'Dess - Uma História Interessante'

'Dess - Uma História Interessante'
AMO ESCREVER

CAPÍTULO 12 - ANTOINE

 




Enfim, sou mãe. Enfim, posso exercer a maternidade que me fora negada por duas vezes. Enfim, alguém de quem eu possa cuidar. Alguém a quem doar meu amor sem esperar nada em troca. 

Alguém com quem me preocupar a cada minuto do meu dia. Alguém que devo sustentar até que ela mesma possa fazê-lo por conta própria. Alguém em quem pensar pelo resto de minhas vidas e, pelo resto de minhas vidas, eu vou te amar...Antoine.



Ok. Agora que divaguei, é preciso ser prática. Agora que sou mãe, não posso gastar tanto tempo pensando no que fazer. Eu preciso agir e encontrar uma maneira mais saudável e segura de ganhar dinheiro do que me expor no palco do "California". Voltar ao mundo da pornografia não consta da minha lista de opções. Não quero regredir e, talvez, mergulhar no mar imundo da Ninfomania...ou melhor, do "Transtorno de Desejo Sexual Hiperativo". Vincenzo, certamente, como Psiquiatra, iria me corrigir. Sério!? Alguém com "Transtorno de Sadismo Sexual" pode me corrigir em alguma coisa!? Patético. Uma "TDSH" que ainda ama um "TSS". Esquece. Para de pensar tanto! Isso cansa! Cala a boca. Preciso pensar no futuro da minha filha. ENTÃO, OLHA PARA O ESPELHO! Não quero.

Então...



Prosseguindo. Eu não posso me arriscar a ser vista por Antoine ou por seus amiguinhos do novo colégio onde a matriculei. Ou pior! Pelos pais dos amiguinhos de Antoine! Puta que pariu! Como está caro oferecer uma boa educação aos filhos! A mensalidade do colégio é quase o valor da mensalidade de um carro novo! Por que não a deixa estudar em colégio público? É bem mais barato! Porque não!!! Ela merece o melhor! Merece tudo o que eu não tive! E quando tua grana acabar!? Nossa grana, não é mesmo!? Ou agora vc deixou de ser a minha 'voz interior'!? Quem é vc, afinal!? Está dentro de mim ou fora!? NÃO SEJA PATÉTICA! NÃO É HORA DE PERGUNTAS EVASIVAS! Acorde e veja quem acaba de entrar no camarim! Sweet Child??? Eu não quero falar com ela. Não baixe a cabeça!!! ENCARE ESSA PIRANHA QUE ROUBOU O NOSSO HOMEM!!! Nosso!? PORRA! O dinheiro é meu e o homem é 'nosso'!? DECIDA-SE!!!

- MERDA! MIL VEZES MERDA! - Enfureço-me enquanto ela se aproxima, tão sorrateira quanto um rato. Acabo de borrar o meu batom.

- Quer que eu te ajude? - Ignoro Sweet e sua voz vacilante. Seus seios estão maiores ou é impressão minha!? Os meus costumavam ser maiores do que os dela! Agora estão praticamente do mesmo tamanho! Que merda!!! Vincenzo adorava meus seios volumosos!!! EU TE ODEIO, VINCENZO!!! ODEIO ESSA VACA!!! TÁ ME OLHANDO POR QUÊ!? - Amiga. Acorda.



- Não toca em mim. - Alerto num rosnado. - Me deixa quieta.

- Eu só queria ajudar...

- Não queira! - Inspiro rápida e profundamente, soltando o ar pela boca, os lábios avermelhados pelo contato áspero do papel toalha. Deveria esfregar na cara dela e não na sua. Concordo. - Eu me viro.

- Tá bom. - Diz ela, elevando os braços, na defensiva. - Vc que sabe. - Um silêncio constrangedor se instala entre as quatro paredes. Através do espelho, eu a vejo se sentar no sofá, incomodada com sua presença altiva. Volto a pensar e me certifico de que não vai dar. Não vai rolar. Definitivamente não vai rolar. Ter de conviver com Sweet, no 'California' é quase que insuportável. Saber que ela tivera o melhor e o pior do homem que ainda amo me faz ter pensamentos que jamais tivera antes. O Mal, em mim, parece ter conquistado um lugar sombrio e profundo.



Intuir que eles ainda se encontram. Que ele a abraça forte ao acordar. Que ainda se beijam como ele me beijava me faz querer arrancar com os dentes, os piercings em seus mamilos. Não de uma maneira erótica! NUNCA! Do tipo 'selvagem' mesmo! Lenta e dolorosamente!

Aimeudeus...eu não sou assim. 

- Merda! Eu não vou conseguir!



- Seu batom está borrado. - Observa Sweet.

- Assim como a tua cara vai ficar se me olhar novamente. - Rosno. - Fica longe.

- Por que tá com raiva de mim?

- Não sou cachorra pra ter raiva. - Rumino enquanto me visto para o show. De olhos fechados, esclareço. - Eu tô com nojo de vc. É muito diferente. Sai da minha frente, por favor!?

- Amiga...- Reagindo num impulso, eu a empurro com o meu quadril enquanto aviso, num tom baixo.

- Nunca mais me chama de 'amiga'. - Calçando minhas botas de cano alto, contendo o pior que há em mim, pergunto-me como ela pode ser tão dissimulada. Não quero. Não posso tocar nela e me conectar a ele! Como eu vou quebrar a sua cara, Sweet, sem ter que assistir ao que vocês dois fazem na cama!? Ele lava seus cabelos debaixo do chuveiro como fazia comigo!? Ele os enxagua!? Ele diz que te ama!? PORRA! - Me esquece! Não sou tua amiga e jamais voltarei a ser! Aquela panaca que te acolheu com carinho morreu!

Minto, voltando no Tempo...



HÁ ALGUNS ANOS


Acabo de sair do set de gravações. Estou exausta. Meu diretor pedira para que eu repetisse, por quatro vezes, a cena onde atuo com seis homens nus e seus paus eretos. Eles se revezaram em meu corpo sobre uma mesa de sinuca. Minhas costas doem de tanto ser sacolejada, usada, sacudida como uma boneca de pano, absolutamente vazia por dentro. 

O cachê é ótimo! 

Quantas mulheres podem ganhar, em um ano, o que eu ganho em um mês de filmagens!? Quantas mulheres estão em suas casas, agora, felizes, ao lado de seus filhos e marido, longe do perigo constante de ruas desertas em noites escuras e frias!? 

- Por que não cala a boca e me deixa pensar que sou feliz? - Porque não é! Não tem pai, mãe ou um homem para chamar de seu! - Não atrapalha meu raciocínio enquanto dirijo! - Sem filhos...amigos...amigas. CALA A BOCA! PISA NO FREIO! - Cacete...- O carro para, abruptamente. Exalo recostando minha testa ao volante. Minha mão trêmula liga o som do carro novo que acabo de quitar. Porra! Que saco! - Irritada, cato minha bolsa no banco traseiro, resmungando. - Cadê a porra desse celular que não para de tocar!? ALÔ! NÃO! NÃO TENHO VAGA NA AGENDA! - Inspiro e, baixando o tom da voz, continuo a falar com um de meus muitos clientes. - Claro. Assim que chegar à minha casa, eu falo contigo. Ok? Pra vc!? - Forço uma risada e concluo. - Sempre terei um tempinho. Eu amo trepar com vc. - Minto. - Ok. Nos falamos mais tarde. - Seu monte de merda! Eu odeio trepar com vc!  Arremesso meu celular contra a janela do carona. O vidro trinca. Eu xingo um palavrão. Engulo em seco, semicerrando os olhos. - Onde estão os meus óculos!? Não vá até lá! Aquilo não é da sua conta! - É SIM! - Escancaro a porta do carro e, correndo em sua direção, grito, comprimindo, com a mão direita, o frasco de spray de pimenta. - SE DER MAIS UM CHUTE NELA, EU TE ESTANCO NA PORRADA!

- Outra vagabunda!?

- Oi??? Falou comigo???



Não aguardo pela resposta do homem baixinho e brutal. Abro um sorriso sinistro enquanto aprecio o jato de pimenta se espalhar em seus olhos fechados e ardidos. Desorientado, ele cai contra o chão, ao lado da mulher em quem ele chutava, há poucos minutos.

Cacete. Ela vai precisar de alguns pontos no rosto. 

- Vem! 

