'Dess - Uma História Interessante'

'Dess - Uma História Interessante'
AMO ESCREVER

CAPÍTULO 36 - SOZINHA

 


Dessa vez, não vou culpá-lo pelo abandono. A culpa é minha. Eu o provoquei. Eu acordei o monstro que ainda habita nele. Vincenzo não é tão forte quanto eu. Tão canalha a ponto de errar, pedir perdão e se reconciliar. Não quando o erro é grande demais. Pesado demais. Eu me apaixonei por um anjo fraco demais. Bom demais para me aceitar com todos os transtornos que tenho. 

O que eu faço agora sem ele ao meu lado? Já me acostumei com a sua presença, seu toque, nossas brigas. Ouço o ruído da chave na maçaneta sempre no mesmo horário. Era ele quem chegava do ringue e, antes mesmo de beijar as crianças, era a mim que ele procurava. A mim...

Dói. Como sempre, dói. Vou seguir adiante. Sinto que não é o fim. Não. Não mesmo. Nosso amor é forte demais para acabar assim. Enquanto sangro por dentro, sorrio e prossigo porque meus filhos estão comigo e meus amigos também. 

Há uma canção que ouço em minha mente o tempo todo. Daquelas que nos fazem rever nossas vidas e chorar por erros e acertos. Daquelas que tocam em filmes onde os anos passam em fração de segundos, tela por tela. Onde as dores são curadas. Os entes queridos, partem. Onde casais se reconciliam após anos de separação. 

Em segredo, eu a ouço e me lembro de Vincenzo, meu primeiro pensamento ao acordar. O último, antes de dormir.





Espero que ele possa ler meus pensamentos e, algum dia, volte aos meus braços, porque, seus pensamentos, eu desconheço.




Cassie e Liam, quase sempre, nos visitam. Agora, sou eu quem não gargalha à mesa farta. Sorrio por ver Cassie de volta à sua vida, lutando contra um câncer que insiste em tomá-la de Liam. Liam, um anjo forte e tímido, sempre ao lado de Cassie nas sessões de quimioterapia. Ele me confessou, como uma criança esperançosa, que doará sua vida pela dela. Ela me confidenciou que quer viver mais do que nunca porque, dentro de seu corpo, em suas trompas, a semente do amor entre ambos, cresce, milagrosamente. Comemoramos juntas e choramos juntas também. Ela compreende minha dor. Eu a abraço por sua felicidade. Vincenzo deveria estar aqui e vivenciar esse milagre, mas não está. 

- Ele não é louco, filha. Ele precisa se ausentar pelo erro que cometeu. 

- Eu fui a culpada, Enrico. Não faz sentido seu sumiço. O que eu digo a Antoine? Matteo chama pelo pai e eu ainda o espero entrar pela porta da sala, suado, sorrindo porque eu reclamava de sua maneira displicente em jogar suas meias e camisas sobre o tapete. Ele gostava disso em mim. Ele gostava de nossas discussões. Ele me conhecia profundamente. Ele disse que 'caiu' por mim e me deixou novamente. - Arfando, eu me calo. - Sinto falta dele, Enrico. Tanta que não sei se vou conseguir levantar da cama pela manhã.

- Vai sim, filha. Vai sim. Estaremos juntos até ele voltar. Minha missão nessa casa ainda não terminou e...

- Que missão é essa, Enrico? O que vc quis dizer com aquele papo de que Antoine consumiu muita força na noite da reconciliação entre Cassie e Liam? Não tivemos tempo de conversar sobre isso. - Sentados no sofá da varanda, sob a luz da lua, eu peço.

- Conta tudo, Enrico. Ela é minha filha. Eu tenho o direito de saber.

- Vc já sabe, mas não quer admitir que ela é especial. - Jogando-me sobre o sofá 'chaise', eu me encolho e me calo. Não quero admitir que ela é mais do que uma criança normal com poderes que crianças normais não têm. - É bom aceitar isso, meu anjo. - Aconselha-me Enrico. - Eu não estou aqui à toa. 

- Não me assusta, Enrico. Agora, eu tô sozinha. Seu filho...- Cubro o rosto com as mãos e choro. Enxugo meu rosto com a manga do meu pijama e continuo. - Vincenzo não tá aqui pra nos proteger sei lá do quê.

- Não tenha medo. Nada vai acontecer. - Promete-me ele fixando seus lindos e tristes olhos azuis nos meus. - Escuta o que vou te contar e, por favor, fique calma.

- Não me peça pra ficar calma antes de falar alguma coisa porque isso não funciona! Eu fico ainda mais nervosa!

- Ok...- Diz ele, recostando a cabeça na parede, cruzando as mãos na nuca. - Podemos mudar de assunto. A lua está tão perfeita hoje... 

- Diz. Por favor. Eu vou te ouvir.

- Antoine é mais do que um anjo. Mais do que um arcanjo. É um querubim que prometera ao Seu Criador encontrar alguém com um coração altruísta a ponto de se doar a ela. Ela o fez porque o destino da Humanidade estava selado. Maldade, cobiça, ganância, lascívia corromperam as criaturas desde que foram criadas. 

- Deus queria acabar com os habitantes da Terra? Não faz sentido. Ele não é misericordioso? Não nos conhecia antes mesmo de cometermos nossos erros?

- Sim. Eu não mencionei o Criador como o capataz. Ele deu ao ser humano o  livre arbítrio exatamente para ver até onde são capazes de chegar. Há outras forças interessadas no extermínio da Humanidade.

- Lúcifer. - Bufo ao revirar os olhos. - Aquele paspalho.

- Não o subestime. Ele é muito mais forte do que aparenta. Muito mais influente do que vc pensa, Adessa. Ele tem nas mãos, os líderes que governam países inteiros. Países poderosos com forças bélicas capazes de destruir a Terra com um só dedo.

- E o que Antoine tem a ver com isso?

- Se ela encontrasse alguém puro o bastante para aceitá-la do jeito que ela se moldou aqui na Terra, provaria ao Criador que vcs, humanos, merecem uma segunda chance.

- E ela encontrou? - Lançando-me um olhar compassivo, ele assente com a cabeça. - Nossa. Fala sério. Eu?

- Sim. Por que não?

- Eu já fui 'put...'- Inspiro e continuo. - Desde jovem, eu vendia meu corpo por grana e fama. Acrescente ao meu currículo, as funções de atriz pornô e stripper e dona de uma conta em um site pornográfico com mais de quatrocentos mil seguidores. Eis a pergunta: Em que eu posso ter contribuído para o bem da Humanidade, Enrico!? Ah! Não se esqueça do fato de ter vivido com um demônio devasso que, talvez, eu tenha invocado e que, com certeza, eu criei porque Aiden já foi humano antes de me conhecer! Logo, eu ferrei com a vida dele também! Eu ferro com a vida de todos que se aproximam de mim, Enrico! Seu filho 'caiu' pela pessoa errada e Antoine não vai sofrer por minha causa porque eu não sou digna de seu sacrifício! - Exausta, encolho-me dando as costas a Enrico. Meu mundo está desmoronando novamente e, dessa vez, eu corro o risco de perder a filha que tanto amo por minha culpa. Não é por um simples papel de adoção. É por ela ter apostado em algo que eu não sou! - Isso não tá acontecendo. Não tá. Não tá. - Repito contra as almofadas. - Não é justo com ela! Como deixaram uma criança escolher isso!?

- Ela não é uma criança, filha. Vc ficaria deslumbrada ao vê-la como ela realmente é. Aliás, nenhum humano chegou a ver um querubim sem ficar cego, logo em seguida.

- Poxa. Agora eu tô bem  melhor. Obrigada. - Rindo, ele comenta.

- Vc não tem jeito. - Um profundo suspiro e divago antes de voltar a chorar.

- Vincenzo disse a mesma frase no dia em que...

- Vc acolheu em sua casa uma criança suja, moradora de rua, desconhecida, pobre e negra. Que ser humano faria isso, filha? Vc conhece muitos deles? Porque, pelo pouco que vivo na Terra, não vi quase nada parecido.

- Ela me encontrou, Enrico. Ela me salvou. Não fui eu quem a salvei. Ela me salvou. 

- Eu sei, filha. Me ouça.  Sua força se esvai a cada grande gesto de amor. Na noite em que Liam e Cassie se uniram novamente, ela se doou muito por amar Cassie. No dia seguinte, ela adoeceu. 

- Meu Deus...- Levo a mão ao peito. - Continua.

- Ela se recupera com facilidade. - Estalando os dedos, ele prossegue. -  Assim...'do nada'. Mas, tudo tem limite, filha. Até mesmo para os querubins.

- Para, Enrico. Por favor. Eu vou trancar minha filha dentro de casa e jogar a chave fora.

- Não vai adiantar, Adessa. Ela é muito mais do que vc imagina.

- Eu sei. Eu sinto. O que eu posso fazer pra que ela não adoeça?

- Sinceramente?

- Sim.

- Nada. Como eu disse, ela é muito mais poderosa do que vc imagina e, até cumprir sua missão aqui na Terra, não vai desistir. - Em desespero, indago.

- Que missão é essa, Enrico!? 

- Não faço ideia. Juro. - Um grito parte o silêncio ao meio. Abro um sorriso assim que vejo Matteo com suas perninhas fofas correndo, ainda inseguro, em minha direção e, logo atrás, Antoine anunciando sua chegada com um grito.

- Seguuuuura, peão! - Saltando sobre mim, meu filho abre sua boquinha. Seus primeiros dentes de leite já estão formados. Seu hálito infantil me acalma. Sentando-se ao meu lado, Antoine me abraça e cochicha. - Vai dar tudo certo. Confia.

As mesmas palavras de Vincenzo...


- Com todo o respeito, diretor, foda-se o que os outros pais pensam sobre os meus hematomas. Não foi o meu marido. Ele é um bom homem e jamais me machucaria. 'Ai' de quem denunciá-lo à polícia. Lei 'Maria da Penha' é o  caralho! Eu vim pegar minha filha e pronto! Ponto final! 
- Perdão, Adessa.

- Perdão digo eu...- Desculpo-me, arrependida. - Vc não tem culpa de nada. Só faz o seu trabalho. Eu te agradeço por querer o meu bem. Eu entendo que existem mulheres que apanham de seus companheiros e temem denunciá-los, mas, esse, definitivamente, não é o meu caso e, sinceramente, se eu fosse contar o que aconteceu, vc não acreditaria em mim. Logo, posso levar Antoine pra casa? Meu filho me espera. Meu sogro também. Somos uma família feliz e unida. Meu marido está viajando a negócios. Em breve, ele vai retornar. - Minto. - E não vai gostar dos rumores que essa gente desocupada fica espalhando por aí.

- Compreendo. - Conduzindo-me até o corredor do colégio com sua mão em minhas costas, ele sugere. - Vamos ao encontro de Antoine?

- Perfeito. Super apoio. Total.


Levo Cassie a uma de minhas aulas na 'Just Dance'. Extremamente bem recebida pela turma, ela tenta acompanhar a coreografia sempre aos risos. Errando, ela pouco se importa com a opinião dos outros alunos. Feliz. Ela está feliz e isso me faz feliz. 

- Vc tem jeito pra dança, Cassie!

- Tia! Para agora mesmo! - Rindo, ela me faz rir. - Eu sou uma catástrofe! Mas não me importo! Meu bebê tá chegando e meu Liam...- Levando a mão à boca, ela me lança um olhar de espanto e corre até o banheiro da academia. Vomita antes de sair da sala de aula. Um, dois jatos de um líquido vermelho sobre o piso em madeira e os alunos se afastam. Eu a socorro, segurando seus cabelos e sua cintura, pedindo que ela confie em mim. - Tudo bem. Acabou, tia.

- Vc tá sangrando, Cassie!?

- Não. - Responde-me ela, ainda curvada para frente,  envergonhada diante da turma. - A cor vermelha é por conta dos medicamentos da 'quimio'. Fica tranquila, tia. - Erguendo o tronco, ela olha ao redor e indaga. - Onde eu pego um pano úmido pra limpar essa bagunça?

- Na sua casa, bobona. Acha que eu vou deixar vc limpar isso aqui??? Principalmente, diante desses idiotas que estão longe de entender o seu sofrimento??? Nunca!!!

- 'De boas', tia...

- Eu limpo. - Afirma Sebastian surgindo do nada com um rodo e um pano úmido em suas mãos. Na outra, um balde com água limpa. - Estou acostumado. Vc não é a primeira,  tampouco a última bailarina a vomitar em nossas aulas, Cassie.

- Vc sabe meu nome?

- Ouvi por aí...

- Para de limpar isso, Sebastian. Eu devo limpar. E, desde quando alunas vomitam em sua aula!? Isso é patético! Danço. Logo, vomito! É isso!?

Rindo, ele me conquista ao limpar, sem nojo, aquilo que Cassie vomitou. Num esforço conjunto, Cassie, ele e eu, deixamos a sala limpa e vazia. Os alunos se foram. - Obrigada. - Agradeço tocando em sua mão limpa após lavarmos tudo. - Isso foi muito importante pra Cassie. Ela tem passado por maus momentos.

- Eu entendo. Isso foi um prazer para mim, Adessa. Conte sempre com a minha ajuda. - Confusa, fixo meus olhos nos de Sebastian. Por segundos, posso jurar que Aiden está diante de mim, novamente. Dirigindo-se a Cassie, Sebastian comenta. - Fique à vontade para vir quando quiser. Se vc é amiga de Adessa é minha amiga também.

- 'Thanks'. - Diz Cassie, mordendo os lábios, encarando-me com sua  peculiar expressão de quem vê algo onde não existe. - Até breve, Sebastian.

- See you soon...- Despede-se Sebastian carregando no sotaque irlandês. Sério??? Desde quando??? Ele, até hoje, fala nosso idioma com naturalidade!!! - Te vejo amanhã, Adessa?

- Talvez...- Sorrio, sem jeito. - Eu aviso se precisar faltar. Ok?

- Ok. - Carregando o pano de chão dentro do balde e a vassoura, ele caminha até a porta. Antes de partir, ele alerta. - Em breve, nos veremos novamente, baby.


- Corre! - Puxo Cassie até a porta de saída da 'Just Dance'. - Rindo e desconfiada, ela pergunta.

- O que houve, tia!?

- Não sei e nem quero saber. Só quero ir embora daqui. Vc tá bem?

- Sim. Vc pode me levar pra casa?

- Claro, querida. Vc deve estar exausta.

