrar. Eu queria ajudar esse imbecil, mas ele não colabora. PORRA! ELE NÃO COLABORA!
- Dess! - Ouvi-lo me chamar dessa forma me faz perder o fôlego, então eu paro, de costas para ele que está logo atrás de mim. - Perdão. Fui estúpido. - Pondo a mão em meu ombro, posso sentir que suas palavras são sinceras. A bendita conexão entre sua mão e a minha pele me faz acreditar que ainda há algum sentimento...- Ainda existe. Vc tá certa.
- Não parou com essa mania de ler mentes!? - Rosno enquanto eu o encaro. - Isso é irritante. Nunca te falaram isso? - Abrindo um daqueles sorrisos inocentes, ele diz que sim.
- Você. Vc sempre me dizia isso. Lembra? - Aaah! Puta que pariu! Golpe baixo me fazer lembrar dos dias na casa de praia! - Vc ainda se lembra de tudo?
- PARA DE LER MEUS PENSAMENTOS! - Grito.
- JOÃO! AUMENTA A PORRA DO SOM!
Do ringue, João me cumprimenta. Eu o saúdo, erguendo meu braço direito, com a mão cerrada. Engulo em seco. Minha voz embarga quando me recordo de que ele seria o padrinho do filho que perdi estupidamente.
- Por que tá me olhando assim!? - Não consegue ler o que estou pensando!? Não consegue ver que estou carregando um filho teu, paspalho!? OUTRO FILHO TEU??? - Fala!
- Vc tá diferente...
- Não me diga! - Ironizo. - A dor modifica a gente. Sabia!?
- Dor!? - Expressando total ignorância sobre o motivo de minha dor, ele pergunta, inocentemente. - Onde dói, Dess!?
- Tu tá de sacanagem comigo!? Tu entra na minha vida! Tu sai da minha vida e depois me pergunta onde dói!? Dói tudo! Dói tudo, idiota! - Levo a mão ao coração que bate em descompasso. Instintivamente, deslizo a outra mão em minha barriga. Percebo meu erro quando ele recua, meio que assustado. Recomponho-me ao me sentar na cadeira que João, sempre atencioso, traz consigo. - Obrigada. Vc é um cara super bacana.
- Conta sempre comigo. - Diz ele, deixando-nos a sós. - Vincenzo, acuado, nos observa quando sussurro, magoada.
- Eu conto.
Um silêncio sepulcral se instala entre nós dois apesar da música estar rolando no volume máximo. Aproveito para pensar no quão fantástico ele está e em como eu gostaria de beijar sua boca machucada de tanto levar porrada. A canção é antiga. Para variar, um outro flashback onde o cantor afirma que sempre haverá uma otária na mão de algum espertinho.
ESSA OTÁRIA SOU EU!!!
- Olha só! - Quebro o silêncio, erguendo-me, ruidosamente, da cadeira. Com a mão na cintura, aviso. - Vim te dar um recado de alguém.
- De quem?
- Então...- Merda! Me esqueci! Deveria ter escrito assim que acordei! Merda! - Não me lembro exatamente de quem, mas foi tipo num sonho, saca? Por que tá rindo de mim!? Tô com cara de palhaça!?
- Não. Vc me diverte, Dess.
- Dá pra não me chamar de 'DESSSS'!?
- Dá não...- Ai...ele é tão fofo com os olhinhos tristes. - Vc é a minha "Dess" e vai continuar sendo mesmo que não me ame mais. - Típico de um narcisista! Não larga a sua presa...jamais! Preciso retornar à faculdade de Psicologia imediatamente! - Oi! Acorda!
- Pois saiba, meu bem, que a fila andou! - Contrariando minhas expectativas, ele sorri ao invés de demonstrar raiva ou qualquer reação negativa. - VC ESCUTOU O QUE EU FALEI!?
- NÃO PRECISO GRITAR. - Grita ele. - NÃO SOU SURDO!
- COMO EU POSSO FALAR BAIXO COM ESSA MÚSICA ALTA, PORRA!?
- MÚSICA ALTA OU TELEPATIA!? ESCOLHA! - Gargalhando, ele joga sua cabeça para trás. Seu Pomo-de-Adão move-se livremente em seu pescoço que desejo chupar até deixar minha marca nele. - ESCOLHA!
- ABAIXA ESSA PORRA! EU JÁ NEM SEI O QUE EU VIM FAZER AQUI!
- OK! - Olhando para trás, ele volta a gritar no exato momento em que nossa música começa a tocar. - JOÃO! DESLIGA O SOM, POR FAVOR!
- NÃO! PARA! AGORA NÃO!
Ed Sheeran canta "Photograph" enquanto eu suspiro feito uma idiota. Ele percebe e faz um sinal ao amigo para que deixe a música rolar. Dói tanto que não posso respirar. Nós dois juntos, nosso primeiro filho, morto. Seu estranho transtorno mental. Ou será de personalidade? Ele não é normal. Isso é fato. Por que eu fui amar um homem doente da cabeça!? Aimedeus...eu preciso respirar! Claustrofobia agora não!!! Devo estar expressando pânico em meu semblante porque ele me faz sentar, de volta à cadeira, e, com carinho, me pede para inspirar e expirar.