- Pra onde!? Eu não posso ir! Ele vai me matar se não der o que ganhei hoje!

- Ele vai te matar de uma forma ou de outra! - Alerto, puxando-a pelo pulso. 

A velha e incômoda avalanche de visões aleatórias invade minha mente.



Eu a vejo se drogar enquanto o covarde que a espancava se diverte contando notas de cem. 

- Idiota! Por que não revidou!? Por que deixa que ele te trate desse jeito!? É seu cafetão!?

- Sim. - Assume ela sentada no banco do carona. - Ele não é mau. Só se descontrola quando não ganho muito.

- Não se atreva a defender um verme como aquele! - Irrito-me enquanto procuro por minha caixa de 'Primeiros Socorros'. Deve estar em algum lugar. Procure no porta-malas, idiota. Vc acaba de cometer um erro enorme. Maior do que o pau do seu amigo 'ator' de filmes pornôs. Não seja ridícula! Ela precisa de cuidados! E VC, DE UM ANALISTA! BURRA! DEPOIS NÃO DIGA QUE NÃO AVISEI! - Não se atreva a falar bem daquela 'coisinha'. - Retruco assim que lhe entrego um pacote de gaze e a vejo imobilizada. O belo rosto marcado por escoriações e feridas abertas. Pobrezinha. - Limpa seu rosto. Vai! Tá sangrando!

- Tô com medo. Ele sabe onde moro. Sabe que tenho filhas...

- Filhas!? Quantas!?

- Duas. - Diz ela, sorrindo, elevando os olhos verdes e inchados ao teto do meu carro. Há tanto amor em suas palavras...- São a minha vida. É por elas que eu trabalho com isso.

- Não coloque a culpa das merdas que faz em suas filhas! - Advirto-a ao volante. Penso no quão poderoso é o amor de mãe. Não quero isso em minha vida. Não agora. - Ei! Olha pra mim! Não chora!

- Ele vai te seguir...

- Tomara! Assim, economizo tempo e acabo logo com ele! Aquele verme escroto! Ele não vai tocar em vc! Ok!?

- E minhas filhas!? - Choraminga a garota loira e estupidamente burra. Não conhece os meus segredos!? Não conhece Ga'al e seus poderes!? Aquele homem que te espancou está morto! Capisce!? ENTENDEU!? Não há nada que eu peça a Ga'al que ele não cumpra! VAI SE FERRAR NOVAMENTE! NÃO SE ENVOLVA COM AQUELE DEMÔNIO! NÃO SE ENVOLVA COM ELA! - Olha pra mim! - Ordeno ao mesmo tempo em que estaciono o carro. Retiro a chave da ignição e, de súbito, pergunto. - Qual o seu nome?

- Maria Odete. - Sério!? Uma prostituta com esse nome!?

- Então...- Prendo um riso inconveniente. - Maria Odete! Preste atenção! - Meus dedos estão em seu queixo quando, movida por um absurdo sentimento de vingança, selo meu destino. - Vc não está sozinha. Suas filhas e vc vão se livrar daquele homem.

- Como???



- Não importa como! Ok!? - Deixe que Ga'al decida a melhor maneira de acabar com aquele bosta. - O que importa é que vc está livre dele e de sua violência.

- Eu não tenho como sustentar minhas filhas sem...

- Vc pode fazer programas com homens mais bacanas e ricos e pode ganhar uma graninha aqui também. - Aponto para os letreiros luminosos do 'California'. - Sabe dançar?



- Não. 

- Conhece a barra de 'pole dance'!?

- Hein???

- Ai! - Reviro os olhos, impaciente. - Esquece!

- Consegue servir cervejas na bandeja???

- Não sei se sei...- Puta que pariu! Facilita, né!?

- Não precisa. Basta tirar a roupa no palco e deixar rolar...

- Por que tá fazendo isso por mim? 

- Porque acredito que vc mereça. - Minto. Agi por impulso. Há algo em seu olhar que me incomoda. Faço por suas filhas. Aos prantos, ela me abraça. Correspondo ao seu abraço enquanto sussurro. - Vc vai precisar mudar esse nome, meu bem. Uma stripper com o nome de Maria Odete, ninguém merece. Pare de rir. Isso deve doer...

No rádio, rola a canção do "Guns N' Roses", o que me faz encontrar a solução para nosso pequeno problema.

A Música. Sempre a Música.



- Que tal "Sweet Child"?

- Quem???

- Vc, criatura!!! Não ria!!! É seu 'nome de guerra'!!! Tá doendo!?

- Dói. - Afirma ela, rindo. - Amei. O quer dizer?

- 'Doce criança'...ou algo parecido.

- Vc é um anjo. 

- Não sou um anjo não. - Se eu fosse um anjo, não seria atormentada por um demônio lascivo. - Não me agradeça. - Sorrio, encabulada. Eu verdadeiramente acreditei nas palavras que lhe dissera naquela noite. - Acho que seremos grandes amigas.

- Seremos. Pode acreditar.

E eu acreditei.

Eu me odeio.





Estou encantada com as filhas de Sweet Child, minha mais nova 'amiga de infância'. Ela e eu estamos muito unidas desde que começara a trabalhar no 'California', como garçonete. Com o tempo, o administrador da boate percebeu que Sweet tinha um super potencial em se 'doar', inclusive a ele, logo, passara ao palco, ainda que não soubesse dançar. Sweet Child tira suas roupas com extrema facilidade e termina seu show nas mãos de clientes escrotos que a usam e pagam bem por isso. Gosto de vê-la feliz. Reconheço que cuidar de duas filhas não é uma tarefa fácil. Doc ainda não se acostumou à sua presença. Conheço seu olhar desconfiado. Doc tem um imenso coração. Em breve, irá acolher Sweet como acolhera a mim quando chegara ao 'California' absolutamente desorientada e sozinha, há alguns anos. 

"Não se afeiçoe muito a ela", aconselhara-me Doc. Tarde demais. Amo suas filhas. São super inteligentes e doces como jujuba. 



- Devem ter puxado ao pai. - Comento enquanto aguardamos, ansiosas, que o garçom nos sirva à mesa da cantina. - Desde quando vc é inteligente, Sweet??? Puxaram ao pai sim! - Divirto-me com sua indignação. - A beleza é sua. A inteligência é do pai.

- Desde quando vc começou a gostar de crianças??? Vc odeia crianças!!! 

- Suas filhas são especiais...- Suspiro após uma crise de risos. Sentada do lado oposto ao das filhas de Sweet, eu as observo. Sweet Child está ao meu lado, incontrolavelmente excitada pelo garçom que, finalmente, nos traz a pizza gigantesca. - Meia muçarela, meia calabresa?

- Como vc pediu. - Um sorriso no canto da boca e, sem disfarçar sua preferência, ele coloca o primeiro pedaço em meu prato antes de servir Sweet que me fuzila com os olhos. - Mais alguma coisa? - Pergunta-me ele com um olhar lânguido. Gentilmente, agradeço e peço que corte o pedaço das crianças em quadradinhos. Ele volta a sorrir para mim como se eu o tivesse pedido em casamento. - Claro. O que vc quiser. - Talvez, se ele notasse a insatisfação colérica no rosto de Sweet, teria saído dali há mais tempo. - Quando quiser, é só chamar.



- Obrigada. Por enquanto é só. - Esclareço sem encará-lo. - Sweet! Quer pedir mais alguma coisa? - Incentivo-a a falar com o garçom bonitão, imaginando que não tenha a malícia que tenho como 'garota de programa' há mais tempo do que ela. Ledo engano. - Pode pedir. - Cochicho em seu ouvido. - Eu pago.

- Me traga uma garrafa do seu melhor vinho, por favor e, se quiser, o número do seu celular. - Abusada. Gosto disso. 

- Vc é fraca pra beber...- Advirto-a.

- Vc também!

- É por isso que não vou beber! - Rebato.

- Mas eu vou!

- Ok...

- Pode ir! Vai!

- Sweet! - Repreendo-a, envergonhada. 

- Ele não para de olhar pra vc! Vá embora! Traga o vinho!

- Sweet!!!



Incomodado com a agressividade de Sweet, o garçom se recolhe enquanto ela se desculpa por ter se descontrolado.

- Perdão, amiga. Eu não tô bem hoje.

- Eu tô vendo! Não se trata ninguém assim!

- A tia tem razão, mamãe. - Apoia-me a filha mais velha. - O moço ficou triste.

