'Dess - Uma História Interessante'

'Dess - Uma História Interessante'
AMO ESCREVER

CAPÍTULO 11 - 'AINDA QUE EU ANDE PELO VALE DA SOMBRA DA MORTE'










 

- Meu filho!?

- Está bem. Vc tem sorte.

- Sorte? Eu?

- Sim. - Atesta o médico enquanto verifica minha pressão arterial. - Não fale agora, por favor.

- Como não falar!? O que aconteceu comigo!? 

- Se vc não se calar, eu não vou conseguir aferir sua pressão. 

- Eu não me importo. - Protesto, erguendo meu tronco, observando os detalhes do quarto. - Quero saber sobre o meu filho. Eu não me lembro de como vim parar aqui.

Alheio ao meu sofrimento, ele pousa o estetoscópio gelado em minhas costas, pedindo que eu inspire e expire. Toco em minha barriga. Reparo os arranhões no dorso de minhas mãos. Deixo escapar um palavrão. O médico sorri. Que bom. Sinal de que não está morto. Aproveito sua súbita simpatia e volto a perguntar.

- Como está o meu filho? O que houve comigo?

- Muitas perguntas. - Diz ele, examinando algo em meu rosto. - Dói?

- Sim! O que foi isso!?

- Nada que vá deixar cicatrizes. - Responde-me o médico, secamente. Odeio médicos ríspidos. Vc já assistiu "Patch Adams"??? Deveria!!! - Vai doer um pouco...

- O quê!? Ui!!!

- O ferimento na testa.

- Como apareceu aí!?

- Devido ao tombo. 

- Que tombo!? 

- Muitas perguntas...

- Por San Juan Diego!!! Vc poderia demonstrar um pouquinho de empatia pela dor do próximo!?

- Não. Eu preciso ser frio. 

- Quem te disse isso!? 

- Minha experiência. - Reviro os olhos e sinto uma forte dor na cabeça ao resmungar. 

- Sua experiência!? Fala sério! Vc lida com cadáveres!? - Rindo, ele responde que não. - Quantos anos vc tem? 

- Quer mesmo saber? - Pergunta-me ele, sorrindo. Um sorriso plácido. - Sou muito mais velho do que vc pensa.

- Duvido muito. Quantos? - De olhos fechados, aguardo por sua resposta enquanto ele apalpa minha cabeça. - Não vai responder?

- Sente dor aqui?

- Por que sentiria dor na lateral da cabeça?

- Porque a pancada foi forte. 

- Que pancada!?

- De sua cabeça contra o asfalto.

- Como eu fui parar no asfalto!?

- Logo após ser empurrada.

- Por quem!?


- Pelo homem que te salvou.

- Jesus, Maria e José!!! Quem me salvou!? E de quê!?

- De ser atropelada por um carro. 

- Cacete! Como diz isso assim!? 

- Vc me perguntou. Eu respondi, Adessa.

- Como sabe o meu nome!?

- Está no seu prontuário. Pelo que eu ouvi, o homem te empurrou. Vc voou longe enquanto ele...

- Ele foi socorrido. O homem foi socorrido a tempo.

- Aiden!!! O que faz aqui???

- Vim te ver, querida.

- Não pode. - Contesta o médico, em pé, do lado esquerdo do meu leito. - Eu ainda não a liberei para visitas.

- Ela me parece bem. - Assevera Aiden, em pé, à minha direita. Sento-me na cama, recostando-me na cabeceira, em última inútil tentativa em raciocinar. Intrigada, pergunto sem obter respostas.

- Vcs se conhecem!?

- Quem decide se ela está bem ou não, sou eu. - Argumenta o médico com os olhos faiscantes...ou eu ainda estou dopada??? - Por favor, pode se retirar? Quando eu terminar, eu lhe chamo.

- Mas eu... 

- Saia agora! - Ordena o homem alto e forte, com jaleco branco, apontando para a porta. Sua voz grave e alta ecoa no quarto com paredes verdes e uma grande janela por onde o vento ruge. - Não ouviu!? Saia agora! É uma ordem!


Por que eu tenho a absurda impressão de que ambos se conhecem e se odeiam mutuamente? Porque eles se conhecem, idiota. De onde!? Não sei! Então não me chame de idiota! E cala a boca! Ele vai pensar que sou louca!

- Vcs se conhecem???

- Nunca o vi antes. - Diz o médico, serenamente, após a saída truculenta de Aiden. - O que ele é seu?

- Um amigo. Eu acho...sei lá.

- Escolha melhor seus amigos. 

- Por que diz isso?

- Por nada. Deixa pra lá.

- O que tem contra ele!? E como está o meu filho!?

Retirando o jaleco, ele se senta ao meu lado e, segurando minha mão, finalmente, responde às minhas perguntas.



- Seu filho está bem. Não sofreu com a queda, ainda que não se possa dizer o mesmo quanto ao seu estado emocional. Um susto dessa proporção é sentido pelo feto. - Incomodada, arregalo os olhos e indago.

- O que eu faço!? Meu filho não pode ter traumas!

- Não se preocupe. Vc o ama. Nada como o carinho materno para acalmar o bebê.

- Não vá ainda! Fica! Vc não me respondeu!

- Sobre?

- De onde conhece Aiden?

- Eu não disse que o conhecia...

- Putz! Isso tá parecendo conversa de bêbado! Eu senti que vcs se conhecem! Havia rancor no ar...

- Um dia, vc vai entender. Por enquanto, vigia teus pensamentos e não aceite nada de estranhos.



- Não entendi...- Um beijo em minha cabeça dolorida e ele se despede, sorrindo. - Não vai. Vc me faz bem. Não tenho medo quando está comigo.

- Estarei sempre contigo. Basta chamar por meu nome.

- Ei! - Grito atrelada à cama e ao soro que goteja acima de minha cabeça. - Não feche a porta! Qual é o seu nome!?

- Miguel! - Grita ele, do corredor. Extasiada, volto ao dia do enterro de meu primeiro filho quando o encontrara pela primeira vez. Como eu não o reconheci!? Puta que pariu! Miguel, o Arcanjo, diante de mim e eu não percebi nada! Burra! Eu não vou falar nada já que vc percebeu a burrice! E vc não foi capaz de me avisar que ele era um anjo!? Vc me pediu para calar a boca. Eu te obedeci. - Burra! Por que não me avisou!? O que ele quis dizer com 'não aceite nada de estranhos'!? Quem foi que me empurrou e me salvou!?

- Isso não importa, meu bem. Vc e seu filho estão ótimos. Por que se preocupar com bobagens?

- Aiden! Vc de novo!?

- Nossa. Perdão. Eu posso sair e voltar em outro dia.

- Não. Desculpa. - Confusa, solto o ar de meus pulmões, pela boca. Forçando um sorriso, pergunto. - Por que o médico não gostou de vc!?

- Não faço ideia. Talvez inveja por eu ser bonito!?

- Não seja patético. Ele é tão bonito quanto vc e quanto o meu...

- Seu?

É claro! Foi ele! Só pode ter sido ele! Agora eu me lembro!

- Foi Vincenzo quem me empurrou!!! Ele deve estar machucado em algum hospital!!! Eu preciso ver o pai do meu filho!!! Me solta!!!

- Fica calma, Adessa! Vai perder o acesso!

- Eu preciso sair dessa cama! - Rosno. - Não tenta me impedir!

- Pensa antes no teu filho!

- Meu filho está bem! O pai dele não! Solta minhas mãos!

- Vou chamar a enfermeira se vc não se acalmar! Ouch! Vc me mordeu!?

- E vou tirar pedaços de seu braço se não me soltar! EU PRECISO VER O MEU VINCENZO! - Berro com os pés no chão. O quarto gira enquanto Aiden me mantem de pé. - Por que chamou essa vaca!? Não me toquem!



- Vc precisa descansar, criança. - Avisa a enfermeira sexy com os olhos lascivos. De onde surgiu essa coisa!? - Dos teus sonhos, meu bem. Eu surgi dos teus sonhos. Agora, vamos dormir...

- NÃO! AIDEN! ME AJUDA!

Tomada pela fúria e dopada por algo que se dilui no soro, volto ao leito. Deitada, chuto Aiden com meus pés. Ouço seu riso. Vejo seu olhar de triunfo antes de apagar.

