'Dess - Uma História Interessante'

'Dess - Uma História Interessante'
AMO ESCREVER

CAPÍTULO 33 - MEU SANGUE. TEU SANGUE






Recuperando-me de minha segunda pneumonia em menos de dois meses, observo a esfuziante alegria de Cassie ao me mostrar as roupas e o quarto decorado, com estilo e riqueza de detalhes, de seu primeiro filho. Liam, encantado, acaricia a barriga de sua "Little Princess", assim como Vincenzo acariciava a minha antes de tudo mudar. 
- Nada mudou, Dess.
- Cacete! Vc me assusta!
- Eu já estava sentado aqui faz tempo. Vc que não me viu. Fica pensando em bobagens...- Engatinhando sobre o tapete felpudo do quarto em azul, Matteo nos alcança. Vincenzo o ergue pelos braços. Matteo nos mostra, em uma gostosa gargalhada, seus quatro dentinhos. Dois superiores. Dois inferiores. Abestalhados, sorrimos de volta. Magoado, Vincenzo comenta num tom baixo. - Tudo ficou melhor. Nosso filho é forte e saudável. Antoine já vai completar seus nove anos. Feliz e sempre prestativa. A única coisa que, infelizmente, mudou foi a nossa conta bancária.
- Idiota. Eu me referia à sua doença e ao fato de não te ver sorrindo como sempre porque vc tá sempre pensando em uma maneira de me dar um luxo do qual eu não preciso. - Refuto. Levantando-me, de súbito, aponto meu indicador a Vincenzo e reclamo. - Eu odeio esse seu dom estúpido de invadir pensamentos. Odeio.
- Fica, Dess. - Pede-me ele, arrependido, puxando-me pela mão. 
- Me deixa. - Resmungo em direção à cozinha de Cassie. - Vou dar uma olhada no forno. Não vou deixar a lasanha queimar. Ao menos, isso eu não vou estragar já que estraguei a sua vida. 
- Quem disse isso, Dess???
- Vá pro inferno. - Choramingo ainda distante da cozinha. A casa de Cassie e Liam é enorme. Arejada, bem decorada, repleta de plantas e móveis coloridos, exatamente como ela dissera que seria na noite bizarra do memorável jantar onde 'a outra' surgira do nada. Era ela quem apreciava ostentação. Não eu. Ele é tão cego que não enxerga isso!? Foi com ela que ele dançou em um campeonato e não comigo! Odeio Vincenzo. 




Amo a cozinha de Cassie. Super prática, ampla, acolhedora e rústica. O piso é em madeira e o teto rebaixado. 
Tão aconchegante!

- Só mais um pouquinho. - Digo a mim mesma antes de fechar a tampa do forno onde eu caberia dentro. Talvez eu devesse me jogar em seu interior e morrer queimada. 
- Novamente? 
- Porra, Vincenzo! Não me assusta! - Recuo, irritada.
- Deixa eu te ajudar.
- Não. Eu vou deixar a lasanha no forno. - Decido, apoiando-me na pia cuja bancada é iluminada por 'led'. Linda! - Ainda tá cedo pra comer. 
- Eu tô com fome. - Afirma ele abrindo um sorriso. Escondendo o meu, refuto, num cochicho.
- Vc não é o dono da casa. Quem decide a hora de comer são eles. - Pressionando-me contra a parede, ele replica.
- Eu gostaria de ser o dono de uma casa como essa, Dess. Assim, eu te faria feliz.
- Imbecil! - Explodo, empurrando-o com minhas mãos espalmadas em seu tórax. - Quantas vezes vou ter que repetir que não quero dinheiro!? Que já tenho tudo o que desejo!? Que saco! Me deixa sair daqui, Vincenzo! - Em seus olhos azuis e tristes, enxergo revolta quando ele pergunta.
- Por que estornou o dinheiro da porra das aulas de dança!? Era um presente meu pra vc, cacete!
- Fala baixo. - Rosno. - Não estamos em casa. 
- Não. A nossa é bem menor do que essa.
- Vc tá com inveja!? - Um olhar incrédulo e ele responde.
- Não. Eu não sei o que é isso. Nunca senti. - Ainda com as mãos em seu peito, murmuro.
- Eu sei. Isso é coisa de seres humanos. Vc não é um deles.
- O que eu sou, Dess?
- Meu anjo, idiota. - Recostando minha cabeça junto ao seu coração, repito. - Meu anjo. Pra sempre. Pena que é burro pra cacete.
- Por que fez aquilo? Eu queria te ver feliz, longe de casa e do trabalho cansativo que é cuidar de duas crianças.
- Eu te pedi isso??? - Recuo, reiniciando a discussão. - Eu já te disse que não gosto de cuidar dos nossos filhos???
- Vc demonstra, porra!
- Tá enxergando muito, idiota! Eu estava passando por um momento ruim que, agora, já tá melhor!
- Mentira! Eu te ouço chorar no banheiro!
- O banheiro que, por acaso, ainda não tem água morna!!! Por que será??? Tem chuveiro novo, mas, água morna não!!!
- Eu vou instalar o chuveiro!
- Quando??? Aos quinze anos de Antoine???
- Eu não vou chegar aos quinze, mamãe. - Anuncia Antoine, tristonha enquanto Vincenzo me ampara em seus braços. Horrorizada, eu a escuto. - Parem de brigar. Faz mal pra saúde. Papai fica com dor na cabeça. Vc fica cansada e não consegue respirar. Meu maninho fica nervoso mordendo meus dedos e eu...
Aos prantos, de joelhos, eu a abraço ao perguntar.
- De onde vc tirou essa ideia de que não vai completar quinze anos, filha? - Vincenzo, ao meu lado, de joelhos, nos abraça com força enquanto imploro, aos soluços. - Fala pra ela, amor. Fala que ela tá errada. - Em silêncio, ele a encara. Volto a sentir a forte conexão entre ambos de onde eu sempre sou excluída. - Fala, Vincenzo! - Uma crise de tosse intensa e eu me afasto, recostando-me à parede fria. Cassie, desorientada, corre até a minha bolsa e, preocupada, traz consigo, meu xarope. 
- Toma, tia. Não surta. Ninguém aqui vai morrer. Ok? - Num tom divertido, ela argumenta enquanto engulo o líquido açucarado que acalma a minha garganta. Minha alma continua aflita. - Essa pirralha sempre foi esquisita. Vc sabe disso, tia. Fala umas coisas sem sentido. Ela disse que eu não teria filho e olha meu filhinho aqui! - Sua mão toca na minha, forçando-me a tocar em sua barriga. Sufoco um soluço. Erguendo-me do chão, peço desculpas pela cena em sua cozinha. - Bobagem, tia. Liam e eu também somos assim. A gente só briga pra fazer as pazes depois. - Uma gargalhada sonora e ela salta sobre Liam que a ampara em seus braços fortes. Seu belo rosto ruboriza ao ouvir Cassie comentar. - Nosso filhinho foi concebido após uma briga boa. Né, 'Coelhinho'?



- Sim. - Concorda ele, encantado.
- Aaah tá...- Resmungo, incrédula. - Ela deve ter pedido pra pintar o quarto de rosa e vc, com receio dela, discordou, mas, depois, voltou atrás. Ela insistiu em pintar de azul, embora vc quisesse amarelo. Ela perguntou: "Quem manda nessa casa, Coelhinho!? Vc respondeu engrossando a voz: "Vc, amor!"- Arranco risadas de Vincenzo enquanto bufo. - Grande briga. Conta outra, Cassie. - Arrastando-me até o forno, eu o abro e aviso. - Tá no ponto. Vamos almoçar?
- Vamos! - Exulta Antoine após se afastar de Vincenzo. - Eu tô 'varada' de fome, mãe! - Ainda assustada, sorrio. Penso que esquecer o que Antoine dissera há pouco é a melhor opção. Não quero estragar o nosso almoço e, principalmente, a alegria contagiante do casal que nos acolhe. Melhor esquecer, igualmente, o que acabo de ver quando, toquei na mão de Cassie e em sua barriga. Certamente, não vi o que vi.
Não mesmo. É o efeito do xarope.
Largo o refratário quente sobre a 'ilha'  em mármore no centro da cozinha assim que observo os olhos assustados de Liam e Vincenzo incidindo sobre mim.
- Não tem música nessa casa não? - Volto a resmungar. - Gente chata e invasiva ouvindo o pensamento dos outros. Um bando de fofoqueiros! Isso sim! - Levando a lasanha até a sala de jantar, impaciente e confusa, peço a Liam que se afaste de mim. 
- Não. Eu não vi nada, Liam. Relaxa. Ok? - Pressionando meu punho, ele implora num sussurro.
- Se viu algo, me conta. Por favor. 
- Eu contaria, se visse algo. - Minto. - Como diria sua 'princesinha': Fica 'de boas'.