- Estou. Mas, em breve, curada desse câncer, vou recuperar minhas forças pra cuidar do nosso filho, tia.

- Como engravidou, Cassie? - Indago ao volante. - Sem útero? Já ouvi falar sobre essa tal de gravidez ectópica, mas, pra mim, era raríssimo.

- E é, tia! - Confirma ela, acariciando sua barriga ainda inexistente. - Depois daquela noite em que dançamos em sua casa, senti uma dor absurda. Pensei que morreria por conta do câncer. Fomos à emergência e, após vários exames, o próprio médico declarou: "É um milagre!"

- É mesmo...- Penso em Antoine e em como ela se sentiu no dia seguinte àquela noite. - Bendito o médico que  optou por não retirar as trompas e ovários junto ao útero, né? 

- Abençoado seja. Liam decidiu por mim. Até parece que ele estava adivinhando que nosso bebê fofinho estava a caminho.

- Certamente, ele adivinhou.

- Do que tá falando, tia? - Um olhar de esguelha e sorrio.

- Bobagem. Eu adoro esse clima de mistério no ar.

- Falando nisso, o tal de Sebastian tá afim de vc. Percebeu?

- Não seja ridícula, Cassie. Eu tenho idade pra ser a mãe dele.

- Ok. Eu não disse pra vc ficar com ele, mas, se 'der mole', ele te 'pega'. - Sorrio de sua gargalhada infantil. De súbito, ela para de rir e, arregalando os olhos,  comenta. - Ele é muito parecido com o Aiden. Já notou isso?

- Sim. E não gosto nada disso. Quero distância dele. - Desbloqueando o celular, ela se encanta ao ler uma mensagem. 

- Meu Liam tá dizendo que sente a minha falta, tia. Ele não é fofo? Ele tá me esperando em casa. Liam vai ser um pai maravilhoso.

- Não tenho dúvidas. - Uma pontada de ressentimento e comento. - Ele nunca vai te abandonar.


Uma das partes mais difíceis do dia é me deitar em nossa cama à noite. Ela me parece ainda maior sem ele. Leio um livro sem a menor atenção. Assusto-me com 'ringtone' do meu celular. "Número Confidencial". Com o coração acelerado, atendo.

- Vincenzo?

Ninguém responde. Sinto que há alguém do outro lado da linha. Ouço sua respiração ofegante.

- Vincenzo! - Insisto. - Fala comigo, amor. Eu não tô com raiva de vc. Volta pra casa. Por favor. Antoine vai dançar na próxima semana. Matteo não se cansa de chamar por vc, amor. - Um arquejo e o silêncio continua. - Por que faz isso? Pra que ligar se não quer voltar? Isso é tortura. Eu sei que é vc. Se esqueceu do meu super poder? - Ouço o que talvez seja um riso abafado por sua mão. Rolo no colchão, esperançosa. - Cassie tá grávida, amor. Mas, é lógico que vc já sabe disso. Vc e sua estúpida mania de ler pensamentos. Consegue ler os meus, idiota? Consegue sentir a dor que sinto? Se não retornar em uma semana, eu juro que ponho outro homem nessa cama e, só pra te avisar, a 'fila vai andar'. Vincenzo. Vincenzo!? Não! Não desliga! - Custo a acreditar que ele desligou. Cheirando seu travesseiro com seu perfume, choro até pegar no sono. Desperto ainda mais deprimida.

- Eu tenho certeza de que era ele, Enrico. Por que ligar se não fala nada?

- Só pra ouvir sua voz? - Sugere ele.

- Vcs têm se comunicado?

- Eu nunca te esconderia algo assim, filha. Sei que está sofrendo muito. 

- Mais do que muito. Não tenho vontade de sair, Enrico. De ver gente e sou obrigada a ir ao tal ensaio de Antoine. Ver aquele bando de gente nojenta que me olha com desprezo.

- Já parou para pensar que talvez seja impressão sua? Talvez, eles te olhem com admiração?

- Duvido...- Tomando meu último gole de café, confesso. - Tive um pesadelo com Sweet hoje, Enrico. Sweet ou Isabella! Sei lá o nome dela! Ela quer o filho de volta! O que eu faço!?

- Tenho uma ideia...

- Qual!?

- Eu já decidi com que fantasia eu vou ao baile! - Anuncia Antoine, eufórica invadindo a sala de jantar.  Enrico sorri para mim e comenta. 

- Depois falamos sobre o assunto.

- Que assunto!?

- Sobre essa tal fantasia e sobre o celular ligado até tarde ontem á noite! Com quem falava, mocinha!? E, de quem era o celular se vc não tem um!? - Enrico baixa a cabeça enquanto Antoine ri e apontando em sua direção, o delata.

- Era dele!

- Foi para uma emergência, Adessa. - Desculpa-se Enrico, envergonhado. - Ela me disse que teria prova hoje e sua amiga a ajudaria a estudar.

- E vc acreditou, Enrico!? Vincenzo e vc são dois bobões nas mãos dela! - Um beijo em sua testa e digo. - Sem problemas. Não caia mais nessa. Ok? Tá rindo de que, Antoine!? Tem graça mentir para o seu avô!?

- Não, mãe. - Arrependida, ela o beija na testa e lhe pede perdão. - Não vai acontecer de novo, vovô. Eu juro.

- Não mesmo! O que disse ao tal de Thor!?

- É particular, mãe. Eu tenho direito à minha privacidade. - Indignada, com as mãos na cintura, argumento.

- Tu tem direito a ficar presa no seu quarto por dois dias inteiros sem TV ou Tablet! Que tal esses  direitos!? - Em desespero, ela argumenta.

- Não posso. Ainda não conseguimos ensaiar, mãe! Tá tudo uma bagunça e o baile é na próxima semana! Gabriel precisa de mim!

- Pra quê!? Vc vai ser a coreógrafa!? Seus professores não têm domínio de turma, filha! Sinto muito em te informar que o tal baile será um fracasso se alguém capacitado não assumir o controle!

- Não sei o que fazer...- Diz ela, desanimada. - Eu queria tanto que desse certo.

- Tenho uma ideia.

- Qual, vovô!?

- Sua mãe!

- O que eu tenho a ver com isso, Enrico!? - Tomo Matteo de seus braços e o faço comer as últimas duas colheradas de banana amassada com aveia. Limpando sua boquinha, eu a beijo. Enquanto isso, Enrico cochicha no ouvido de Antoine que volta a vibrar. Aos pulos, ela comemora.

- Perfeito, vovô!!! Vc é um gênio!!!

- Oi??? O que tá rolando aqui???

Antes de me deixar perplexa, ela beija minha bochecha ao declarar.

- Vc será a nossa nova coreógrafa! Vai salvar o nosso baile, mamãe! O nosso baile!

- Eu???

Um olhar a Enrico e ele ruboriza. 

- Eu só quis ajudar...



Estranhamente, tanto o corpo docente do colégio como os pais dos alunos aceitaram minha indicação como coreógrafa do baile à fantasia. Pergunto-me o que há de tão especial nesse baile. Não é Natal, Carnaval, Halloween ou Dia das Mães. Não é um baile de formatura. Enfim, dando de ombros, caminho, insegura até o pátio onde Antoine e Gabriel, de mãos dadas, me aguardam, ansiosos, juntos aos demais alunos. Vencendo a vergonha e a tristeza, pergunto.

- Qual é a intenção desse baile? Ainda não entendi.

- A gente quer se divertir, mãe. E, de quebra, mostrar que sabemos dançar. E isso, vc faz muito bem. 

- Entendi. - Resmungo afastando Antoine e Gabriel. - Meninos de um lado e meninas de outro, por favor. - Gabriel sorri para Antoine enquanto a professora de Artes Cênicas, com um ar de soberba, me explica o sentido de tudo. 

- Gostaria de que cada um demonstrasse suas habilidades e se desapegasse de preconceitos arraigados. - Então vcs chamaram uma stripper para tratar de preconceito!? Uma puta de quem vc quer distância!? Perfeito! - Vc compreende?

- Claro. - Minto. Na verdade, com o valor que pagamos pela mensalidade desse colégio, o que vcs querem é um motivo para gastar ainda mais. - Sem problemas. Tenho uma coreografia montadinha em minha cabeça. - Empurrando-a para longe do grupo, peço. - Deixa comigo. No que depender de mim, o baile será um sucesso.

- Não quer ajuda? - Sua??? Fala sério!!! - Procurando, intencionalmente, agir de maneira oposta às suas atitudes, refuto num tom displicente.

- Não. Valeu. Assim que terminar, eu te chamo. Ok? - Observando-me, ofendida, pergunto. - Entendeu ou quer que eu desenhe?

Antoine gargalha e, ao sair da formação, vai até Gabriel e cochicha.

- Essa é a minha mãe. 

- Hilária. - Diz ele.

- Em suas posições! - Ordeno, incomodada com o 'grude' entre ambos. - Já ouviram falar em 'Back Street Boys'!?

- Aquilo que vc fumou, mãe!? - Inspiro fundo e, envergonhada, minto.

- Eu não fumo, filha! 

- Mas naquela noite lá em casa, a Cassie disse que 'beck' era um grupo antigo. Lembra? E vc estava fumando. Um cigarro pequeninho que vc escondia.

- Antoine...- Rosno. - Podemos começar o ensaio ou vc pretende tomar mais do meu tempo?

- Foi mal. 

- Ela é brava. - Comenta sua amiguinha. 

- Vc não viu nada. - Cochicha Antoine.

- Vamos ao ensaio!? Se é demonstração de habilidades o que a versão feminina de 'Severo Snape' do 'Harry Potter' deseja, é o que ela vai ter, meu bem. 

Apesar de antiga, a turma adorou a música.



"Everybody" fez até os mais tímidos moverem os quadris. Levei muito tempo até que todos aprendessem a coreografia difícil até mesmo para um adulto. Mas, ao final do dia, exaustos, todos estavam saltitantes e confiantes. Mais relaxada e entrosada, alerto.

- Esse é só o primeiro ensaio! Não faltem aos outros ensaios e treinem em casa!

- Woohoo! - Alguns gritam enquanto correm até o portão da saída. Um aperto no peito e, sentindo falta de Vincenzo e,  um ranço cada vez maior por ele não estar aqui, levo Antoine até o carro. No vidro embaçado pelo frio, um coração desenhado. Olho ao redor e, estupidamente esperançosa, ainda procuro por ele. Frustrada, entro no carro e ainda arrisco um olhada no retrovisor externo. Nada.

- Covarde...

- Quem, mãe? - Pergunta-me Antoine no banco traseiro. - O papai?

- Não. - Minto. - Alguém da academia. Vc não o conhece. Tem falado com seu pai por telepatia?

- Não...- Um profundo suspiro e ela desabafa. - Tô com saudades. Ele vai voltar logo da viagem, mãe? Falta pouco tempo para o baile. - Tentando não chorar, volto a mentir.

- Não se preocupa. Ele vai estar presente no dia de seu grande baile.


Não posso negar que os ensaios no colégio e o meu trabalho na academia têm tomado tanto do meu tempo que quase não penso nele. Quase. Vincenzo tem pago todas as contas em dia e deposita em minha conta muito mais do que eu gastaria em um ano. Talvez, ele pense que seu dinheiro compre a minha paz. 

- Que pense.
- No que, tia?
- Em nada, querida. Como posso te ajudar? Eu não aguento ver vc pôr pra fora tudo o que come. Quando a 'quimio' vai acabar?
- Mais duas sessões e devo esperar pelo milagre. - Pálida, ela sorri ao afirmar. - Eu sei que ele virá. Eu vou me curar, tia.
- Tenho certeza, amor. - Confirma Liam sempre ao seu lado, em uma das mesas do restaurante onde almoçamos. Ele não trabalha? Estranho. Anjos ricos que não trabalham. Será que tem mais deles por aí? - Tenho gente tomando conta dos negócios, Adessa. Não se preocupe. - Escondendo meu rosto entre as mãos, murmuro um pedido de desculpa. - Bobagem. - Diz ele, sorrindo. - Tem razão. É estranho mesmo.
- Do que estão falando? - Pergunta Cassie, inocentemente. - Às vezes, eu acho que vc me esconde algo, 'coelhinho'.
- Escondo. 
- O quê!? - Ao lado da mesa, uma caixa retangular fechada. Cassie vibra ao indagar. - É o que eu tô pensando!?
- Abra.
- Aqui??? 
- O que deve ser? - Pergunto, curiosa.
- Só pode ser o bercinho, tia! - Exulta ela.
- Melhor abrir em casa. - Sugere ele após sairmos de sua antepenúltima sessão de quimioterapia. Como dizer a ela o que senti ao tocá-la? O bebê está perdendo a batalha contra o veneno que injetam no corpo franzino de Cassie. - Eu acredito em milagres, Adessa. Vc não?
- Sim. - Meio que minto. - Com certeza. Vou deixar vcs em paz. Preciso trabalhar. - Um forte abraço e Cassie me agradece.
- Sem vc ao meu lado, eu não suportaria, tia. Nós vamos vencer. Não vamos? - Um ligeiro olhar a Liam e respondo.
- Sem dúvida.

Alongo-me na barra diante do espelho após a aula. Pela primeira vez, sinto-me orgulhosa de mim mesma. Estou dando aulas de dança! Eu que sempre sonhei em ser uma aluna, agora, sou professora!
- Vc merece.
- Sebastian!? 
- Te assustei?
- O que acha!? Não faça mais isso!
- Perdão. - Caminhando até a torre de som, ele escolhe uma canção. Triste, comovente. Mais antiga do que as que eu costumo ouvir. Uma sensação de medo e tristeza toma conta do meu coração assim que ele me reverencia e convida. - Concede-me uma dança?
- Por que eu dançaria com vc, Sebastian? Aqui é o nosso local de trabalho. Não faz sentido algum.
- Faz sim. Eu preciso me libertar. Ainda não me adaptei ao meu novo mundo porque há assuntos pendentes.
- Do que tá falando!? - Recuo, aflita. - Não quero ficar aqui! - Segurando-me pelo braço, ele me pede com ternura. 
- Uma única dança. Aquela que Vincenzo roubou de mim. Era eu quem deveria estar naquele baile ao seu lado. Eu deveria ter renunciado ao ódio e...


- Vc não é parecido com o Aiden! - Constato, horrorizada. - Vc é o Aiden!!! Como vc fugiu??? Voltou pra ferrar com a minha vida novamente???
- Nunca. Estou aprendendo a me comportar, baby. Fique tranquila. Eles estão aqui.
- Quem??? - Olho ao redor e já não estou na sala de aula na 'Just Dance'. Lustres acima de minha cabeça, tochas presas às paredes, um imenso salão onde casais com roupas do século XVII bailam enlevados pela valsa melancólica. - Não quero ficar...