"Vincenzo, eu vou te salvar"


Até hoje, não consigo compreender como Aiden me tirara daquele hospital sem
o consentimento de Miguel, meu anjo amigo. Não compreendo, igualmente, como nenhum dos funcionários admitira conhecer um médico negro, alto, belo e com um sorriso compassivo no rosto.
Ok. Eu até posso entender o sumiço de Miguel. Afinal, é um arcanjo e não um médico de plantão. Mas...e a enfermeira sexy!? Não houve quem a reconhecesse. A enfermeira gorducha e bonachona negara a existência de outra enfermeira jovem e atraente, além de si mesma e de uma segunda, mais velha do que ela. Nenhuma se parecia com a vaca que me sedara naquela noite, anterior à minha 'alta' hospitalar. 

- Deixa pra lá. - Digo ao meu reflexo no espelho do meu quarto. - O que importa é que estamos em casa, filho. Vc tá perfeito. Eu tô perfeita. Graças ao seu pai, vc tá vivo, filho. Isso quer dizer que ele ama a gente...de verdade. Amanhã mesmo a gente vai procurar e achar seu pai. Ok?


- Já fomos a vários hospitais, meu anjo. Vc não pode se cansar.

- Doc, eu não tô doente. Eu tô grávida. Não vou parar até encontrar Vincenzo. Ele precisa de mim. Eu sei. Eu sinto.

- Pra onde vamos agora? - Pergunta-me Doc, exausto de tanto dirigir. - Não tenho ideia de onde procurar. A não ser...

- Que cara é essa!? Fala, Doc! - Cerrando os olhos, ele move a cabeça como quem espanta um mau pensamento. - Doc! Não se atreva a pensar nisso! Ele tá vivo!

- Filha, já o procuramos em todos os hospitais da cidade.

- E voltamos ao ponto de partida. - Comento, desanimada. - De volta ao meu bairro.

- Não vamos desistir, Adessa.

- Valeu, Doc. - Agradeço, enxugando minhas lágrimas. - Sem vc, eu não vou conseguir. Por que tá me olhando desse jeito?

- Infelizmente, precisamos procurar em outros lugares, além de hospitais.

- Não! Não mesmo! - Desespero-me. - Eu me nego a procurar pelo pai do meu filho em lugar de gente morta, Doc! Ele tá vivo! Ele tá vivo!

- Me desculpa...- Chorando copiosamente, eu me deixo abraçar por Doc até me acalmar. Abro os olhos e, confiante, sorrio. - O que houve, filha?

- Olha ali! - Aponto para um ponto atrás de Doc que abre a janela do carro e, sem nada entender, pergunta. 

- O que tem ali?

- O carro do João, amigo de Vincenzo! Isso deve ser um sinal! - Exulto enquanto abro a porta do carona e corro em direção à casa com a fachada em tijolinhos, próxima ao galpão de boxe. - Vem! - Aceno para Doc que me pede para esperá-lo. - Ele tá aqui! Eu sinto!

- Espera, Adessa! Não grita!

- Por que não!? - Indago, abismada, agarrada ao portão em ferro. - Ele deve estar aqui, Doc! João é o melhor amigo de Vincenzo! Se tem alguém com ele, é o João!

- Adessa,  não!!!

- JOÃO! SOU EU! ADESSA!

Aperto a campainha enquanto volto a gritar. Doc arregala seus olhos inquietos sem conseguir conter meu ímpeto em abrir o portão à força.

- Adessa, não! Fique aqui e eu entro!

- Do quem tem medo!? - Pergunto a ele que me impede de passar. - Sai, Doc! O pai do meu filho tá aqui! Eu sinto seu cheiro! Olha! - Exultante, forço a mão de Doc a tocar em minha barriga e sentir meu filho se mover. Chorando de alegria, questiono. - Tem alguma dúvida de que o pai dele tá aí dentro!? Até o nosso filho sabe disso!

- Não entra! - Ordena-me Doc, receoso, olhando ao redor. - Por favor, meu anjo! Fique aqui fora! Vc não pode ter fortes emoções! Pensa em seu filho!

- Cacete, Doc! - Empurro-o com a lateral de meu corpo e, antes de cruzar o portal da sala e invadir a casa, percebo o olhar incisivo de Doc sobre um ponto na calçada. - Do que tem medo!? Ele tá vivo! Vem!

Puxando-me pelo antebraço, Doc  suplica.

- Fica, filha. Eu vou.

Impulsiva, reativa e inconsequente, respondo sem pensar. Sem tentar compreender a advertência no olhar de meu melhor amigo.

- Nunca! Ele vai gostar de me ver, Doc! De ver o filho que ele salvou! Vem!

Esperançosa, passo pela sala de estar e, ouvindo um burburinho no fundo do corredor, sigo minha intuição. Doc vem logo atrás, insistindo que eu o deixe me guiar. 

- Vc nunca esteve aqui, Doc!

- E vc já esteve!?

- Não preciso! - Respondo, eletrizada. - Sinto o cheiro de maçã verde daqui! Vincenzo! Sou eu!

- Dess!? - Ouço sua voz rouca, fraca, antes de abrir a porta do quarto num solavanco. 

- Como nos encontrou...amiga?



Pisco por várias vezes antes de fixar meu olhar incrédulo na mulher que serve um prato de sopa ao pai do meu filho. Vincenzo me encara com espanto, medo e alegria. Doc me ampara enquanto inspiro e expiro, procurando não me esborrachar no chão. Não. Agora não é hora de desmaiar, sua idiota! Creio que sabe o que deve ser feito, não é!? SEI! Meu sangue sobe à cabeça enquanto Vincenzo me pede para ficar calma.

- Não é o que vc tá pensando! - Grita ele quando salto sobre Sweet que tomba da cadeira com prato e sopa juntos. Monto sobre sua barriga irritantemente 'definida', ostentando um piercing. Ainda mais aturdida e enciumada, cravo minhas mãos em seus cabelos, puxando-os até que ela comece a berrar de dor. Suas mãos me prendem pelos pulsos quando acerto sua testa com o topo de minha cabeça. BINGO! Seu sangue verte da ferida aberta. Não sei o que estou fazendo. Estou reagindo à cena que vira assim que abrira a porta. Vincenzo sorria para Sweet antes de se assustar ao me reconhecer. O que Sweet e ele estão fazendo, juntos, na casa de João!? E sozinhos!?

- ME SOLTA, SUA LOUCA!

- PIRANHA! DEIXA O PAI DO MEU FILHO EM PAZ!

- ELE ME QUIS, SUA PUTA BURRA! ELE ME QUIS!

Recuo, mortalmente ferida. Doc me puxa para si, afastando-me de ambos. Vincenzo chama por meu nome. Mal consigo vê-lo de tanta raiva...ódio. 

- Dess, raciocina!

- Eu te procurei por toda cidade, Vincenzo! Doc e eu estávamos preocupados com vc e vc tá com essa puta!?

- Raciocina, pelo amor de Deus! Olha a minha perna! Está quebrada e engessada! O que vc acha que eu posso fazer nesse estado, Dess!

- TUDO!!! - Respondo, histérica.

- Não, Dess...



Confusa, fraquejo. Doc me impede de ir até Vincenzo. 

- Vamos voltar outro dia, Adessa. - Sussurra-me ele enquanto Sweet se ergue, absolutamente devastada. Mechas de seus cabelos se espalham pelo chão coberto pela sopa enquanto meu coração parece ter diminuído de tamanho. - Vamos...- Insiste Doc quando Vincenzo implora.

- Dess, conversa comigo. Eu preciso te explicar. Não houve nada aqui.

- Houve sim! - Protesta Sweet, enraivecida. - Não minta!

- Cala a boca! - Rosna Vincenzo, mancando em minha direção. - Dess, me ouve!

- Fica longe. - Peço. - Não fala nada agora. Eu não vou te escutar. 

- Amor, eu te empurrei...

- Eu sei. - Reconheço, magoada. - Eu me lembro de tudo. Vc me empurrou e me salvou de algo pior. Vc salvou seu filho da morte. Então pensei que significasse alguma coisa pra vc.

- E significa, porra! Eu tô aqui porque não queria que aquele cara viesse até mim!