- Dess, tá melhorando?
- Se vc parar de me chamar por esse nome vou ficar melhor. NÃO RIA DE MIM!
- Vc é tão cega, Dess! Tão burrinha e linda! Não dá pra não rir de vc ou pra vc...ou por vc.
- Não seja ridículo. - Rosno, puxando o ar pela boca.
- Meus dias são cheios de luz quando vc aparece. - Comenta ele, pousando suas mãos sobre as minhas, mais frias do que a de um cadáver. Um comentário absolutamente estranho vindo de alguém que me abandonara, da noite para o dia. Ele volta a rir e sei que está rindo porque está ouvindo o que penso. FODA-SE! PEGOU ESSE PENSAMENTO!? FODA-SE! Ajoelhado, apoiando-se em meus joelhos, ele retruca, com um olhar indecente. - Prefiro foder vc...ou melhor...fazer amor com vc.
- Maluco idiota! - Ergo-me da cadeira tão rapidamente que tropeço nela e caio de bunda no chão. Cara. Ele é louco mesmo. - Respeita minha dor. - Resmungo enquanto tento me levantar com dignidade, sem mostrar a calcinha. Inútil. Ele acaba de ver tudo e me lança um sorriso cheio de desejo. Ruborizando, eu xingo. - VÁ À MERDA!
- Não xinga, Dess. É feio.
- Vá pro inferno, narcisista nojento. Por que não morreu!?
- Dess...- Diz ele com carinho. - Eu respeito a sua dor que é a minha também. Eu só não sei lidar com isso. - Argumenta ele, estendendo o braço a fim de me levantar do chão. Aceito sua ajuda. Nossas mãos se unem e sinto uma avalanche de sensações contraditórias. Tenho medo dele. Sinto paixão por ele. Quero ficar e acreditar que ele me ama e é normal. Quero fugir. Ele não me solta. Ele me puxa para si e me pede para dançar com ele. Deus do céu! Ele não é louco! É um psicopata! - No que tá pensando?
- Não te interessa. - Refuto, confusa. O galpão está quase vazio, mas estamos chamando a atenção de seus alunos enquanto nossos corpos se juntam como na noite em que ele me beijara pela primeira vez na sala da casa de praia. - Dança comigo? - PUTA QUE PARIU. OLHANDO-ME ASSIM, COMO EU POSSO NEGAR? MERDA.
- Boca suja.
- Me deixa em paz. - Sussurro, rindo contra seu peitoral porque não sei o que fazer além de me entregar a ele, sem reservas. Isso é doentio. - Saiba que estou dançando com vc pra não queimar teu filme diante de teus alunos.
- Ciente.
- Ainda bem! - Sorrio, encostando meu rosto em seu pescoço cheirando à maçã verde. Cantarolo o refrão de nossa canção sem perceber que ele me ouve.
'So you can keep me
Inside the pocket of your ripped jeans'.
- Dess, já tirou minha foto da sua carteira? A sua continua no porta retrato ao lado da minha cama.
- Por que vc quer saber disso? Tá sendo muito gentil comigo hoje. O extremo oposto do que foi comigo da última vez em que estive aqui.
- Vc nunca vai me entender, Dess.
- PORRA! PARA DE ME CHAMAR ASSIM!
- Por quê? Vc é e sempre será a minha 'Dess'.
- Cara! Vc é louco! Vc sumiu! Pensei que tivesse morrido! Inconsequente!
- Eu precisei...
- Cala a boca! Não quero ouvir desculpas idiotas! Eu vim aqui porque sou burra demais!
- Não é não. Vc é a minha 'Dess'.
- Vc é um psicopata!!!
- Não fala assim, Dess.
- Não me chama assim!
- Dess...
- Porra...- Desisto e continuo a dançar com ele até a música findar. Eu o empurro ao final da canção. Afetando frieza, anuncio. - Eu mudei. Vc também. Só vim aqui pra te alertar. Tem um sonho que eu preciso te contar. Eles mandaram te avisar.
- Eles quem, Dess?
- 'Peraí'...tô me lembrando...- Repito o gesto da mãe de Giulia e fico estalando os dedos com tanta rapidez que sou capaz de gerar fogo através do atrito entre eles. Ele continua a sorrir para mim, o que torna tudo ainda mais desgastante. Vc precisa de tratamento psiquiátrico. E eu também. Ele me faz agir como uma adolescente e eu ODEIO ISSO! Mais um riso dele e eu, hesitante, inicio. - Era um cara num trono. Não. Era numa poltrona. Um cara bonito, atraente. Tinha um jeito feminino, mas era homem. Ah! Sei lá! Vai saber!? PARA DE RIR OU VOU EMBORA! - Ameaço. Ele leva a mão à boca, tapando o sorriso que me encanta. Olho para o chão e, então, lembro-me de tudo. - Al Pacino! É ele mesmo!