- Agora quem não pode é vc! - Gargalho após a minha terceira taça de vinho tinto e caro. - O mundo gira, meu bem! 
- E vc vai tombar se não parar de beber! 
- Ah! Fica quieto, Vincenzo! Bebe um pouco e relaxa e me deixa em paz!
- E quem vai dirigir a Kombi!?
- Antoine! - Outra gargalhada e bebo mais um pouco. Adoro o modo como Vincenzo morde o canto da boca quando está contrariado e excitado. - Ela é capaz. Eu sei disso. Vc sabe. Todos aqui sabem que ela é especial.
- Dess, para de beber...
- Para de ser chato!
- Eu não ligo, tia. Não bebo faz tempo.
- Faz bem...- Concordo com a voz entaramelada. - Faz muiiito bem porque vai ter que ficar por muiiiito tempo sem beber pra dar leite ao seu bebê. Rimou.
- Isso não foi uma rima. - Refuta Vincenzo deitado, displicentemente, sobre o tapete felpudo próximo à lareira. - Isso foi uma repetição patética de duas palavras parecidas em uma frase estúpida.
- Estúpido é vc que não deu valor ao meu esforço e ao tempo em que eu fiquei sem beber ou 'fumar um beck' pra poder amamentar seu filho!
- Nosso filho! - Corrige-me ele de olhos fixos no teto. - Deveria ter continuado a não beber. Principalmente a não dar o 'seu beck'. Estaria mais saudável.
- O que é 'beck', mãe?
- Beck??? 
- "Beck Street Boys", pirralha. Nunca ouviu falar? Era uma banda de carinhas suspeitos e super fofos que dançavam pra caramba no tempo da sua mãe. 
- Eu ainda era uma criança! - Esclareço. - Mas valeu, Cassie! 
- Conta comigo. - Diz ela ao piscar e me lançar um olhar de cumplicidade. Pisco de volta. - 'O que acontece em Vegas, fica em Vegas'.
- Vc também, 'Little Princess'!?
- Eu o que, Coelhinho!? - Ela o confronta. - Vc acha que eu sou do tipo que fica 'dando beck' por aí!?
- Não. Vc!? Nunca! - Rindo afirmo.
- Eu dou o 'meu beck' pra quem eu quiser, quando eu quiser.
- Opa! - Exclama Vincenzo erguendo um dos braços. - Esse 'beck' é meu e só meu! - Caio do sofá e rolo no chão de tanto gargalhar. Cassie, rindo de mim, retira a taça de minha mão. Engatinhando, eu a tomo de volto ao afirmar.
- Não vou sujar seu tapete. Juro.
- Se sujar, limpa. - Diz ela grudada a Liam, sentados no sofá onde caberiam, no mínimo, dez pessoas obesas. - Relaxa, tia. Vc tá hilária hoje.
- Gosto disso. - Observo recostada à parede quente ao lado da lareira. - "Se sujar, limpa". Fácil. Gente rica é assim. Sujou. Limpou. Quebrou. Conserta. Comprou a porra de um chuveiro novo, instala.
- Lá vem ela...- Resmunga Vincenzo cobrindo o rosto com as mãos. - Puta que pariu. Eu mereço.
- Papai. - Repreende-o Antoine deitando-se ao seu lado. Matteo já se mantem sentado diante de mim, ereto, prestes a caminhar. Poderíamos ficar aqui, nessa noite chuvosa, entre pessoas que se amam, para sempre. Evitaríamos tanta dor...- Ouviu, mamãe!?
- Oi???
- Aí! Viu!? Bebeu muito! Não ouviu nada! - Reclama Vincenzo. - Eu não vou repetir!
- Cara! Tu é chato pra cacete! 
- Mãe! 
- Aaaai! Desculpa, filha! Mas seu pai tá insuportável! Velho e insuportável!
- Velho!? Eu!?
- Não! Eu! - Retruco aos risos. - Se juntar os anos que tu tem com os de Liam, dá pra trazer um Tiranossauro Rex pra dentro dessa sala! - Rindo sem entender a minha piada sem graça, Cassie discorda.
- Tira meu 'Coelhinho' dessa conta! Ele é muito mais novo do que o tio e vc juntos!
- Velha! - Celebra Vincenzo, de volta ao chão, onde rola de tanto rir. - Ela te chamou de velha, Dess! Velha!
- Para de rir, idiota. - Bebo vinho no gargalo, aliviada por ele estar sem dor. De olhos fixos nas labaredas, murmuro. - Talvez eu seja mais velha do que vc. Não me lembro.
- Do que tá falando, tia? Daqueles lances de vidas passadas? - Curiosa, ela me incita. - Conta aí! Vai!
- Tu não era corajosa assim quando vivia lá em casa. - Comento voltando ao meu corpo. - Morria de medo dos vultos, das visões de Antoine e de Sweet em seus últimos dias.
- É...- Um silêncio sinistro e percebo que estraguei o clima trazendo do passado, lembranças ainda presentes. - Eu ainda tenho pesadelos, tia. Ela querendo o sangue de Antoine...
- Perdão, Cassie. Eu não deveria...- Chorando contra o peito de Liam, ela revela. 
- Ela apareceu pra mim, num pesadelo e...
- O que ela disse?
- Nada. - Diz Cassie, de olhos fechados, levando a mão à barriga. - Não disse nada. Só me olhava com um sorriso sinistro no rosto.
- Esqueça, Cassie! - Peço, ajoelhada diante dela. - Sweet não vai tocar em vc! Ela está em um bom lugar!
- Então quem era, tia? - Liam a abraça com força enquanto meus olhos se enchem d'água. Temendo dizer a verdade, minto. - Sua imaginação, meu anjo. Vc viveu momentos ruins em nossa casa e, por isso, eu te peço perdão.
- Vc me acolheu em sua casa, tia. Quando meus pais morreram daquele jeito, vc me acolheu e se tornou uma segunda mãe pra mim. Não peça desculpas. Sem vc, eu nem sei onde estaria. 
- Porra...- Lamento de volta ao tapete. Chorando, dramaticamente, ergo meus braços e peço. - Para com essa palhaçada, Cassie. Agora eu me sinto muito mais velha. Segunda mãe??? Puta que o pariu!!!
- MAMÃE!
- Deixa ela, filha. Deixa ela. Ela se ausenta ouvindo essas músicas antigas.

Um olhar cúmplice e ele me sorri.