- Que cara, Vincenzo!? - Sweet ainda tenta catar os fios sujos dos apliques de seu cabelo enquanto Vincenzo toca em minhas mãos. Doc me puxa para si. Eu me solto de Doc e me deixo tocar por Vincenzo. Eu preciso conhecer a verdade, mesmo que a verdade mate o que sinto por ele. - De quem tá falando!?

- Do Aiden...- Rosna Sweet, deformada pela cólera. - Aiden e o 'seu' Vincenzo se conhecem. Vc sabia? Eles se odeiam.

- Como ela sabe disso? - Pergunto, sentindo-me ainda mais distante de Vincenzo. Quase sem voz, indago. - Como essa mulher surgiu em sua vida, Vincenzo? Como ela sabe de coisas que eu não sei? Desde quando vcs são amigos a ponto de vc se esconder de mim e aceitar ajuda dela?

- Dess, não é o que vc pensa.

- Não mesmo. - Ironiza Sweet, inflando as narinas. - Vc não faz ideia do que rola aqui, amiga.

- Cala a boca! - Grita Vincenzo, furioso, a perna engessada e, no rosto, diversas escoriações. - Fica quieta ou eu mesmo vou te meter a porrada!



- Não foi o que vc disse agora há pouco. - Um riso sarcástico e ela continua. - Não foi isso o que me disse naquela noite, Vincenzo. Vc me disse pra me mexer com força. Não se lembra?

- Eu vou te fazer calar essa boca! - Ameaça Vincenzo, transtornado. Recuo, aterrorizada. Doc me abraça enquanto Sweet o provoca. 

- É disso que vc gosta. De bater em mulher. É por isso que me procura, né? Porque eu deixo que faça o que quiser comigo...- Bem próxima ao rosto de Vincenzo, Sweet fala num tom em que todos possam ouvir. - É por isso que fode comigo, né? Gostoso...

- CHEGA! - Grito engolindo meu choro. Com a voz embargada, aviso. - Se me procurar outra vez, eu te mato. Eu juro. Fica com ela. Vcs dois se merecem...

- DESS, NÃO!

Corro até a porta da sala. Esbarro em João. 

- Adessa, vc tá bem!?

- Por que, João!? - Pergunto, aos prantos. - Por que deixou que essa mulher entrasse em sua casa e ficasse com ele!?

- Que mulher, Adessa!? Eu saí pra comprar remédios pra ele...

- NÃO! - Desvencilho-me de sua mão livre. A outra segura um saco com a propaganda de uma drogaria famosa. - EU CONFIEI EM VC, MAS...- Olho em seus olhos e, entre soluços, considero. - Vc não tem culpa. Talvez nem saiba quem é o seu amigo. Aquele monstro.

- Espera, Adessa! Não vai! Ele te esperou por tanto tempo!

Parte minha quer sumir dali. A outra parte quer ouvir o que João tem a dizer.

- Por que ele se escondeu aqui, João!? - Choramingo, dentro do carro de Doc. Vincenzo surge, arrastando-se apoiado em uma bengala. Expressando tristeza, ele se aproxima de mim, antes de Doc ligar o motor do carro e acelerar. Quase pude tocar em sua mão estendida. Pelo retrovisor, eu o vejo se apoiar em João e berrar num desespero.

- EU PRECISEI ME ESCONDER PRA NÃO MORRER! DESS, EU TE AMO! EU TE AMO, CARALHO! VOLTA!



Doc me leva de volta ao meu apartamento, embora tenha insistido para que meu filho e eu dormíssemos em sua casa. 

- Vou ficar bem, Doc. - Digo num fio de voz, acuada em meu sofá. - Como sabia que Sweet estaria lá?

- Eu vi o carro dela. Tentei te afastar de lá, mas vc não me ouviu...

- Como sempre. Não é, Doc? - Assoo o nariz e concluo. - Eu preciso parar de ser impulsiva.

- Precisa, filha. Vc quase se machucou hoje. Quase machucou meu netinho. - Abrindo um sorriso diante do sorriso iluminado de Doc, minto.

- Eu vou ficar bem, amigo.

- Não vai não, filha. Vai sofrer sozinha. Amigos são para esses momentos. Vamos lá pra casa. Adele e eu te amamos.

- Obrigada, amigo. Só quero me deitar e dormir...pra sempre.

- Não vá fazer besteira, Adessa! - Alerta-me ele, assustado, os olhos úmidos. Sentado ao meu lado, ele me abraça forte e, prendendo o choro, faz um pedido. - Me promete que não vai fazer besteira!?

- Me matar?

- Nem brincando fale isso. - Diz ele fazendo o sinal da cruz. Lembro-me de Vincenzo. De Sweet. De tudo o que acaba de acontecer. - No que tá pensando?

- Em vingança. - Rosno. - Mas fica tranquilo. A última coisa em que penso é em me matar. Meu filho não merece isso. Ele vai viver longe do pai. Tô pensando em vender esse apartamento e sair dessa cidade...desse país. Não posso mais viver perto daquele homem. Eu o amo, mas ele me faz muito mal. Preciso proteger meu filho.

- Concordo. - Beijando minha testa, ele argumenta. - Vamos sentir sua falta, mas acredito que essa é a melhor saída.

- É sim.

- Durma em paz. Me liga pela manhã...por favor.

- Ligo...

Doc me acena. Um aceno triste antes de entrar no elevador e me deixar sozinha com meu filho e uma imensa tristeza no coração partido.




Ainda ouvindo a voz de Vincenzo gritando por mim, sento-me na varanda e, chorando convulsivamente, pergunto-me se existe alguém nos outros apartamentos que esteja sofrendo tanto quanto eu.

Assusto-me com a campainha tocando. Quem poderia ser!? Não é Vincenzo! Ele não pode andar! Ou será que pode!? Doc se esqueceu de alguma coisa!?

- Quem é!? 
- Sou eu, querida. Abra, por favor.
- Aiden??? Como conseguiu passar pelo porteiro!? Por que não tocou o interfone!? - Pergunto contra a porta.
- O porteiro me deixou subir. Eu preciso te ver.
- Pra quê!? Eu não quero ver ninguém! Vá embora!
- Abra a porta...- Pede-me ele num tom baixo. - Eu quero te ver. Abra.

Abro.

- Eu já ia dormir. - Minto. - O que quer?
- Que vc fique bem.
- Por que não entra? Já abri a porta.
- Vc precisa me convidar.
- Agora vc é um vampiro!?

Seu riso me faz rir...um pouco.

- Adessa, vc é espetacular. Mesmo triste, vc é capaz de me fazer rir.
- Não me toque...por favor. - Recuo. - Eu não tô bem. Dá pra entrar ou vai ficar aí, no corredor?
- Me convida.
- Aiii...- Reviro os olhos e, irritada, resmungo. - Entre, Nosferatu. Quer uma xícara de chá?
- Aceito. Desde que eu prepare uma para vc.

Desconfiada, eu o olho de esguelha. Dou de ombros, caminhando até a cozinha, resmungando um 'Então tá'.



Parecendo conhecê-la desde sempre, Aiden acende uma das bocas do fogão e põe a água para ferver no bule. 
- Camomila ou Erva-Doce?
- Camomila. - Respondo sem emoção. Sentada à mesa, ainda estranho sua intimidade com meus armários e o que há dentro deles. - Como sabe onde guardo meus chás?
- Intuição, darling.


- Está gostoso?
- Ai. Por favor. Não repita essa palavra por uns mil anos. - Resmungo antes de experimentar o chá fumegante. - E não me pergunte o porquê. Eu não vou falar nada.
- Ok. - Assente ele, sentando-se sobre o tapete felpudo da sala de onde, há pouco dias, eu retirei a camisa suja de Vincenzo. Por que tudo me faz lembrar dele!? Porque vc ainda o ama! NÃO DEVERIA! AQUELE PORCO! - Adessa, volte à Terra.
- Nossa. Perdão. Eu tô sendo grosseira com vc...novamente.
- Don't worry, baby. Estou aqui para ser útil.
- Seu sotaque é tão fofo...
- Somente o sotaque?