- Al Pacino tem uma mensagem pra mim!? - Gargalhando, ele se curva para frente, com as duas mãos no abdômen trincado. Morro de vontade de tocar em seu cabelo curtinho só para ver se espeta. Ele se ergue e dá um passo para trás como se tivesse medo de algo que pensei. - Tá. Diz aí o que Al Pacino quer comigo!
- Não seja sarcástico! Vim aqui somente pra te ajudar!
- Não é sarcasmo. É dúvida mesmo. Al Pacino tem uma mensagem pra mim??? Sério???
- Se vc rir outra vez, eu dou um chute no teu saco e sumo da tua vida.
- Vai estragar seu brinquedinho?
- Aaah! Não ferra! - Dou meia volta e, decidida, sigo, novamente, em direção à saída quando ele corre e me ultrapassa. Debaixo do batente da porta, ele me impede de sair, unindo as mãos em prece, implorando.
- Fica, por favor. Pode falar. - Voltando à seriedade, ele me fita com ternura. Finjo não compreender seu olhar quando ele me pergunta, pela segunda vez. - Qual foi a mensagem?
- Então...Al Pacino estava sentado em um trono, todo desleixado, com cara de tarado. Daí, apareceu uma mulher comendo uma maçã...ou seria uma pera? - Olho para o teto. Penso que carece de uma pintura. Ele estala seus dedos em frente ao meu nariz, o que me deixa puta, então continuo. - Rolou sexo entre eles...eu acho. Bem! Mas isso não vem ao caso! Ele disse que vc deveria tomar cuidado com alguém...não sei quem. Ai! Espera um pouco. - Ele cruza os braços, sentando-se na cadeira que eu derrubei. Por segundos, ele me olha de cima a baixo. Estou ruborizando e isso é absolutamente patético porque atrapalha o processo de memorização. - Para!
- O quê!? - Exclama ele, erguendo os braços, na defensiva. - Tô esperando, ué! Pode continuar porque eu não tenho nada pra fazer mesmo! - Ironiza ele. - Os caras ali...- Seu polegar aponta para o ringue. - Estão me pagando pra pular corda. Só isso.
- Putz...- Desanimo. - Eu não deveria ter vindo. Tô te atrapalhando e me atrasando também. Mas eu tinha tudo na cabeça antes de sair de casa. Foi a mãe da Giulia que me confundiu com a história do Miguel.
- Miguel? Foi ele quem mandou a mensagem!?
- Não! Miguel mandou uma mensagem pra mim! Pra vc, o lance é outro!
- Tá difícil...- Revirando os olhos encantadoramente azuis, ele me faz arfar. - Obrigado. Vc sempre gostou deles, né?
- JOÃO! - Grito. - AUMENTA O SOM, POR FAVOR! - João bufa, movendo a cabeça de um lado ao outro, como quem lida com crianças birrentas. É o que somos ou parecemos ser. - OBRIGADA! - João sorri, erguendo o braço num ligeiro aceno. Ergo meu polegar, sorrindo de volta. - Agora posso falar sem medo. IDIOTA!
- FALA, PORRA! - Ordena-me ele, visivelmente enciumado. - VAI! FALA! NÃO TENHO TEMPO A PERDER!
- NEM EU, ESTÚPIDO! - Eu preciso comprar as roupas do teu filho, babaca! Babaca! BABACA!
- FALA!!!
- OK!!! - Pressiono minha cabeça com as mãos e, desorientada, prossigo. - Al Pacino estava vestido de diabo e me pediu pra te dizer que vc e ele tem um contrato...ou acordo...sei lá! Uma parada aí que vc deixou de cumprir. Daí, eu disse que poderia aliviar a tua barra e pagar porque eu tenho mais grana do que vc, mas ele insistiu que deveria ser vc.
- Vc tem mais grana do que eu? - Pergunta-me ele, irônico. Dou de ombros, elevando o olhar ao teto. - Então tá.
- Foi o que eu disse. - Comento, erguendo os ombros demonstrando não entender nada. - Então, tudo começou a queimar. Havia fogo por todos os lados, mas ele não se queimava! Nem os ratos e cobras! Ah! A mulher lindíssima queria trepar comigo. Eu disse não! Eu acho...não me lembro. Enfim! Ele estava queimando e gritou por seu nome. O fogo quase me queimou. Ele disse que aquele fogo não queimava porque o fogo não queima bruxas. Uma das serpentes quase me picou, mas eu a segurei pelo pescoço e ordenei: "Se afasta de mim, vadia!". Ele riu muito. Eu pedi pra não gritar porque eu não era surda, daí, ele mostrou o pau dele pra mim! CARA! ELE MOSTROU O PAU DELE PRA MIM!? QUE BIZARRO! Ah! O Keanu Reeves também estava no sonho. Eu não sei o que ele queria, mas não era contigo não. Era uma espécie de escravo dele. - Vincenzo me interrompe, meio que desconfiado.