Distraio-me com Matteo enquanto os outros voltam a conversar sobre diversos assuntos. Há música no ambiente, logo, posso pensar no que acabo de ver. Em quem acabo de ver, no quarto de Liam e Cassie, ainda à espera de suas filhas.
Com a garrafa vazia em uma das mãos, finjo cambalear a fim de não chamar a atenção de Vincenzo. Caminho, descalça, até a suíte do casal onde a encontro.
- Por que ainda está aqui, Sweet? Eu vi o Arcanjo te levar. Por que voltou? Vc fugiu?
- Não. - Responde-me ela com os olhos úmidos. - Ele ainda quer uma vida, amiga. Eu vim pra não deixar que ele a tome.
- Não precisa. Eu cuido disso. - Um passo adiante e a toco no rosto fino, a pele fria. - Vá descansar. Suas filhas te esperam.
- Não quero que vc sofra, amiga.
- Não vou. - Recuo ao ordenar. - Volta! Em nome do Criador, volta ao teu lugar no Universo e a deixe em paz!
- Dess? Com quem falava?
- Sei lá. - Minto à procura de Sweet. Não a vejo. - Tô procurando o banheiro e me perdi.
- Dess!
- Verdade! - Minto mergulhando em seus olhos da cor do mar. - Achei! - Dentro do imenso banheiro, comento. - Esse aqui tem chuveiro com quatro temperaturas diferentes.
- Puta que pariu...- Um puxão em seu braço e o convido com a sutileza de um elefante.
- Vem! Filho da puta! 
- Dess!!!
- Eu te quero agora, panaca! Me fode com força!
- Rapidinho? - Ronrona ele.
- Rapidinho...- Concordo, sorrindo.
Finalmente, Vincenzo se prepara para instalar o chuveiro em nosso minúsculo banheiro. Antoine está no colégio. Matteo assiste, animado, ao filme preferido de sua irmã. Agarrado à borda do 'cercadinho', diante da TV, ele flexiona suas perninhas rechonchudas, animadíssimo. Com seu vocabulário próprio, ele balbucia as canções enquanto Vincenzo e eu aguardamos, ou melhor, disputamos por sua primeira palavra inteligível.
- Fala 'mamãe'! - Peço enquanto o gravo com a câmera de meu celular. O mesmo que Aiden me dera. Ainda há fotos dele escondidas em sua memória. Algo ainda me liga àquele homem. Algo que precisa ser arrancado, pela raiz. - Fala 'mamãe'! Papai não! Mamãe! - Grito distanciando-me de Matteo à medida em que me aproximo do banheiro onde gravo o que penso ser Vincenzo levando um choque elétrico sobre um banco em madeira. Chego a rir de seu susto. Engulo o riso assim que seu corpo despenca do banco. Grito, apavorada, enquanto sua cabeça se choca contra o piso molhado. Por centímetros, ela não se encontra com a quina do box, abrindo uma grande fenda em seu couro cabeludo. Jogo o celular contra o cesto de roupas sujas quando percebo seus tremores aumentando de intensidade. 'Não foi um choque', concluo. Levo segundos para assimilar a realidade. A dura realidade de que o homem que amo voltou a ter outra convulsão. Seu corpo todo se sacode sobre a cerâmica fria enquanto berro por socorro. Arrastando-o pelas axilas, eu me esforço ao máximo a fim de jogá-lo dentro da banheira. Abro a torneira de água fria, tapando o ralo com a mão trêmula.
- Aguenta firme, amor. Aguenta firme. Fica comigo, Vincenzo. Não me deixa. Não me deixa. Não me deixa. - Imploro sem forças. Metade de seu corpo está dentro da banheira. De sua cabeça escapam filetes de sangue que dão um tom marrom à água incolor. Horrorizada e impotente, tento erguer suas pernas e jogá-lo dentro da água fria como da primeira vez quando ele retornou para mim. A temperatura de sua pele está tão alta quanto da última vez. Com receio de machucar seu rosto, empurro suas pernas com força. Desespero-me ao vê-lo de bruços sem controle de seu próprio corpo submerso. Dentro da banheira, eu me esforço até conseguir desvirá-lo. Em decúbito dorsal, ele volta a si por segundos. A expressão de dor em seu lindo rosto me faz chorar ao implorar. - Volta, amor! Volta! 
- Matteo...- Uma única palavra e as fortes contrações recomeçam. Perco contato com o pai do meu filho, segurando-o pelo tronco, ajoelhada entre suas pernas abertas e tensas. Ondas se formam ao meu redor, encharcando o chão do banheiro. Há sangue na mão que segurou a parte posterior de sua cabeça. Instintivamente, eu o abraço forte e demoradamente. O peso de seu corpo triplica. Estou prestes a desistir quando ouço sua voz fraca pela segunda vez. - Matteo...na sala... 
- Não me deixa, amor. - Peço entre soluços. - Para de tremer. - Observo seu rosto e, tomada pelo pânico, eu o vejo sumir novamente. - VOLTA! - Ordeno diante de seus olhos revirados e da intensa força que o sacode por inteiro. Volto a escutar o choro de medo de Matteo. Desnorteada, molhada e exausta, escolho ficar com o pai do meu filho. Ele corre o risco de se afogar, embora eu sinta que meu filho não está sozinho. Há algo na sala. Sinto daqui. Algo que o assusta. Algo ainda mais aterrorizante do que ver meu marido convulsionar debaixo da água fria. Meu instinto maternal fala mais alto. Esvaziando a banheira, deito o corpo de Vincenzo, cuidadosamente, apoiando sua cabeça em uma toalha de banho enrolada sob sua nuca. - NÃO SE ATREVA A MORRER! - Berro aos prantos. Escorrego no piso. Caio de costas. O impacto é tão forte que sinto uma corrente elétrica percorrer toda minha coluna vertebral, do Cóccix até a última vértebra cervical. Exalo. Imobilizo-me por segundos. Voltando a sentir minhas mãos e pés, ergo-me, dolorida. Corro até a sala.
Em choque, estaco. Deparo-me com aquele que me persegue e a quem odeio, com todas as minhas forças, segurando meu filho....meu filho...MEU MATTEO EM SEU COLO! - MALDITO! - Avanço em sua direção. Ele me mostra suas unhas longas e pontiagudas roçando a pele do meu bebê. Salvar meu filho de suas mãos imundas é o que mais desejo. Salvar meu marido da morte, vem logo em seguida. Um leve tremor e, como uma drogada, minha visão se duplica. Sem opções, cedo espaço à minha outra personalidade que carrega em minha mão, o estilete de Antoine sobre a mesa da sala. - TE AFASTAS, EM NOME DO CRIADOR! - A voz ordena por mim. Em transe, ainda enxergo seu sorriso maligno. 
- Vc e seus desenhos inúteis. Cadê o sal? - Desdenha Lúcifer enquanto minha mão traça um círculo ao meu redor com o sangue que escapa de meus pulsos cortados. - Louca. Que sujeira. De onde vem esses teus ensinamentos? 
- Devolve-me a criança. - Ordena a voz, serena. Ele gargalha, sarcástico e confiante. - Não é ele quem vc deseja. Deixa-o comigo.
- E se eu não quiser? Seu marido está morrendo, meu bem. Nesse exato momento, seu cérebro está entrando em colapso. Mais alguns minutos e ele nunca mais será o mesmo. - Erguendo meus braços, ela retira Matteo de seu colo assim que rasga a pele de seu pulso. Dentro do círculo, juntando o meu pulso ao dele, a voz conjura. 
- Meu sangue é o teu sangue. Retrocede. 'Anjo Imundo'. Volte a vagar pela Terra e nos deixe em paz. - Enfraquecido e confuso, ele indaga antes de se esvair.
- Quem és tu?
- Sangue do teu sangue, Infiel. Porém, nunca te chamarei de 'pai'. Não até te vencer para sempre.
- Pai??? Impossível!!! - Desdenha Lúcifer.
- Suma! Em nome do Criador, traidor.  Suma de nossas vidas! 
- Que diabos vc fez, criatura!? Eu estou...!

A campainha toca. Antoine berra por meu nome. Lúcifer, perplexo, se desintegra diante de mim. Um chute forte e a porta se escancara. Outro forte tremor e retorno ao meu corpo. Ouço o grito de pavor de nossa filha e a voz confortadora de Enrico afirmando que Vincenzo vai viver. Enfaixando meus pulsos, ele me faz deitar no chão da sala. Matteo brinca sentado no 'cercadinho' como se nada houvesse acontecido.
- No banheiro...- Sussurro. Vejo homens de branco invadindo, apressados, nossa casa. Macas, vozes nos 'walkie-talkies'. O corpo de Vincenzo sendo carregado por paramédicos, deixando-me sozinha e esperançosa.
- Volta pra mim, amor. 
- Ele vai voltar, mamãe. - Afirma Antoine ao segurar minha mão e beijar meus pulsos enfaixados. - Descansa.

Um sorriso e, enfim, descanso. 

Eles me esqueceram por algum tempo. Tempo suficiente para que ela me levasse consigo e me mostrasse a verdade.




Anahita - Século VI A.C.

"Shennachie". Era assim que a chamavam. "Uma Contadora de Histórias" sobre magia, amor e lutas, passadas de geração à geração.
Viéramos de outras terras longínquas fugindo de guerras e escravidão. Minha avó e eu encontramos a paz entre o povo pagão que nos recebera com um certo receio. Apesar de viverem entre seres de outro mundo como fadas, duendes e faunos, eles nos temiam. Temiam a luz que se irradiava de minha avó. 

Ela me ensinara tudo o que sabia sobre o poder da terra, do vento, da água e do fogo. Dos mares e oceanos, rios e árvores. Ensinara-me a ser forte porque, segundo ela, eu teria que lutar contra forças malignas quando crescesse. "Que forças?", eu perguntava ainda criança e inocente. "Tudo no tempo certo", dizia ela abraçando-me em noites de tempestades. Pouco falava sobre minha mãe e, eu, pouco lhe perguntava porque a via chorar nesses momentos. Minha avó estava sempre sorrindo, exceto quando eu perguntava sobre minha mãe. Tempos depois, soubera que minha mãe morrera dias após o meu nascimento. Uma morte lenta e dolorosa causada por um pai que passara a temer.
Enquanto crescia, aprendia a cultura do povo pagão e suas crenças na natureza sagrada e na transmigração de almas. Participava de suas práticas religiosas ao ar livre e, aos poucos, fora perdendo o receio de ser como as mulheres selvagens, belas e um tanto despudoradas de nosso grupo. De quase todas as festas, eu participava, exceto às que incluíam sacrifícios humanos. Seus gritos, urros enquanto dominados por forças que eu desconhecia, assombravam-me. Minha avó, compreendendo meu temor e o perigo em me expor a esses momentos onde todos perdiam o controle sobre si mesmos, afastara-me deles, levando-me consigo até o topo de um penhasco onde construímos nossa casa, com argila, madeira e palha, e vivemos em harmonia por um longo tempo. Tempo em que a vira envelhecer e morrer em meus braços. Em paz, ela se foi deixando-me um conselho: "Siga o seu coração. Vc é uma alma limpa. Não importa quem seja seu pai".

Sozinha, seguira seu conselho, vivendo isolada, ouvindo minha intuição. Ao meu redor, utilizando a Magia, criara muros invisíveis aos olhos humanos que me protegiam do ataque dos homens selvagens. No entanto, as mulheres pagãs me procuravam. Minha fama de curandeira se espalhara pela tribo cada vez maior e mais descontrolada, animalizada. Do penhasco, ouvia seus uivos em noites de lua cheia. Noites de sacrifícios a um deus que eu não reconhecia como o meu. Parecia-me impossível que o mesmo deus que criara todo o esplendor ao meu redor pudesse aceitar as oferendas sangrentas como barganha. Sentada à beira do penhasco, ouvindo o ruído das ondas, lá embaixo, contra os rochedos, observando o céu obscuro acima de mim, chorava de saudades de minha avó. Pela manhã, eu me rendia às sombras, criando unguentos e fórmulas que não serviam apenas para curar, em troca de alimentos e uma espada forjada no fogo do interior de um vulcão. Arma que me protegeria de homens vivos ou mortos ou qualquer outro ser que me fizesse mal. À noite, próxima ao penhasco, pedia perdão àquela que me criou para ser luz. 

Fora em uma dessa noites que o vira pela primeira vez. 