Um gole de chá e me engasgo. Tossindo, pouso a xícara sobre a mesinha no centro da sala, observando seu olhar fixo em mim. Que porra é essa!? Desde quando ele gosta de mulheres!?
- Aiden! Vc tá esquisito!
- Estou? Como?
Desnorteada, parto o clima de sedução à foice.



- Desde quando vc e Vincenzo se conhecem!? 
- Não me lembro. Faz tanto tempo...- Responde-me ele, nostálgico, devolvendo-me a xícara. Outro gole do chá e, intrigada, questiono.
- Como não se lembra!? Que 'tanto tempo' é esse!? - Um de seus sorrisos no canto da boca e eu me sinto nua. Incomodada, alerto. - Porra! Não vem com esse papinho de outras vidas, outros séculos não! O que colocou nesse chá?
- O que tinha em sua cozinha.
- Tá estranho...mas...tá gostoso. Putz! - Faço uma careta e me corrijo. - Digo...saboroso. - Esvazio a xícara que cairia de minha mão se Aiden não se apressasse e a mantivesse em minha mão, dentro de sua mão. - Vc pode ficar um pouquinho mais afastado?
- Claro. O sofá é largo. Vc está bem?
- Não. Qual a cor de seus olhos, Aiden? Por que mudam de cor?
- Não sei do que tá falando, baby.
- Que história de 'baby' é essa? Vc nunca me chamou assim.
- Vc costumava gostar...
- Quando?
- Quer mesmo saber?
- Não! - Grito de dor, curvando meu tronco para frente. - Me ajuda, Aiden! Dói!
- Calma, querida. Eu estou aqui.

Olho em seus olhos escuros segundos antes de vomitar em sua blusa de linho. Sem se importar com a blusa imunda, ele me toma em seus braços e me leva ao banheiro. Em meio à dor no ventre e à confusão mental, eu o vejo abrir a tampa do vaso sanitário enquanto ajoelho-me e, impotente, vomito novamente. Suas mãos seguram meus cabelos. Sua voz entoa um cântico estranho, sinistro. De olhos fechados, revejo o homem do retrato na sala de exposição do teatro.


Outro jato de vômito e, socando seu abdômen com meu cotovelo, ergo-me, desorientada e fraca. Recosto-me à parede próxima à pia quando pergunto, amedrontada.

- Quem é vc!?
- Seu amigo. Seu grande amigo e protetor. Não vou deixar que nada te faça mal. Nada. Ninguém pode te impedir de ser feliz...

- O que colocou em meu chá!? - Mal termino de falar e vomito na pia. Minhas pernas fraquejam. Meus olhos embaçados pelas lágrimas ainda enxergam seu reflexo no espelho. Segurando-me pela cintura, Aiden acaricia minha barriga e, abrindo um sorriso sombrio, sussurra em meu ouvido.

- Vou te levar ao hospital. Vc está perdendo seu filho.
- Não deixa...- Imploro antes do choque ao ver o piso branco do banheiro coberto pelo sangue que escorre entre minhas pernas.




Uma pontada em meu útero seguida por fortes cólicas me fazem expulsar Aiden do banheiro. Atordoada, sento-me no vaso sanitário, antes de sentir meu filho escapar de mim. Escorrego no chão viscoso. Bato com a cabeça no piso. Meus cabelos estão sujos de sangue quando engatinho até a porta. Eu a abro e, aflita, suplico.

- Salva meu filho!

Aiden parece hesitar diante do que vê. Sem raciocinar, berro o mais alto que posso.

- ELE AINDA TÁ VIVO! PEGA!

Um olhar enigmático e Aiden me obedece, friamente. Ele resgata meu filho da água suja e o envolve em uma toalha enquanto ergo-me do chão, com dificuldade. Ainda que sem forças para me manter de pé, eu o tomo dos braços de Aiden que, num tom soturno, avisa-me. 

- Ele já está morto.
- NÃO ESTÁ! - Refuto, lavando seu rostinho debaixo da pia aberta. Ainda sinto seu coraçãozinho batendo. - Vou te salvar, meu amor. - Sussurro, caminhando...arrastando-me até a porta da sala, deixando um rastro de sangue por onde passo. Aiden, logo atrás de mim, repete.

- Ele está morto, Adessa. 
- Não está. - Rosno, trincando os dentes. - Por que diz isso!? Quer que ele morra!?
- Não quero que sofra. - Rebate ele com os olhos faiscantes. - Deixa ele comigo. Vc vai desmaiar a qualquer momento. Perdeu muito sangue.
- Se afasta dele...

Aviso antes de perder a consciência, no corredor, diante do elevador.



Acordo ao som dos gritos angustiados de Vincenzo. Abro os olhos e tudo o que sinto é um imenso vazio dentro de mim. Eu não o sinto em mim. Estou oca por dentro. Morta e meu filho não está em mim.
João apoia Vincenzo que caminha em minha direção. Procuro por Doc. Ele aperta minha mão. Seus olhos estão avermelhados. Provavelmente, de tanto chorar. Doc é uma criança grande. Assim como eu, chora por tudo e por todos.
Eu já não choro mais. Estou seca. Seca, vazia e oca por dentro.
Vincenzo beija o topo de minha cabeça e chora por nós dois e pelo filho que não soubera amar. O segundo filho que daria a esse homem que desconheço e que, mais uma vez, implora por meu perdão.

Eu o ignoro, voltando a dormir.





Deixo o hospital ao lado de Doc...sem meu filho. Hospedo-me em sua casa porque já não suporto as súplicas de Vincenzo pedindo que lhe dê outra chance. Será que ele não percebe que eu já não sou a mesma? Não tenho forças para retornar ao meu apartamento e rever o bercinho do meu filho, vazio. O papel de parede com a imagem de uma floresta por onde, vc e eu passearíamos de mãos dadas. Vc e eu, meu filho. 

Agora, não me resta mais nada além de tentar te encontrar do 'Outro Lado'.
Vc vai me reconhecer? Eu sei que vou te achar onde quer que esteja, filho. Vou te encontrar e ser feliz...pela primeira vez e, dessa vez, ninguém vai me impedir. Basta ter um pouco de paciência e fingir que estou bem.
- Tem certeza de que já pode ficar aqui, meu anjo?
- Já, Doc. Vc retirou tudo do quarto? 
- Como vc pediu...
- Não chora, Doc. Seja forte por mim. - Vou precisar de vc para encontrar o meu corpo e sepultá-lo ao lado do corpo de Antoine. Vou deixar tudo por escrito, meu grande amigo. - Ei. Olha pra mim.
- Filha, eu não quero te deixar sozinha. 
- Por que não, Doc?
- Não sei. Vc tem seu dom de ver as coisas quando toca em alguém e eu sinto o que vai no coração dos outros. O que vc está sentindo me assusta, Adessa. 
- Fica tranquilo, Doc. Eu vou ficar bem. - Minto. - Vou tomar um chá e dormir. Já faz tempo que tudo aconteceu.
- Não, filha. Um choque como o seu não se esquece. Vc vai lembrar disso pelo resto de sua vida. 
- Eu vou superar, Doc. - Minto novamente. - Não é o primeiro filho que perco.
- Vc não pode ficar sozinha...aqui...nesse apartamento onde tudo aconteceu.
- Não vou. Juro. - Como te contar que vou te deixar, amigo? Vou sentir saudades. - Aiden vem me visitar hoje. - Mais uma mentira. - Por que essa cara? Já sei. Vc não gosta dele.
- Ele não, Adessa. - Protesta Doc, contrariado. - Ele não. Eu não confio nele. - Somos dois, Doc.
- Ele não é mau e, de certa forma, afasta Vincenzo de mim.
- Dê uma chance a Vincenzo...
- Não, Doc. Esse homem não existe. Está morto. - Doc me abraça diante da porta da sala, aberta. - Eu tô cansada, Doc. Só quero dormir. 
- Filha, não faça bobagem. Por favor. Pode não parecer, mas vc ainda vai ser feliz. Eu juro. 
- Eu sei. - Do 'Outro Lado'...com meu filho. - Adeus, Doc.


Sorrio enquanto a porta do elevador se fecha, lentamente. Lentamente, volto ao meu apartamento e tranco a porta da sala. Sigo em direção ao quarto do meu filho. Está vazio. Vazio como eu. Visto meu pijama com a mesma estampa do pijaminha dele, guardado em minha gaveta.