- Ficou triste porque é burro! - Abocanhando um pedaço da pizza de muçarela, pergunto, surpresa.

- Burro por quê?

- Vc sabe...- Rumina ela, visivelmente contrariada. Eu a conheço há pouco tempo. Entendo que tenha seus traumas e muitas obrigações como mãe. Foi exatamente para diminuir seu estresse que a convidara a jantar nessa cantina onde costumo vir sozinha. - Não me olha assim. Vc é a culpada.

- O que eu fiz, Sweet? - Sirvo pedaços de pizza à pequenina que me sorri. Um sorriso inocente e encantador. Por que sua mãe está afim de polemizar? - Dá pra esclarecer?

- Vc sabe que ele te conhece dos teus filmes, vídeos. Ele tá 'de quatro' por vc. - Por que sinto uma pitada de ciúmes em suas palavras? NÃO É CIÚME. É INVEJA, ESTÚPIDA. - Assim é fácil conquistar os homens. - Esbraveja ela com os cotovelos sobre a mesa. Magoada com seu comentário, eu me calo. Brinco com as crianças enquanto ela permanece alheia às filhas, de olho no garçom que nos traz o vinho. Um ligeiro olhar para mim e ele percebe minha intenção. Ele a serve antes de mim que rejeito o vinho pousando a mão sobre a taça.

- Obrigada. Vou dirigir.

- Responsabilidade é tudo.

- Pois é, né? - Dou de ombros, sorrindo. Sweet esvazia sua taça de uma só vez e, culpando o vinho, comete o primeiro erro de muitos.

- Por que não olha pra mim!? Não gosta de mulher!?

- Sweet, pelo amor de Deus, olha suas filhas. Para de gritar. - Atraindo a atenção de todos os clientes nas mesas ao redor, ela continua seu show de vulgaridade diante da perplexidade do homem com a garrafa de vinho na mão e, no rosto, um olhar de piedade. - Ela não tá acostumada a beber. - Justifico. - Vc poderia nos trazer a conta?

- Ainda não! - Outro gole e Sweet esvazia outra taça. Francamente decidida a acabar com a 'noite das meninas', ela se ergue da cadeira e, puxando o garçom pelo colarinho, indaga. - Vc não gosta de mulher!? Por que não me olha como olha pra ela!?

- Para, Sweet. - Sentada, travada, aviso num tom baixo. - Vc já passou dos limites. Suas filhas estão chorando. - Sem se importar com as crianças que se sentam em meu colo, ela insinua.

- Não gosta de mulheres ou conhece a minha amiga de algum lugar? De algum filme mais adulto?

Lívido, sob o olhar de reprovação de quase todos, ele responde, serenamente.

- Não costumo conhecer o que meus clientes fazem fora daqui. Eu os trato com educação e, por eles, sou bem tratado. Sua amiga é minha cliente há muito. Extremamente educada, simpática e compassiva, me ajudou em um momento difícil. Um momento em que quase rompi com minha esposa. Graças à sua amiga...- Uma pausa e ele me olha com lágrimas nos olhos. Engulo em seco, abraçando as filhas de Sweet que volta à cadeira, branca como cera. Insatisfeito, o pobre rapaz continua a me defender, deixando-a ainda mais desconcertada diante de todos. Do que ele está falando? Eu fiz algo por ele ? Por essa eu não esperava. - Graças a ela, minha esposa e eu estamos felizes e esperamos um filho que nascerá em breve. Eu nunca vi Adessa em outro lugar além daqui e, se a vir, saberei respeitá-la como ela sempre me respeitou. - Soltando o ar dos pulmões, ele me olha, constrangido e se despede. Mortificada pelo escândalo, pela tristeza das crianças e, principalmente, por ter visto um lado de Sweet que, até então, desconhecia, sigo até o carro, de mãos dadas à filha mais nova. A mais velha vem logo atrás, reprovando as atitudes de Sweet que chora...ou finge chorar. 



No estacionamento, esbarro em um homem com a cabeça coberta pelo capuz de seu casaco. Uma cruz dourada em seu peito reluz sob a luz fosca dos holofotes. O vento frio me traz seu perfume cítrico. Inspiro profundamente e uma dor no peito me faz parar e gritar por ele...em vão. Ele segue seu caminho até sumir na escuridão. Resmungo quando Sweet me desconecta dele e, com sua voz aveludada, choraminga.

- Perdão, amiga. Foi o vinho.

- Não. Não foi não. O álcool só faz aflorar o que temos dentro de cada um de nós. Mas...deixa pra lá. - Observando, pelo retrovisor interno, as crianças tristonhas, no banco traseiro do meu carro, proponho, fingindo entusiasmo. - Que tal um sorvete!? - Aos gritos eufóricos, elas dizem que sim. Dirijo sem olhar nos olhos de Sweet que, enxugando supostas lágrimas, promete.

- Isso nunca mais vai acontecer...amiga.

E eu, mais uma vez, acreditei.



Sweet conquistara, em definitivo, a minha confiança ao me defender de um ataque inesperado. Fora rápido demais. Eu não teria conseguido escapar ilesa se não fosse por sua intercessão. A esposa de um dos atores com quem contracenava no set de gravações, enciumada, quebra a garrafa de cerveja no balcão do bar cenográfico onde ele se prepara para 'atuar'...em mim. Com o gargalo em uma das mãos, ela avança em minha direção sem que eu perceba o perigo. A mulher teria me ferido com as pontas afiadas do que restara da garrafa caso Sweet não a empurrasse para longe, alertando-me com um grito. Num desespero, o diretor interrompe as filmagens enquanto Sweet cobre meu corpo nu com um dos roupões dispostos nos cabides. 

Então...tudo acontece com extrema rapidez.

A mulher ensandecida pelo ciúme lança um olhar decepcionado ao marido e, em seguida, corta a própria garganta. Jatos de sangue esguicham de sua 'jugular'. Meu amigo, o marido, se joga contra o corpo da mulher sem vida. Ajoelhado sobre o sangue da esposa, ela grita por seu nome. Recuo, desorientada. Em choque, vejo a figura medonha de Ga'al nos fundos da ampla sala. Por que ele faria algo assim!?

"Por vc", responde-me ele antes de sumir entre uma vasta neblina. 

- Amiga, vem comigo. - Meu corpo todo treme enquanto Sweet me guia, gentilmente, até o camarim onde posso chorar e me culpar pelo que acaba de acontecer. - Não foi sua culpa. A mulher era louca.

- Louca por ele...- Exalo num desânimo. Até quando terei de lidar com esse demônio!? Como tem tanto poder!? - Ele fez o mesmo com seu cafetão. - Penso alto.

- Quem!? Quem matou aquele homem, amiga!? 

- Foi suicídio. - Minto. - Não quero falar disso. Não agora. 

- Tá certo. - Dando de ombros, ela conclui. - Melhor assim. Aquele filho da puta precisava morrer mesmo. - E eu me atei ainda mais ao mal por sua culpa, Sweet! Foi vc quem quis. Eu disse que se arrependeria. Eu sei. - Não chora, amiga.

- Obrigada pelo que fez lá dentro. Vc salvou a minha vida.

- Vc fez o mesmo por mim. - Afirma Sweet, abrindo um sorriso esquisito ao meu reflexo no espelho. - Eu te amo.

- Também te amo. - Minto outra vez. Eu odeio mentir, mas há algo nela...- Eles estavam casados há pouco tempo. Por que ele não contou a verdade!? Pobrezinha! Deve ter sido terrível ver seu homem com outra, mesmo que profissionalmente!

- Não liga pra isso.

- Como não, Sweet!? - Aumento o tom da voz, indignada. - Ela morreu na nossa frente! Por minha culpa!

- A culpa foi dele que não contou a verdade! Ele é o filho da puta! Não vc! Foi por ele que ela morreu! Não se esqueça disso! Homens não valem nada! - Ainda chorando, repito sua frase.

- Homens não valem nada. 

- Um dia, vc vai encontrar seu homem. - Diz Sweet, trançando meus cabelos. Um beijo em meu pescoço e ela ronrona. - Enquanto não encontra ele, pode se divertir com alguma mulher.

- "Não o encontra", Sweet. - Corrijo-a, ressabiada, sentada em uma cadeira. As lâmpadas ao redor do espelho retangular ofuscam a minha visão. Elevo os olhos úmidos e, estranhamente, a imagem do homem com capuz vem à minha mente, então, repito num suspiro. - Enquanto não o encontra... 