- Porra, para! Tu tá narrando o filme "O Advogado do Diabo!" - Ele volta a rir de rolar no chão. Seu riso vai sumindo à medida em que olha para mim e percebe que não está me agradando. Estou rígida como uma estátua de pedra, ciente de que me esquecera de tudo o que deveria ser lembrado. Ou quase tudo. - Vc não assistiu? - Pergunta-me ele, sem graça. Recompondo-se, ele pigarreia e, levantando-se do chão, limpando uma mão na outra, me questiona. - É sério que vc tem um recado pra mim?
- Não é um recado, seu burro. É uma mensagem! É sério, Vincenzo! Eu posso não me lembrar exatamente das coisas ou estar misturando um pouco...
- Um pouco!? - Seus grandes olhos azuis estão estatelados e as covinhas surgem, atingindo-me como flechas de um cúpido míope. Acariciando meu rosto com o dorso de sua mão, ele modula a voz ao argumentar. - Meu anjo, vc tá contando o enredo de um filme. Tenta se lembrar somente da mensagem. Esqueça os detalhes.
- Então...aaah...eeeh...- Meus olhos percorrem o teto do galpão e me distancio. Ele chama pelo meu nome, mas eu não consigo sair do transe. Não vejo mais nada além do teto se abrir cuspindo labaredas de fogo que se misturam, tomando a forma de uma mulher. Sou levada dali enquanto ele segura meu corpo pelos braços e ora em Latim, tão baixo que sequer eu consigo ouvi-lo. Lúcifer, em seu trono, volta a surgir diante de mim. Ele me olha, abrindo um sorriso compassivo ao me recordar.
"Fale sobre o acordo, meu bem. O acordo". Assinto com a cabeça, embora não saiba onde estou. A mulher de fogo caminha em minha direção. Sinto suas intenções lascivas. Quero correr e não consigo. Quero gritar e não consigo. Me deixa ir embora! Me deixa!
- ME DEIXA!!! - Grito, debatendo-me.
- Volta, Adessa! - Ordena-me ele com a autoridade de um santo, repetindo a famosa frase de São Bento por três vezes seguidas.
Como se tivesse despencado de uma árvore, volto ao meu corpo, assustada diante de seus olhos aterrorizados.
- Vc tá bem? O que houve? Aonde foi?
- Lembrei...- Digo com os lábios trêmulos, os pelos do corpo eriçados. - Sei quem te mandou a mensagem. Eu o vi agora.
- Por que tá tremendo, Dess? Fala comigo. Tá suando frio...
- Eu o vi agora, merda! - Repito, encarando-o num descontrole. Ele continua a segurar minhas mãos e a rezar sem se dar conta do que acabo de dizer ou talvez não queira saber da verdade. Além de louco, ele me esconde algo. - Seu nome é Lúcifer. - Deixo escapar, estranhando-me. - Lúcifer quer te enviar uma mensagem. Por que diabos ele me disse que eu iria sofrer muito? - Suspiro.
- Lúcifer!? - Afastando-se de mim, cambaleando, Vincenzo se encosta à parede e repete, incrédulo. - Lúcifer!? O que ele iria querer comigo!?
- Quer que vc cumpra o acordo. Disse que vc sabe qual é mas não vai me dizer - De cabeça baixa, ele parece refletir quando pergunto. - O que vc fez, Vincenzo?
- Não posso contar. Não agora. - Novamente, a irritante impressão de que devo me lembrar de algo que não me esqueci por completo. - VC NÃO SE LEMBRA DE NADA! ENTENDEU!?
- Crápula! Aonde vai!? - Andando para trás, ele se afasta de mim e num pulo, volta ao ringue, golpeando o 'punching ball' com socos e chutes, usando de extrema força e rapidez que, em minutos, ele se esgota e se joga contra o chão, de braços abertos, em forma de cruz. De onde estou, eu o vejo deitado. Seu tórax se expande e se contrai, aceleradamente, enquanto ele fixa seus olhos no teto e, sem olhar para mim, ele me pede para ir embora. Digo que não irei até que ele me conte o que está havendo. - Por que esse descontrole todo? O que vc pediu a ele? Que acordo é esse? Deixa eu te ajudar! - Ainda deitado, ele gira o pescoço e, seus olhos cheios de medo me encaram enquanto seus lábios se movem, trêmulos, quando ele me diz.
- É tarde. Fiz merda. - Ameaço subir no ringue. Ele pede, num tom alto. - Vá embora, por favor!
- Não quero. - Insisto. - Seja lá o que vc tenha prometido, a gente pode lidar com isso juntos. - Estendo minha mão sobre o piso emborrachado de onde ele se levanta e, vindo em minha direção, olhando-me de cima para baixo, transtornado, suado. Resfolegando como um touro, ele meneia a cabeça e, abrindo um sorriso de derrota diz ser tarde demais. - Deixa eu te ajudar. - Imploro, olhando para cima.