Tem cheirinho de lavanda. 

- Me espera, filho. Falta pouco.




Escrevo duas cartas. Uma para Doc e outra para Vincenzo. Por que não mensagens no celular? 

- Porque não. Cartas são mais profundas e pessoais. E eu quero que Vincenzo sofra ao perceber as letras borradas por minhas lágrimas. - Ainda chorando, releio o que acabo de escrever:

"Vc me decepcionou de todas as maneiras e, de todas as maneiras, eu te odeio. Não quero morrer, mas preciso encontrar nosso filho. 
Ainda te amo.
Se existir outra vida, talvez a gente se encontre e, talvez, vc aprenda a me amar.
Adeus."

Coloco as cartas nos envelopes e os deixo sobre a mesinha de cabeceira, em madeira. Ainda não me decidi quanto a maneira de me livrar de todo esse peso. Penso em Doc e no quanto vai sofrer ao me encontrar sem vida, deitada, sobre os lençóis encharcados com meu sangue. Não quero que sofra. Ansiolíticos? Talvez não surtam efeito e eu vá parar em um leito de hospital, amparada por Vincenzo ou Aiden. Não. Não quero. Volto a pensar em cortar os pulsos. Como deve ser o corte? Horizontal ou vertical? Na dúvida, consulto o Google. Um aviso patético de que devo procurar por ajuda me irrita. Acesso vários links e acabo lendo um texto de algum autor que me incita a 'sangrar' através da escrita. Porra! Desisto de cortar os pulsos. Não posso perguntar ao meu vizinho do andar abaixo do meu porque, como médico, ele, certamente, vai suspeitar de meus propósitos. DIABOS! EU SÓ QUERO SABER SE O CORTE É VERTICAL OU HORIZONTAL!!! Não quer! Vc não quer se matar! Se quisesse, já o teria feito. Estúpida!
- Já pedi...ordenei que se calasse! Tá atrapalhando minha pesquisa! - Afogue-se na banheira, paspalha! - Boa ideia. Vou misturar vinho aos calmantes. Foi assim que Whitney Houston morreu. - Não. Não foi. - Como sabe!? Agora vc faz pesquisas em meu celular, sozinha!? Eu não sou somente uma voz, palerma! - Ah tá...cala a boca. Eu preciso ler o que aconteceu com ela. A voz dela era simplesmente sublime...- Na cozinha, acesso a reportagem e, ainda mais horrorizada, alcanço a garrafa de vinho na adega de madeira acima de minha cabeça. - Coitada...- Lastimo ainda lendo a matéria sobre a cantora. - Ela estava tão dopada que não sentiu a água super mega quente. A pele dela se desgrudou do corpo...- Exalo, elevando os olhos ao teto. - Meu filho, eu te amo, mas não quero morrer assim. Preciso verificar a temperatura da água na banheira antes de entrar nela e partir. - Vc não vai morrer! Whitney morreu porque ingeriu cocaína, maconha, antialérgicos e relaxante muscular! - Eu tenho relaxante muscular aqui em casa...em algum lugar. Eu vou achar. - E vai dormir feito um anjinho! PARABÉNS, SUA BURRA! - Me deixa em paz. Eu só quero morrer...em paz. Sem te ouvir. Há quanto tempo não bebia...- Suspiro ao ouvir o estampido da rolha saltando do gargalo. - Delicioso...

- Achei!

Mais uma notícia se abre diante do meus olhos arregalados. A luz do celular se expande ao meu redor. Apavorada, vejo a foto de um político tailandês cortando seus pulsos, na horizontal, como forma de protesto. Trilhões de anúncios cobrem a matéria, impedindo-me de conhecer os detalhes. Odeio esses anúncios! 

- Como eu posso ler!? - Não pode. Vc acha que vai encontrar a maneira correta de se matar 'navegando' na 'superfície'? É preciso mergulhar mais fundo. Na 'Deep Web' ou na 'Dark Web'. - Não quero! Tenho pavor desses lugares! Têm uma péssima energia! - Vc não tem navegador para acessar esses sites, mesmo que quisesse! - Como sabe de tudo isso, cacete!? Vc sou eu! É a minha voz interior! - Tem certeza disso? - VAI PRO INFERNO! - Grito, olhando ao meu redor. Estou mergulhada na escuridão, agarrada à garrafa de vinho. Caminho até a sala. Abro as janelas, deixando o ar frio entrar. Não quero que o cheiro do meu corpo em decomposição fique entranhado nas paredes. Arrepiada e amedrontada, permaneço imóvel enquanto sinto sua presença se aproximar de mim. - Não me toque. - Alerto num tom baixo. - Eu não permito.
- Seu filho partiu. Agora, já não tem tanto poder assim.
- Tenho sim. Meu filho tá vivo, em algum lugar e, eu ainda sou mãe. E é em nome desse amor que eu te expulso.
- Eu não vou te fazer mal. Só quero estar aqui.
- Eu não quero vc ao meu lado em meus últimos momentos de vida.
- Quem melhor do que eu para estar ao seu lado? Serei seu anfitrião, do 'Outro Lado'. Ninguém se atreverá a tocar em um fio de seu cabelo.
- Foi vc quem o matou?
- Não tenho tamanho poder. Mas foi melhor assim. Ele iria sofrer no mundo de vcs.
- Crápula! Como pode dizer isso!? Se afasta de mim! 
- Sinto sua falta, Adessa. Basta tomar as pílulas e beber do vinho...
- Não quero vc por perto. - Refuto, mergulhada na água morna da banheira. - E se eu não morrer?
- Vc vai. Eu te asseguro. Toma o último comprimido.
- Suma daqui. - Ordeno, sonolenta. - Em nome do Criador...- Bocejo antes de esvaziar a terceira taça de vinho. - Eu te expulso daqui. - Rindo, a voz ironiza.
- Vc não tem força para me expulsar, Adessa. Não sozinha. 


Vou cedendo ao sono, sentindo a vida se esvair de mim enquanto minha cabeça afunda na água. Submersa, arregalo os olhos diante de seu sorriso cativante. Sua voz doce me diz.

"Não é a sua hora, mamãe. Ainda precisa me encontrar. Acorda!"

"Encontrar!? Onde!?"

"Lá fora, mãe. Lá fora! Acorda!"

Um sopro de vida me faz querer voltar à superfície. Debato-me na água enquanto luto contra uma imensa mão em meu diafragma, forçando-me para baixo. Atormentada, engulo água da banheira que invade minhas narinas. Uma dor aguda 'queima' minhas vias aéreas e os pulmões. Borbulho ao gritar. Bolhas d'água se agitam diante dos meus olhos abertos. Grito de pavor ao reconhecer o dono da voz que me incitara à morte. Seu rosto deformado pela água em movimento expressa uma profunda satisfação. Estou perdendo a batalha contra Ga'al que me quer ao seu lado...do 'Outro Lado'. Quero viver. Eu quero viver e reencontrar a criança que acaba de me sorrir. Ela precisa de mim! Como consigo pensar enquanto engulo água e sufoco??? EU QUERO VIVER!!! 


"Finja-se de morta, tia. Para de lutar!"

Aconselha-me Giulia, iluminada. Tão linda quanto era em vida. Devo estar morta ou louca. Já não sinto falta de ar. Respiro, tranquilamente, debaixo d'água. 

"Eu não quero morrer, filho. Me perdoa. Eu não quero morrer".

- Mais um pouco e estaremos juntos...pra sempre. - Diz Ga'al, vitorioso, retirando sua mão imensa do espaço entre meus seios. Cerro meus olhos e me deixo flutuar, num desânimo, quando ouço uma outra voz gritar.

- Não se eu puder evitar!

VINCENZO???

 - Idiota! Por que me dá tanto trabalho!?