- Foi o que eu falei. - Rebate ela. - Quando encontrar ele. O homem. - Reviro os olhos e, sem paciência, resmungo.

- Deixa pra lá.

- Não fica assim, docinho.

- Por que tá me olhando desse jeito?

- Que jeito!? - Pergunta-me ela, deslizando suas mãos até meus seios, escondidos pelo roupão. Seus dedos brincam com os piercings em meus mamilos quando sugere. - Vc precisa se acalmar. Acaba de passar por um momento tenso. - Meio que incomodada e excitada, peço que pare o que está fazendo. - Não gosta?

- Não. - Minto novamente. Sweet não é uma mulher qualquer com quem eu transaria no set de filmagens por dinheiro. Ela é minha amiga. Minha única amiga! - Para! Eu já pedi! Não vejo graça nisso! Por que tá rindo!?

- Gosto de te ver insegura. Nunca trepou com mulheres antes? 

- Raramente. E nunca foi pra valer. Só nos filmes. Não é a 'minha praia'.

- Mas é a minha...- Sussurra ela, encarando-me através do espelho. Que merda é essa??? Sweet tem algum tipo de interesse sexual em mim??? COMO VC É LERDA! SÓ PERCEBEU AGORA??? Eu não a quero como amante. Ela é minha amiga! Eca! - Fala alguma coisa, amiga.

- Exatamente isso! - Contrariada, movo-me na cadeira. - Eu sou tua amiga! Madrinha das tuas filhas! E eu não gosto de transar com mulheres! Sem preconceitos, mas não gosto! Tira a porra da tua mão dos meus seios!

- Tá bom. Tá bom. - Resmunga ela, insatisfeita. - Eu só queria te acalmar.

- Pois me deixou mais nervosa ainda. - Murmuro enquanto procuro por meu vestido. Como ela pode pensar em sexo quando o corpo da pobre mulher ainda se encontra na sala ao lado??? Por que eu fui me envolver com Ga'al novamente??? Eu não pedi que matasse o cafetão de Sweet!!! Pedi que o fizesse desaparecer!!! Cacete!!! Por que diabos ela está nua??? - SWEET! VISTA-SE IMEDIATAMENTE!

- Vc não me quer? - Cobrindo minha cabeça com o capuz do moletom, avanço sobre ela, furiosa.

- Vc é louca!? Coloca a porra da tua roupa agora e, por favor, esqueça essa ideia ou eu sumo da tua vida! Entendeu!?

- Entendi. Mas...

- Tira a porra desse sorriso escroto da tua cara e me deixa passar! Eu quero ir pra casa! Eu preciso...- Descontrolada, volto a chorar. O último olhar da esposa atormentada não me deixa em paz. Eu preciso rezar...sei lá! - Sai!!! - Empurro Sweet que tenta me abraçar. Ela, de fato, quer algo comigo. - Somos amigas, Sweet. Só isso. - Esclareço, aos prantos. - Por suas filhas, não faz isso de novo. Eu quero sair daqui.

- Aonde vai!? Posso ir com vc!?

- Não. - Digo sem pensar. - Eu preciso ficar sozinha. - E pedir perdão pelo que acaba de acontecer. Quem vai me ouvir? - Dê um beijo nas meninas por mim.

- Adessa! Volta!

- Sweet, se veste e vai pra casa. Suas filhas precisam de vc.

- E vc!? Não!?

Deveria ter analisado melhor aquele olhar antes de partir. Teria me poupado da dor física e moral.


- Não. Eu preciso de paz, Sweet. De paz. - Esclareço beijando sua testa, antes de entrar no carro. - A gente se vê amanhã. - Despeço-me ao volante. Esquivo-me de seu toque porque não quero...não posso acreditar no que vira ao esbarrar em Sweet. Talvez, eu não seja tão poderosa assim. Nem tudo o que vejo ao tocar alguém, é verdade. VC SABE O QUE VIU E O QUE SENTIU. Sei. Não quero pensar nisso. É BOM QUE PENSE! NÃO CONFIE...

EM NINGUÉM! 



- Padre?

- Pode falar, filha. - Incentiva-me ele do outro lado do confessionário. A luz do fim de tarde quase me deixa ver seu rosto entre as brechas na madeira que nos separa. A longa barba branca se mostra quando ele se aproxima dos quadradinhos e me pergunta, com doçura. - Do que tem medo?

- Fiz algo muito ruim, padre. - Confesso, entre soluços. - Não temo o inferno. Sei que irei pra lá após a minha morte, mas não quero que outros sofram pelo que fiz.

- Não tema o inferno, filha. Ele está entre nós, aqui, na Terra. Não chore...

- Eu tô tão sozinha, padre. - Minha voz embarga. Emudeço. Do outro lado, respeitando meu silêncio, minha dor, ele permanece calado. - Minha vida é inútil. Não quero mais viver assim.

- Não vai. - Afirma ele. - As coisas mudam, filha. O tempo todo. 

- Acho que matei duas pessoas, padre.

- Como?

- Não sei. Eu fiz...eu pedi...- Assoo o nariz enquanto procuro enxergar através das brechas na madeira. Seu perfume é inebriante. Quase afrodisíaco. Jesus, me perdoa. É um padre. Ouço o som de sua curta risada, o que me faz perguntar. - O senhor acredita em demônios?

- Sim. Eles nos cercam o tempo todo, aguardando brechas.

- Sério!? Eles cercam o senhor também!?

- Uh...huh.

- Bizarro... - Cerro os olhos, ajoelhada. As mãos trêmulas se unem, em prece quando peço. - Me ajuda, padre. Eu não sei o que fazer. Existe um demônio em minha vida. Eu não o invoquei...eu acho. - Vacilo. - Não me lembro disso. Eu me lembro de um ritual com as bruxas para afastá-lo de mim, mas não deu certo.

- Por que não? Vc faz algo que o mantem por perto?

- Como assim!? Tá me acusando de manter Ga'al ao meu lado porque ele me satisfaz na cama!?

- Eu não disse isso. Foi vc quem disse.

- Por que diabos vcs se escondem nessa caixa de madeira!? Eu preciso ver com quem eu converso!

- Não se exalte, filha.

- Não sou sua filha! Não tenho pai! Ele me ferrou, padre! Ele me ferrou pelo resto da minha vida!

- Por que diz isso? - Pergunta-me ele, serenamente. - O que seu pai fez a vc de tão ruim?

- Ele me entregou à porra de um demônio! Só isso!

- E, porque vc o mantem ao seu lado? - Recuando, instantaneamente, questiono.

- Tá de sacanagem comigo!? Por que insiste em me irritar!? Eu tô buscando paz e o senhor me faz perder o equilíbrio com essas perguntas!? Por que tá rindo, padre!?

- Vc se satisfaz com esse demônio, filha?

- Que tipo de pergunta é essa???

- Sim ou não?

- Não! Eu odeio ter que fo...tre...Ah! Que saco!!! - Confusa, inspiro e expiro prestes a ter uma crise de claustrofobia. Cubro o rosto com as mãos geladas e confesso. - Eu odeio ter que transar com ele todas as noites depois de trabalhar com isso durante o dia! Eu tô exausta, padre! Me ajuda! - CONTE A VERDADE A ELE! CONTE QUE VC GOZA ENQUANTO GA'AL TE FODE! Cala a boca, vagabunda! Cala a boca! - Por que tá rindo, padre???

- Porque discute com sua voz interior. É engraçado. Talvez não seja uma voz interior. Talvez seja alguém que já existiu. Já pensou nisso? - Mortalmente assombrada, caio contra o piso frio enquanto o ouço afirmar, vagarosamente. - Eu não vou sair de sua vida, Adessa. Não mesmo.

- Jesus...- Exalo, horrorizada.

- Errou, meu anjo.

- Ga...Ga...

- Uh...huh...

Corro em direção ao grande portal por onde passara há alguns minutos, em busca de paz. Abalada, debaixo da chuva forte, desço a escadaria que me leva ao carro, estacionado em frente à igreja. Antes de alcançar o botão na chave presencial e abrir a porta, vejo seu vulto se aproximar de mim. Penso em espirrar pimenta em seus olhos. Desisto. Estou longe do porta-luvas. NÃO DEIXA ELE TOCAR EM VC! Como 'tocar em mim'!? Se tocar em mim, tocará em vc também! NÃO É HORA PARA DISCUSSÕES! ABRA A PORTA DO CARRO! 