- Dance comigo e me liberte, baby. Eu preciso voltar àquela noite e dançar com a minha esposa pela última vez e, assim, quebrar a maldição. - Amargurada e confusa, permito que sua mão toque minha cintura. A outra, sustenta meu braço acima de minha cabeça. Ele ergue sua cabeça, elegantemente. Eu o imito.
Passos tímidos e, observo-me no espelho. Trajando um vestido belíssimo, de época, encanto-me. 
- Vc está linda, esposa.
- Isso é um sonho?
- É o meu sonho. Eu estraguei tudo por um ciúme doentio. Cometi crimes por te ver ao lado dele e tudo o que eu sempre quis, era estar naquele baile, dançando com vc, como estamos dançando agora. Se vc não tivesse fugido de mim, tudo teria sido diferente.
- Se vc não tivesse me ferido e matado o nosso filho...- Rodopiamos com maior intensidade no vasto salão. Tudo ao meu redor desaparece. Somente Aiden e eu bailamos sozinhos. As tochas ardem e giram, deixando-me tonta. Arrependido, ele me pede perdão por tudo. Emocionada, sussurro. - Já perdoei. Já passou. Sinto pelo mal que te fiz. Vc perdeu sua vida por minha causa. Perdeu sua humanidade por meus erros. Me perdoa? - Com lágrimas em seus lindos olhos claros, ele sorri timidamente e murmura. 
- Agora estou finalmente livre, esposa. - Recostando meu pescoço em seu ombro, choro pela dor que causamos um ao outro em uma época em que éramos inocentes, incautos. Onde morri de forma trágica e dolorosa. A canção finda. Nossos olhos se encontram. Nunca o vira tão leve e tranquilo como agora. Recuando, ele curva o tronco para frente e, rindo de alegria, ele diz. - Eu sempre vou te amar, Morgana. Obrigada por me libertar, amor. Adeus.
- Adeus...
De súbito, as luzes se acendem. Parada, diante do espelho, observo os alunos de um lado ao outro fora da sala de aula. Perplexa, toco em meu rosto, corpo. Ainda ouvindo a belíssima canção, pergunto a Aninha, a recepcionista, antes de deixar a academia.
- Vc viu Sebastian passar por aqui? - Assustada, levando a mão à boca, ela pergunta.
- Vc não soube?
- Do quê?
- Foi em um acidente de moto. Sebastian morreu, Adessa. - Entre lágrimas, ela repete. - Sebastian morreu ontem, à noite.

Desnorteada e comovida, recosto a cabeça ao volante do meu carro. Secando as lágrimas de meu rosto, revejo sua foto em meu celular. Uma das que escondia de Vincenzo. Antes de apagá-la para sempre, sussurro.
- Enfim, estamos livres, Aiden. Descanse em paz.



- Isso não vai dar certo, Enrico.
- Não custa nada tentar. Já estamos aqui. 
- Ela não foi enterrada. Esse túmulo é falso. Não há corpo. - Explico a Enrico no cemitério onde há uma lápide em homenagem a Sweet. Perplexo, ele me pergunta entre um túmulo e outro.
- O que fizeram com o corpo???
- Não me pergunte. Isso é coisa do seu filho idiota. - Revirando os olhos, sob os primeiros pingos da chuva, explico. - Foi um dia terrível. Cheio de cenas bizarras. Arcanjo Miguel levou sua alma. Seu corpo, desapareceu antes de eu chegar à sala. Vincenzo preferiu não me contar sobre o que havia feito. Eu preferi aceitar sua proposta. Logo, temos um túmulo sem corpo e uma morta atrás de um filho que não sai dos meus sonhos. Fim da história. Mais um conto de horror em minha pacata vida. - Debaixo de seu guarda-chuva, ele ri de minha expressão de desânimo e me abraça. - Bem-vindo ao meu mundo, Enrico. 
- Ele é bem movimentado. - Comenta ele ainda sorrindo. - De uma coisa vc não pode se queixar. 
- Não diga 'monotonia'.
- Monotonia. - Ruborizando, ele me pede desculpas. - Vamos dar um jeito nisso hoje, filha. 
- Como? Daqui a pouco, o coveiro vai pensar que somos ladrões de corpos pra fazermos macumba. - Outro riso e ele tenta me proteger da chuva forte. - Vai rindo...
- Vc é hilária, filha. Hilária. - Concentrando-se, ele inspira profundamente antes de invocar o nome de Isabella. Não deveria ser o de Sweet? Sei lá! O que eu estou fazendo com meus tênis limpos na porra dessa terra úmida e infestada de bactérias? - Ela já está aqui.
- Diz ele num tom sombrio. 
- Onde???
- Atrás de vc.
- Porra! - De súbito, eu me viro e a vejo, como sempre, molhada e coberta por algas. - Tem que aparecer assim!? Não dá pra avisar antes!?
- Meu filho...- Murmura ela. Avançando em sua direção, eu a confronto. - Sweet, tu não tem filho! Eu vi Arcanjo Miguel te levar! Como vcs fogem assim!? Que falta de organização! - Segurando-me pelo braço, Enrico me pede. 
- Deixe que eu resolvo. - Recuo, irritada. Ela me observa como se eu fosse a morta! Há raiva em seus olhos verdes ao ouvir palavras de poder recitadas por Enrico. Ao terminar, ele meio que a exorciza. - Com o poder a mim concedido pelo Criador, eu te devolvo ao lugar de onde saiu. Deixe meus filhos em paz. Fique em paz. - Um sorriso de escárnio e ela zomba antes de ser sugada pela terra escura.
- Não deu certo, Enrico. Giovanni é o único que poderá me devolver a paz e o nosso filho.
- Vincenzo sumiu, sua vaca!
- Acho que ela não ouviu, filha.
- Puta que pariu...- Resmungo. - Tudo isso pra nada.
- Ainda não acabou. - Refuta ele, retirando seu casaco molhado antes de se sentar ao meu lado no carro. - Cabe a Vincenzo consertar seus erros.
- Super concordo. - Rosno. - Mas ele sempre some quando a coisa fica feia, Enrico. Desculpa. É seu filho, mas não vale nada. - Uma careta e ele se cala. Parecendo refletir, ele divaga fixando os olhos nos carros à frente.
- O dia ainda não terminou.
- Mas, a minha paciência já. - Resmungo ao volante. - Amanhã é o último ensaio antes do baile! Antoine tá aflita pela ausência do pai! Aonde aquele imbecil foi parar!? - Uma freada súbita diante do semáforo e vejo seus olhos esbugalhados de medo. - Liga não, Enrico. Anjos não morrem. A menos que vc tenha um filho com alguma humana por aí. - Sorrindo com os olhos, ele lamenta.
- Não tenho. Adoraria ter, mas não tenho.
- Celeste, além de vaca, é muito burra. Sabia!? Perder um homem como vc...
- Concordo. Obrigada, filha.
- Vc sente falta dela, né? - Olhando-o de esguelha, percebo o momento em ele  enxuga uma lágrima discreta. Enraivecida, eu a xingo. Ele ri de minha raiva. - É outra que tá minha 'lista de ranço', Enrico. 
- 'Fila de ranço'!? Que diabos é isso!?
- Nome das pessoas em quem eu vou meter a porrada. - Gargalhando, ele pergunta.
- Eu estou nessa lista?
- Nunca. Mas seu filho é o primeiro dela. Deixa ele comigo.
- Vc sente falta dele. Não sente? - Contendo as lágrimas, estaciono meu carro na garagem e, olhando para a vaga vazia do carro de Vincenzo, respondo.
- Sim. Muita. Mais do que eu imaginava.
Abraçados, choramos juntos. - Somos dois idiotas. - Concluo aos prantos. Da varanda, Antoine, aos pulos, com o celular do avô na mão, grita uma pergunta.
- Meu amigo pode jantar com a gente, mãe!? Diz que sim! A mãe dele deixou! Diz que sim!
- Cacete!
- Mantenha a calma.
- Não posso manter algo que não tenho Enrico! - Afirmo subindo os degraus até a varanda. - Antoine!
- Fala baixo. - Cochicha ela. - Ele tá ouvindo.
- Que ouça! 
- Mamãe...
- 'Mamãe' é o cacete! Vc roubou o celular do seu avô pra falar com o Thor!?
- Não roubei. - Refuta ela, dramaticamente. - O vovô saiu sem ele. Daí, eu pensei que...
- Pensou errado, Antoine Rossi! - Tomando o celular de sua mão, livrando-me dos tênis contaminados, eu os chuto para bem longe antes de falar com o tal do Thor. - Alô!
- Tia!? - Porra. Isso me parte ao meio. 'Tia' é sacanagem. Sinto carinho em suas palavras. - Vc é hilária! Queria tanto te conhecer melhor! - Encostando o celular no peito, pisco por diversas vezes olhando para cima na tentativa ridícula de não deixar a porra de uma lágrima escorrer por meu rosto. - Tia!?
- Pode sim, querido. - Respondo de costas a Antoine que se move como uma 'Cheerleader' em dia de final do campeonato do 'Super Bowl'. - Ok. Te espero ás nove. - Desligo. Sem me dirigir a Antoine, repreendo Enrico. - Vc não tem um PIN ou 'tela de bloqueio' nesse celular!?
- Pin é o mesmo que Pix!? - Antoine gargalha diante do olhar confuso de seu avô. - Não sei como fazer um PIN. Por que eu faria isso?
- Enrico! - Reviro os olhos, exausta. - Depois te explico antes que Antoine tome conta do teu celular! Ok!? - Corro até Antoine que pretendia se esconder em seu quarto e, descontrolada, eu a belisco no braço antes de protestar. - Desde quanto eu te ensinei a ser assim, filha!? Por que tá fazendo tudo errado ultimamente!? O que esse menino tem de tão especial que te faz mentir pra sua mãe e enganar o seu avô!? - Choramingando, ela passa a mão sobre a pele marcada e, arrependida, responde.
- Não sei, mãe. Eu nunca senti isso antes. É estranho, mas é legal. - Um olhar a Enrico e me sento no chão. Recostando-me à parede, acabo de perceber que minha filha cresceu. Anjo, arcanjo ou querubim, ela cresceu. - Me perdoa, mãe. Eu não queria...- Abraçando-a com força, peço desculpas pelo beliscão.
- Eu tô nervosa e descontei em vc. Não faz mais isso. Ok? Somos amigas. Não somos? Amigas contam tudo uma pra outra. Tudo mesmo. Entendeu?
- Entendi. Posso me arrumar?
- Pra quê??? Vc já tá vestida!!!
- Não para uma ocasião especial como essa. - Conclui ela, triunfante, erguendo-se do chão. - Todo mundo aqui já recebeu amigos para jantar. Menos eu. Agora é a minha vez.
- Eu mereço...- Resmungo, de pé. - Vai logo, Antoine. O poderoso Thor vai chegar daqui a pouco...- Passando por Enrico, cochicho. - Espero que sem seu  martelo.
Gosto de ouvir a gargalhada sempre vibrante de Enrico. Debaixo do chuveiro, pergunto a mim mesma.

- Cadê vc, Vincenzo, em uma noite especial como essa!? Filho da puta! - Enrolada em minha toalha, sorrio diante do coração desenhado no espelho embaçado. - Idiota. Volta pra casa. Eu não suporto mais a tua ausência.

Enquanto me visto, volto ao banheiro. O coração desapareceu. Intrigada, pergunto a mim mesma.
- Como ele fez isso???


- Sua lasanha é simplesmente esplêndida, tia!
- Engraçado. Antoine costuma falar exatamente assim. - Ironizo sem tirar meus olhos do menino bonito, branco e loiro diante de mim. - Obrigada. - Outro gole de vinho e pigarreio antes de perguntar. - Então, Thor. Quais são seus planos para o futuro? - Todos riem de minha pergunta, inclusive Matteo em sua cadeirinha de alimentação. - Qual a graça? - Indago encarando todos à mesa de jantar. - Ele precisa pensar em seu futuro.
- Ele só tem dez anos, filha.
- Enrico, quanto mais cedo traçarmos metas para o futuro, melhor. - Menos chances de ter a vida fracassada que eu tive. De guardar traumas e dores em um coração estraçalhado pela falta do homem que ama. - E, por favor, não fale como o seu filho. Obrigada. De nada. - Como se estivessem diante de um humorista em seu 'Stand up Comedy', continuam a rir, o que, de fato, me irrita. Mantenha a calma. Ele só tem dez anos. Mantenha a calma, Adessa. Ok. - Perdão, Enrico. Detesto me lembrar dele...
- Do pai, mãe? Por quê? Ele não vem pra assistir à nossa coreografia?
- Claro que vem! - Minto. - Ele chega exatamente no dia do seu baile!
- Quero ser astronauta, tia. - Surpreende-me Gabriel com o olhar distante. - Eu sempre quis conhecer outros planetas, outras pessoas diferentes das que habitam a Terra.
- Uau. Isso foi profundo. - Comento. - Por que não gosta dos humanos?
- São falsos, maus, mesquinhos, egoístas. - Antoine arqueja ao seu lado quando ele ressalta, descansando os talheres sobre o prato. - Exceto Antoine. Nunca conheci alguém como ela.
- E nunca vai conhecer! - Gargalho, histericamente. - Ela é mais do que especial, Thor!
- Gabriel, tia. Meu nome é Gabriel.
- Desculpa...Gabriel. Por que escolheu ser o Thor?
- Por que ele luta contra o mal sem ser chato. É engraçado. E, quando erra, reconhece seus erros e segue adiante. - Surpresa, indago.
- Quantos anos vc disse que tem mesmo??? 
- Dez, tia. Mas, minha mãe diz que sou precoce. Ela não gosta disso.
- Sua mãe é uma vaca...
- Mamãe!!!
- Perdão, Gabriel. Digo...Thor! Ah! Sei lá! Come mais lasanha! - Atordoada, sento-me ao seu lado e, após lhe pedir desculpas, confesso. - Gostei de vc e da forma como dança. Vc leva jeito.
- Sério, tia???
- Super sério!!!
- Woohoo! Minha mãe gostou de vc!
- Menos Antoine...- Rosno. - Vc ainda não se livrou do castigo.
- O que ela fez, tia?
- Nada não, Biel.
- Biel??? Desde quando vc o chama de 'Biel'???
- Adessa, vamos retirar os pratos?
- Ainda não acabei, Enrico! - Descansando sua mão sobre meu ombro, ele afirma.
- Acabou sim, meu anjo. Acabou sim.