Puxo o ar pela boca. Cuspo a água da garganta após receber sua massagem cardíaca. Estirada sobre o piso frio, estapeio seu rosto assim que recupero a memória. Ele me sorri, sereno e belo. Eu o odeio.
- Eu te amo. 
- Como sabia?
- Graças a Deus, vc voltou. - Diz Vincenzo, aliviado. - Nunca mais faça isso. - Pressionando os olhos, ele solta o ar dos pulmões, pela boca aberta. Seu olhos azuis e arregalados se fixam nos meus quando vocifera. -  Entendeu!? Nunca mais!
- Como conseguiu chegar...!?
- Com quem vc acha que conversava, Dess?
- Era vc!? Na cozinha!? Vc me incitou a tomar o vinho com ansiolíticos!?
- NÃO! - Grita ele, enfurecido, enquanto me carrega em seus braços em direção ao meu quarto. - EU ESTAVA TENTANDO GANHAR TEMPO E CHEGAR AQUI ANTES DE VC FAZER BESTEIRA!
- Não faz sentido. 
- Não mesmo! Me arrancar da cama e me fazer mancar até a sua banheira não faz sentido!

Acabo de voltar do mundo dos mortos e ele se preocupa consigo mesmo. Típico de narcisista.

- Porra, Dess! Para de pensar merda! Minha perna ainda não tá curada! Dói!
- É bom que doa mesmo! Vc merece muito mais! NÃO TOCA EM MIM!
- Eu preciso trocar sua roupa molhada. - Rosna ele. - Não vou fazer nada além disso.
- Por que não me quer mais? - Que diabos de pergunta é essa??? Não sei. Não estou raciocinando com seu corpo contra o meu. Eu ainda...- PORRA! NÃO ME TOCA!
- Palerma, eu te amo. Por que tentou se matar? Por que não acredita em mim? - Pergunta-me Vincenzo com lágrimas nos olhos. Olhos tão azuis e intensos que poderia me perder neles novamente. NÃO! NÃO POSSO! - Dess, vc precisa ser forte.
- Pra quê? Por quem? 
- Por ela.
- Quem!? 
- Ninguém...- Abotoando a blusa de meu pijama seco, ele parece evitar o meu olhar. Se eu tocá-lo agora, talvez conheça a verdade. O que aconteceu na noite da sopa? - NÃO SE AFASTA!
- Não me toca. - Diz ele, rancoroso. - Eu não sou um boneco para suas experiências.
- Vc tem medo de que eu veja o que aconteceu. - Lastimo. - Vc esteve com ela. Vc transou com Sweet. 
- Não. - Murmura ele, catando meu pijama molhado do chão. - Onde fica o cesto?


- Que pergunta imbecil!!! Estamos em meio a uma conversa que irá decidir nossas vidas e vc me pergunta sobre o cesto de roupas sujas???
- Dess, eu preciso me deitar. Onde fica a porra do cesto??? - Insiste ele expressando dor em seu semblante. Impulsiva, ergo-me da cama e enfio minha cabeça no espaço entre seu braço e seu tronco. - O que tá fazendo!?
- Cala a boca e coopera! Vem! Se apoia em mim!




Eu o conduzo até o pequeno sofá num dos cantos do meu quarto e, cuidadosamente, o faço se deitar. Calada, sem olhar em seus olhos, acomodo suas pernas em cima de almofadas. Pernas que me salvaram da morte. Pernas que salvaram nosso filho do choque contra o carro. Pernas que acaricio sob a calça jeans. - Por que vc nos afastou? Por que se juntou àquela mulher? Ele se foi e vc não estava aqui...
- Não pude, Dess.
- Por que não? - Questiono, ajoelhada, diante dele. - Por que se escondeu na casa do João?
- Não posso falar. - Lamenta ele.
- Por que não? Vc contou a Sweet e não pode contar pra mim!?
- Por que acredita em tudo o que ela diz!? Não vê que ela quer nos separar? - Um toque do dorso de sua mão em minha bochecha e quase posso me esquecer de tudo. Quase...- Se esqueça, Dess. Ela não é nada pra mim. Deixa eu voltar...
- Não posso. - Afirmo sem convicção. - Vc me faz mal.
- Aiden é o Mal.
Recuo, assustada. Sento-me na beirada da cama e, observando seu modo de me olhar, questiono.
- Como se conhecem? Por que vcs se odeiam? Não minta! - Alerto. - Ele já me disse que te conhece! - Engolindo em seco, ele responde.
- Eu o conheço. Fomos amigos durante um tempo.
- Quando!? Onde!?
- Na faculdade. Eu cursava Medicina. Ele...- Uma respiração sofrida e ele conclui. - Ele era um dos convidados a palestrar.
- Desde quando vc é médico, Vincenzo!?
- Dess! Pra ser psiquiatra é obrigatório se formar em Medicina antes!
- Eu não tenho que saber disso! Não me olhe como se eu fosse burra!
- Deveria saber! Vc não cursa Psicologia!?
- Eu tranquei, porra!
- Por quê!? Vc precisa sair dessa vida!
- Vá à merda!
- Vc sempre me xinga quando se sente encurralada e sem razão.
- E vc se acha o máximo por ter se formado em Psiquiatria!
- Eu não formei, idiota. Eu me graduei.
- Não ferra!
- Dess...
- Não me olha assim, estúpido!
- Para de brigar comigo...
- Para de mentir! Sobre o que Aiden palestrou!? Todo mundo nessa merda tem curso superior!?
- Vc fica linda com raiva...
- Sobre o quê!? - Berro, irada e envergonhada por não ter concluído meus estudos. - Ele era tão jovem quanto vc!?
- Sim. Não. Não sei. 
- Sim ou não!?
- Que diferença isso faz, Dess!?
- Por que tá nervoso!?
- Porque estou com dor e preocupado com vc!
- Não grita!
- Não estou gritando! - Grita ele. - Só não quero falar dele! Quero falar com vc!
- Por que João não viu Sweet entrar em seu quarto!? 
- Como???
- Eu tô enjoada...- Aviso, levando a mão à boca. - Não me olha agora.
- Dess, vc precisa pôr pra fora o que ingeriu...
- Não enfia esse dedo imundo em minha boca! Eeca! - Protesto antes de vomitar e...

Apagar.


Abro os olhos, sentindo a boca amarga. Confusa e lerda, procuro por ele.
- Eu tô aqui, amor.
- Não me chame de 'amor', bastardo. Por que tá sem camisa!?
- Vc a sujou com seu vômito. - Um de seus sorrisos inocentes e eu estou arfando. - É a segunda que suja, né?
- Não ria de mim...
- Isso não é um riso, idiota! - Defende-se Vincenzo, apontando para o próprio rosto. - É um sorriso!
- Um sorriso cafajeste! - Refuto, olhando-me no espelho. Um outro pijama??? - Vc tirou minha roupa novamente??? Quando???
- Enquanto vc dormia...
- Isso é nome de filme. - Resmungo, mergulhando no silêncio...por segundos. Obstinada, volto ao assunto. -Que tipo de relacionamento vcs têm!? Desde quando ela tem intimidade com vc pra te alimentar com sopinha!?
- Quem???
- Não me faça de boba! - Infernizada, grito. - Maria Odete!!! Mais conhecida como SWEET CHILD!!!





- Vc é patética. - Afirma ele, rindo. - O nome dela é Maria Odete? - Caçoa ele, mostrando suas covinhas, seus caninos proeminentes. De súbito, ele muda de expressão e, com seriedade, comenta. - Ela apareceu lá, Dess. Não me pergunte como. João foi comprar analgésicos. Não viu quando ela chegou.
- Como ela entrou!?
- Do mesmo jeito que vc e o Doc entraram. - Argumenta ele, parecendo estar calmo. - Eu estou calmo, Dess. Só estou com dor.
- Espera!
Reativamente idiota, salto da cama, cambaleando. Apoio-me na cômoda. Inspiro e expiro, sentindo falta de minha barriga arredondada. De meu filho. Engulo em seco e, minha voz embargada avisa, num tom baixo.
- Não se mova. Já volto.