- Vai embora. - Rosna ele demonstrando indiferença. - Vc já tomou muito do meu tempo. Agradeço pela preocupação, mas não tem nada que possa fazer. O problema é meu e vou resolver sozinho.
- Palerma! Só queria te ajudar! - Pulando do ringue, ele se posiciona diante de mim e meio que vai me empurrando com toques suaves até a porta. - Para com isso, porra! Eu sinto que vc tá com medo!
- Adessa, vai embora! - Estamos quase debaixo do batente da porta de saída, uma segunda vez, quando ele me fere, propositadamente. - Volta ao seu estúdio! Teus machos estão te esperando!
DESNECESSÁRIO.
Meus olhos se enchem de lágrimas, mas eu não as derramo. Engulo em seco e cerrando o cenho, eu o encaro sem nada falar. Ele volta a me humilhar diante dos alunos que o aguardam no ringue quando proclama.
- Qual vai ser o tema educativo do vídeo de hoje? Como gozar em profusão? Como usar um vibrador da maneira correta?
- Cala a tua boca, infeliz. - Sussurro, evitando olhar aqueles que estão rindo de suas piadas de mau gosto. É incrível a minha capacidade de ser burra! Ele fez a mesma coisa quando eu ainda carregava nosso primeiro filho em meu ventre! Por que ele mudaria agora, com o segundo filho!? - Eu nunca mais volto aqui.
- Vai ser um prazer.
- Vc não merece minha atenção...minha preocupação. - Constato, devastada. - O QUE ESTÃO OLHANDO!? - Dirijo-me aos marmanjos que se apoiam nas cordas do ringue para assistirem ao desfecho de mais um capítulo onde faço papel de idiota. João, sempre compreensivo, ordena que os alunos retornem ao treino. Os alunos o desobedecem. Então, eu me enfureço. - NÃO ME CONHECEM!? SÉRIO!?
- Para, Dess!
- VÁ PRA PUTA QUE TE PARIU! - Eu o empurro com as palmas das mãos em seu peitoral e sigo até o ringue, encarando seus alunos que não desviam o olhar de mim. - PRAZER! - Grito num tom sarcástico. - SOU ADESSA, A PUTA QUE VCS ASSISTEM NOS VÍDEOS! A STRIPPER QUE SATISFAZ OS DESEJOS DE HOMENS IMBECIS COMO VCS! É! SOU EU! - Bato com a palma de minha mão em meu peito, ostentando orgulho. - UMA DAS GAROTAS DE PROGRAMA MAIS BEM PAGAS NESSE INFERNO DE LUGAR DE ONDE VOU PARTIR QUANDO JUNTAR MINHA GRANA E NUNCA MAIS TER QUE LIDAR COM PESSOAS MEDÍOCRES COMO VCS E O VERME ALI! - Aponto para Vincenzo que baixa a cabeça, cruzando as mãos na nuca. - O CARA MAIS COVARDE, DESAGRADÁVEL E FALSO QUE JÁ CONHECI! UM NARCISISTA DE MERDA, ABSOLUTAMENTE SEM CURA! - Diante do silêncio que provoco com meu discurso medíocre, jogo minha mochila nas costas, caminho até a saída, passando por ele que, novamente, sussurra "Dess". Não volto a olhar para ele, mas antes de sumir dali, na calçada, contendo minhas lágrimas, minto. - Espero que Lúcifer não tenha piedade de vc e te leve pro inferno de onde vc saiu, seu merda.
Novamente sou amparada por Sweet Child que me abraça enquanto choro copiosamente na sala ampla, bem decorada onde as meninas contratadas para venderem seus corpos lindíssimos se arrumam. Mais um dia de trabalho no "Moulin Rouge" vai começar. Ainda que estranhe seu apoio, eu o aceito porque não há mais ninguém para me abraçar nesse mundo. Acreditando em sua suposta amizade, pedira ao meu amigo, o dono desse puteiro disfarçado em uma casa de festas, que a aceitasse entre o quadro de suas 'funcionárias'.
"Ela é linda, sexy e trepa muito bem!", dissera a ele que sorrira maliciosamente para mim quando me perguntou:
"Vcs já treparam?"
"Não é da sua conta!", respondera a ele que aceitara minha proposta. "Ela terá os mesmos benefícios que eu. Ela precisa. Tem duas filhas e cuida delas sozinha. Se achar que estou pedindo demais, eu cedo parte do que ganho a ela, mas, por favor, deixe que ela trabalhe aqui."
Às vezes, eu me pergunto porque sou tão burra e cega!!!
- Adessa, é a terceira vez que retoco sua maquiagem! - Reprova-me ela com ternura. - Como vc quer conquistar seu padre exorcista gostosão borrada desse jeito!?
- Eu não quero mais nada com aquele homem. - Esclareço, choramingando. - Ele é doente. Um maluco da porra. Ele, mais uma vez, mostrou ser o homem errado pra mim. E ele não é mais um padre.