Assustada com o movimento incomum entre as nuvens, percebo algo se aproximando com asas imensas e passos tranquilos. Afastando-me dele, indago.
- De onde veio? Qual a natureza de seus sentimentos?
- Meu coração é bom. Não há necessidade de usar a tua espada.
- Não me diga o que fazer. Eu não o conheço. - As nuvens se movem no céu. A lua cheia surge entre as nuvens, iluminando seu rosto perfeito. Seus olhos cheios de alegria me fitam com pureza. Recuando, alerto. - Já ouvi histórias sobre vcs! Descem dos céus e fazem mal aos Humanos! Às mulheres, especificamente.
- Não faço parte de sua história, Anahita.
- Como sabe o meu nome!?
- Eu ouvi. - Diz o homem alado com simplicidade. Demonstrando receio, ele me pede. 
- Poderia afastar essa espada? Ela me assusta. Não sou afeito à violência. Essa é a minha primeira incursão em seu mundo, Anahita, neta de "Shennachie", a Contadora de Histórias.
- Vc a conhece!? - Pergunto, esperançosa. - Vc a viu em algum lugar!? Ela perguntou por mim!? - Seu sorriso é encantador.
- Sim. Digamos que ela esteja em um lugar privilegiado, ao lado do Nosso Pai.
- Pai? Não sei quem é meu pai!
- Nosso Pai. O Criador. - Elucida ele ao se sentar ao meu lado e encolher suas asas. Olhando para o abismo, ele graceja. - Sabe que se cair daqui o estrago vai ser grande. Não é?
Deixo escapar um riso curto. Não me lembro da última vez em que ri tanto ou que conversei por tanto tempo com um homem. Na verdade, eu nunca havia estado com um homem antes. 
- Eu não sou um homem. Sou um anjo. Eu 'desci' por curiosidade. Muitos dos meus, falam de vcs. 
- Nós? Quem? - Ruborizando, ele responde.
- Vcs. As mulheres da Terra.
- Não sou uma delas. Não tenho amigas. Moro sozinha, aqui, desde que minha avó se foi. - Estendendo-me sua mão, ele afirma.
- Já não está sozinha, Anahita. Pode contar com a minha amizade. Sou Cassiel. - Apertando sua mão, sem saber o que fazer, agradeço. - Seu nome não é celta. Acaso tem algum envolvimento com a 'deusa da fertilidade'.
- Quem?
- Anahita é o nome de uma de nossas irmãs. Os Humanos a chamam de 'deusa da sabedoria, da água e da fertilidade'. Ela é persa. Vc a conhece?
- Não...- Lamento. - Se a conhecesse, eu estaria ao lado dela, perto de minha avó. 
- Vc ainda é muito nova. Ainda vai viver muito aqui na Terra. 
- Não quero. Não gosto do que faço.
- E o que faz?
- Poções mágicas que, nem sempre, são usadas para o bem.
- Ah. Entendo.
- Vc me condena.
- Não. Eu nada sou para te condenar. Vc vive sozinha. Precisa trabalhar para se manter viva.
- Esse lugar é pesado.
- Pesado?
- Sim. Sufocante.
- Sufocante? - Reviro meus olhos e tento mais uma vez.
- Difícil!
- Difícil!? Não entendi!
- Todos os anjos são burros ou é só vc mesmo? - Sua gargalhada me faz sorrir e sentir borboletas em meu estômago. - Desculpa. Eu não sei lidar com homens.
- Que bom que não sou um deles. Sou um anjo.
- São os piores. - Comento. - Há rumores de que vcs descem à Terra e fecundam mulheres e as abandonam.
- Se eu fecundasse uma delas, eu jamais a abandonaria.
- Duvido. Como conseguiu ultrapassar meus muros!? Eu os fiz para me proteger do Mal!
- Sinal de que eu sou bom. Eu passei por eles sem esforço algum.
- Já fecundou alguma mulher?
- Nunca. Eu nem saberia como fazer isso. - Um sorriso tímido e ele confessa. - Acredite. Eu sou um anjo puro em todos os sentidos.
- Eu também. - Confesso. - Jamais fui tocada por homem algum. Nem por anjos.
Rimos juntos até ficarmos em silêncio. Compartilhamos um olhar envergonhado e arfamos juntos. 
- Vc vai voltar!? - Grito antes de vê-lo alçar voo. Sorrindo, ouço sua voz responder em minha cabeça. 

"Sim. Eu voltarei, Anahita. Por  vc."


E ele retornou. Por mim, ele retornou. Ríamos juntos e conversávamos do anoitecer até o raiar do sol quando ele, contra sua vontade, alçava voo em direção ao céu. Um céu cada vez mais azul e revigorante. Eu o esperava todas as noites. Vestia o que havia de melhor, ainda que nada tivesse além de meus farrapos cerzidos por diversas vezes porque, antes, eu não me importava em vestir roupas velhas. Agora, é diferente. Eu quero...eu preciso estar bem vestida assim que ele me olhar novamente. Uma vontade impura nasce a cada vez em que ele me toca. Penso em mostrar meu corpo a ele. Em mergulhar no lago e observar seu corpo, suas asas, seu belo rosto. Seus dentes sempre brancos tão diferentes dos dentes dos homens brutos da aldeia onde não pusera mais os pés desde que ele surgira em minha vida. 

Ele me ensinara coisas sobre o seu mundo, seu Deus. Eu lhe ensinei a dançar, plantar e colher. 
- Aceito. - Dissera a ele deitada ao seu lado sobre a relva fresca. - Aceito o seu Deus como sendo o Meu. O que sente quando está comigo?
- Não sei. É tão forte que me dá medo. Penso em estar com vc o tempo todo e, quando estou, penso no tempo em que terei de ficar longe de vc e no que fazer até te encontrar novamente. Dói. O que é isso?
- Não faço ideia. - Rimos juntos. De mãos dadas, confesso. - Sinto o mesmo. Quero vc aqui, o tempo todo. Não tenho medo quando estou com vc. Confio em vc e quero me entregar a vc de corpo e alma.
- Entregar?
- Perdão. - Arrependo-me. - Falei demais.
- O que isso quer dizer?
- Não sei ao certo. Aprendi com as mulheres da aldeia. Elas se entregam aos seus homens dentro de suas cabanas. Eles fazem barulhos estranhos...
- E, se vc se entregar a mim, faremos barulhos estranhos? 
- Não sei! - Gargalho. - Não sei o que dizer. Perdão. - Enxugando minhas lágrimas com seus dedos suaves, ele me faz dançar sob a lua que se despede da Terra. - Não há música.
- Há sim. - Afirma ele, de olhos fechados. - Ouça. Há música todos os dias assim que o sol nasce. Consegue ouvir?
- Ainda não. - Trançando meus cabelos, ele murmura em minha nuca. 
- Feche os olhos e apure sua audição. Vc vai ouvir. - Sentindo algo mais do que um profundo alívio, exalo.
- Eu ouço. Eu te sinto.
- Eu quero me entregar a vc, Anahita. Vc me ensina como se faz?
- Descobriremos juntos...

Minha avó nada me dissera sobre o amor entre um homem e uma mulher. Talvez por saber que eu jamais amaria um homem e sim, um anjo. 
Em seus braços, eu aprendi a ser mulher. Em meus braços, ele se tornara homem por algumas horas. Horas preciosas e inesquecíveis. 

Levaria comigo a lembrança daquela noite pela Eternidade. 

A noite em que um anjo deixara sua semente dentro de mim.
Ela cresce a cada dia, embora ele tenha partido sem participar do momento mais importante de nossas vidas. 
"Eu te amo. Eu volto em breve", dissera-me ele antes de sumir de minha vida. Antes da Escuridão chegar. 