- PARA DE GRITAR NA MINHA CABEÇA!

- Posso te ajudar?

- FICA LONGE OU EU TE MATO! - Berro, ao volante. Meus olhos estão fixos na figura do homem com capuz na cabeça, as mãos enfiadas nos bolsos do casaco ensopado pela chuva. - NÃO OUVIU!? VAZA! EU NÃO TENHO MEDO DE VC! - Minto. - SAI DA FRENTE DO CARRO, PORRA!

- Fica, por favor! Eu posso te ajudar!

Meto o pé no acelerador antes de escutar suas últimas palavras.

Infelizmente...eu não fiquei.



- Não estou disposta, Sweet.

- Vamos! - Incentiva-me ela, ao celular. - Vai ser divertido! 

- Imagino...- Reviro os olhos, deitada em minha cama. - Vc vai e depois me conta como foi. Ok? Se quiser, fico com as crianças. Não vou trabalhar amanhã.

- Vai sim...- Diz ela, reticente. 

- Não entendi!

- Deixa pra lá! Passo aí às dez. Ok?

- Sweet! - Rosno. - Qual parte do 'Vc vai e me conta depois como foi' que vc não entendeu!? - Ela ri. Odeio seu riso irônico. Somente ela pensa que seu riso irônico não é percebido pelos demais. Ela se acha o máximo em pensar que está rindo de alguém que ri dela, ao reconhecer seu riso irônico. Putz. Ela é chata, mas é minha amiga. - Fala, Sweet.

- Eu estou falando! Ele vai à festa! 

- Seu namorado vai à festa? - Pergunto, afetando interesse. - E por que eu deveria ir? Vc vai estar bem acompanhada.

- Vc precisa conhecer ele! Precisa me dizer se ele é legal ou não! Pelas minhas filha, amiga! - Puta que pariu. Golpe baixo. Ela sabe que faço qualquer coisa por suas filhas. -Vamos, Adessa. - Ronrona ela. Se ela soubesse como me irrita ao ronronar para mim! Eu não sou seu homem! Sou sua amiga, cacete! - Amiga! Vc tá aí!?

- Onde mais estaria?



- Quem sabe vc não encontra o homem de capuz na festa???

- Quem disse que quero encontrá-lo???

- Eu vi nos seus olhos, Adessa. - Que entonação é essa? Ficou séria, de repente? Cadê o 'Amiga'? - Vc tem algum tipo de interesse por ele.

- E vc se esqueceu de tomar seu Rivotril hoje.

Mais gargalhadas histéricas e ela se despede.

- Te pego às dez, amiga! Vc não vai se esquecer dessa festa! E vá de vestido!

- Por que eu deveria ir de vestido??? Sweet??? Alô??? Vaca. Desligou na minha cara. Parabéns.

Ainda permaneço com o celular em minha mão. A luz forte da tela ilumina meu quarto escuro enquanto penso em suas últimas palavras.

Palavras proféticas.


Eu nunca me esqueceria daquela festa...


Lembro-me da última olhadela no espelho do meu 'closet' e de ter me achado patética em meu vestido curto, tubo. O estranho pensamento de encontrar o 'homem com capuz' viera em seguida. Os copos de Coca-Cola com um gosto amargo servidos por Sweet, vieram depois. 

Então, veio a dor.

Socos em meu rosto, chutes em meu estômago não superaram a dor de ver Sweet trancando a porta, deixando-me sozinha com um grupo de homens...monstros famintos por sexo e sofrimento alheio.

"Divirta-se", dissera Sweet segundos antes de partir e ignorar o fato de que eu seria violentamente usada sobre um colchão imundo, naquele quarto.


"Vem. Deixa eu te ajudar", foram as palavras ditas pelo homem com capuz após lutar contra os monstros e salvar a mocinha.




Enquanto me violentavam, ouvia, ao fundo, um flashback que se repetia, constantemente.

Recordo-me da canção. Eu jamais voltaria a ouvi-la, por livre e espontânea vontade e, quando obrigada a escutar a canção em algum lugar aleatório, esforçava-me por me lembrar da razão do pânico que a música me causava e, enigmaticamente, não conseguia.

Todas as recordações ligadas à canção me foram arrancadas, como em um passe de mágica, assim como a necessidade de reencontrar meu salvador, crescera, absurdamente.

Sua voz doce e seu cheiro de maçã verde consomem meus pensamentos enquanto tento ser a garota de programa mais bem paga da cidade, sem êxito.

Tudo o que desejo é reencontrar o 'homem com capuz' e agradecê-lo por ter salvo a minha vida.

Por enquanto, danço no palco do "California" e a vejo sorrir para mim.

Sweet, minha melhor amiga.




 DIAS ATUAIS

- E por que não quer, filha?

- Porque não. - Responde-me Antoine, emburrada. Amo todas as expressões em seu rostinho. Todos os sorrisos e 'biquinhos' em seus lábios rosados e carnudos. - Não gosto dos meus amiguinhos.

- Por que não? - Insisto enquanto penteio os cachos de seus cabelos. - Vc disse que estava gostando, filha.

- Mas agora não gosto mais. - Refuta ela, desanimada, vestida com o uniforme do colégio, carregando, em suas costas, a mochila com estampa das princesas da Disney. - Eu preciso ir pra escola, mãe?



Encarando-a, inspiro e expiro, profundamente. O simples pensamento de que alguém a tenha magoado enrijece todos os músculos do meu corpo. Evito tocá-la e receber mensagens deturpadas em meu cérebro. Ajoelhada diante de Antoine, opto por ouvir suas palavras carregadas de tristeza ao explicar o motivo de sua resistência em retornar ao colégio. 

- Do que ele te chamou, filha?

- De 'neguinha do cabelo duro'. - Diz ela, sem rodeios. - Meu cabelo não é duro, mãe. 

- Não, filha. - Rosno entredentes, contendo meus instintos primitivos que me fazem pensar em trucidar o pequeno racista. - Seu cabelo é lindo, cheiroso e bem tratado. - Esclareço, abraçada a Antoine que cobre o rostinho enquanto chora. - Olha pra mim, meu anjo. - Retiro, cuidadosamente, suas mãozinhas do rosto quando engulo o ódio mortal que se espalha por todas as minhas entranhas. Forçando um sorriso, aviso. - Amanhã eu resolvo isso. Ok?

- E hoje? Eu preciso ir pra escola, mãe? - Faço uma careta enquanto finjo estar pensando na resposta. Ela sorri. - Vc é engraçada, mãe.

- Sou!?

- É sim. - Diz ela, gargalhando. - Por que a senhora conversa com a voz?

- Que voz!? - FAÇA ALGO IMEDIATAMENTE! ALGO QUE EXTERMINE COM A VIDA DAQUELE MENINO! Vc é louca!? É só uma criança! Meu alvo é a diretora vagabunda e incompetente! E OS PAIS DO MENINO!? Aaah! Bem lembrado! Eles também vão pagar caro! - Por que tá rindo, filha?

- Meu tio disse que a senhora é engraçada. E é mesmo.

- Que tio, Antoine!? - Aguardo por sua resposta, sentando-a em meu colo. Beijando sua bochecha, insisto. - Que tio, filha? Vc tem tantos...

- Tenho mesmo. - Assume ela, envaidecida. - E todos são bonitos.

- São!? E quais são os nomes deles!? - Enumerando-os, ela me mostra seus dedinhos. Sorrio enquanto a puxo para mim pela cintura. - Três!? Vc tem três tios, Antoine!?

- Sim! Tio Lu, Tio Miguel e o tio 'sem nome'. - Cheia de temor, indago.

- Um tio 'sem nome'!? Interessante. - Pigarreio e, hesitante, continuo. - Esse "Tio Lu" fala com vc?

- Quase sempre. Ele é super engraçado, mãe! Diz que eu sou a borboletinha dele. - Forço um riso enquanto um calafrio percorre todo o meu corpo.

- Se sério!? Ele te disse o nome dele!?

- Tio Lu! Ué! - Retruca ela, indignada. Eu a encaro e, afetando uma calma que estou longe de sentir, refuto.

- 'Lu' é apelido, filha. Ele tem um nome...tipo...Luciano, Lucas, Ludmila? - Ela joga a cabecinha para trás enquanto gargalha. Não há nada em minha filha de que eu não goste. - Por que tá rindo?