Ainda enciumada, levo Gabriel de volta à sua casa, embora sua mãe tenha ordenado que ele retornasse de 'Uber'. 

- Não me custa nada. Além do mais, vc é um pouquinho novo demais pra ficar circulando pela cidade de 'Uber'. A gente nunca sabe quem está ao volante.
- Eu amei a noite, tia. Principalmente, o filme que assistimos. 
- 'Mufasa. O Rei Leão!' - Arqueja Antoine. - Simplesmente esplêndido. 
- Sim. Glorioso. - Afirma ele, animado, diante do prédio onde mora. Um apartamento por andar. O aluguel deve ser mais caro do que o meu carro e o de Vincenzo, juntos. Entusiasmado, ele considera. - Acho que Mufasa deveria ter sido menos rude com seu irmão.
- Concordo. Afinal, todos cometem erros e o irmão do Mufasa teve seus motivos. - Agachando-me diante dele, argumento. - Todos cometem erros, Gabriel. Porém, nem todos são capazes de expor esses erros e pedir perdão por eles. Vc vai ser um mega astronauta. 
- Será, tia???
- Vai sim! - Vibra Antoine, aos pulos, no saguão do prédio luxuoso. - Minha mãe vê coisas quando toca na gente! Se ela disse que vc vai ser um astronauta, podes crer que vai!
- Uau. A senhora tem super poderes? - Antes que eu possa refutar, Antoine confirma.
- Sim! E meu pai também! Ele pode ler a sua mente! Não é simplesmente esplêndido!? - Discordo. É um saco. - Meus pais são super heróis!
- Menos, Antoine. Menos. - Recuo enquanto ambos se abraçam com força. Há ingenuidade no abraço. 

Sorrio diante do volante. Gabriel é um bom garoto, com pais nocivos. Repentinamente, a imagem de Luka me vem à mente. Antoine ri de mim enquanto movo minha cabeça de um lado ao outro tentando dissipar a imagem perturbadora. 
- Vamos pra casa, filha?
- Vamos! Amanhã será um longo e lindo dia!
- Com certeza. - Sussurro ajeitando o retrovisor externo. Posso jurar ter visto a figura de um homem com as mãos nos bolsos do casaco, parado, no meio da rua. - Bobagem. Bebi demais.
- Nem deveria estar dirigindo, mamãe.
- E deixar seu grande amigo nas mãos de estranhos? - Um beijo em minha bochecha e ela comemora.
- Vc é demais, mãe!!!



Enrico me acompanha ao baile. Liam e Cassie fazem questão de ocuparem os melhores lugares nas arquibancadas. Matteo no colo de Cassie, a faz rir como nunca. Evito tocar em seu corpo. Não quero...não posso acreditar que ela esteja perdendo mais uma vida dentro de si. Graças ao tumulto entre pais, professores e alunos agitados, Liam não ouve meus pensamentos intrusivos. 
No camarim, desejo sorte aos meus pupilos. Um beijo em Antoine, fantasiada de princesa Shuri, e em Gabriel provoca furor entre os demais. Tudo o que eu não queria, eu consegui: criar um clima de romance entre crianças tolas que me surpreenderam durante a apresentação da coreografia. Pouquíssimos erros e uma explosão de palmas e urros ao final do espetáculo. Comovida, levo as mãos ao peito e penso: 

"Sirvo pra alguma coisa".

Antoine e Gabriel me abraçam efusivamente após o show. Gargalho diante da euforia de ambos, lembrando-me do tempo em que eu daria tudo para estar em um palco. Um tempo que ficou para trás.
Hoje, tenho tudo o que desejo, exceto, um marido macho o suficiente para enfrentar seus demônios e me encarar. Ainda olho ao meu redor à sua procura quando ouço a voz de Antoine causar microfonia em cima do palco.
- Desce daí! - Ordeno enquanto ela testa o som do microfone, causando aflição em todos. - Antoine Rossi!
- É ela! - Estaco diante dos olhares incidindo sobre mim. Nem mesmo no 'California', eu me senti tão despida quanto agora. - Ela é minha mãe. Ela me tirou da rua. Ela me deu amor e carinho. Ela me ensinou a dançar. É por isso que danço bem assim. - Modesta minha filha. - Ela que ensaiou a gente e, por causa dela, nós arrasamos na pista! - Mais palmas e urros de seus amiguinhos que, entusiasmados, sobem no palco e, juntos a ela, me aplaudem assim que Antoine termina seu improvisado discurso onde amor e confiança se misturam em seu lindo sorriso. - Te amo, mãe. Vc é a melhor mãe do mundo. Mesmo quando me dá bronca. Por isso, eu te escolhi. - 
Sem me mover, cubro o rosto. Enrico me guia até a saída do palco onde Antoine me abraça. - Gostou, mãe? Eu ensaiei a semana inteira.
- Muito, filha. Te amo. - Um abraço forte e recuo. Corro até o estacionamento. Dentro do carro, choro compulsivamente. Quando eu poderia imaginar que receberia uma homenagem como essa vinda de pessoas que jamais frequentaram os becos de onde eu vim!? - Por que seu pai não tá aqui pra assistir esse momento que jamais vai se repetir? No retrovisor interno, seco minhas lágrimas com os lenços umedecidos de Matteo. Retoco meu batom e improviso um coque no topo da cabeça. Não vim vestida para matar. Trajando um camiseta justa e jeans rasgado com cadarços na cintura, calçando meus tênis prediletos, saio do carro. Bato a porta com força. Afinal, não quero roubar a cena dos bailarinos. Sou somente a coreógrafa e mãe de um querubim que me ama, seja lá o que isso signifique.  Encarando o céu nublado, proclamo, sozinha, no estacionamento do colégio. - Ela é minha filha e me ama! Não pensem que será fácil tirá-la de mim! Entenderam???
- Acho que sim. - Imóvel, reconheço a voz logo atrás de mim. - De onde eu venho, não tem música. Nunca dancei antes de vc. Vc me acusou de usar a música pra te enganar e isso doeu. Todas as vezes em que eu te pedi pra dançar comigo, em todas as vidas, foi pra te acalmar ou pra me acalmar. Nunca foi pra te manipular. Não sou normal, Dess. Tenho medo de ser humano. Não sei lidar com vc. Ainda não sei. - Comprimo minhas mãos geladas. Meu coração bate acelerado. Meus olhos se enchem d'água enquanto ele prossegue. - Vc não faz ideia de como e do quanto eu penso em vc e em te fazer feliz e, todas as vezes que consigo, eu vibro por dentro e, quando eu falho, eu me odeio. Eu fujo de mim mesmo e, consequentemente, de vcs. A vergonha em ter te machucado naquela noite foi tão grande que, apesar de ter tentado por várias vezes, não consegui me aproximar. Hoje, por Antoine, eu tentei. Espero que me perdoe porque, se não me perdoar, eu prefiro a morte do que seu desprezo. - Apoiando-me no carro, curvo meu tronco para frente e choro em silêncio. Sinto sua presença próxima a mim. Sua voz mansa pergunta. - Me perdoa, novamente? Eu só te faço sofrer...
Viro-me lentamente em sua direção. Penso em dar um tapa em seu lindo rosto, mas seu olhar sofrido me faz desistir.
- Cachorro. - Rosno. - Eu te odeio por me fazer sofrer.
Um salto e me agarro em seu pescoço, procurando, sedenta, por sua boca. Arfando, ele me sustenta com seus braços fortes e me pressiona contra a lataria do carro. Esqueço-me dos dias de solidão e sofrimento sentindo o gosto de seu beijo apaixonado. Sua barba mal feita arranha meu rosto. Gosto disso. Sorrindo, ele murmura.
- Não tive vontade de me cuidar, Dess...
- Cala a boca, idiota. Vc tá de volta. - Outro beijo afoito e o sufoco. - Preciso respirar.
- Depois.
Mato um pouco de minha saudade e, num recuo, dou um tapa em seu rosto. Voltando a enxergar o homem por quem me apaixonei, deixo-me abraçar por ele. Ao som de uma canção antiga vinda do ginásio, ele, inseguro, me convida.
- Dança comigo? - Com as mãos trêmulas, aceito.

- Me deixa voltar pra casa? 
- É sério que vc tá imitando o cantor?
- Dess...- Um sorriso tímido e me desmancho. - Posso?
- Vou pensar. - Brinco. - Preciso de mais uns dois beijos pra decidir.
- Ok. Ok. É um sacrifício, mas...- Prestes a receber um tapa no braço, ele pressiona suas mãos em meu rosto e me beija com tanta paixão que fico tonta. Rindo, ele me observa e volta a perguntar. - Me deixa voltar?
- Talvez. Quem sabe até o final do baile...
- O baile! - Diz ele arregalando os lindos olhos azuis. - Antoine vai dançar!
- Ela já dançou e vc perdeu! - Puxando-me pelo braço, ele me faz correr de volta ao ginásio ao refutar num grito. 
- Eu não perdi! Eu estava lá, imbecil! - Enchendo suas costas de socos, pergunto antes de chegarmos à arquibancada.
- Por que não falou comigo??? - Passando entre os convidados na terceira fileira, pisando em alguns pés, ele responde.
- Não deu. Vc estava tão linda sendo homenageada por nossa filha. Eu não quis estragar tudo.
- Vincenzo!? Vc voltou! 
- Pai! - Um abraço apertado e Enrico enxuga lágrimas discretas. - Cuidou deles por mim?
- Claro, filho! Claro!
Liam o abraça. Cassie o beija no rosto e entrega Matteo em seus braços. Sentado, ele chora com o filho no colo. 
- Te amo tanto, filhão...
- Tem espaço pra mais uma aí?
- Pra vc? Sempre, Dess. - Um beijo apaixonado e arrancamos palmas de Enrico e Cassie. Rindo, desvio meu olhar para o pátio. Ergo-me, subitamente. Vincenzo me impede de gritar por Antoine que dança uma música lenta com seu amigo Thor.
- Isso não estava no roteiro, Vincenzo!
- São crianças, Dess. Estão se divertindo.
- Ele poderia se afastar um pouquinho mais dela! Eu vou lá!
- Tia! Não faz isso! Eles parecem dois robozinhos! Se ficarem mais distantes um do outro, ela não toca no ombro dele!
- Seria perfeito! Distantes! Separados! Crianças não dançam música lenta! - De pé, na arquibancada, grito. - Antoine! Separa! - Uma de suas gargalhadas e Cassie comenta. - Tadinhos! Não sabem dançar! - Um grito e Cassie orienta. - As mãos são no pescoço, pirralha!
- Cassie! Cala a sua boca e deixa as mãos dela onde estão! Nos ombros do Thor! Bem distantes do seu martelo!
Vincenzo gargalha enquanto me abraça.
- Um dia, ela vai dançar de verdade, Dess. Vc precisa se preparar pra isso.
- Vai demorar, Vincenzo. Vai demorar.
- Não vai, Dess. Ela não tem tanto tempo assim. - Suas palavras impregnadas de tristeza me chocam a ponto de me fazerem descer os degraus com a habilidade de uma atleta em uma corrida de obstáculos. - AONDE VAI!? - Pergunta-me Vincenzo assim que piso no salão do ginásio. Um outro grito e respondo.
- Se for verdade o que disse, ela precisa  aproveitar cada minuto de sua vida! Tem que ser perfeito!
Corro até o DJ e lhe peço uma canção. Da cabine de som, ele coordena as luzes. Os holofotes com luzes frias dão lugar aos pequenos pontos coloridos que giram ao redor das poucas crianças que dançam ao lado de Antoine e Gabriel. Angustiada e emocionada, eu os separo.
- Mãe, o que eu fiz?
- Nada. Se tiver que dançar, dance direito. Thor, ponha sua mão na cintura de Antoine. Filha, cruze suas mãos na nuca do Thor. - Ambos sorriem enquanto recuo e choro atrás de uma das pilastras. Intuitivamente, eles seguem o ritmo da canção. 


Mesmo que enciumada e com medo de que ela sofra algum dia, estou feliz ao sussurrar.
- Viva intensamente, filha.