Isolada e amaldiçoada pelo povo que me acolhera junto à minha avó, eu conto as luas à sua espera. Nosso filho cresce dentro de mim enquanto choro e oro ao Seu Deus para que o meu anjo retorne e me leve consigo. 
- Vc o conhece? 
- Sim. Eu o conheço. Ele é o meu melhor amigo. - Dissera um outro anjo com traços finos em seu rosto e um sorriso que me dá calafrios. - Posso me aproximar de vc?
- Pode.
- Não consigo. Estou tentando e não consigo.
- Entendo. - Olhando-o com desconfiança, comento. - Seu amigo atravessou meu muro sem problema algum. Estranho. Não é?
- Deixa-me passar.
- Onde está Cassiel!?
- Preso. - Responde-me ele, à distância.
- Preso!? Por quem!?
- Por seu Criador. 
- Por quê!?
- Por insubordinação. Talvez, vc tenha culpa nisso tudo.
- Eu???
Contando-me sua versão da história, o anjo cujas asas escuras me fazem tremer dos pés à cabeça, afirma que Cassiel, o meu anjo, voltará assim que o libertarem. Confiando em suas palavras, eu o vejo partir e se juntar a outros anjos tão sombrios quanto ele. Eles voam em bandos envoltos em uma nuvem acinzentada. Arrependida, penso que deveria ter seguido minha intuição e esperado por Cassiel. Confiado no amor que ele dissera sentir por mim, mas, a solidão dói. Dói muito. Foram dias e noites à espera de alguma notícia enquanto tentava sobreviver aqui, na Terra, sem o auxílio dos selvagens que se negavam a me alimentar. Vivemos de água, peixes e alimentos silvestres. Meu filho e eu viveríamos assim por anos desde que soubéssemos que Cassiel retornaria aos meus braços, mas, tudo mudou quando o anjo sinistro trouxera-me a terrível mensagem.
- Houve uma rebelião no Céu. Cassiel liderou a rebelião e fora punido e extinto, para sempre, do nosso mundo e do seu. - Incrédula e aos prantos, eu o escuto atentamente, apoiando minhas mãos no cabo da espada. Inadvertidamente, ultrapasso meu muro de proteção e me deixo levar por ele até o penhasco onde ele me incita a pular. - Nesse mundo, vcs nunca mais se encontrarão. Graças ao deus que ele te apresentou. Esse mesmo deus tirou Cassiel de vc, meu bem. Isso é tão cruel...
- Impossível. Meu Cassiel é um bom anjo. Jamais faria algo assim.
- 'Seu Castiel'? Que intimidade! - Ignorando sua expressão de desprezo, indago.
- O que devo fazer? Eu preciso encontrar Cassiel novamente. Nosso filho...- Lançando um olhar indecifrável ao meu ventre, ele se afasta e sugere. 
- Pule. 
- Cassiel não gostaria...
- Cassiel te aguarda do 'Outro Lado', querida. Onde nenhum deus haverá de separá-los.
- Tem certeza disso? - Um sorriso cínico no canto da boca e ele afirma.
- Absoluta. A menos que queira acabar como sua mãe. - Arquejo sentindo o ar frio soprar contra meu rosto. - Ela sofreu por muitas horas até o fogo consumir sua carne podre.
- Como sabe disso? - Sussurro. - Minha avó nunca me contou quem é o meu pai ou como minha mãe morreu.
- Sua avó sempre foi uma mulher inteligente. Assim que me viu pela primeira vez, tentou me impedir de tocar no corpo sujo de sua mãe, mas, eu a quis. Fazer o quê? Quis experimentar o que todos experimentavam. Todos a desejavam por ser a mais bela de todas as mulheres de sua tribo. Da tribo de onde fugiram até chegarem aqui. Uma mulher temente a Deus. O que mais eu poderia desejar além de desviar uma alma pura e ainda provar do pecado que baniu o Homem do Paraíso? 
- Pare, por favor...- Peço, sem forças, mantendo-me de pé, esperando por um milagre. 
- Sua mãe esperou pelo mesmo milagre e eu a fecundei. Eu a fiz sofrer durante o coito. Eu a fiz sofrer durante a gravidez de um humano indesejado. Eu a fiz sofrer durante o parto e eu a fiz morrer! 
- Quem é vc!? Por que a odeia tanto!?
- Eu odeio mulheres! Eu te odeio por roubar o amor de meu melhor amigo e desvirtuá-lo do caminho correto. Graças a vc, ele 'caiu' e se perdeu, miserável!
- Não entendo! 
- Cala a tua boca, estúpida! Vc é a culpada por tudo o que acontecer a Cassiel! Ele é meu e sempre será!
- Não. Não mesmo. Cassiel é puro. Vc tem a aura escura, repulsiva. Não sei quem é, mas sei que é mau. - Recuo enquanto ele, raivoso, avança em minha direção. 
- EU MATEI SUA MÃE, ANAHITA!
- Não fale comigo. Vc mente. É o 'Mal Encarnado'. Um 'deamhan!'
- Quem sabe?
- Minha mãe está em um bom lugar. Eu sei... - 
- Sim. Até que eu consiga alcançá-la. Então, eu a farei sofrer pela Eternidade.
- Não. Vc não tem poder. Há medo em suas palavras. Eu sinto. - Apontando-lhe minha espada abençoada por Cassiel, eu o mantenho afastado. Extremamente pesada, ela me faz cambalear. Cravando-a na terra, vejo o chão se rachar até seus pés imundos, as unhas imensas. - Vc é maligno.
- Perspicaz. - Desdenha ele. -  Pena que sua perspicácia já não faça diferença. Atearam fogo em sua casa. Mataram as plantas do seu pomar. Que povo rude...
- Vc e seus amigos os incitaram a destruir o pouco que eu tinha.
- Pode ser. Eles são tão fáceis de serem manipulados. Assim como vc. Vai pular ou viver sem Castiel? A escolha é sua.

Sem esperanças em permanecer na Terra, imaginando a dor de minha mãe e reconhecendo esse ser medonho como meu pai, entrego-me a um desânimo profundo. 

Como o deus de Cassiel permitiria tamanha injustiça? Minha mãe não merecia. Meu filho não merece.

- Acorde, mulher! Eles estão chegando!

Enlouquecidos por alguma força sinistra, os homens selvagens se aproximam de mim. Sinto suas intenções. Temo pela vida de nosso filho. Perdendo a sanidade e sangue, esvaindo-se entre minhas pernas, indago. 
- Vai doer?
- Vai. - Responde-me o verme, rindo de meu sofrimento. Olhando a turba enfurecida que urra enquanto caminha, ele aconselha. - Melhor pular logo antes que eles toquem em seu corpo e o machuquem por horas e horas. Seu filho vai ficar em pedacinhos.
- Verme.
- Pule.
 Cercados por anjos com asas escuras, a turba se aproxima. Sem opções, ainda esperando por uma súbita aparição de Cassiel, levo minha mão ao ventre. 

- PULE, IDIOTA! - Resisto, atordoada, erguendo, com esforço, a espada abençoada. Sua lâmina afiada atinge o peito de meu inimigo. Sangue escuro e fétido verte de suas entranhas. Alucinado, ele me xinga e avança sobre mim. Segundos antes de ser empurrada pelas mãos de Lúcifer, ouço a voz do meu anjo gritar por meu nome.

Nossos dedos ainda se tocam enquanto mergulho de encontro às rochas. Sinto sua pureza, seu amor e sofrimento. Ouço meu nome uma vez mais e o baque surdo do impacto.

Não sinto dor alguma. Apenas saudades de Cassiel e do meu filhinho que não chegara a ver. Vagueio pela Terra com uma única e imensa vontade: vingança contra o 'Anjo Caído' que me separou do único homem a quem eu amei.






Dias Atuais

- Foi um sonho. - Afirma Liam.
- Foi muito real, Liam! Eu senti seu toque, seu cheiro!
- Há sonhos muito reais, Adessa. Não se deixe abater por esse sonho. Não há nada de maldito em vc ou em seu filho. Vc é uma alma bondosa. - Uma careta e refuto.
- Eu não tenho nada de bom, Liam. Mas, isso não me preocupa. - Diante da máquina de Cappuccino, arquejo dolorosamente. - Temo pelo nosso filho. Se for real, ele tem o mesmo sangue daquele verme em seu corpinho. - Tomando o copo de minha mão, Liam me repreende.
- Não há nada de real em um sonho. Por isso, são chamados de sonhos. Ok?
- O que vcs tanto cochicham!? Vou ficar com ciúmes! - Tomando o copo de Cappuccino da mão de Liam, resmungo.
- Era o que me faltava, Cassie! Vc com ciúmes de mim! - Caminho de volta ao quarto do hospital onde Vincenzo permanece internado. Sem que ele perceba, eu o vejo deitado, observando o céu através da janela. Levo a mão à boca, tentando, inutilmente, conter minhas lágrimas. Por que diabos alguém leva a mão à boca quando chora!? As lágrimas saem dos olhos! Enxugo meu rosto com o dorso da mão antes de surgir diante dele e forçar um sorriso.
- Não adiantou nada, Dess. - Alega Vincenzo recostado à cabeceira do leito, com a cabeça enfaixada. - Eu ouvi tudo.
- Tudo sobre o que, idiota? - Indago, receosa. Não quero que ele saiba nada sobre o sonho tão real quanto esse momento. - Sua cabeça ainda dói?
- Não desconversa, pateta. - Sorrindo, ele bate com sua mão direita sobre o colchão e me convida. - Senta aqui e me conta a porra desse sonho. 
- Nunca! Eu não sonhei, palerma!
- Então conta o que vc viveu, cretina! Já renovou o curativo desses pulsos, Dess? O que vc andou fazendo!? Por que eles abriram novamente?
- Sei lá! Abriram! Só isso!
- Pulsos suturados não se abrem, cacete!
- Acontece.
- Vc os cortou há séculos, Dess!!!
- OS MEUS ABRIRAM!
- Não precisa gritar. Eu ainda ouço muito bem. O que Lúcifer tem a ver com tudo isso?
- Quem falou dele???
- Vc pensou, ridícula. - Outra risada e ele leva aos mãos ao curativo na cabeça. - Porra. Não posso rir.
- Apesar de parecer, vc não é um pai-de-santo em uma consulta, Vincenzo! Para de me irritar! - Voltando à seriedade, ele me pergunta.
- Vc tentou se matar? Não me deixa, Dess. Eu vou melhorar, cachorra.
- Desde quando eu sou mulher de largar meu marido e filhos!? Isso foi um acidente!
- Uau. Um mega acidente. Vc tentou se depilar com lâmina, bebendo vinho e, de repente, pensou: "Vou raspar os pelos dos meus punhos"? Ou foi a cabeleireira que, 'doidona', confundiu seu pescoço com seus pulsos? Dois cortes horizontais nos pulsos. Acidente? Ah tá.
- Não vou gastar meu tempo tentando te explicar como foi, bastardo!
- Nem precisa, Dess. Já sei que fez merda!
- Merda pra salvar nosso filho, crápula! E ainda me olham como se eu fosse uma suicida em potencial!
- 'Putz'. O que eu mais gosto entre vcs é a forma carinhosa como se tratam. - Zomba Cassie ao entrar no quarto. - Apelidos fofinhos, delicados...
- Liga não, Cassie. Isso é vontade reprimida de ter alguma coisa que eu não posso dar, no momento. Entende? - Aos risos, ela responde.
- "Copiei, chefe".
- Melhor do que 'Coelhinho'! - Defende-nos Antoine. - 'Little Princess' é patético.
- Patética vai ser a sua saída desse quarto se continuar a se meter em assunto de adultos.
- Ela nos defendeu, Dess.
- Cala a boca, Vincenzo. Nem a queda melhorou teu raciocínio!? - Ouço a risada elegante de Liam enquanto o repreendo. - Antoine é uma criança e deve ser muito bem educada pelos pais que, por acaso, somos nós dois. Se vc continuar a passar a mão na cabecinha dela, vamos criar um monstro.
- Nunca...- Suspira ele lançando um apaixonado à filha. - Antoine é um anjo e sempre o será.
- Gostei, pai! - Exulta ela, batendo palmas. 
- Cala a boca, pirralha! Vão te descobrir aqui e o nosso plano de ter te enfiado nesse quarto, às escondidas, vai por água abaixo. - Encolhendo os ombrinhos, ela concorda. 
- É mesmo. Vou ficar quieta, debaixo da cama.
- Não precisa tanto, querida. Eu não vou permitir que tirem vc daqui.
- Vc tem poderes igual ao meu pai. Né, tio?
- Não, filha. - Lamenta Vincenzo. - Seu pai já foi um herói. Hoje, eu tô 'no bagaço'. Tio Liam 'tá com tudo'! - Rindo, ela se joga sobre as pernas de Vincenzo e, como um gatinho em uma noite fria, se aninha entre elas. - Te amo, filha.
- Te amo, pai. Vc vai sair daqui rapidinho. Podes crer.
- Posso?
Rimos juntos até encararmos a realidade. 
- Bebe esse café, Dess. Tá com ele na mão há séculos. 
- Aaahh...é...- Um gole e reclamo. - Tá frio. Quero falar com o médico. Cadê ele?
- Não volta hoje não. Só amanhã.
- Não mesmo! 
- Aonde vai, Dess!?
- Falar com ele! Vc já não era bom da cabeça antes do tombo. Depois...piorou. Perguntou pra ele quando vai ter alta!? - Baixando a cabeça, ele silencia. Um olhar ao redor e todos estão olhando para o chão. - Ei! O que tá rolando aqui!? O que médico disse que eu não sei!?
- Calma, Dess.
- Calma é o cacete! - Avanço sobre ele ao rosnar. - Tá me escondendo alguma coisa, Vincenzo!?
- Não...
- Calma, mamãe. Papai não pode falar muito.
- Vc estava aqui quando o médico falou com teu pai!? - Rindo, ela assente com a cabeça.
- Eu me escondi no banheiro. - Abraçando-a com força, sussurro.
- Conta pra mãe o que ele disse, filha. Conta tudo.
- Não, filha.
- Eu vou, pai. Ela precisa saber. - Olhando em meus olhos, ela me faz prometer que ficarei calma. - Vai. Promete.
- Prometo. Conta tudo.