- Ludmila é nome de mulher, mãe!!! Meu tio é homem!!!

- Aaah...e esse tio homem tem um nome normal!? Ele toca em vc!? De onde vc o conhece!?

- Ele não me toca, mãe. E fala comigo quando durmo...

- Jesus!

- Não, mãe...- Resmunga ela. - O 'tio Lu' não gosta de Jesus. 

- NÃO!? - CONTROLE-SE. VC ESTÁ QUASE LÁ. Que diabos de tio é esse que ela encontra nos sonhos e que não gosta de Jesus??? - Ele disse porque não gosta de Jesus, filha!?

- Disse que tem raiva dele porque o pai dele gosta mais de Jesus do que dele. - Reviro os olhos enquanto a sento no sofá. Enrolo meus cabelos e monto um coque no topo da cabeça. Nervosa, insisto.

- Não entendi. Seu 'tio Lu tem raiva de Jesus porque o pai do 'tio Lu' gosta mais de Jesus do que do 'tio Lu'??? É isso???

- Isso. - Responde-me ela, tranquila, retirando os sapatos do colégio. De meias três quartos, ela se deita, cruzando as pernas. Um sorriso maroto me faz arregalar os olhos e meio que surtar. - Que pai é esse, filha??? Não me esconda nada, Antoine!!! Vc se lembra de nosso lema???

- Sempre a verdade! - Diz ela, erguendo um dos bracinhos. - Por que tá com medo, mãe? Meu tio é legal.



- Por que seu tio não gosta de Jesus???

- Eu já disse. Ele ficou triste porque o pai dele não quer mais falar com ele. - Ela acaba de revirar os olhinhos para mim. Se eu não a amasse tanto, eu a reprovaria, mas ela é tão linda. ORA BOLAS! ISSO NÃO É HORA PARA DEVANEIOS! SUA FILHA PODE ESTAR EM GRANDE PERIGO! Por quê? ADIVINHA??? QUE TIO SERIA ESSE??? UM TIO MAGOADO COM O CRIADOR E QUE TEM RAIVA DE JESUS??? LUDOVICO, LUCIO, LUTERANO, LUIZ, LOUIS, LUCI...??? Não se atreva a falar! Não quero saber! Fica calada! Estou conversando com a minha filha! Minha filha! Entendeu!? - Mãe! Olha pra mim! Tá doendo!

- Filha! Desculpa! - Saio do transe com minhas mãos apertando seus bracinhos. - Perdão, filha. Eu tô nervosa. - Choramingo. - Vc precisa me contar tudo, filha. Existem pessoas muito ruins nesse mundo. Eu preciso te proteger delas. Que tio é esse, filha!?

- É o Tio Lu. Ele não toca em mim, mãe. Só conversa quando estou com sono, mas eu prefiro conversar com meu outro tio.

- OUTRO??? O MIGUEL???

- Não, mãe. - Resmunga ela. Espreguiçando-se no sofá, ela comenta. - Tio Miguel não conversa. Ele só sorri pra mim e me protege quando eu tô com medo. Quem conversa comigo quando eu tô acordada é o outro...- Cerrando os olhos, ela suspira. - Ele é tão lindo, mãe! - Prestes a ter um ataque de pânico, inspirando e expirando, levo a mão ao peito e indago.

 - Como ele fala com vc??? 

- Eu escuto a voz dele aqui. - Esclarece ela apontando para a própria cabeça. - É bem legal! - Respirando como asmática em crise, questiono.

- Esse tio tem nome??? 

- Tem. Mas não quer falar.

 - Por que não???

- Pra não deixar a senhora nervosa.


- MAS EU JÁ TÔ NERVOSA!!! QUEM É ESSE TIO, ANTOINE???



- Não grita, mãe. - Pede-me ela, chorosa. Eu a abraço, beijando o topo de sua cabeça. Não sei o que fazer com seu estranho dom em falar com seres do 'Outro Lado'. - Ele disse que esse seria o nosso segredo.

- Mas nós duas não temos segredos!  Lembra!?

- Tá me machucando de novo, mãe...

- Perdão! - Aos prantos, eu a nino em meu colo. Em meu coração, uma suspeita absurda brota com força. - Não se esqueça de que eu te amo pra sempre. Ok?

- Ok, mãe. Eu te amo pra sempre.

- Seremos somente vc e eu contra o mundo. Certo? - Ergo meu dedo mínimo. Fazendo o mesmo, ela conclui, aos risos.

- A senhora e eu contra o mundo todo!



- Promete que nunca mais vai conversar com esse 'tio sem nome'? - Peço deitada ao seu lado, em minha cama box 'king size'. É muito maior do que a dela e sua presença, ao meu lado, me traz uma paz jamais sentida. Por que ela deveria dormir em outro quarto? - Promete, filha?

- Prometo, mãe. Mas meu tio vai ficar triste...

- Talvez, ele mereça. Deixa ele sofrer.



Essa é a segunda vez que passo por esse corredor. Lembro-me de que na primeira vez não havia tensão. Havia somente a doce expectativa de que minha filha evoluísse em todos os sentidos. Ela merece o melhor. Tudo o que eu não pude ter. Não havia percebido o quão claustrofóbico esse corredor me parece agora.



Que quadros medonhos pendurados nas paredes! Estão mortos!? Fundadores e professores com suas expressões sisudas em rostos envelhecidos! 

Bizarro...

- Posso te ajudar? - Assusto-me com a voz suave logo atrás de mim. Impulsiva, reajo, irritada e meio que paralisada, com os olhos fixos em um dos quadros acima de minha cabeça. 

- Não. Obrigada. - A foto do fundador do colégio parece ter vida própria. - Preciso conversar com o diretor. Onde fica a sala dele?

- Normalmente, ele fica ali. - Seu indicador aponta para a sala ao final do corredor. Meus olhos intrigados percorrem seu braço esticado até chegarem ao rosto oval reluzente; a pele negra, viçosa. Enfim, alguém que conhece o sofrimento de minha filha. Seus lábios grossos se movem vagarosamente enquanto continua a me responder. - No entanto, hoje, ele estará naquela outra sala ali, próxima à escadaria. A sala de reuniões entre pais e mestres.

- E por que o diretor vai mudar de sala justamente hoje, quando preciso ter uma conversa, em particular, com ele!? - Penso alto. Descontraído, o homem alto e elegante me responde.

- Porque hoje é o dia da reunião. A senhora não foi notificada? - Puta que pariu! Fui, mas me esqueci! Não quero falar com outros pais! EU QUERO A CABEÇA DO RACISTA QUE MAGOOU MINHA FILHA! - A senhora está se sentindo bem?

- E por que não estaria!? Estou aqui para a reunião! - Minto, aterrorizada. - Mas preciso falar com o diretor, a sós.

- Creio ser impossível, no momento.

- Por quê!? O diretor é tão inacessível assim!? O grande e magnânimo ser que coordena essas crianças racistas não tem tempo pra mim!?

- Parece-me que a senhora não está bem. 

- Não me diga!? - Ironizo posicionando-me, defensivamente, diante dele. Seus dentes são perfeitos. Uau. - Não acha natural estar nervosa em ver sua filha chorar por ter sido humilhada diante dos amiguinhos!? Uma criança que já sofreu muito e que ainda passa por mais sofrimentos em um estabelecimento caro onde ela deveria se sentir segura!? 

- Não se exalte, senhora. Tenho a certeza de que poderemos resolver o seu problema.

- Não! - Exalto-me com o dedo em riste. - O problema não é meu! É dos alunos desse colégio caríssimo que não aceitam as diferenças sociais! - Por que ele me olha com uma paciência extrema??? Se eu estivesse em seu lugar já teria partido para a violência física!!! - Onde posso encontrar o diretor!? Eu exijo falar com esse crápula que nada fez para impedir que minha filha sofresse 'bullying' aos cinco anos! Cinco anos!!! Cinco anos!!! Vc não acha cedo demais???

- Certamente. - Concorda o homem, contrariado. - Isso é inaceitável.

- Eles a chamaram de 'neguinha do cabelo duro'! - Exaspero-me, contendo as lágrimas. - Isso não é crime!? - Inflando as narinas, ele assente.

- É sim. Inadmissível e vergonhoso. Temos de fazer algo a respeito.

- Concordo! Onde está o diretor omisso!? - Abrindo um sorriso tímido, ele estende sua mão direita e me parte ao meio ao declarar.