Choro diante de meu reflexo no espelho do banheiro. Um choro baixo e dolorido. Acabo de tocar em Vincenzo e ver o que ele e Sweet fizeram na noite do leilão no 'Moulin Rouge'.
- Ele mentiu pra mim. - Digo a mim mesma. - Eles transaram. - Limpa esse rosto e leva o analgésico para ele. Agora. Vai. - Não vou conseguir esconder a raiva. - Não esconda. Faça o que tem que fazer e, depois, dê o analgésico. Entendeu? Sim. - Isso é por ter mentido pra mim! - Declaro segundos antes de cerrar os punhos e acertar seu queixo perfeito. Vincenzo urra de dor. Seus olhos indignados giram nas órbitas. Prendo o riso. Demonstro a raiva. - Bebe. - Ordeno oferecendo-lhe um copo com água e um comprimido para a dor. - E nunca mais minta pra mim.
- Do que tá falando? Vc é louca!
- Deveria ser. Ao menos, não teria que lidar com o que vejo. Com sua traição, seu bosta.
- Eu...eu eu...
- Não fala nada. Toma logo isso. Sua dor vai passar. A minha...não.
- Dess...
- Bebe e dorme.
- Vc ainda cuida de mim. Eu te amo.
- Eu também te amo, mas isso vai acabar. Dorme.


 
Vincenzo dormiu aqui em casa. Não poderia expulsá-lo sabendo que ele se arriscou por minha causa. Sua perna esquerda ainda requer cuidados. Mais uma vez, ele me salvou da morte. Por quê? Para que eu soubesse de seus desregramentos morais? De sua traição? Narcisistas não se sacrificam por ninguém. Isso é um fato. Logo, retiro Vincenzo da categoria 'Narcisista' e o classifico com 'Transtorno de Sadismo Sexual', consentido por Sweet, outra transtornada vagabunda. O que me faz lembrar de Enrico, o professor que sorri com os olhos. Ele parecia conhecer Vincenzo e até defendê-lo. Talvez todos se conheçam entre si em meu universo bizarro e, talvez, todos estejam rindo de mim, agora. Fui estupidamente burra em não me lembrar do conselho de Miguel, o Arcanjo. Ele foi bem claro ao dizer: "Não aceite nada de estranhos". Mas Aiden não era um estranho. Eu o conhecia e não vira mal algum em aceitar o chá. Tomara do chá preparado por ele e, logo em seguida, perdera meu filho...para sempre. Maldito! Eu vou me vingar! Por que ele mataria meu filho!? Não faz sentido...



- ESTÚPIDA! - Berro dentro do carro. Recosto minha cabeça ao volante enquanto aguardo a luz verde do semáforo. - Por que me salvou, Vincenzo? Eu deveria estar com meu filho, em outro mundo. Não aqui, dirigindo, sem rumo, em uma noite chuvosa, fria e solitária. - ESPERA! - Grito enquanto a janela ao meu lado se abre, vagarosamente. - O que quer!? - Pergunto rispidamente. - Por que tá na chuva!? Cadê sua mãe!?
- Sei lá! - Responde-me ela, abrindo um sorriso. Um sorriso que me cativa...instantaneamente. - Tá chorando, tia!? Leva uma bala pra parar de chorar! Uma é dez! Duas são vinte! - Gargalho diante de seus olhinhos brilhantes e ávidos. Sua pele molhada pela chuva. Seus cachinhos despenteados e mal tratados. - Fala alguma coisa, tia! O sinal abriu!
- Me espera ali! - Aponto para uma pequena praça onde um grupo de crianças a aguardam. Crianças tão sujas e carentes quanto ela por quem meu coração bate acelerado. - Estou indo! - Aviso, estacionando o carro próximo à praça. Levo a mão ao peito, arfando. Por que estou me sentindo assim? É somente mais uma criança abandonada nas ruas, vendendo drops de menta. - Ei, baixinha. Cadê o meu desconto? 



- Sei lá! - Rindo de sua gargalhada espontânea, agacho-me e, subitamente, eu a abraço. Ela me corresponde, beijando minha bochecha com seus lábios molhados e frios. Sorrindo, ela repete. - Um é dez. 
- E dois são vinte? Não deveria ser mais barato?
- Compra, tia. - Implora-me ela. - Se não comprar, meu pai vai me bater. 
- Onde ele tá!? - Pergunto sentindo uma fúria crescer dentro de mim enquanto meus olhos semicerrados o procuram ao redor. - Ele já te bateu alguma vez? 
- Não. Mas ele bate nos meus amigos. Compra, tia.
- Calma, meu anjo. Eu vou comprar. 

Prestes a erguê-la do chão, sou empurrada por mãos fortes e imensas. Caio contra o asfalto úmido enquanto a vejo chorar, arrastada por um homem enorme e truculento. 

- Larga a menina! - Ordeno, contendo meus impulsos selvagens. Imagens de Sweet alimentando Vincenzo e Vincenzo esmurrando Sweet enquanto a fode com força inundam minha mente atormentada. Eu odeio essa porra de dom que eu tenho! Ter que ver tudo! Tudo o que fizeram naquela noite! Tudo o que falaram! Gritaram! Seus gemidos! Seu sorriso! Ele sorriu para Sweeet!!! SORRIU COM SORRIA PRA MIM!!! QUE MERDA!!! - EU DISSE PRA LARGAR A MENINA!

- ELA TEM DONO! VAZA! - Grita, em resposta, o monstro com uma cicatriz em sua testa. 
- Vc é o pai dela!? - Pergunto, entre assustada e furiosa. - Eu vou te denunciar, seu filha da puta. Encosta nela e eu te mando pra cadeia! - Rindo, debochadamente, ele refuta.
- Pai!? Esses moleques não têm pais! Eu cuido deles!
- Ele bate na gente, tia! - Avisa uma das crianças que me cercam. 
- Tira ela daqui! - Pede-me um outro menino, os traços finos, os olhos tristes que me remetem a um tempo distante e feliz...- Ela não pode ficar aqui! Ele é mau! Leva ela daqui antes que seja tarde! Por favor!
- Quem é vc? Eu te conheço de algum lugar!?
- Não! - Grita ele, recuando, evitando o toque de meus dedos no ar. - Se não tirá-la daqui, ela terá o mesmo destino que o seu! Acorda!



Ergo-me do chão. Meus olhos atônitos o encaram segundos antes de ser agredido pelo monstro encapuzado. Retorno aos meus seis anos quando fora violentada pelo amigo de meu pai, então, deixo fluir o Mal que há em mim.







Abro os olhos e estou sufocando o verme abusador de crianças com um golpe 'mata-leão'. Vincenzo me ensinara enquanto estávamos na casa de praia e, ele, ainda era um homem normal...E NÃO DESEJAVA NINGUÉM ALÉM DE MIM!!! 

- FOGE! - Grito montada nas costas do verme covarde.

- Não vou sem vc, tia! - Choraminga a menina enquanto aperto a garganta do homem que se move de lado ao outro enquanto pragueja. Enquanto eu o esgano, penso no ranço...no ódio...na inveja que sinto por Sweet e seu corpo escultural, nua, instigando O MEU VINCENZO ANTES DE BEIJAR SUA BOCA!!! - MORRE, DESGRAÇADO!!! - Urro sob os pingos da chuva fina em meu rosto. Exaurida, sem forças nos braços, eu o largo. Agachada na calçada, aguardo, de olhos fechados, por seu chute com coturno. Creio ter encontrado meu fim quando ele uiva de dor. Abro os olhos, assombrada. Alguém acaba de me salvar ao jogar uma pedra contra a cabeça do monstro.

- Leva ela, tia! Leva logo! - Ordena-me, numa súplica, o menino com os olhos claros e uma postura de lorde inglês. Se meu filho tivesse nascido, talvez tivesse os mesmos olhos. Os olhos do pai. Talvez, ele e eu estivéssemos nessa mesma praça. Talvez, eu o estivesse esperando descer do 'escorregador infantil' em madeira. Talvez... - TIA!!! - Estalando os dedos entre meus olhos, ele me tira do transe e implora, num grito. - TIRA ELA DAQUI!!!

- Cla claro! - Exclamo, imóvel. - E vc!? Vai ficar!?
- Não se preocupa comigo, tia! Eu sei cuidar mim! Cuida da tua filha!
- Oi???


Puxando-me pela mão, a pequenina me guia até meu carro, sem largar a caixa de drops. Não há tempo para perguntas, logo, eu a jogo contra o banco do carona enquanto tento não ser pega pelo 'brutamontes' que vem em nossa direção com 'sangue nos olhos'.

- ACHEI! - Vibro de contentamento e uma quase excitação ao encontrar o 'taser' em meu porta-luvas e 'fritar' o verme que me chama de 'puta' sem ter noção de que isso não me afeta. Com o pé no acelerador, satisfeita, ao vê-lo no chão, imobilizado, clamo. - MORRE, SEU FILHO DA PUTA!