Comemoramos o sucesso do baile em uma cantina aconchegante. Em nossa vasta mesa, a alegria é contagiante. Ao lado de Vincenzo, grudada em seu braço, observo a inocente conversa entre Gabriel e Antoine. Ambos comentam sobre os passos da coreografia. Liam e Cassie riem das piadas de Enrico, um tanto embriagado pelo vinho tinto. Matteo, seguro, em sua cadeirinha com bandeja, baba em seu mordedor de silicone. Plenamente feliz, cochicho no ouvido de Vincenzo.
- Prepare-se para sofrer hoje, canalha. Meu ranço por vc triplicou.
- Meu desejo por vc é três vezes maior do que o seu ranço por mim. - Sorrio diante de seu olhar devasso. - Hoje, eu controlo tudo. Ok?
- Ok. - Ainda rindo de Vincenzo, ouço Cassie anunciar o término das sessões de quimioterapia. - Wow! Isso é...! 
- Simplesmente esplêndido! - Exulta Antoine. - Agora, o bebê vai voltar a crescer! 
- Por que 'voltar', pirralha!? Ele não estava crescendo!?
- Estava, mas não gostava daquele suco ruim.
- Que suco? - Indaga Gabriel, confuso. Antoine o responde.
- Um suco ruim que davam pra Cassie tomar no hospital pra matar as células do Mal. Agora, ela não precisa mais disso e nem o bebê. - Inspiro profundamente ao sentir um arrepio na nuca. Vejo o braço do garçom à minha direita, servir meu prato: um fumegante 'nhoque' ao molho branco. 
- Espero que aprecie. - Diz a voz grave do garçom. Sem olhar em seu rosto, agradeço. - Sempre às ordens. - Outro forte arrepio e Vincenzo me pergunta.
- Tudo bem?
- Sim. - Minto. Sem meus óculos, procuro enxergar os rostos dos clientes mergulhados na penumbra acolhedora do ambiente. - Ninguém...
- Quem, Dess? Quem vc procura? Me fala. - Puxando-me pela cintura, ele me aproxima ainda mais de seu corpo. Melhor. Sinto-me segura. - Nada vai acontecer.
- Espero que não. - Murmuro. Um garfada no 'nhoque' e exclamo. - 'Perfecto! Mangia che ti fa bene'! - Provoco risos enquanto meu coração se comprime. Todos à mesa comem e conversam ao mesmo tempo. Exceto Gabriel que, acidentalmente, se corta com a faca. Ao seu lado, o garçom se apressa em limpar o sangue em sua mão com um guardanapo de pano. Erguendo-me, ruidosamente, dou a volta à mesa e o afasto de minha filha e de Gabriel. - Me dá a porra do guardanapo. - Ordeno em voz baixa. - Agora.
- Eu tô bem, tia. - Diz Gabriel num tom conciliador. - Não se preocupa. Já parou de sangrar. 
- Viu? Não foi nada. -  Vincenzo, com Matteo em seu colo, tenta fazê-lo parar de chorar. Ele acaba de se ferir mordendo sua própria língua. Atordoada, volto meu olhar ao garçom que, abrindo um sorriso sinistro, ironiza. - Todo o cuidado com um bebê é pouco. - Próximo ao meu ouvido, ele sussurra, discretamente. - Alguém dessa mesa precisa morrer. Faça a sua escolha. 
Num ato desesperado, alcanço Cassie e a impeço de terminar de comer seu 'fettuccine', empurrando seu prato contra o chão. Surpresos e incrédulos, todos me observam enquanto sigo o garçom e, puxando-o pela gola engomada, pergunto.
- Por que fez isso!? O que quer dessa vez!?
- Dess!!! - Ouço seu grito, o ruído de sua cadeira contra o piso cerâmico. Aflita, repito a pergunta. Lúcifer responde.
- O de sempre, meu bem. Semear o caos, a dor e a discórdia e...- Uma breve pausa e ele prossegue. - Antoine. Óbvio.
- Me dá a porra do guardanapo! - Insisto
- Sumiu. - Ironiza ele mostrando-me sua mão vazia. - Que estranho...
- Não toque em Gabriel!
- Antoine seria melhor, mas, se ainda não a tenho, serve o Thor mesmo. - Uma olhadela sobre meu ombro e ele debocha. - Ih! O bonitão está vindo! Fui! - Antes de sumir diante dos meus olhos aterrorizados, Lúcifer comenta. - Boa escolha. Como diria Rafael: uma vida pela outra.
- O que ele queria!? - Pergunta-me Vincenzo, enfurecido. - Matteo não parava de chorar! Antoine está nervosa! Cassie está com cólicas! Com quem vc conversava, Dess!? O que ele queria!? - Um olhar distante e repito suas últimas palavras.
- Uma vida pela outra. 






Após aquela tarde, procuro estar sempre próxima a Cassie que, esfuziante, comemora a cura do câncer e a saúde perfeita do feto em seu ventre. Antoine, visivelmente abatida, acolhe Gabriel em nossa casa após a separação de seus pais. Quase sempre, ele passa as noites em nossa casa. Quase sempre. Hoje, não foi uma dessas noites. Apático, ele confessa ao celular.
'Estou mal, tia. Minha mãe está deprimida'. Do outro lado da linha, procuro incentivá-lo a continuar a sonhar com seu futuro.
'Vai passar. Pense que, um dia, vc nos verá lá de cima com seu capacete de astronauta'. Não gosto do que acabo de dizer. Pioro assim que Vincenzo me lança um olhar indecifrável, movendo, lentamente, a cabeça baixa ao passar por mim. Intrigada, desligo o celular seguindo Vincenzo.
- Por que me olhou daquele jeito!? Falei alguma coisa errada!?
- Não. Pelo contrário. - Lamenta ele lavando os pratos do jantar sobre a pia. - A verdade. Vc falou exatamente a verdade, Dess.



De magrugada, aos prantos, Cassie me liga. Ergo-me da cama e, sentada à beira do colchão, desesperada, pergunto.
- Vc tá bem???
- Sim!
- O bebê??? 
- Tá bem! - Vincenzo, sentado ao meu lado, me abraça pela cintura. Sua cabeça baixa volta a se mover enquanto prossigo. 
- Liam está bem???
- Estamos, tia. - Responde-me ela tentando se acalmar. Liam toma o celular de sua mão e, mantendo o tom de voz linear, avisa.
- Não deixem Antoine acessar o site do colégio. Por favor.
- O que o houve??? Me fala, Liam!!! - Em silêncio, ele me envia um link e se despede. - O que é isso??? Liam!!!
Com tronco curvado para frente, Vincenzo toma o celular de minha mão e toca no link do jornal do colégio. - Me deixa ver!!! - Impedindo-me de tomar meu celular, afastando-me com sua mão entre meus seios, ele alerta num tom de voz sombrio.
- Vc tem que se acalmar. Nossa filha vai precisar de nossa ajuda, Dess.

Não fora preciso ler a notícia estampada na primeira página do site. Não após a foto que, algum infeliz, sem sensibilidade alguma, postou. 

Nada sobrara do carro que colidiu contra o poste tombado. Nada além de dois corpos estendidos no asfalto molhado. Um deles, eu reconheço, imediatamente. Um grito de horror e choro pelo menino sonhador, pela mãe suicida e por minha filha.
- Não é justo...- Murmuro entre um soluço e outro. Um urro de dor e lamento. - Gabriel não merecia isso. - Abraçada a Vincenzo, ouço sua voz embargar ao prever.
- Ela vai sofrer muito, Dess. Muito.
 


Continua...






































CAPÍTULO 35 - INJUSTO

 


Na sala de espera do mesmo hospital onde Vincenzo voltara à vida, aguardo, ao lado de Liam e Enrico, ao desenlace da tragédia. Vincenzo, distante, nos observa como se já conhecesse a verdade. O corredor me parece mais frio do que nunca. Mais vazio e sombrio. Liam não me dirige a palavra. Ele me culpa por não ter trazido Cassie assim que ela fora empurrada da cadeira. 

Era o que eu deveria ter feito se outra de minhas personalidades não tivesse me tomado por inteiro. Se não houvesse uma enorme confusão sobre trocas de vidas e a intervenção de um arcanjo tão frio quanto poderoso que mantivera vivas, mãe e filha, enquanto o socorro chegava à nossa casa.

Como dizer isso a um anjo que aguardava, ansioso e feliz, pela vinda de sua primeira filha e que, agora, com as mãos unidas em prece, ora para que ambas saiam da sala de parto, vivas?

Como nos filmes, um homem, trajando um pijama cirúrgico azul, caminha em nossa direção. De cabeça baixa, ele retira a touca. Diante de Liam, ele revela a dolorosa verdade. Amparado por Vincenzo, Liam não grita. Não se desespera. Apenas chora abraçado ao amigo. O cirurgião nos dá as costas e o meu martírio tem início.

Não compareci ao enterro. Não conseguiria assistir o caixão descer à cova sem me culpar ainda mais. Não suportaria o olhar acusador de Liam incidindo sobre mim. Não suportaria ouvir suas palavras de ódio ao declarar que os monstros que perseguiam a mim, voltaram-se contra seu grande amor.

Não fui ao enterro por aceitar a culpa.

Ele tem razão. Uma vida se foi graças ao mal que Celeste e Sweet trouxeram de volta às nossas vidas. Graças ao ódio que ambas ainda sentem por mim. Por mim, uma vida fora ceifada.

Antoine, sempre ao meu lado, com os olhinhos inchados de tanto chorar, me conforta.

- Vc fez o que podia, mãe. Se o tio Liam quisesse, poderia ter mudado tudo. Ele ficou lá, parado, vendo tudo acontecer. Não é justo te culpar.

Sentadas na cadeira suspensa, em madeira, na varanda de nossa casa, eu a encaro. Um sorriso triste e me pergunto.

- Como eu não percebi que vc havia crescido tanto, filha? Vc é tão inteligente e generosa. Eu não mereço uma filha assim.

- Merece sim. - Afirma ela beijando a bochecha de Matteo, sentado entre nós duas. Parecendo sentir minha dor, ele se agarra em meu braço e balbucia 'Mamã'

Emocionada, sem ter Vincenzo ao meu lado para compartilhar esse momento, choro de alegria. Meus dois filhos me amam, ainda que outros me odeiem.

De onde estou, vejo Vincenzo abrir o portão da garagem e estacionar seu carro novo com as janelas tão escuras que mal consigo enxergar seu rosto. Preferia a velha Kombi com todos os momentos que passamos dentro dela. Cassie amava a decoração luminosa de seu interior e as flores em sua lataria. Ainda me recordo do dia em que, fugindo do juiz diabólico, encontramos Liam na cidadezinha próxima à casa na praia. 

Por que tudo muda a todo instante? Por que não temos tempo de respirar antes de outra onda nos afundar?



- Vc está melhor, meu anjo?

- Enrico? Não te vi chegar. - Sentado em outro banco em madeira à minha frente, segurando Matteo em seu colo, ele comenta. 

- Vc precisa se alimentar. Parece-me fraca.

- Triste, Enrico. Estou triste. Profundamente triste. Como Liam está?

- Devastado. - Lamenta Enrico enquanto Vincenzo, recostado à viga em madeira que sustenta o telhado colonial, me observa, calado. Não nos falamos desde a aparição de Sweet. Percebendo o clima tenso entre mim e seu filho, ele conclui. - Mas ele é jovem. Vai superar.

- E ela? - Indago, angustiada. - Ela estava lá?

- Sim. Apática. Pálida. - Descreve Enrico num tom sombrio. - Sem derramar uma lágrima sequer. Jogou flores sobre o caixão de sua filha e nos deixou antes do funeral terminar. Liam a levou até o carro e ambos sumiram.

- Ela me odeia. 

- Vai passar, Dess. - Sem encarar Vincenzo, refuto, friamente.

- Não acredito. Eles me culpam pela escolha.

- Vc não tem poder de escolha, Dess. Deus é quem define isso. - Erguendo-me da cadeira, lançando a ele um olhar magoado, aviso.

- Diga isso ao seu amigo que, agora, me odeia. Com licença.



- Dess! - Grita ele seguindo meus passos. Corro até o quarto de Antoine e, antes de trancar a porta por dentro, ele a empurra e, num tom alto, ordena. - Fala comigo agora, porra! Eu tenho direito à defesa!

- Não há o que ser dito, Vincenzo! - Desisto de impedir sua entrada. -  Infelizmente, sua amante voltou do inferno e acabou com nossas vidas. Minto. Sweet acabou com a alegria de minha melhor amiga. Cassie é como uma filha pra mim! Como acha que estou me sentindo sendo odiada por ela!?

- Ela não te odeia!

- Como pode saber disso!? - Revirando os olhos, ele responde.

- Eu estava lá, Dess! Eu a vi! Eu a ouvi! Nada havia em sua cabeça além de um vazio assustador! Não havia palavras, pensamentos! Nada! Ela precisa de vc mais do que nunca!

- Não tenho coragem de me aproximar.

- Eu te ajudo. - Atrevendo-se a tocar em meu rosto, eu o ameaço. 

- Não toca em mim, verme falso. 

- Dess... - Recuo, enojada.

- Entendo que não tenha controle sobre sua mãe. Celeste já está perdida. Mas não te perdoo por ter me enganado por tanto tempo.

- Do que tá falando, Dess?

- O meu mal é sempre acreditar em seu sorriso convenientemente inocente e em seu rosto angelical. Por trás disso, há um homem cruel que mentiu pra mim quando eu dei todas as chances de se abrir comigo.

- Eu nada tive com ela! Sweet nunca foi minha amante! - Um passo adiante e ele se exalta. - O que quer que eu fale!?

- A verdade, porra! Por que ela cobra um filho seu!? Por que diabos ela atormentou Cassie atrás de um filho seu!? Se não tiveram nada nessa vida, tiveram em outra! - Urro de raiva ao comentar. - Que diabos eu tô falando!? Eu nem acredito nisso! Fica bem longe de mim, Vincenzo! - Dentro do quarto, sigo até a banheira da nossa suíte. Abro a torneira. Aos poucos,  água límpida vai tomando conta dos espaços vazios. Procuro pelos sais de banho. Esbarro em Vincenzo, completamente desorientado. Empurrando-o com a lateral de meu corpo, grito. - SAI! EU QUERO FICAR SOZINHA!

- Depois fala comigo? - Pergunta-me ele pela brecha entre a porta e o batente. - Não vou ficar mais um dia sem falar com vc. Não é justo.

- Não é justo que me culpem por algo que não fiz! Eu não quis enfiar minhas mãos na vagina de Cassie e causar dor a ela! Eu não sei quem foi! Eu não tenho controle sobre isso, merda! Além, disso, foi seu pai quem não quis levá-la ao hospital! 

- Vc precisa voltar a tomar seus remédios.

- Eu preciso morrer! Só assim essas personalidades vão sumir da face da Terra!

- Não fala isso. A gente vai dar um jeito nisso. 

- Eu tenho que dar um jeito nisso, Vincenzo! Eu!

- Eu sei, amor. Deixa eu falar com vc. - Chorando, imploro.

- Eu preciso tomar um banho demorado. Ficar longe de tudo e de todos. Me deixa...

- Ok. - Enfim, tranco a porta do banheiro. Antes de tirar minhas roupas, solto um grito de pavor. A água da banheira transborda quando abro a porta, buscando por ajuda.

- O que houve, Dess!? - Horrorizada, aponto para a banheira coberta por lodo e, com a voz trêmula, sussurro.

- Ela...de novo.

Nua, envolta em algas, Sweet, lembrando-me a velha sinistra do 'Overlook Hotel' em "O Iluminado", ergue-se lentamente, elevando seus braços e, como uma vadia ruiva dos infernos, clama por Vincenzo. 

- Nosso filho está perdido. Tu me deixastes lá, no frio, com o nosso filho em meu ventre. - Puxando-me para trás, ele me protege com seu corpo. Sinto sua  raiva ao tocar em seu braço. Sinto a repulsa em suas palavras assim que ele as pronuncia.

-'Sancte Michael Archangele, defende nos in praelio. Exsúrgat Deus e dissipentur inimici ejus' 

Encolhendo-se na banheira, Sweet emite um grito de dor e desaparece. Ainda ouço o eco de seu choro pairar no ar. Mudos por segundos, nos entreolhamos, assustados. Sou a primeira a romper o silêncio ao indagar.

- Vai me explicar tudo agora ou se calar pra sempre?

- Conto tudo, Dess. Eu sou o culpado.



- Por que eu tenho que estar sempre ligada aos seus B.O's??? Eu não entendo!!!

- Escuta, Dess! Se não calar a boca, eu não vou continuar!

- Se vc não continuar, eu volto a não falar com vc, cretino!