- Aqui estou eu. José Carlos, o diretor...omisso. É um prazer inusitado conhecê-la, Sra...?

- Adessa. - Adessa Love??? Fala sério!!! Hesitante, apresento-me. - Adessa Santoro, mãe de Antoine Santoro. - Minto. Antoine ainda não tem meu sobrenome. Como adotar Antoine sendo uma stripper, atriz pornô e solteira!? Eu não vou conseguir! Que juiz daria sua guarda a mim!? Não vou conseguir. Não vou! Para de me olhar como se eu fosse louca!!! - O que tá esperando!?

- Queira me acompanhar. - Posicionando a palma de sua mão em minhas costas, ele me guia através do corredor. A claustrofobia vai tomando conta de mim enquanto caminho e pergunto, agitada.

- Aonde vamos!?

- À reunião, Sra. Adessa.

- Não. - Recuo, amedrontada, antes de cruzar o batente  da porta e encarar os olhares curiosos dos pais e mães sentados em cadeiras estofadas, dentro da ampla sala. - Não vou entrar aí. - Cochicho. - Tenho me...



- Confie em mim. - Diz o diretor, pousando sua mão sobre a minha. Flashes de seu rosto exibindo um sorriso plácido. A cabeça recostada em um ombro nu e masculino. Em seus olhos, o reflexo de algum filme reproduzido na TV. Sua mão unida a outra, indubitavelmente, masculina. Um ligeiro alívio em meu peito e ele prossegue, num tom baixo. - Estarei ao teu lado. Tudo bem?

- Tudo.

Tentando não rebolar, caminho até o fim da sala onde há uma cadeira vazia. Contendo o inferno dentro da minha cabeça prestes a explodir, eu me acomodo na cadeira em veludo vermelho, evitando me conectar aos presentes que me observam como se eu acabasse de descer da rampa de algum OVNI.

- Não te conheço de algum lugar?

- Não! - Respondo, rispidamente, a um dos pais sentado ao meu lado. - Fique quieto! A reunião vai começar!

Um sorriso malicioso no canto de sua boca e eu me sinto afundar no assento, absolutamente constrangida.

Isso não vai dar certo. Concordo.


Meu mundo caiu. Arrancaram-me a capa de mulher autossuficiente assim que o canalha, aos gritos, lembrara-se de onde me conhecia. De mãe preocupada e presente, descera, vertiginosamente, ao nível de 'puta arrogante e atrevida', assim que a notícia se espalhara. Em pouco tempo, todos haviam se esquecido da figura resiliente do diretor à frente da lousa branca para me lançar insultos que, até bem pouco tempo, eu rebateria com socos e pontapés, mas...agora. Agora sou mãe e foi por Antoine que vim até aqui. Foi por Antoine que entrara nessa sala repleta de pessoas vazias, preconceituosas e invejosas.

É por Antoine que me ergo da cadeira e, inspirando profundamente, declaro.

- Não posso mudar o que fui e nem o desejo! Vim lutar pelos direitos de minha filha e não saio daqui até que façam algo por ela!

- Desde quando putas têm filhas!? 

- Desde que a tua te pariu! - Parabéns. Acabo de dar uma resposta tão idiota quanto à pergunta de uma mulher aparentemente cheia da grana. - Façam o que quiserem comigo. - Rosno com lágrimas nos olhos. - Mas não machuquem a minha filha. Ela não merece pagar por meus erros.

- Que erros, Sra. Adessa? - Pergunta-me o diretor, enfim, quebrando seu silêncio. - Sua vida particular não pertence a essa reunião. Estamos reunidos a fim de falarmos sobre os alunos e não sobre o que seus pais fazem entre quatro paredes. - Solto o ar de meus pulmões pela boca enquanto um outro pai assanhado graceja.

- Mas a gente não grava o que faz entre as quatro paredes. Ela sim. 

- E o senhor, certamente, a assiste! - Rebate o diretor ganhando minha total simpatia. Com os olhos fixos no idiota que se encolhe na cadeira, o diretor assevera. - Podemos focar nos alunos ou daremos por encerrada a reunião!?

- Diretor...- Ergo o braço, insegura. - Minha filha foi vítima de bullying, aqui, nesse colégio. Ela é tão pequena e doce e...- Exalo sem conter as lágrimas. - Por favor, não machuquem a minha filha. Ela é um anjo.

- Um anjo que vai puxar à mãe, com certeza. - Comenta a mulher com roupa de grife. Estou prestes a pular sobre ela quando ouço um comentário ainda mais maldoso...e perigoso, o que me faz desmoronar. 

- Filhos!? Por acaso, vc já a adotou de acordo com a lei!? Será que o 'Conselho Tutelar' sabe que a pobrezinha tem uma puta como mãe!?

- Basta! Não vou permitir esse tipo de comentário dentro desse estabelecimento de ensino! - Intervém o diretor enquanto enxugo minhas lágrimas, acuada como um cão medroso. VAI DEIXAR QUE ELES VENÇAM??? CADÊ A MULHER QUE LUTA ATÉ CONTRA HOMENS??? Não sei. Estou com medo. MEDO DE QUÊ!? LEVANTE A SUA CABEÇA! Não posso perder Antoine. Eles podem me denunciar. Eu a tirei das ruas e não acionei nenhum órgão do governo. DISSO EU SEI!!! ELES NÃO!!! AJA AGORA OU VAI PERDER A MENINA!!! Ao meu lado, o diretor sussurra, amistosamente. - Sra. Adessa, fique calma.

- NÃO! NÃO MESMO! - Grito, de pé, diante de todos. Tomo da mão estendida do diretor, seu lenço em seda e, assoando meu nariz, ruidosamente, aviso. - Ninguém vai mexer com a minha filha! NÃO MESMO! Qual foi o aluno que a chamou de...?- Fraquejo ao me lembrar de Antoine...chorando. - Quem magoou minha filha?

- Como vc a sustenta? - Questiona-me uma das mães ao fundo. Furiosa, refuto.

- Não é da sua conta! - Olho ao redor e me sinto devastadoramente sozinha e indefesa. Encaro a mulher com roupa de grife e sinto que ela tem algo a dizer além de me ofender. Intuitivamente, dou um passo em sua direção. Penso em tocar em seu braço quando esclareço, aflita. - Não vim aqui pra discutir. Só quero saber quem...- Interrompendo-me bruscamente, ela assevera.

- Eu me recuso a permanecer na mesma sala onde essa mulherzinha estiver!

- A porta tá aberta! Vaza!

- Não vou sair. - Entredentes, ordeno.

- Então fica e me diz quem fez a minha filha chorar!

- Não me toca! - Exige a mulher, atormentada. Cerro os olhos e, em meio à balburdia que provoquei, concentro-me. 



Vejo um menino loiro gargalhar, cercado por outras crianças. Reconheço o refeitório amplo, a mochila com a estampa das princesas da Disney; a voz doce, inocente e vacilante a perguntar: 

"Por que não gosta de mim?"

O menino corre, satisfeito, até o carro estacionado diante do colégio. A mulher com roupa de grife o abraça ao sair do carro e o escuta, orgulhosamente.

"De neguinha do cabelo duro", responde o menino à pergunta de sua mãe. Volto meu olhar ao portão em ferro do colégio e a vejo sozinha, abraçada ao seu ursinho de pelúcia. Ela está triste. Muito triste...

Antoine...meu anjo.



- Foi teu filho! - Acuso, arregalando os olhos úmidos, de volta ao meu corpo. - Foi ele quem magoou a minha filha!!! Vc sabia e não fez nada!!! Vc sabia!!! Ela é só uma criança!!!

- Adessa, mantenha a calma. - Aconselha o diretor enquanto sua imagem se transforma em um grande borrão à minha frente. - Vamos resolver tudo. Adessa! Não!

- CRETINA!!!

Em questão de segundos, perco a visão e a razão. Deixando-me conduzir por meus instintos mais selvagens, salto sobre a mãe conivente e a estapeio, violentamente. Aos berros, sou afastada da mulher descabelada e assustada, por braços fortes.

- Me solta, porra! Ela sabia de tudo! Racista filha da puta!

- Ela vai pagar por tudo. Te acalma. - Sussurra a voz grave aos meus ouvidos. Sua boca beija minha bochecha. Seus dedos penteiam meus cabelos em desalinho enquanto declara em alto e bom som. - Vamos pra casa, amor. Nossa filha nos espera.