- Tia! Não fala palavrão! É feio! - Repreende-me a pequena, absolutamente adaptada ao meu carro. Ainda tremendo de medo, sem acreditar no que acabo de fazer, eu a vejo ligar o som e se mover feito uma minhoquinha. Penso no destino das crianças que não pudera salvar. Os olhos claros e pacíficos do 'menino lorde' me vêm à mente. O que ele quis dizer com 'Cuida da tua filha'??? - Gosto de música, tia.
- Eu tô vendo. - Sorrio enquanto dirijo. - Gosta de músicas antigas?
- Sim. Minha mãe gostava...
- Sua mãe...? - Fixando seus olhinhos amendoados em mim, ela explica.
- Ela tá com 'papai do céu', tia. 
- Qual o seu nome, meu anjo? - Pergunto, solidária. - Quantos anos vc tem?
- Antoine. Tenho quatro. - Diz ela, mostrando-me três de seus dedos. Volto a rir enquanto ela me orienta. -  Não é Antônia, tia. É Antoine. O 'I' tem som de 'A'. Foi minha mãe que disse. An-to-á-ne! - Diante de meus olhos incrédulos, ela pergunta. - O que a senhora tem, tia!? - Como ela pode ter o mesmo nome do meu filho!? Um nome raro nesse país! É um nome de origem francesa! Como alguém poderia dar esse nome à filha!? Ora, bolas! Alguém tão inteligente quanto vc! Ou vc se acha superior a alguém por ter mais grana!? NUNCA, IDIOTA! NÃO É ISSO! - Tia! Fala comigo!
- Seu nome é lindo, Antoine.
- Obrigada. - Diz ela, sorrindo. Um susto e ela arregala os olhinhos, apontando para o rádio. - Gosto dessa música, tia! Minha mãe cantava pra mim!

- 'You are my sunshine"??? Ela cantava pra vc??? - Eu cantava a mesma canção para o meu filho!!! - Tem certeza de que é essa música???
- Uh-huh...- Assume Antoine, orgulhosa. - Ela dizia que eu era...eu era...um...ai...ih! Eu não 'se' lembro! 
- 'Eu não me lembro'. - Corrijo-a antes de frear o carro, abruptamente, jogando-o contra o acostamento, impedindo-a de continuar a socar sua cabecinha com os punhos cerrados. Ela parece se irritar por não se lembrar, então, eu a ajudo.
- Vc era o raio de sol de sua mãe? 
- Isso, tia! Isso aí! Eu era o raio de sol da mamãe! Mas...


- Não chora, meu anjo. - Imploro, beijando sua testinha, suas bochechas, os cabelos sujos. Sentada em meu colo, ela me abraça e, fungando, diz sentir falta da mãe. - Eu sei. Eu sei como é, querida. Eu vou te ajudar. Vc quer dormir na casa da tia hoje? - Indago, tentando sorrir. - Eu vou comprar pizza pra gente comer.
- Uau! Eu quero, tia! Eu amo pizza, tia! Eu nunca comi pizza, mas deve ser simplesmente esplêndida! - Para tudo! 'simplesmente esplêndida'!? Vai me dizer que essa palavra faz parte do vocabulário de uma criança de rua!? A mesma palavra dita por Aiden antes do meu filho morrer e pelo professor Enrico e por alguém mais de quem não me lembro!? Não seja pedante e surtada! Ela é uma criança de rua...inteligente! Só isso! Aceite o que o Universo está lhe dando e, por favor, me deixa dormir! - Com quem a senhora fala, tia? Que voz é essa?
- Vc a ouve???
- Uh-huh. Tá com medo, tia?
- Não. - Minto. - Só estou nervosa, querida. A noite foi muito agitada, né?
- Foi sim. - Concorda ela, elevando os olhinhos. - A senhora matou o monstro.
- É...- Suspiro ainda triste por não ter podido salvar os outros. - Tomara que eu o tenha matado mesmo.
- Tia...- Sussurra ela. - Não fica triste não. 'Papai do céu' vai cuidar dos meus amiguinhos.
- Como sabe no que eu tô pensando!? 
- Sei lá. Não sei. Só sei que sei.
- Puta que pariu! A mesma frase de Enrico e Vincenzo!?
- Quem é Vincenzo, tia?
- Deixa pra lá. - Desconfiada, forço um sorriso ao responder. - Ninguém. Vc é especial, Antoine.
- Eu sei. - Afirma ela enquanto seco seus cabelos lavados e enxaguados, com uma das toalhas de meu filho. Vestindo uma de minhas camisolas curtas que cobrem seus pés, ela se olha no espelho e se admira. - Agora eu sou uma princesa, tia. Bem que minha mãe me falou...
- Falou o quê?
Agachada ao seu lado, ela me faz tombar contra o piso de madeira em meu quarto ao revelar, num murmúrio.
- Que eu ia encontrar uma nova mãe.
- "Eu iria encontrar uma nova mãe" .- Corrijo-a, de joelhos.
- Não, tia! A senhora não! Eu ia encontrar uma mãe pra mim! - Rindo do meu riso, ela me abraça. Não me lembro de ter sentido a paz que sinto agora. Fecho os olhos e me deixo abraçar por minutos, em silêncio. - Oi...- Sussurra-me ela, ressabiada. - Tem alguém aí?
- Sim, Antoine. Quer saber de uma coisa?


- Quero! - Vibra ela de boca cheia. Quase terminando de comer seu segundo pedaço de pizza, ela me pergunta. - Por que a senhora chora tanto?
- Porque eu te encontrei...meu anjo. - Respondo sentada à mesa da cozinha que volta a brilhar com sua presença. - Sua mãe tinha razão. Vc é um raio de sol.
- Eu sei...tia. - Assente ela enquanto mastiga. Vejo o interior de sua boquinha aberta. Penso no quanto terei de me esforçar por educá-la e...me sinto feliz.

Completa.

- Engula o que está em sua boca. Depois, coma outro pedaço. Ok?
- Ok. -  Concorda ela movendo a cabecinha. Ainda de boca cheia, ela volta a me surpreender. - Tive uma ideia! 
- Qual!?
- A senhora quer ser minha mãe?
- Mãe??? Eu??? Não posso!!! - Sou uma stripper, puta, solteira!!! Que juiz me concederia sua guarda??? - Não me olha assim, meu anjo. Não sei se...
- Vc quer, tia? - Insiste Antoine franzindo o cenho. - Quer ser minha mãe!? Vai dar tudo certo! Podes crer!
- Posso!? - Volto a rir de sua gíria antiga e de seu polegar em riste. - Tem certeza!?
- Tenho, tia. - Sua bochecha roça na minha enquanto me encho de alegria e confiança em um futuro feliz. - Podes crer. Meu tio disse que a senhora é bacana. 
- Que tio!?
- O Miguel. Eu gosto mais dele do que do outro. Mas o outro é mais engraçado. - Assustada e intrigada, e já acostumada ao fato de ter um 'serzinho' especial à minha frente, pergunto. 
- Existe outro tio com quem vc fala!?
- Existe. Mas ele disse pra não falar nada agora.
- Jesus!
- Não. Não é Jesus não, tia. - Inquieta, sentada em meu colo, ela insiste. - Quer ser minha mãe, tia?
Aos prantos, abro um sorriso e, arfando, respondo.
- Muito...
- Woohoo! - Vibra ela, batendo palminhas.

Inspiro e penso que, enfim, eu não estou só.



O irritante toque do celular indica que tenho novas mensagens. Abraçada a Antoine, leio uma delas: a que me paralisa por instantes.

"Posso conhecer nossa nova amiguinha?"

Porra! Que merda é essa!? Como ele...!?

Impulsionada por uma ardente vontade em viver e proteger Antoine, digito uma resposta e a envio:

"Não! Fique longe, Aiden, ou vai conhecer meu lado sombrio!"




Continua...





































































































































































































































CAPÍTULO 36 - SOZINHA

  Dessa vez, não vou culpá-lo pelo abandono. A culpa é minha. Eu o provoquei. Eu acordei o monstro que ainda habita nele. Vincenzo não é tão...