- Vou repetir! - Arregalando seus lindos olhos azuis, ele me encara. - Vê se entende dessa vez!

- Fala!

- Aconteceu no castelo, na Itália. Vc e eu nos reencontramos. - Irritada, resmungo.

- Odeio esse papinho de vidas passadas...

- Posso continuar? 

- Sim. - Permito recostando minhas costas na cabeceira de nossa cama. Abraço meus joelhos e, enquanto ele fala, finjo desinteresse. Ele me repreende. - Continua, porra!

- Vc já se esqueceu. Já se lembrou. Se esqueceu novamente, mas, enfim, vou contar de novo. Antes de me casar com vc, eu a tinha como amante.

- SWEET!?

- Isabella. - Esclarece ele, voltando a me repreender. - Se não se controlar...

- Continua. - Rosno.

- Assim que soube que eu te amava, ela surtou. Ela não queria desistir de mim. Eu não sabia que ela carregava um filho meu. 

- Ela trabalhava no castelo?

- Sim. Era uma das serviçais de minha mãe. E vc tomou o lugar dela. Minha mãe se encantou por Antoine.

- Puta que pariu! - Reclamo. - Eu sabia! Por sua causa, eu tenho que lidar com dois 'encostos'! Definitivamente, isso não é justo!

- Não me faça rir. O assunto é sério.

- Sério que é sério??? Não me diga!!! - Ajoelhando-se diante de mim, expressando amargura, ele me pede ao segurar minhas mãos unidas.

- Ouça tudo com atenção e depois me julgue. - Compadecida, calada, eu o escuto. - Eu me comportei da pior maneira àquela época. Eu te seduzi sabendo que era casada com o Aiden. Eu te ofereci um bom trabalho em nossa mansão com o propósito ter vc por perto e, com o tempo, possuir o seu corpo, mas, com o passar dos dias, eu me apaixonei por vc. Não queria mais nada com Isabella. Eu tentei explicar a ela o quanto eu te amava. Ela passou a nos cercar em todos os lugares. Ela era calada, sombria. Eu não sabia da gravidez. Houve uma festa em nosso palácio. Vc e eu dançamos juntos. Foi quando eu te conquistei. Quando senti que seria minha, porém, vc ainda era uma mulher casada e vc nunca traiu seu marido, apesar de minhas tentativas. Aiden já estava sendo influenciado por Asmodeus. Eu não o culpo. Eu a tirei dele. Vcs eram felizes, Dess, e eu a tirei dele...- Com lágrimas nos olhos, peço num tom baixo.

- Continua...

- Estávamos na varanda quando Isabella nos viu bem próximos, movida pelo ciúme, ela atentou contra sua vida. Impulsiva, vc a empurrou com força. Ela caiu sobre o gramado e bateu a cabeça contra uma pedra. Morreu subitamente. - Sufoco um soluço ao indagar.

- Eu matei Sweet!?

- Eu causei sua morte. Vc se defendeu. Só isso. Na ânsia em esconder seu corpo, eu a arrastei até um lago próximo ao castelo e o joguei lá dentro. A correnteza a levou, mas, carrego esse peso comigo desde então. Eu não a matei, mas provoquei tudo. Isso nunca ficou claro em minha vida. Eu nunca tive a oportunidade de pedir perdão a ela. Como Sweet, nós nunca conversamos.

- Ela tentou te conquistar. Eu sei.

- Sim. E não vou mentir pra vc. Ela me instigava a ser brutal. Vc se lembra do meu transtorno. Foi uma época confusa, amor. Eu me perdi. Já dei umas porradas nela, mas, nunca transamos ou fomos amigos. - Socando o travesseiro, confesso.

- Eu odeio ouvir isso! Sabia!?

- Eu imagino. Perdão. Se ajudar em algo, eu mudei. Eu me curei. Graças a vc, eu me curei. Isso faz tempo. Quando ela adoeceu e foi internada na clínica, eu já não tinha nada com ela. Nenhum tipo de impulso destrutivo.

- Não ajuda! - Grito contra o travesseiro.  Soltando o ar dos pulmões pela boca, observo. -  Mas, tudo bem. Eu também te fiz sofrer com o Aiden.

- Muito. Vc não faz ideia das noites em que fiquei do outro lado da rua onde moravam, dentro do carro, tentando te ver na janela ou no jardim. E, quando eu o via te abraçando ou te beijando, eu me deixava dominar pelo ódio e dirigia até algum bar bem distante dali e bebia até cair.

- Vincenzo!? - Lamento. -  Vc nunca me disse isso!

- Preferi esquecer. Enfim, estamos juntos como deveria ter sido desde o início. É tudo o que desejo, Dess. Ficar com vc até o fim. Foi sempre por vc e sempre será. Eu sinto muito por todo o mal que eu causei.

- Para. Não fala assim.

- Eu sou o culpado por tudo. Isabella não encontrou a paz por minha culpa. Isso se refletiu na vida de Sweet e, agora, em nossas vidas.

- Não. - Refuto afagando seu rosto. - Não há culpados. Foi uma fatalidade. 

- Parece-me que ela não pensa assim.

- Por que somente agora ela se lembra de tudo?

- Porque o véu do esquecimento de outras vidas foi rasgado. Agora, ela se vê como Isabella e, talvez, deseje vingança. - Num tom sinistro, divago.

- Ou queira seu filho de volta...

- De uma forma ou de outra, ela não tem direito à vingança alguma. Não contra vc. - Enciumada e assustada, aviso.

- Ela que não se atreva a tocar em um fio de seu cabelo. 

- Não temo por mim, Dess...

- Não me olha assim! - Ergo-me da cama. Pisando no tapete felpudo, protesto. - Não! Mais uma de olho em nossos filhos!? Não! Isso não! - Caminhando até mim, ele pousa suas mãos em meu rosto e me força a olhar em seus olhos aflitos.

- Eu vou proteger nossos filhos, Dess. Prometo. Por favor, fica comigo. Sem vc, eu não tenho forças. - Abraçando-o com paixão, sussurro.

- Eu fico. Não me deixa. Nunca.

- Nunca, Dess. 

Sem saber o que pensar, jogo-me sobre o colchão de olhos fixos no teto. Deitando-se sobre meu corpo, ele beija minha boca com ardor. Correspondo ao seu beijo. Enciumada, excitada e desnorteada, rasgo, violentamente, sua blusa, da gola até o último botão. Enfurno meus dedos em seus cabelos revoltos. Suas mãos passeiam por minhas coxas, abrindo minhas pernas. Ele tenta respirar. Eu não permito, beijando-o com voracidade. Rasgando meu vestido ao meio, ele se espanta. Rimos juntos.

- Foi mal. - Diz ele, timidamente.

- Me fode. - Ordeno. - E se esqueça dessa tal de Isabella! Vc é meu! Só meu! Deu pra entender!?

- Vagabunda...- Ronrona ele segundos antes de se afastar de mim como um gato assustado. - Caralho.

Antoine, esmurrando a porta, alerta.

- Parem de safadeza! Meu maninho quer falar uma coisa séria!

Cubro-me com meu roupão de banho e, com o coração acelerado, caminho até a  porta. 

- O que mais pode acontecer, meu Deus!?

- Calma, Dess. - Diz Vincenzo coberto com um roupão idêntico ao meu. Abrindo a porta, sorrio. Matteo caminha, cambaleando, de braços abertos, até Vincenzo e, como se tivesse ensaiado, balbucia 'Mamã'.

- Dess! Ele falou! - Celebra Vincenzo erguendo nosso filho que gargalha em seus braços. Antoine, orgulhosa, declara.

- Eu que ensinei. Acho que posso ser uma boa professora quando crescer. - Um aperto no peito e concordo.

- Pode ser, filha. Vc leva jeito.

Volto no Tempo. No exato momento em que ela dissera que não chegaria a completar seus quinzes anos. Prendendo o choro, aceito o conselho de Vincenzo.

- Para de pensar besteira e deita com a gente!

Salto sobre o colchão 'king size' e quico.

- Acho que estou atrapalhando. - Diz Enrico, ruborizando, debaixo do batente da porta. Há felicidade em seus olhos quando comenta. - Vou dar um passeio. Depois, eu volto.

- Vai nada! - Protesta Antoine saltando da cama. Puxando-o pela mão, ela o faz se sentar na poltrona próxima à cama e, rindo, avisa. - O senhor vai contar a história de quando era novo e trabalhava na rádio durante a guerra!

- Antoine! - Exclama ele, cruzando as pernas. Levando a mão ao rosto, ele retruca. - Isso tem um milhão de anos!

- Mas é uma história legal e o meu maninho adora quando o senhor dá aquele grito!

- Que grito, Enrico? - Pergunto abraçada a Vincenzo, esquecendo-me completamente dos momentos sombrios pelos quais passamos há poucos minutos. Enrico tem o dom de aliviar, amenizar, clarear o ambiente. - Essa história eu quero ouvir!

- Vincenzo conhece...- Avisa ele absolutamente rosado. 

- Conheço e quero ouvir de novo.

- Filho!

- Pai...- Amo o sorriso compassivo de Vincenzo. - Cadê o grito?

- Ok. Eu preciso de concentração. - Matteo gargalha pulando sobre o colchão assim que Enrico me surpreende com sua voz vibrante ao bradar. - "Bom dia, Vietnam!"


Após os risos, ele esclarece, coberto pela vergonha.

- Era assim que eu costumava iniciar os trabalhos na rádio. Foram tempos difíceis aqueles. Homens lutando por nada. Por nenhum ideal. Não há ideal algum em uma guerra. Todos perdem. Inclusive, aquele que se julga vencedor. Vi muitos amigos morrendo por nada. E, infelizmente, haverá outras guerras pela frente.

- Enrico! - Estalo meus dedos entre seus olhos perdidos. - Acorda! É passado! Vamos viver o presente, meu querido sogro!

- Pai. Vc poderia me considerar um pai?

Engulo em seco e, emocionada, assinto com a cabeça. Vincenzo me salva ao me abraçar e responder por mim.

- Claro que ela aceita, pai. Que homem seria capaz de nos unir e nos proteger além de vc?

Aos prantos, ele cobre o rosto com as mãos trêmulas. Matteo se agarra à cama até alcançar a poltrona e, apoiando-se nos joelhos de Enrico, balbucia, alegremente.

- Bo bô!

Entre lágrimas e risos, terminamos nossa noite saboreando pizza, pipoca e refrigerante, assistindo aos filmes antigos em nossa sala de vídeos. 

Nunca me senti tão feliz e acolhida como nessa noite. 

Pensava que havia nascido para ser puta e, descobrira, enfim, que nasci para ser mãe, esposa e filha de um homem mais do que especial. Sou parte de uma família feliz.

Absolutamente feliz...




Ouvindo suas histórias, imagino o quanto ele deve sofrer sem seu grande amor ao seu lado. Celeste o deixara sozinho ao retornar à Legião. Despeço-me de Enrico e, enquanto tomo uma ducha, penso no quanto Cassie deve estar sofrendo, sozinha, sem sua filha, presa em seu silencioso mundo sinistro. Secando meus cabelos diante do espelho, reflito sobre o que devo fazer.

Encarando meus medos, decido fazer o que ela sempre fez por mim:

Ajudar.



Coincidências não existem. 

Após dar aula na 'Just Dance', levo Matteo ao Supermercado. Sentado no carrinho de compras, ele brinca com os sacos de biscoitos que fazem barulho. Gosto de poder comprar o que não podia antes. Guloseimas para as crianças e bons vinhos para Vincenzo, seu pai e eu conversarmos à noite sobre assuntos aleatórios. Pensando em qual marca de iogurte devo levar para Antoine que, de um momento para o outro, passara a se importar com gordurinhas inexistentes em seu corpo, distraio-me. Encontro um com 'zero caloria' e, contrariada, eu o jogo contra o carrinho. Matteo ri de mim enquanto resmungo. 

- Sua irmã tá aprontando alguma, filho. Pode ter certeza disso. Deixa ela comigo. - Assusto-me ao chocar meu carrinho com outro. Minha primeira preocupação é com a segurança de meu filho. A segunda é protestar contra o 'motorista' que me encara com os olhos profundamente tristes. Confusa e insegura, digo seu nome.

- Liam.

- Adessa. - Observando Matteo, ele abre um sorriso triste e comenta. - Como ele cresceu. Está lindo.

- Obrigada. - Emudeço. Afinal, ele se afastou de mim. Ele me odeia por ter acabado com sua vida. Com a vida de minha amada Cassie. - Eu...eu preciso ir.

- Não vá. - Pede-me ele, segurando meu carrinho com uma das mãos. - Preciso de vc. Precisamos.

- Co como assim?

- Eu não te odeio. Como eu poderia? Vc optou pela vida de Cassie. Vc se ofereceu para morrer em seu lugar.

- Co como sabe disso!? - Incomodado por estarmos entre outras pessoas, ele me convida.

- Vamos sair daqui e tomar um café? Eu te explico tudo.

Antoine está com Vincenzo e Enrico, logo, não preciso me preocupar com mais nada além de tentar ser útil ao homem que, por diversas vezes, ajudou a minha família. É o mínimo a ser feito.

- Adessa!

- Ok. Vamos sair daqui.


Ajeito Matteo na cadeira para bebês da cafeteria enquanto Liam se mantem calado, observando meu filho com lágrimas nos olhos. Estou me contendo para não chorar quando ele, enfim, inicia a conversa.

- Não vai tomar seu 'Expresso'?

- Prefiro ouvir o que tem pra me falar, Liam. Como soube de tudo aquilo? Ninguém sabia.

- Não há segredos entre os anjos, Adessa. Principalmente, quando uma humana se atreve a discutir com um arcanjo. - Um sorriso no canto de sua boca e me animo. - Só vc mesmo. Cassie daria uma boa gargalhada se...

- Por que ficou triste novamente? Ela não melhorou?

- Não. Eu nunca mais ouvi a voz da minha esposa, Adessa. Sua amiga criou um mundo só dela onde ninguém entra. Ela não fala comigo, Adessa. - Confessa Liam enxugando suas lágrimas discretas. - Eu morreria por ela. Por um sorriso dela. Uma só palavra...- Enxugando minhas lágrimas com o guardanapo, pergunto, devastada.

- Já foram ao médico? Psiquiatras?  Psicólogos?

- 'Depressão Grave'. Esse foi o diagnóstico final. Ela não aceita tratamento. Ela sequer olha para mim. Mal se alimenta. Eu preciso forçá-la a comer e, nesses momentos, ela parece me odiar.