- Quem é vc? - Pergunta o diretor, visivelmente desnorteado. - É parente de Antoine?

- Sou o pai dela. - Afirma ele. Lançando um olhar sinistro à turba que, há poucos minutos, me xingava e me ameaçava, ele complementa. - Sou o pai de Antoine e marido de Adessa e, não pretendo me esquecer do que fizeram a ela e à minha filha. - Dirigindo-se ao diretor, ele avisa. - Vou tomar as decisões cabíveis. - Um olhar penetrante à mãe racista do menino loiro e ele abre um sorriso indecifrável que a faz tremer na cadeira. Perplexa, fraca e sentindo-me vingada, deixo-me levar por ele em seus braços, em silêncio. Um beijo em minha testa e estou de volta ao meu carro, no estacionamento do colégio, de onde quero partir, imediatamente. Soltando o ar dos pulmões pela boca, eu o encaro por segundos e, entre confusa e agradecida, questiono.

- Por que fez isso? Como sabia que eu estaria aqui? 

- Intuição.

- Vc é algum tipo de mago? - Observo seus lábios carnudos enquanto sorri, de maneira enigmática. - Por que não consigo ver o que pensa?

- Porque não penso. Eu ajo. - Solto um riso. Ele abre a porta do meu carro e, com o queixo apoiado na porta, ele pede, com ternura. - Me deixa voltar à sua vida, Adessa. Estou com saudades.

Quero negar. Afinal, ainda me recordo de tudo. Ainda tenho minhas dúvidas de que fora ele o facilitador da morte de meu filho. Diante de seu olhar fascinante, exalo.

- Não sei. Agora tudo mudou.

- Eu sei. Por isso, estou aqui. Pra te ajudar.

- Vc ameaçou aquela mulher nojenta...

- Ameacei e vou cumprir a minha ameaça. É só uma questão de tempo.

- Quem é vc, Aiden? 

- Alguém que te amou e sempre vai te amar. Me dê uma chance e eu vou te fazer feliz.

A brisa fria do inverno toca em meu rosto enquanto abro um sorriso tímido.

- Deixa?

- Talvez...- Respondo ao volante. - Me liga à noite.

- Vou ligar. - Afirma ele, confiante. Pelo retrovisor, eu o vejo acenar para mim enquanto repete. - Vou ligar!



Talvez ele não seja tão mau quanto penso.

Talvez vc precise de uma transfusão de cérebro.

Talvez vc possa calar a sua voz pela eternidade e me deixar em paz. Que tal?

TALVEZ VC PRECISE ENTRAR NA PRÓXIMA RUA, CONTORNAR A PRAÇA E RETONAR AO COLÉGIO, IDIOTA!!!

- MEU DEUS! ANTOINE! - Levo a mão ao peito e choro, compulsivamente. - Como eu pude me esquecer dela!?

- Mãe! Mãe! Mãe! - Corro em sua direção, de braços abertos. Sinto seu coraçãozinho bater, acelerado. - Mãe, eu preciso...

- Perdão, filha! Perdão! Eu nunca mais vou te esquecer! - Prometo, de olhos fechados, apertando-a em meus braços, ajoelhada diante do grande portão em ferro, fechado. - Me perdoa...

- Mãe, me ouve! Olha pra mim e para de chorar!

- Me desculpa, filha. A mamãe ficou nervosa na reunião e...

- Mãe! - Grita Antoine, num desespero. - Eu não tô triste não! 

- Não!? - Sorrio, enxugando minhas lágrimas. - E por que tá nervosa!?

- Meu tio! Ele me disse uma coisa!

- Que tio!? - Ergo-me, assombrada. Ajeitando a fivela de seu cinto de segurança, pergunto, contrariada. - Vc continua a falar com o "Tio Lu"!? 



- Com ele não...- Responde-me ela, reticente.

- Antoine!!! - Repreendo-a, respirando aceleradamente. - Com quem tem falado??? Com o "Tio sem nome"??? - Em silêncio, ela assente com a cabeça. Acuada, ela argumenta. 

- Ele disse que era muito importante, mãe... - Olhando-a pelo retrovisor, questiono com as mãos trêmulas.

- E o que ele disse!? 

- Que a senhora não pode deixar o homem mau entrar na nossa casa.

- Homem mau???

Retiro a chave da ignição a fim de evitar um acidente. Em meio a um crise de claustrofobia, abro a porta do carro e inspiro profundamente o ar frio da tarde quando sua mão pousa em meu ombro. Meu coração quer pular pela garganta quando o ouço pronunciar meu nome.

- Dess, me escuta. Por favor.

- Não se atreva a falar com...- Antoine se desprende do cinto de segurança e, com a cabeça para fora da janela, grita entusiasmada.

- Tio!?

- Pirralha!? Enfim, eu vou te abraçar!

- Fica longe dela!

- Não mesmo. - Sussurra Vincenzo ao passar por mim e ir ao encontro de Antoine que, desprendendo-se da fivela, liberta-se do cinto de segurança e pula em seu colo, abraçando-o como se fossem amigos há séculos. - E somos. Mas isso é uma outra história.



- Mãe! Meu tio não é lindo!? Eu te disse que ele era lindo!

- O tio 'sem nome'. - Exalo. Ele está ainda mais irresistível. - Antoine! Entra no carro! Agora!

- Não fala assim com ela. - Repreende-me Vincenzo. Antoine se gruda ao seu tronco como um polvo com seus tentáculos. De costa para mim, ela gargalha enquanto ele me aquece com seu sorriso cafajeste ao mencionar. - Vc tá linda, Dess. Tenho saudades.

Porra! Sacanagem! A mesma frase de Aiden!? Isso não está acontecendo! Não mesmo! Por que Antoine o beija na bochecha como se ele fosse um cara legal!? 

- Porque eu sou, Dess. Deixa eu levar vcs pra casa?

- Cara! Acorda! Vcs nunca se viram antes! Como ela te trata como se conhecesse!?

- Mas a gente conversava, mãe! - Vibra Antoine em seu colo. - Ele é bacana, mãe! Ele é bacana e gosta da senhora! - Sorrindo, ele dá de ombros enquanto meu queixo cai. - Ele me disse isso, mas pediu segredo! - Ele te disse que transou com a minha melhor amiga, filha!? Ele te disse que gosta de bater em mulheres enquanto fode com elas!?

- Calma, Dess...

- Fica longe de mim e da minha filha! Minha filha! Entendeu ou quer que eu desenhe!? - Andando em minha direção com Antoine em seu colo, ele ainda me faz arfar quando mente.

- Eu não fiz nada disso, Dess. Nada. Juro. 

- Larga a minha filha. 

- Dess, não deixa ele ir à sua casa hoje.

- Devolve a minha filha. - Ordeno. Contrariada, Antoine passa do seu colo para o meu. A mão de Vincenzo resvala na minha. Eu o vejo brigar com Sweet. Ele desfaz a conexão, imediatamente. - Tem medo de que eu veja mais?

- Não. Tenho medo de que vc se perca nas mãos de outro.

- Vc é cruel...- Lamento. Antoine beija minha bochecha, alheia à verdade. - Não quer que eu me cure e siga em frente.

- Mãe, a senhora tá doente!?

- Não, filha. - Respondo, encarando Vincenzo, sentindo um aperto no peito. - Agora não, filha. Eu já tô curada. Vamos pra casa.

- Meu tio pode ir com a gente?

- Não...- Respondo, indecisa.

- Dess...deixa.

- Hoje não.

Segurando a porta do motorista, ele me impede de dirigir. Roubando-me um beijo na bochecha, ele ri de Antoine que berra um 'Woohoo" no banco traseiro. Fecho a porta do carro, contendo um riso e, antes de dar a partida, eu o ouço mentir...novamente.

- Te amo. De verdade.

- Tchau, tio!!! - Grita Antoine acenando para Vincenzo, manchando o vidro traseiro com suas mãozinhas afoitas. - Ele é muito legal, né!?

- É sim, filha. Muito. 

Engulo em seco. A voz embarga quando ouço sua voz grave e serena alertar.

- Quando o outro pedir para entrar, diga não. Diga 'não', mamãe.




Continua...





CAPÍTULO 35 - INJUSTO

  Na sala de espera do mesmo hospital onde Vincenzo voltara à vida, aguardo, ao lado de Liam e Enrico, ao desenlace da tragédia. Vincenzo, d...