Invado a Enfermaria à procura de respostas. Discuto com uma ou duas das enfermeiras enquanto uma outra, mais madura, elegantemente, retira-me da sala. No corredor da ala onde Vincenzo está internado, reclamo.
- Preciso de notícias sobre o meu marido e ninguém nesse lugar sabe quando o médico vai retornar. 
- Peço que se acalme, senhora.
- Vc se acalmaria se o homem de sua vida estivesse prestes a morrer e a te deixar sozinha nesse mundo hostil!? Eu só quero saber o que ele tem e o que pode ser feito pra que ele saia daqui, saudável! Meu marido era o homem mais saudável da Terra antes de se casar comigo! Eu estraguei a vida dele! Vc consegue entender que eu estraguei a vida dele quando ele se casou comigo!? Vc consegue imaginar como eu me sinto!?
- Vc poderia respirar e se acalmar só um pouquinho? - Diante de sua delicadeza, eu me calo. Inspirando e expirando profundamente, eu me deixo conduzir até a capela do hospital. Uma sala pequena e aconchegante. Das paredes, escapam vozes de pedidos e orações. No altar, a imagem de um anjo que desconheço. Acima dele, pregado à parede, 'O Crucificado'. - Perdão. Eu não queria ser rude. Eu tô perdida. Tem acontecido tanta coisa em nossas vidas que não consigo respirar. Eu queria viver em paz com nossos filhos e com o homem que amo, mas não consigo.
- Bem-vinda à vida na Terra, filha. - Diz a senhora com cabelos escuros e presos por um coque comportado. - Viver nesse planeta, normalmente, é assim. Poucos são os momentos felizes aos quais devemos nos entregar de corpo e alma porque não sabemos quando eles retornarão. - Sentada ao seu lado no banco retangular em madeira, eu peço.
- Me deixa falar com o médico dele. 
- Não precisa. Eu tenho informações sobre o caso de seu marido. Sou eu a enfermeira que o atende. É um homem forte e cheio de fé. 
- Força e fé não vão pagar a conta desse hospital. Força e fé não irão curá-lo de uma anemia profunda que causa convulsões. Eu estou exausta. Vou enlouquecer se vir meu marido daquele jeito novamente.
- Força e fé vão te levar a um lugar onde as respostas te esperam.
- Pare de divagar e seja direta. Do que o meu marido precisa pra ficar curado de uma doença que vcs sequer sabem diagnosticar!?
- Além de força e fé? - Reviro os olhos, impaciente. Sorrindo, ela responde. - De uma transfusão de sangue. Uma das grandes.
- 'Transfusão de Glóbulos Vermelhos'!?
- Sim. Mas, dificilmente, eles o farão. 
- Por quê??? Ele vai morrer se nada fizerem!!!
- Ele pode morrer durante a transfusão. Não só ele como o doador do sangue. 
- Eu posso doar. Nosso sangue é compatível!
- Não é não. O dele tem algo de especial.
- Como sabe!?
- Sou eu quem colhe seu sangue, querida. E o seu sangue não pode ser doado a ele.
- Por quê???
- Vc sabe...
- Não! - Irrito-me. - Do que tá falando!?
- Seu sangue também não é comum.
- Olha! - Solto o ar dos pulmões pela boca. Tentando permanecer calma, aviso. - Eu não quero ser grosseira com a senhora, mas, se não me disser algo de concreto...! - Modulando o tom de voz, ela sugere.
- As convulsões podem ter outra origem.
- Qual?
- Não sei. Não tenho estudo para dizer, mas, posso especular.
- Qual??? - Insisto, impaciente.
- Acredita em ataques espirituais? - Meus olhos se fixam nos dela enquanto ela prossegue. - Seu marido tem luz própria. Daquelas que chamam a atenção dos que andam nas Trevas. - Recuando, desconfiada, indago.
- Por que tá falando disso? Não faz sentido. Uma profissional da Saúde misturar Ciência e Religião.
- Não falei de religião. Falei de espiritualidade.
- Não importa! Isso é bobagem!
- Uma coisa se liga a outra, querida. Assim como eu me ligo a vc que se liga a Vincenzo que se liga à pequena e valiosa Antoine. O sangue dela é valioso. - Um súbito e forte recuo e quase caio da cadeira.
- Como sabe o nome da minha filha???
- Nós sabemos de muita coisa, querida. Melhor seria cooperar e deixar que Vincenzo siga seu caminho de volta. Afinal, vc mesma acaba de confessar que faz mal a ele. Vc nada é além da puta com quem ele teve um filho por acidente. Um filho com um sangue raro.
- Pro inferno, vaca. Enfia teu conselho no cu. - Murmuro, assustada. - Te afasta de mim e da minha família.
- Estamos todos juntos, unidos, há séculos. 
- Diga teu nome e suma de nossas vidas.
- No nay never, vagabunda. - Ergo-me da cadeira e corro até o altar. Arrepiada dos pés à cabeça, eu a vejo se transmutar diante de mim. - O filho é meu. O homem também é meu, querida.
- Celeste? 
- Não vou desistir de Vincenzo. Tampouco do sangue daquela que nos libertará. Um mundo novo terá início, Adessa e, vc, tão pequena e insignificante, nada vai poder fazer para nos impedir.
- Vc surtou de vez, Celeste! Que porra de mundo novo é esse!? Não se preocupa com Enrico!? 
- Enrico é um tolo. Ele escolheu o lado errado. 
- Maldita. - Rosno. Ajoelhada ao lado da imagem do anjo, fecho meus olhos e grito. - Sai daqui! Em nome do Criador, sai daqui e deixa a nossa família em paz!
 
A mão pousa em meu ombro quando, de olhos fechados, grito. 
- NÃO ME TOCA!
- Adessa, meu anjo. Vc está bem? - Reconhecendo sua voz suave, ergo a cabeça e, abrindo os olhos, pergunto.
- Como vou saber que vc é vc e não mais um deles fingindo ser vc?
- Uma pergunta complexa. - Diz ele sorrindo com seus lindos olhos azuis e tristes. - Venha. Vamos ver seu lindo marido que, por acaso, é meu filho.
- Eu tô com tanto medo, Enrico. - Um abraço forte e eu o vejo cavalgar em um imenso jardim diante do castelo. Celeste acena para ele, sorrindo, em uma época distante. - Ela sempre foi surtada assim ou somente nos últimos séculos? - Rindo do seu jeito de rir, dentro do elevador, eu o observo. Seu olhar se distancia ao responder.
- Celeste sempre teve problemas de conduta. Alvo fácil para o Mal. Mas eu a amava. Eu a amava muito. 
As portas do elevador se abrem quando indago.
- Amava? Não ama mais? - Saímos do elevador. As portas se fecham atrás de Enrico. Então, o que ouço me deixa perplexa.
- Tudo tem limite, meu anjo. Até o amor. - Um suspiro e ele repete com profunda tristeza. - Até o amor. - Mudando drasticamente sua expressão, seus olhos azuis me encaram ao perguntar num tom de reprovação. - Por que vc nunca me falou sobre um tal de 'Pix'!? 
- Oii??? - Eu o sigo no corredor enquanto ele resmunga. 
- Teria me poupado muito tempo e trabalho, querida. Muito tempo e trabalho.
- Enrico! Me espera!