- Ela não te odeia, querido. - Afirmo pousando minha mão sobre a dele. - Ela o ama tanto que tem vergonha de vc.

- DE MIM??? - Olhando para os lados, ele me pede perdão e continua, num tom baixo. - Por que ela teria vergonha de mim se eu vivo por ela? Se eu morreria por ela?

- Porque ela pensa que te decepcionou.

- Como!? - Com a voz embargando, respondo.

- Quando Niamh morreu.

- Me ajuda...- Implora Liam baixando a cabeça. Curvando o tronco para frente, ele recosta a testa sobre a mesa e murmura. - Eu não vou suportar perder a mulher que eu amo. - Comprimindo sua mão entre as minhas, chorando de soluçar, afirmo.

- Não vai. Eu juro.


Liam me leva ao seu quarto. Assim que cruzo o umbral da porta, percebo o peso sobre nossas cabeças. Todas as lembranças do parto e a dor da perda se repetem constantemente refletidas em uma das paredes. Seus pensamentos projetam essas imagens sem que Liam os veja. Transtornado, ele a retira do chão frio e, em seus braços, a deita sobre a cama em desalinho. Tento não demonstrar o quão chocado estou com o que vejo. Seu rosto cadavérico, os olhos sem vida encarando o teto. De súbito, abro as janelas e puxo o ar pela boca, permitindo que os raios de sol invadam o quarto escuro. Visivelmente contrariada, ela se vira para a parede, dando-me as costas. Um olhar para Liam e peço que ele nos dê licença.

- Tem certeza? - Pergunta-me ele, receoso.

- Sim. - Forço um sorriso. Próxima a ele, sussurro. - Vai dar tudo certo. Prometo. Pode ir.

Liam nos deixa a sós. Mentalmente, peço que os raios do sol atinjam o quarto e dissipem a psicosfera nociva que não me deixa respirar. Da janela, invoco os elementais das árvores no jardim. Imaginação ou não, vejo pequenas criaturas aladas se espalhando pelo grande cômodo, tornando o ar mais leve. Uma antiga canção me vem à mente enquanto arrasto a poltrona em couro e me posiciono diante da cama de Cassie ainda de costas para mim. Seguindo minha intuição, cantarolo num tom baixo.


Com extremo receio, estendo meu braço até a cabeça de Cassie. Toco meus dedos em seu cabelo fino e oleoso. Ainda cantarolando, sentindo uma força crescer dentro de mim, acaricio seu couro cabeludo. Seu corpo se encolhe ainda mais. Em silêncio, eu me deito em sua cama e, de conchinha, eu a abraço imaginando uma forte luz branca a nos envolver. A princípio, ela reage ao meu abraço. Não desisto. Insisto em mantê-la junto a mim. Ouço seu coração encostando meu ouvido em suas costas. Seus ossos sob a pele fina me fazem chorar. 

- Não me importo se me odeia. Eu te amo, Cassie. Me perdoa. - Sussurro. - Sinta o meu amor...

De olhos fechados, relembro todos os bons momentos que vivemos juntas em nosso miniapartamento e das brigas bobas com Antoine. Nossas festinhas improvisadas por ela enquanto minha barriga crescia. Seus abraços enquanto chorava por Vincenzo. Nossa 'despedida de solteira' regada a suco de uva e flashbacks. Meu casamento com Vincenzo. A viagem à Itália. Seu casamento com Liam. Sua alegria contagiante enquanto dançavam juntos. Nossos passeios. Nossas corridas na praia onde nos escondemos do 'juiz diabólico'. Nosso encontro com Liam. Suas gargalhadas ao me contar sobre o primeiro beijo entre os dois...a primeira vez em que fizeram amor. Choro assim que percebo as batidas de seu coração mais fortes. Enchendo-me de esperança, peço contra suas costas. - Volta pra gente, Cassie. Precisamos de vc.

- Não consigo...- Diz ela num fio de voz. Gentilmente, eu a faço se voltar em minha direção. De olhos fechados, ela enrijece seu corpo esquálido assim que a toco em seu rosto. - Me deixa.

- Não. - Protesto com suavidade. - Vc nunca me deixou quando mais precisei de ajuda. Vc cuidou de minha filha quando eu não tinha ninguém. Vc conquistou o meu amor. O amor de Antoine e de Matteo. Sei que sua dor é imensa e vc sabe que já senti essa dor por duas vezes. - Seu jeito peculiar de franzir o cenho me faz perceber que a incomodo. Não me importo. Preciso tirá-la de seu inferno particular. Decidida e insegura, prossigo. - Vc pode me odiar agora. Eu mereço. Não consegui salvar sua filha. Eu tentei, mas falhei. Cassie, me perdoa. Mas, se não puder me perdoar, volte a falar com Liam. Ele tá desesperado. Ele te ama tanto...- Duas lágrimas escapam de seus olhos ainda fechados. - Vcs podem recomeçar. São jovens e saudáveis. Ainda podem tentar...- Abrindo seus olhos, ela me encara e, com mágoa em sua voz, ela refuta.

- Não somos. 

- O quê? 

- Não sou saudável, tia. Por que não fez o que te pedi? Por que não me matou e salvou nossa filha? Eu vou morrer e o meu pobre Liam vai ficar sozinho.

Impactada com sua resposta, recuo e caio contra o piso frio. Horrorizada, eu a vejo erguer o tronco com dificuldade. Mantendo-se sentada sobre o colchão, ela confessa num tom baixo algo que me abalaria profundamente.

- Assim que mataram minha filhinha, descobriram um câncer em meu útero, tia. Como uma mulher sem útero pode ser mãe novamente?

- Eu não sabia, Cassie! Não me disseram nada! - Pondo seus pés delicados no chão, ela rosna.

- Fala baixo. Eu não permiti. - Seus olhos insanos procuram por Liam. Certa de que ele não está por perto, ela continua num tom amargo. - Ele vai me deixar, tia. Por que não deixou minha filha viver? Eu morreria de um jeito ou de outro. Eles retiraram tudo de mim. Estou vazia, oca por dentro, mas eu sei que o mal ainda está aqui. - Afirma ela com as mãos em sua barriga. - Eu ainda estou doente, tia. Meu Liam não merece sofrer mais do que tem sofrido. Por que não me matou quando teve a chance? Por quê? Ele deveria ficar com uma parte minha e vc estragou tudo...

- Queria que eu te matasse, Cassie!?

- Não grita. - Pede-me ela num desespero. - Ele não pode saber.

- Ele já sabe, Cassie. - Sem controlar minhas emoções, choro compulsivamente recostada à janela. Inspiro e expiro, temendo uma crise de claustrofobia. Um olhar ao céu e imploro ao 'Crucificado'. - Me ajuda.

- Não adianta, tia. Ele Me abandonou assim como abandonou meus pais. - Lentamente, caminho até Cassie. Ajoelhada diante dela, assustada, pergunto.

- O que sabe sobre eles?

- Foram mortos, tia. Meus pais jamais se drogaram na vida. Por que foram encontrados mortos por overdose, deitados na cama? Não faz o menor sentido. Deus abandonou meus pais e, agora, depois de me fazer sentir a felicidade extrema, ele vai me matar, aos poucos.

- NÃO! - Grita Liam ao invadir o quarto. Envergonhada, aterrorizada e amedrontada, Cassie se cobre com seu lençol. Recuo sem conseguir parar de chorar enquanto Liam se joga aos seus pés e a refuta. - Deus não faria isso, amor. Nunca. Mesmo que vc não possa me dar um filho, eu vou te amar como sempre. Vou te amar ainda mais. Ainda que vc esteja doente, eu vou continuar a te amar e a lutar com vc, amor. Lembra de nossa canção!? Lembra, 'little princess'!? 'Nada vai nos parar. Nada.' 

Tocada em seu íntimo, ela, enfim, desaba. Chorando juntos, eles se abraçam enquanto fujo do quarto movida pelo remorso. Perco-me em meio a tantas portas até chegar ao portal da sala de onde enxergo as árvores. Minha visão embaçada pelas lágrimas percebe seu vulto. Destroçada pela culpa, deixo-me contaminar por suas palavras repletas de veneno.



- Mais um pecado em sua lista, meu bem. Deveria ter ficado quieta e deixado a criança viver. Melhor para mim. Posso ouvir o choro do bebê todas as noites procurando pela mãe.

- Maldito. - De joelhos, baixo a cabeça apoiando minhas mãos no gramado. Puxando o ar pela boca, penso em Matteo e em Antoine. Sem oxigenação em meu cérebro, tombo para o lado. Um baque surdo de minha cabeça contra uma pedra decorativa e, antes de fechar os olhos, eu a reconheço.

- Isabella?

- Vc não vai!

- Vc não manda em mim!

- Eu sou o teu homem! Me respeita! Vc não vai sair desse jeito e pronto!

- Vamos ver se eu vou ou não, Vincenzo!

Agarrando-me pela cintura, ele me impede de chegar até a porta da sala. Movendo meus braços e pernas, aleatoriamente, eu berro.

- ME SOLTA, PORRA! EU PRECISO SAIR DE CASA! EU QUERO...PRECISO TRABALHAR!

- Não precisa. - Refuta Vincenzo apoiado por Antoine ao seu lado. - Pela primeira vez em nossas vidas, vc não precisa trabalhar. Eu posso pagar por tudo. 

- Não quero teu dinheiro!

- Quer sim, mamãe! Vc comprou seu carro com o dinheiro dele e ainda não terminou de pagar!

- ANTOINE ROSSI! O QUE EU JÁ LHE FALEI SOBRE...!? - Revirando os olhos, ela resmunga.

- Sobre se meter em conversa de adultos. Já sei. Mas a senhora não pode ir pra academia com essa cabeça enrolada com ataduras! Tá parecendo uma mãe-de-santo!

- Qual o problema!? - Dando de ombros, ela responde enquanto Vincenzo gargalha. - Nenhum. Pode ir. Se te zoarem lá, não chora.

- Mãe-de-Santo. - Repete Vincenzo, aos risos. - Essa foi boa, filha. Bate aqui.

O barulho do encontro de suas mãos me irrita. Observo-me no espelho. Estou medonha. Só não me arrependo de ter ido à casa de Cassie naquele dia fatídico porque Liam me contou que sua amada esposa voltara a se alimentar e a interagir com ele, embora ainda não tenha sorrido. Ao menos, Liam voltou a falar comigo e, por uma intervenção divina, eu não sofri lesão alguma em minha cabeça além de um corte superficial. ENTÃO, POR QUE A PORRA DESSA FAIXA AO REDOR DA MINHA CABEÇA???

- Ordens médicas, Dess! Respeita! Doze pontos não é um corte superficial!

- Respeita vc a minha intimidade e para de ler a porra dos meus pensamentos!

- Mãe! Olha o palavrão!

- Não me repreenda! Vc está visivelmente do lado de seu pai! Castigo! Agora mesmo! E amanhã também!

- MAMÃE!

- Não é justo, Dess! Deixa ela! - Agarrada à cintura do pai, Antoine choraminga. 

- Amanhã é dia do ensaio na escola, mãe.

- Que ensaio!?

- Eu te falei!

- Ela não se lembra, filha. Mas a pancada não foi forte. - Zomba Vincenzo. - E ela ainda quer sair pra dançar.

- Errou! Não é para dançar! É para ensinar a dançar, idiota! E vc, mocinha, esqueça o ensaio!

- Não posso! - Dramatiza Antoine jogando-se sobre o sofá. - Meu amigo vai me esperar!

- Amigo???

- Dess, fica fria!

- Vincenzo! - Avanço até ele e explodo. - Vá pra puta que o pariu! A filha é minha! Deixa que eu me entendo com ela! Ok!?

- É nossa. - Instiga-me ele, piscando. Ele sabe como me fazer perder o equilíbrio. Outra risada e ele pergunta. - Que equilíbrio, Dess!? Desde quando vc foi equilibrada nessa vida!? Impulsividade é o seu sobrenome, amor.



- Amor é o cacete! - Confusa, levo a mão à cabeça. Dói. - Já nem sei porque eu tô brigando! 

- Viu!? Não vai sair! Fica em casa! 

- Que amigo é esse, mocinha???

- Da escola. - Responde-me ela evitando meu olhar. Cruzando as pernas, ela comenta. - Eu te contei sobre o baile à fantasia e sobre os ensaios. Eu não posso faltar, mãe.

- Vc não pode faltar à porcaria de um ensaio de um suposto baile à fantasia no seu colégio e eu posso faltar ao meu trabalho!? Isso é justo!?

- Eu não tô com a cabeça enfaixada, mãe. Vc precisa descansar.

- Não. Eu vou trabalhar. 

- Não vai.

- Jesus. Vcs parecem crianças brigando. - Comenta Enrico enquanto brinca com Matteo. - Se ela colocar um gorro na cabeça, o problema se resolve.

- PAI!!! - Repreende-o Vincenzo. Beijando a bochecha de Enrico, agradeço.

- Vc é demais! Te amo! - Corro até o quarto. Vincenzo me segue. Irritado, ele me observa revirar todas as gavetas de gorros, bandanas e bonés até encontrar uma que me agrade. Sorrio. - Sai. - Rosno enquanto ele se mantem em frente ao espelho do 'closet'. - Eu vou te empurrar. - Aviso.

- Tenta. - Desafia-me ele abrindo um de seus sorrisos cafajestes. Cerro os punhos, prendendo o riso. Segundos antes de socar seu abdômen 'trincado', a campainha toca. - Salvo pelo gongo. - Brinca ele ao roubar um beijo meu. - Fica em casa. Ponto final. 

Trancando-me no quarto, ele grita do corredor.

- SE FICAR QUIETINHA, EU TE LIBERO!

- VOLTA AQUI, VINCENZO! - Berro, chutando a porta trancada por fora. Uivo de dor ao machucar meu dedinho. Tropeço em meus tênis espalhados pelo chão. Caio sobre o colchão. Xingo ainda sentindo os pontos acima de minha nuca. Inspirando, tento conter meu impulso em retirar esse turbante patético de minha cabeça, ainda que o médico tenha pedido que eu esperasse por mais dois dias.

Dois dias além dos treze que já fui obrigada a permanecer em repouso.