- Não???
- Não. Por que o interesse???
- Ele te disse isso???
- Não...- Estranho, voltando meu olhar distante ao teto. - Mas alguém me disse.
- Quem???
- Não sei. Engraçado, né?
- Mas vc o ama. Padre ou não, vc ainda o ama. Né?
- E daí??? Dois trabalhos: amar e 'desamar'!!! Tá borrando a minha maquiagem!!! Para de rir!!!
- Não chora, boba. - Pede-me ela, rindo. - Ele vai voltar. Vc vai ver.
- NÃO QUERO! NÃO QUERO SABER DE HOMEM NA MINHA VIDA! - Grito apontando para o meu reflexo no espelho do camarim. - Eu preciso aprender a me valorizar. - Murmuro, desalentada. - Nunca mais eu vou deixar nenhum homem me fazer de otária. Nunca mais. - Afirmo entre soluços. - Mesmo que seja lindo como é o pai do meu filho.
- Filho???
- Porra. Falei.
- Adessa! Vc tá grávida de novo!?
- Sim...- Assumo. - Por quê?
- Meu bem!!! - Exclama Sweet, afetada. - Vc nunca ouviu falar em 'camisinha'??? Vc é uma puta!!! Não uma coelha louca!!! - Reviro os olhos, fingindo não reconhecer a verdade em suas palavras. Ergo-me da cadeira, arrependida por ter revelado meu segredo.
- É melhor ouvir isso do que ser surda. - Resmungo. - Dá pra vc fechar o zíper do meu vestido e parar de me olhar como se eu fosse uma aberração???
- Vc não vai descer de biquini!?
- Hj não rola, Sweet! Não vou trabalhar!
- Adessa, vai perder muita grana! - Insiste ela. - A casa tá cheia de homens ricos querendo gastar com a gente!
- Sweet, meu anjo, qual a parte de 'eu estou grávida' vc perdeu??? - Dando de ombros, ela argumenta, triunfante.
- Ok. Melhor pra mim. A mensalidade do colégio das crianças tá atrasada. Com sorte, serei 'leiloada' hoje por algum milionário.
- Arrematada, sua anta. A casa vai te leiloar. O milionário vai te arrematar. - Nossa! Somos pedaços de carne pendurados em um açougue! A que ponto chegamos!?
- Ok. - Seus olhos gananciosos brilham ao declarar, eufórica. - Serei arrematada por um milionário!
- Tenho certeza que sim. - Confirmo, forçando um sorriso. Gosto dela. Torço por ela, mas há algo em Sweet que me incomoda, além da forma como ela se refere ao meu filho ao apontar para a minha barriga e perguntar, num tom sombrio.
- É filho do padreco!?
Engulo em seco enquanto desço, cuidadosamente, a escadaria que me leva ao hall. Sweet me tira do transe que me leva ao momento da queda onde perdera meu primeiro filho ao confessar.
- Não sei o que fazer, amiga.
- Faz nada não. - Aconselho, enrugando o nariz. - Fica lá quietinha, amarrada, de olhos fechados, pensando no que vai fazer com a grana que vai ganhar quando essa noite terminar.
- Foi assim que vc fez na sua primeira vez?
- Sim. Foi. - Exalo, voltando no Tempo. Exatamente há um ano quando o destino me fez ser leiloada e 'arrematada' por Vincenzo que, àquela época, usara um smoking caríssimo e, em seu lindo rosto, uma máscara, ao estilo medieval. Pagara por mim um valor absurdo. Pagou por algo que poderia ter tido de graça. - Que noite fantástica!
- Qual, amiga?
- Minha primeira noite aqui...
- Foi com o padre. Não foi?
- Sim. - Cochicho ao pé da escadaria, observando o movimento entre os convidados. Ainda procuro por ele. Pelo pai do meu filho. O homem mais cruel que conheço. - 'Eyes without a face'.
- Isso é uma música, amiga. - Cerrando os olhos, suspiro. Ainda posso sentir sua boca contra a minha, seus dedos enroscados nos fios do meu cabelo, a voz rouca dizendo que me ama...- Amiga!!! Acorda!!!
- 'EYES WITHOUT A FACE' É UMA MÚSICA, PORRA! PARA DE ME EMPURRAR, CACETE!
- Tô nervosa, Adessa!
- Não fica!!! Relaxa e goza!!! Saco!!!
- Obrigada, amiga. - Diz Sweet antes de caminhar em direção ao centro do lindo salão em vermelho. - Torce por mim.
- Vou torcer. - Prometo, francamente. - Quero te ver longe dessa vida. Quero que suas filhas cresçam longe de tudo isso e tenham o que a gente nunca teve.
- Vc é um anjo, Adessa. - Diz ela, beijando o topo de minha cabeça. - Que Jesus te proteja.
Sério!? Vc está me abençoando!?
Sorrio, pensando que, talvez, ela não seja tão má assim.