Assim que Enrico faz sua entrada triunfal no quarto de Vincenzo, Antoine salta sobre ele e o enche de beijinhos em suas bochechas rosadas. Sou obrigada a recorrer à elegância de Liam que a acolhe em seus braços enquanto Enrico respira e nos conta sua história. Dramático como a neta, ele diz que havia perdido as esperanças ao ver Celeste rasgar o cheque com o valor da venda do castelo na Itália. Passara dias pensando em como recuperar o dinheiro sem encontrar uma  solução. Celeste o atormentava ao afirmar que ele jamais o recuperaria.
- O dinheiro estava na conta. Em algum banco. - Considera Liam.
- Exatamente! - Exulta ele com seu olhar astuto. - Foi nisso que pensei após dias e dias de sofrimento. Fui ao banco onde nos deram o cheque. 
- Por que pediu um cheque, Enrico? Além de arcaico, é perigoso. - Argumento ao relembrar o olhar insano de Celeste na capela. - Se cair nas mãos de gente louca...- Sob o olhar repreensivo de Vincenzo, dou de ombros e me sento ao seu lado. Desesperançada, comento. - Tem tanta forma mais moderna de lidar com dinheiro hoje em dia.
- Exatamente o que pensei! Voltei ao banco e, qual não foi a minha surpresa em ser notificado de que o dinheiro ainda estava lá!?

Todos se entreolham, curiosos. Contendo um riso, Cassie pergunta.
- É sério que vc pensou que o cheque era a grana da venda do castelo!? A grana real!? Tio! Aquilo era somente um papel!
- Foi exatamente isso que o gerente simpático do banco me disse! - Assegura ele, animadíssimo. - Eu quase lhe dei um beijo na boca de tanta alegria! O dinheiro ainda estava na conta onde eu o deixei após a venda do castelo! Celeste tentou retirá-lo sem minha assinatura e não conseguiu! Foi quando ele me perguntou sobre um tal de 'pix'!
Cassie gargalha de se jogar no sofá. Antoine a imita e comenta.
- Meu avô é simplesmente esplêndido, né!?
- Ele é hilário! - Exclama Cassie. - Continua, tio!
- Então...- Suspirando, ele prossegue. - O gerente me disse que eu poderia fazer um 'pix'. Eu, elegantemente, me levantei da cadeira e o agradeci sem ter a menor ideia de como se faz isso. Tudo mudou tanto desde a última vez em que estive aqui! Pix! Que palavra interessante! Pix!
- E vc ainda não o fez!? - Indago, ansiosa. 
- O quê!?
- O 'pix', Enrico!!! Vc ainda não fez o 'pix'???
- E como se faz um 'pix'!? Que material eu devo usar!? Como devo proceder!?
- Vc não perguntou ao gerente!? Ele não te explicou!?
- Não. - Envergonhado, ele assume. - Eu não disse a ele que não sabia.
- Cacete, Vincenzo!
- Calma, Dess. - Pede-me Vincenzo rindo e pressionando as mãos na nuca para não sentir dor. - Ele é 'das antigas'. Vai com calma!
- Digamos que eu esteja um pouco desatualizado...
- Um pouco!? O dinheiro da venda do castelo ainda está no banco!? - Pergunto, receosa. - Se estiver, alguém pode se fazer passar por vc e retirá-lo de lá!
- Como!?
- COM UM PIX, ENRICO!
- Dess! Menos! Bem menos! Deixe Enrico em paz! Ele está nervoso! Vc não percebe isso!?
- Nervosa estou eu, Vincenzo! Ele tem uma fortuna em um banco e uma mulher, maligna, doida pra pegar essa grana! 
- Não fale assim dela, Dess. - Enfurecida, avanço sobre ele e desabafo.
- Vc não sabe o que ela acaba de fazer comigo na capela desse hospital! Não ouse defender essa vaca na minha frente!
- Mãe!
- Ela é perigosa, Enrico! Vai dar um jeito de tirar esse dinheiro de vc! Ele é seu! Quer que eu vá ao banco com vc e resolva tudo isso!?
- Eu irei. - Diz Liam olhando-me nos olhos. - Vc está extremamente abalada com o que acaba de acontecer. Nervosa, corre o risco de repassar o dinheiro para alguma conta errada. - Angustiada, refuto.
- Eu não faria isso. Já cansei de lidar com 'pix' na época em que...- Trabalhava como a puta mais bem paga dessa cidade. - Deixa pra lá. Vc tem razão. Não quero ficar longe de Vincenzo ou de Antoine. E ainda preciso ver Matteo na casa de Doc. Enrico!
- Sim! - Apresenta-se ele, exultante. Tomada pela compaixão, eu o abraço com força. Emocionada, comento. - Tô muito feliz por esse dinheiro ter voltado às suas mãos. Vc merece. Faça bom uso dele.

- Eu farei, meu anjo. Eu farei. Volto em breve! - Afirma ele antes de cochichar algo no ouvido de Antoine e fechar a porta do quarto, deixando-nos a sós.
- Que figura, tia!
- Ele sofre, tadinho. E, ainda assim, faz a gente rir. Vc tem sorte de ter um pai assim, Vincenzo.
- Tenho mesmo, amor. E vc tem sorte de eu não poder me levantar daqui e te obrigar a contar o que tá rolando contigo. Vai se negar a contar o que aconteceu na capela também!? Agora eu sou um inválido!? Deixamos de ser parceiros!? Vai me deixar!? Me trocar por outro!?
Deitando-me ao seu lado, refuto.
- Nunca, seu besta. Na saúde e na doença, lembra?
- Na riqueza e na pobreza. - Lamenta ele.
- Não se preocupem com as despesas do hospital. Por favor. Liam e eu fazemos questão de ajudar.
- Ajudar!? - Retruco. - Vcs estão pagando por tudo, Cassie! Isso tá errado! Precisam poupar! Sua filhinha está a caminho! 
- Filhinha? - Arquejando, ela indaga. - Vc viu isso, tia!? É uma menina!? - Em silêncio, reviro os olhos. - Diz, tia! É menina!? Liam quer uma menina! Ele quer uma menina! - Atropelando-me com seu entusiasmo, eu me deixo abraçar por ela que grita em meu ouvido. - Seu nome será 'Niamh'!
- O mesmo nome do pai!? Isso é patético! - Esbraveja Antoine, enciumada. Cassie, empolgada, explica.
- Liam escolheu! Significa 'cheia de alegria' em irlandês. É o que ela vai nos trazer! Mais alegria às nossas vidas, pirralha! - Antoine sobe no sofá e, de pé,  num arroubo de felicidade, com os olhos marejados, se deixa abraçar por Cassie. - Não chora! Vc vai ser tia dela, pirralha!
- Vou!?
- Vai! - Digitando o número de Liam em seu celular, ela abre a porta do quarto e, no corredor, dá a notícia ao seu marido. 
- Ela precisa gritar tanto?
- Deixa de ser rabugenta, filha. Ela tá feliz. Por que ainda tá chorando?
- Tô não, pai.
- Tá sim, filha. Fala pra mãe. O que tá sentindo?
- Não quero falar. - Diz ela abraçada ao pai. - É triste. - Vincenzo a acolhe em seus braços e me lança um olhar de cumplicidade. Desolado, ele pergunta.
- Vc continua tendo a mesma visão, Dess?



Acalmo Matteo assim que chego à casa de Doc. Adele, sua esposa, relata tudo o que acontecera na noite passada enquanto me ausentei. Tomando seu suquinho de laranja em meu colo, não parece ter chorado tanto. Entre um gole e outro, ele me faz arfar, abrindo um sorriso de satisfação. 
- Doc e eu não sabíamos mais o que fazer. Ele chorava e apontava para um dos cantos do quarto. Um choro apavorado que me fez rezar, após tentarmos de tudo. Ele não estava com fome, com sede, com sono. Nada. Seu choro era de medo. Eu sei. Eu ainda me lembro do tempo em que nossa filha era pequena.
- Por que rezou, Adele? - Indago, desconfiada, sentada no sofá da sala. Feliz, Matteo engatinha ao redor da mesa de centro. - Viu alguma coisa?
- Não. Nada.
- Não precisa mentir. - Aviso ao perceber seu embaraço. - Eu te entendo mais do que vc imagina. Mais do que eu gostaria de entender. Viu alguma coisa? Sentiu?
- Sim. Enquanto eu tentava acalmar Matteo em meu colo, havia algo atrás de mim. Não sei como te explicar mas, mesmo de costas, eu via algo atrás de mim. Algo que me causava mal-estar e arrepios e um forte cheiro de perfume adocicado, enjoativo.
- Pare de falar, Adele. - Pede Doc, assustado. - Vai deixar Adessa ainda mais nervosa. Já passou. A presença sumiu. Ela tem muitos problemas no momento. Precisa deixar seu filho conosco.
- Eu não disse nada. - Defende-se Adele enquanto abraço meu filho, acariciando seus cachinhos castanhos. - Foi ela quem me perguntou.
- Tá tudo bem, Doc. - Evito pensar no perfume adocicado de Celeste. Adocicado e enjoativo. Forçando um sorriso, agradeço. - Se não fosse por vcs, eu não teria como passar por tudo isso sozinha. Infelizmente, não aceitam a entrada de crianças no hospital.
- Nem poderiam. É perigoso. Como Antoine continua no quarto? - Rindo, confesso. 
- Nós a escondemos no quarto. É imenso, luxuoso...e caro.
- Como estão se virando para pagar a diária, filha? - Envergonhada, respondo.
- Liam tem pago por tudo.
- Ele é rico? - Pergunta-me Adele, curiosa. - Ele não era padeiro?
- Adele! - Repreende-a Doc.
- Era padeiro e o dono da padaria e de muitas outras e outras coisas mais. - Respondo, pensativa. - Como disse Cassie: ela mirou no padeiro e acertou em um milionário. 
- Não fica triste, filha. Vincenzo vai voltar pra casa. Forte e saudável.
- Ele precisa de uma transfusão de sangue, Doc. Uma grande transfusão.
- Qual o problema? Ele está no local certo, no momento certo. O hospital deve ter o tipo sanguíneo dele no banco de sangue. - Desesperançada, comento.
- Pode ser. Quem sabe? Eu acredito em milagres.

Ainda pensando em como proteger meu filho de uma futura visita indesejável de Celeste, esbarro no médico de Vincenzo,  no corredor do andar onde meu marido está internado. Educado, ele me pede perdão. Afoita, eu o agarro pelo jaleco e o questiono.
- O que farão com o meu marido!? 
- Amanhã, após a visita, eu comunico. - Mostrando-se incomodado com minha mão em seu jaleco, ele o puxa. Eu não largo o jaleco. Ao contrário. Retiro seu estetoscópio do pescoço e o refuto.
- Não. Não mesmo. Vc vai me dizer agora. Vcs têm a resposta e eu quero saber o que farão com o meu marido agora.
- Tranquilize-se. - Diz ele, friamente. - E me devolva o estetoscópio.
- NÃO! EU NÃO VOU ME TRANQUILIZAR ENQUANTO NÃO TIVER RESPOSTAS! - Outro barraco. Vincenzo me reprovaria se pudesse sair do leito. 
- Eu posso. Devolve o estetoscópio, Dess.
- O que faz aqui!? De pé!? - Reclamo.
- Evitando outro barraco, mas tá difícil. - Lançando um olhar de desprezo ao jovem de jaleco, pergunto.
- Esse médico frio te disse o que farão com vc!?
- Dess...para...
- Senhora, amanhã eu estarei...- Interrompendo-o, refuto.
- Amanhã não! Hoje! Vc está aqui! Eu estou aqui e meu marido também! Qual o empecilho!?
- Regras. - Rosna o médico. - Nós temos regras nesse hospital, senhora. São onze da noite. Eu não faço visitas às onze da noite.
- Eu não quero sua visita! - Exclamo entre irritada e envergonhada. Estou atraindo a atenção de enfermeiras, pacientes e todos os que saem dos quartos, antes fechados. Não é hora de retroceder. Continue. - Eu só quero que me diga o que ele tem e o que farão pra curá-lo! - Descansando a mão direita sobre o ombro do jovem médico, Liam sussurra em seu ouvido.
- Ela não pede muito. Pede? - Confuso, o arrogante sem seu colar de estetoscópio  parece refletir. Vincenzo me fuzila com os olhos enquanto eu dou de ombros como se nada tivesse feito. Liam prossegue com seu ritual de indução. - Que tal sairmos daqui e entrarmos no quarto? 
- Ok. - Aceita o médico. 
Jogando o estetoscópio contra sua camisa social azul, corro até o quarto. Assim que entro, aviso num cochicho.
- Se esconde, Antoine! - Dramática, ela rola no chão e, debaixo da cama, ergue seu polegar e pisca, ao mesmo tempo.
- Ninguém vai me ver aqui, mamãe!
- Shhhhh! - Exclama Cassandra. Antoine se encolhe. Eu me sento na poltrona ao lado da cama. Vincenzo ainda me faz arfar com seu sorriso de incredulidade. De volta à sua cama, ele comenta.
- Vc é patética.
- Cala a boca e ouça o que ele tem a dizer. - Ainda confuso, ao lado de Liam, o médico, sem rodeios, esclarece.
- O paciente...
- Ele tem nome. - Observo, encolhida na poltrona. - Vincenzo. Vincenzo Rossi. - Visivelmente contrariado, ele continua.
- Vincenzo tem um quadro grave de anemia. Não reagiu aos medicamentos intravenosos, logo, sugerimos uma transfusão de glóbulos vermelhos.
- Uma transfusão total de sangue...
- Sim. Precisaremos de possíveis doadores. Quanto mais rápido, melhor.
- Por que a urgência, doutor? - Pergunta Vincenzo, desanimado. Provavelmente, tendo lido o pensamento do médico, ele mesmo responde à sua pergunta. - Outra convulsão e eu posso morrer.
- Não pode! - Protesta Antoine mostrando-nos seu rosto debaixo da cama. - Meu pai não pode morrer!
- O que essa criança está fazendo aqui!? É proibido!
- Que criança, doutor? - Indaga Liam com sua voz de veludo. De volta ao seu esconderijo, Antoine se mantem calada enquanto Liam, tocando o indicador em um ponto entre suas sobrancelhas, pergunta. - Do que está falando, doutor? 
- Da transfusão? - Cassie ri da confusão mental do pobre médico sem suspeitar de nada. - Nós...nós precisamos realizar a transfusão. É. É isso. - Afirma ele, caminhando até a porta. Antes de sair do quarto, ele indaga. - Qual o tipo sanguíneo de Vincenzo? - Ainda mais desanimado, Vincenzo responde.
- RH nulo.
- 'Sangue dourado'!? - Espanta-se o médico. - É raríssimo!
- Eu sei...- Lastima o homem da minha vida. - Essa transfusão é a minha única chance? - Compadecido, o jovem de jaleco assente com a cabeça antes de fechar de porta. - Não chora, Dess. Por favor. Eu vou conseguir. - Deitando-me ao seu lado, afirmo.
- Eu sei que vai. 
- Por que seu sangue tinha que ser tão raro, tio? - Lastima Cassie. - Eu nunca ouvi falar em 'sangue dourado'.
- Há pouquíssimas pessoas com esse sangue no mundo inteiro. Algumas dezenas.
- Eu sou uma delas. - Declaro antes de chorar, compulsivamente. - E o nosso filho também.
- Eu não sabia, Dess.
- Nem poderia. Vc...- Era um anjo, amor. Que tipo de anjo se importa com sangue de humanos? - Vc é meu anjo e eu vou te curar, amor. Eu vou te curar. - Erguendo-me de súbito, beijo sua boca e repito. - Eu vou te curar. Não sei como, mas eu vou te curar. Vc não 'caiu' à toa!
- Aonde vai, Dess!? Fica!

Corro até a escadaria. Desço os degraus de dois em dois. Sem me importar com as pessoas que me veem chorando, alcanço a capela vazia. Ajoelho-me diante do 'Crucificado' imploro, com as mãos em prece.
- Salva o meu Vincenzo! Por favor! - Beijando seus pés frios pregados na cruz, confesso. - Eu não sei rezar. Não me lembro mais. Mas acredito em Você. Dizem que Você morreu por todos nós. Olha pelo meu Vincenzo. Ele Te ama muito. Eu Te imploro, cura ele. Eu não sei o que fazer. Por que não fala comigo?
- Por que estátuas, geralmente, não falam.
- Quem é vc!? - Ajoelhado ao meu lado, ele pede com suavidade.
- Não se assuste. Eu não sou mau. Estava varrendo o corredor e te vi aqui. - Os  traços finos de seu rosto me encantam. Seus cabelos loiros e curtos exalam um aroma inebriante. Sua barba e seu bigode são do mesmo tom dos cabelos. De olhos fechados, sinto a brisa fresca invadir o pequeno espaço da capela. Inspiro profundamente. Abrindo os olhos, pergunto.
- Por que tiraram a estátua do anjo?
- Não sei. Alguém a quebrou?
- Não sei. Qual o seu nome?
- Rafael. Gostaria de me contar o que te faz sofrer? - Guiando-me até o primeiro banco em madeira, ele me faz sentar e confessar.
- Meu marido pode morrer se eu não doar meu sangue a ele, mas meu sangue é impuro. Vai fazer mal a ele. Ele é muito especial. O meu marido. Não é um homem normal. É especial. Nosso sangue é raro. Só eu posso salvá-lo e, se ele receber o meu sangue, ele nunca mais será o mesmo. Meu sangue é ruim. Eu   descendo de um ser maligno! Meu filhinho também! Eu não posso falar isso com Vincenzo! Talvez ele não me queira mais! Vc entende!? Vc acredita no que digo!?
- Acredito. - Chorando contra seu macacão cinza, desabafo. - Eu não sei o que fazer. Me ajuda. 
- Vou tentar. - Levanto-me do banco e, ainda à procura da estátua desaparecida, pergunto.
- Vc conhecia o nome do anjo da estátua que sumiu?
- Rafael. 
- Igual ao seu!?
- Coisa de mãe. - Esclarece ele, num sorriso. - Ela era devota do Arcanjo Rafael. Já ouviu falar nele?
- Não. Só em Miguel.
- Ótimo arcanjo. Combate o Mal na Terra. - Assoando meu nariz na barra do minha blusa, indago.
- E esse tal de Rafael? O que ele faz? - Encolhendo os ombros de maneira displicente, ele responde.
- Cura doenças.


Continua...


 


CAPÍTULO 35 - INJUSTO

  Na sala de espera do mesmo hospital onde Vincenzo voltara à vida, aguardo, ao lado de Liam e Enrico, ao desenlace da tragédia. Vincenzo, d...