É a segunda vez que repetem o mesmo ato e a mesma frase no mesmo dia.
Só pode ser sorte!
Misturo-me aos convidados espalhados pelo salão. Perambulo pela cozinha ampla e mega limpa onde uma equipe de cozinheiros renomados prepara o jantar que deverá ser servido após o leilão.
- Posso te acompanhar? - Pergunta-me um senhor trajando um terno elegantíssimo. Agradeço o convite e minto.
- Estou esperando meu cliente. - Ele beija o dorso de minha mão e segue até o salão onde o leilão já tivera início.
- Não fecha!
Com Sweet em seus braços, o homem com máscara sobe as escadas, lentamente. Eu os acompanho, agarrada à estrutura de ferro abaixo do corrimão em madeira. Tenho a certeza de que, se eu a largar, cairei contra o chão acarpetado.
Há horas, estou sentada no gramado atrás do casarão, escondida de todos e de tudo, inclusive de mim mesma. Ouço uma velha canção vinda do salão. Uma canção triste. Tão triste quanto eu, mergulhada em minha autopiedade, abraçada à garrafa de vinho tinto que roubara da cozinha.
A garrafa está vazia enquanto estou cheia de ódio, inveja, ciúmes e uma puta baixa autoestima. Pergunto-me o que estão fazendo lá dentro do mesmo quarto onde aquele infeliz me fodeu. Minto. Fez amor comigo. Sempre foi ele. MERDA! Era ele o tempo todo. Como eu pude me deixar enganar? Aquela historinha de aumentar o volume do som e de pedir para eu não pensar tanto! PORRA! EU SOU MUITO MUITO BURRA!
- POR QUE FEZ ISSO COMIGO!? - Grito enquanto tento me levantar, embora eu tenha a certeza de que, se eu me levantar, vou rolar e quicar como uma bola de futebol pela grama úmida e me esborrachar no asfalto, logo abaixo. Por que uma rampa atrás de um puteiro!? Isso é inaceitável! - Resmungo, bêbada e sozinha. - PARABÉNS, IDIOTA. PARABÉNS POR ACREDITAR EM HOMENS! - Ergo a garrafa vazia, deitada sobre o gramado, elevando uma das pernas, apreciando minhas botas de cano longo. - Eu não vou conseguir me levantar. Não mesmo. Prefiro ficar e cantar.
Grito o refrão do flashback, junto ao cantor quando ele chama sua garota de 'mentirosa'.
- YOU LIE! YOU LIE! YOU LIE! LIE LIE LIE! - Gargalho, achando graça de meu sofrimento, de minha voz desafinada. Deprimida, rosno. - Eu o odeio mais do que nunca. Seu pai nunca vai tocar em vc, filho. - Acabo de me lembrar de que eu não poderia beber. PUTA QUE PARIU!!! - POR FAVOR! - Peço, aos berros, olhando para o céu deslumbrante. - NÃO DEIXEM QUE O VINHO FAÇA MAL AO MEU FILHO! SÓ DESSA VEZ! PERDÃO!
Lá do salão onde todos devem estar fodendo, tão bêbados quanto eu, chega até meus ouvidos a canção de Billy Idol. É SACANAGEM! A MESMA MÚSICA DAQUELA NOITE!? Foi assim que eu o chamei por uma noite inteira de prazer e amor: "Eyes without a face".
- Uau...- Exclamo observando o céu estrelado. - Posso viajar pra onde eu quiser com esse som. É praticamente um 'Rivotril' sonoro. - Rio de mim mesma, de olhos fechados, imaginando-me em um carro conversível a cem quilômetros por hora em uma highway. Cabelos esvoaçantes, livre de toda essa porcaria que me cerca, rumo à Itália ou Irlanda!
- Tem um oceano entre o seu carro e a Europa. O que vai fazer pra chegar até lá?
- Cara! Some da minha frente, porra! - Rolo para o lado, afastando-me de Vincenzo que se senta junto a mim. Estou bêbada, humilhada e, agora, imunda. PARABÉNS! - Se ousar ler meus pensamentos uma única vez, eu juro que quebro a porra dessa garrafa na tua cabeça! - Inspiro profundamente. Solto o ar pela boca ao perguntar. - Foi vc quem pediu ao DJ pra tocar a nossa...digo...a minha...cacete!!! POR QUE DIABOS ESTÃO TOCANDO ESSA MÚSICA???
- A nossa música? Foi sim. - Consente ele, tranquilamente. Deitando-se ao meu lado, sem se importar em sujar seu smoking na grama úmida. Ele cata um fiapo do mato e o coloca no canto da boca, provocando-me. Ele tem noção do quão sedutor consegue ser? Mesmo com um ranço extremo, ainda sou capaz de me entregar a ele. - Que cara é essa!?
- Eeeca! Tira isso da boca! Tá cheio de parasitas, bactérias, fungos! Ah! Não tira não! - Gesticulo, exageradamente. - Engula e morra com septicemia e me deixa aqui, em paz! Vá trepar com quem quiser lá dentro. Me deixa quieta aqui. Eu tô de boas...- Minhas mãos trêmulas e frias deixam a garrafa escapar. Gargalho, jogando meu tronco para trás quando ouço o ruído da garrafa contra a lataria de algum carro mais caro do que meu apartamento, logo abaixo, próximo à ribanceira. - Bem feito.
- É o meu. - Constata ele, rindo comigo.
- Putz!
- Sorte de principiante. Se tivesse feito conscientemente, não teria amassado a lateral do meu carro.
- Tá de sacanagem!? Aquele carrão ali é o seu!? - Boquiaberta, aguardo por sua resposta. Ele assente, despreocupadamente, enquanto penso na grana que terei de gastar se ele me obrigar a pagar pelo estrago. - Foi sem querer.
- Sério?
- SÓ QUE NÃO!!!
Rimos juntos. Ele ri do jeito como estou rindo. Eu estou rindo porque não sei como me portar diante dele. Por instantes, esqueço-me de que ele e Sweet acabaram de trepar, por horas.
Merda.
- Não trepamos.
- AH! PORRA! NÃO ME HUMILHA DIZENDO QUE FIZERAM AMOR! POR FAVOR!
- Não grita, Dess. Não sou surdo.
- VÁ PRA PUTA QUE TE PARIU! - Berro, irada. - Me deixa aqui...sozinha. - Suspiro ao me deitar, de volta à grama. Ele recosta a cabeça ao meu lado, procurando por minha mão que se entrelaça a dele. - Sou uma puta burra. Muito burra. - Concluo deixando que ele entrelace seus dedos aos meus.
- Vc é uma puta maravilhosa, insubstituível. Eu não transei com ela, Dess. - Confessa ele quando nossos olhos se encontram. Há um brilho em seu olhar enquanto ele me diz a verdade. Suponho... - Vc me falou sobre ela lá na casa de praia onde a gente...
- Tá! - Reviro os olhos, segurando o choro. - Pula essa parte. O que eu disse?
- Que ela precisava de grana. Sustenta duas filhas, daí, eu pensei que poderia ajudá-la de alguma forma e...
- Me humilhar daquele jeito??? Por quê??? O que eu fiz de mau pra vc??? Vc é um psicopata!!!
- Eu sei. Eu te faço mal.
- Faz mesmo. - Exalo, fitando as estrelas. - Que prazer vc sente entrando e saindo da minha vida?
- Nenhum. Eu quero sair da sua vida, mas não consigo. - Minhas costas estão congelando enquanto meu coração começa a se aquecer. Ele ergue seu tronco, retirando o paletó. - Senta. - Ordena-me ele. Eu o obedeço, sorrindo enquanto sou coberta pelo tecido fino, cheirando à maçã verde. Sou tão estúpida! - Te amo, Dess. Não sei o que dizer ou o que fazer quando estou perto de vc. Me ajuda. Me deixa ir embora ou me deixa ficar. - Rindo, histericamente, digo que isso é refrão de música.
- So let me out or let me in! - Bufando, critico. - Patético.
- Dess...- Sussurra sua boca contra a minha. Estou muito embriagada para xingar, logo, cuspo em sua camisa de linho. - Faz isso de novo e vai ser castigada. - Rindo, eu repito o que fiz. Cuspo em sua calça, na altura de seu pau que se mostra ereto dentro da cueca boxer, preta. - Por que abriu minha calça?
- Pra cuspir no seu pau...- Acho graça de minha voz entaramelada e da dificuldade em terminar a frase. Já não sei se estou assim por culpa do álcool ou por estar excitada ou pelo medo em perder o homem que ainda amo. - Eu não valho nada. - Assumo enquanto minha mão acaricia seu pau exposto sob a luz da lua. Por que estou fazendo isso? Não sei. Isso é patético e doentio. - Vc transou com ela?
- Não. Ela foi embora assim que vc sumiu do salão. Ela só me abraçou e me agradeceu por ser tão bom com ela. Só isso. - Seu sorriso cafajeste combina com seu olhar de luxúria. - Eu juro.
- Jura de dedinho? - Rindo, ele afirma.
- Juro de dedinho.
Erguemos nossos mindinhos e os enroscamos, selando nosso pacto de paz temporária. Reviro os olhos quando o ouço, pela trilionésima vez, chamar meu nome.
- Dess...
- Porra. Fala.
- Quero foder com vc. Escolha. Aqui ou lá em cima?
Antes de formular uma frase em minha mente, ele me carrega em seu colo até o saguão, passando pelo segurança que me vê gargalhando enquanto subimos as escadas. Jogo a cabeça para trás e, perplexa, identifico um, entre centenas de convidados, parado, olhando fixamente para mim.
Em sua forma demoníaca, Ga'al ergue sua taça, sendo louvado por muitos que o enxergam assim como eu. Então, leio seus lábios quando ele fala baixinho.
- Não vou desistir de vc.