- Repouso! - Repito ainda deitada. Falando comigo mesma, prossigo. -  Aquele tipo de repouso em que vc cuida de um filho que acaba de aprender a correr sem ainda saber andar. Repouso onde vc cozinha porque sua família diz amar sua comida, mas, na verdade, querem te fazer de escrava. Repouso onde eu ajudei minha filha a realizar as tarefas do colégio. Filha que, agora, está contra mim! - Grito contra o travesseiro. Enraivecida, eu me levanto e caminho até a porta. Prestes a arrebentar a maçaneta com um halter de ferro fundido pesando dois quilos, ouço sua voz ordenar.

- Não se atreva, Dess. Eu vou abrir.

- Arrependido, canalha? - Indago assim que ele abre a porta. Seus braços enlaçam minha cintura. Ele me beija na boca e responde.

- Claro que não, idiota. Temos visitas. 

- Quem?

- Seja boazinha, Dess. Se controla. Meu amigo precisa de vc.

- Liam??? - Escapo de seu abraço e, correndo até a sala, empaco. - Não...acredito...

- Dess...- Sussurra Vincenzo em meu ouvido. - Vai com calma. É a primeira vez que ela sai de casa em meses. Ok?

- Ok. - Concordo com os olhos marejados. Caminhando, cuidadosamente, em sua direção, abro um sorriso inseguro. - Oi...

- Tia. Relaxa. Eu não sou um bicho. Não vou te morder. 

Uma crise de riso me faz curvar o tronco para frente. Por mais que eu tente, não consigo parar de rir. Procurando por Vincenzo, choro. Ele me abraça com força ao avisar.

- Temos visitas para o jantar, Dess. Não é incrível?

- Sim. - Enxugando meu rosto com o dorso das mãos, toco nas ataduras. Um susto e explico. - Foi um um um... acidente.

- Em nossa casa. Eu sei. Liam me contou. Foi minha culpa. - Um passo adiante e a abraço demoradamente. Num sussurro, imploro.

- Não vamos mais falar de culpa. Ok?

- Ok. Posso respirar agora?

Voltando a rir, eu me afasto. Estou sem jeito diante de minha melhor amiga, minha filha. Não sei o que falar. O que fazer. Tenho medo de feri-la novamente.

- Seja vc mesma. - Aconselha-me Enrico ao servir taças de vinho a Liam e Cassie. Receosa, ela exala. - Um pouco de álcool vai te fazer bem, meu anjo. Vai te relaxar. Pegue. - Uma piscadela e ela, enfim, sorri. Liam, fascinado, comenta.

- Vc sorriu, amor. Vc sorriu.

- Senta comigo? - Pergunta Antoine segurando sua mão. - Tenho muitas coisas pra te contar.

- Tem??? 

- Dess!!!

- Contar a ela o que não contou a mim???

- Mãe! - Um gole do vinho e Cassie volta a sorrir ao comentar.

- Nada mudou, tia. A pirralha vai começar a dar trabalho.

Arrastada por Antoine até seu quarto, Cassie desaparece. Liam me surpreende e me emociona ao me abraçar, aos prantos.

- Obrigada, Adessa. Por vc, ela voltou. Eu te devo a minha vida.

Meu corpo todo treme de emoção e alegria assim que me tranco no banheiro e choro copiosamente por algum tempo. Secando meu rosto com a toalha, cubro as ataduras com um 'gorro caído' e, confiante, encaro meu reflexo embaçado. 

- Porra! De novo não!

Abro, repentinamente, a porta antes de ver outra de minhas personalidades surgir e estragar a noite.

- Tudo bem, Dess?

- Sim. - Aflita, suplico apoiada na pia da cozinha. - Não deixe que ninguém tome meu corpo hoje, amor. Por favor. Nada pode estragar esse encontro. Nada. - Um beijo em minha testa e ele declara.

- Deixa comigo.


Após o jantar e incontáveis taças de vinho, percebo Liam e Cassie muito mais relaxados do que antes. Incomodada por não ter ouvido sua gargalhada, provoco Vincenzo ao responder Cassie.

- Amanhã. Amanhã eu retiro esse turbante ridículo e volto às minhas atividades.

- Daqui a dois dias. - Refuta Vincenzo, sorrindo. - Não me desobedeça. Eu sou o teu marido.

- Marido...- Um gole de vinho e o advirto. - Melhor parar por aqui se não quiser ter problemas.

- Esposa. - Diz ele, encarando-me. - E se eu quiser ter 'problemas'?

Rindo, respondo.

- Acho que alguém aqui, nessa mesa, vai apanhar e não será a Cassie, o Liam, Enrico, Matteo ou Antoine.

- Papai! - Exclama Antoine. - Só pode ser o papai, mãe!

- Garota esperta...- Comento beijando sua bochecha. - Como descobriu? 

- Essa foi fácil! - Comemora ela. - Manda outra!

- Qual o nome do seu amigo do baile???

- Dess!!!

- Não se atreva a me repreender, Vincenzo!!! Eu estou cuidando da...- Outro gole de vinho no gargalo da garrafa e concluo. - Da inte...intregui...in...

- Integridade, idiota. - Corrige-me Vincenzo. - Para de beber, Dess.

- Eu já te mandei tomar no...- Tapando minha boca com sua mão, ele responde. 

- Sim. Já me mandou pra todos os lugares hoje e é por isso que eu te amo. - Arfando, confesso.

- Também te amo, imbecil.

- Vcs continuam os mesmos. - Murmura Cassie. Liam a abraça timidamente e a beija na bochecha. Gosto disso. - Quanto mais se xingam, mais se amam...

- Mais vinho pra Cassie, Enrico! - Ordeno, esperançosa. - In Vino Veritas!

- O que é isso, mãe?

- Não faço ideia! - Rimos juntas até que Vincenzo esclareça apoiando seus cotovelos sobre a mesa repleta de pratos que, mais tarde, eu terei de lavar. 

- 'No vinho, a verdade', filha. É um provérbio antigo. Sugere que, sob o efeito do álcool, as pessoas tendem a revelar seus verdadeiros sentimentos.

- Eu não preciso disso. - Discordo com a voz entaramelada. - Sou o que sou com ou sem vinho.

- Isso é verdade. - Atesta Vincenzo.

- Pronto pra apanhar? - Indago aos risos.

- Sempre. - Responde-me ele, sedutor. Porra. Após anos, eu ainda arquejo diante de seu olhar devasso. Dando de ombros, ele comenta. - O que eu posso fazer se sou gostoso?

Arremessando meu guardanapo em seu rosto por falta de algo mais pesado, aviso.

- Melhor ficar quieto. Tá passando dos meus limites. - Rindo, Cassie comenta.

- Tia. Vc não tem limites. Nunca teve.

- Concordo. - Diz Vincenzo enquanto Antoine cochicha aos ouvidos de Cassie.

- Eles sempre brigam, Cassie. Todas as noites eu ouço minha mãe xingando meu pai no quarto deles. Mas eles sempre estão juntos e felizes. Então, eu acho que, talvez, eles não briguem de verdade. Talvez, eles brinquem dentro do quarto. Brincam e fazem safadeza. Eles são muito safados. Vivem se beijando.

Pela primeira vez, em meses, ouvimos a gargalhada sonora de Cassie. Extasiados, Liam, Enrico, Vincenzo e eu nos entreolhamos. Calados, aguardamos por suas palavras.

- É isso aí, pirralha! Eles brincam de brigar! Isso é bem legal!

- Vc já fez isso com o tio Liam? 

Arquejo diante do silêncio incômodo à mesa até que Cassie, lançando um olhar apaixonado a Liam, confessa.

- Já, pirralha. Faz tempo, mas eu já brinquei de brigar com ele.

- Talvez, deva começar a brincar de brigar de novo. - Sugiro.

- Talvez. - Diz Liam, ruborizando. Quebrando o clima tenso, Antoine dramatiza.

- Vc precisa ver uma coisa Cassie!

- Filha! Estamos conversando! - Relaxada no sofá 'chaise' na varanda, agarrada a Vincenzo, peço. - Deixa ela aqui...

- Mamãe! Cassie precisa ver sua sala de dança! Confia em mim! - Arrastando-a pelo braço, Cassie, levemente embriagada, se deixa levar. Curiosa, eu as sigo. Vincenzo e Liam fazem o mesmo. Enrico e Matteo dormem,  juntinhos, no sofá da sala. - Olha que lindo, Cassie! - Diz Antoine acendendo as luzes coloridas, desligando a luz central. Acima de nossas cabeça, uma 'bola de espelhos' reflete as luzes nas paredes e em nossos rostos. Cassie olha para mim e, incrédula, pergunta.

- Sério que vc tem uma bola de discoteca  em sua casa!? - Rindo, respondo.

- Ok. Eu sei que é um pouco de exagero...



- Um pouco!? - Reclama Vincenzo. - Isso me custou o olho do...- Um beijo em sua boca e o impeço de xingar. Tonto, ele confessa. - É assim que ela gasta meu dinheiro, Cassie. 

- Foi num lugar como esse que tudo começou, amor. - Sob os protestos de Antoine, eu abraço meu marido. - Eu queria recriar o clima.

- Conseguiu, Dess...

- Vai começar a safadeza, Cassie. - Revoltada, ela caminha até a torre de som super potente e a liga. Tomando o celular do bolso de Vincenzo, ela o manuseia com a velocidade da luz. Sorrindo para Vincenzo, sussurro.

- Ela tá aprontando alguma.

- Com certeza...



- Eu me amarro nessa música, Cassie. Eu te contei, né?

- Contou o quê!?

- Dess! Cala a boca e dança comigo! - Enciumada, eu o obedeço e me deixo guiar por ele. Sorrindo, ele admite. - Estou me sentindo na casa de praia quando a gente fez amor pela primeira vez. 

- Exatamente...

- Safada.

- Cachorro.

Emocionada, observo, abraçada a Vincenzo, Antoine unir Liam a Cassie e ordenar.

- Dancem. Isso faz bem pra alma. - Como dois adolescentes tímidos, ele se olham confusos. Cruzando os braços, Antoine pergunta. - Dá pra começar ou vou ter que ensinar?

De súbito, Liam toma Cassie em seus braços e, sorrindo, dá os primeiros passos. A música lenta e romântica me faz arfar. Ver os dois juntos e dançando como nos velhos tempos, me faz chorar.

- Eles vão ficar bem, Dess.

- Eu sei...

Sutilmente, Antoine nos empurra para fora da sala mergulhada na penumbra onde os dois pombinhos, enfim, se beijam. No corredor, Antoine resmunga.

- É safadeza, mas, eles precisavam disso. - Beijando-nos no rosto, ela se despede, bocejando. - Boa noite, papai. Boa noite, mamãe. Amo vcs...

Abraçando-me, Vincenzo sussurra enquanto ela se distancia.

- Nossa filha é mais do que especial, Dess. - A voz embargando responde.

- Sim. Muito. - Voltando a chorar, imploro. - Não deixa que nada de ruim aconteça a ela, amor. Nunca.

- Nunca.




No dia seguinte à reconciliação de Liam e Cassie, acordo tarde. Fico na cama lembrando-me de como os dois saíram daqui de casa, alegres e apaixonados.  Aposto que já 'brincaram de brigar'. - Rindo comigo mesma, recordo-me de Antoine, nosso anjo. Tudo aconteceu por causa dela. 

- Preciso ligar pra Cassie. - Penso alto caminhando descalça até o quarto de Matteo. Beijo seu rostinho. Ele ainda dorme em seu berço, escoltado por seu avô, que ronca. - Te amo. - Sussurro ao meu filho antes de sair de seu quarto. Sigo até a cozinha. Resmungo. Há pratos dentro da pia. - Depois do meu café, eu lavo. - Abro a geladeira e me espanto ao ver a merenda de Antoine intocada. Um aperto no peito e corro até seu quarto. Abro a porta e, levando a mão ao peito, indago. - O que faz aqui???

- Calma, Dess. - Pede-me Vincenzo ao lado da cama onde Antoine ainda se mantem deitada. - Ela...

- Por que não a levou ao colégio???

- Dess...- Ajoelho, abruptamente, ao lado de Vincenzo. Ele recua. Encosto o dorso de minha mão na testa de Antoine. Arquejo, apavorada. Sentado no chão, Vincenzo argumenta. - Se vc perder o equilíbrio, vai ser pior. É só uma febre. 

- Oi, mamãe. - Diz sua voz fraca. Debaixo do edredom, Antoine sorri, de olhos fechados ao tentar me acalmar. - Eu tô bem. O tio Liam e a Cassie já foram?

- Sim, filha. - Murmura Vincenzo, com os olhos fixos em mim. - Vc foi bem esperta ontem.

- Vc ficou com ela a noite toda!? - Pergunto angustiada. Aparentando tranquilidade, ele responde.

- Ela me chamou de madrugada.

- Como??? Eu não a vi no nosso quarto!!! - Um olhar significativo e compreendo. Telepatia! - Vamos ao médico! Agora!

- Eu preciso ir ao ensaio, mãe...- Abrindo seus olhinhos avermelhados, ela suspira. - Meu amiguinho...

- Eu te levo, filha. Depois. Agora vc precisa ficar bem.

- Eu não consigo levantar, mãe. Meu corpo dói. - Num desespero, eu a abraço. Seu corpinho quente me apavora quando ela sussurra. - O ensaio é hoje. Eu vou perder.

- Não vai não, meu amor. Eu vou ao colégio e falo com a diretora. Vai ter outro ensaio. Eu juro.

- Vc não, mãe. Papai vai. - Disfarçando um sorriso, Vincenzo se mantem calado. 

- Por que seu pai, filha? - Pergunto enquanto retiro o edredrom e elevo seu tronco. Lançando a Vincenzo um olhar de raiva, eu a visto com seu casaco de moletom sobre o pijama. Chuto a perna de Vincenzo que me observa, curioso. Um gemido de dor e, tentando manter a calma, retiro o termômetro de sua axila. Trinta e nove graus. Entrego o termômetro a Vincenzo. De imediato, ele procura pelos tênis de Antoine enquanto ela responde, exausta.

- Vc faz barraco, mãe. Papai é mais calmo. Mas eu te amo. Tá?

- Não vou fazer. Prometo. Vc vai ao ensaio, filha. Vc vai.

- Dess, larga ela. Precisamos ir.

- Aonde???

- Ao médico. 

- Claro. - Desperto, afastando-me dela. - Ao médico. - Repito. De súbito, corro até o banheiro. Escovo meus dentes. Enfio o gorro em minha cabeça enquanto fixo meus olhos no crucifixo acima da porta do quarto de Matteo e imploro. - Cura minha filha. - De volta ao quarto, encontro Vincenzo com Antoine em seus braços. Olhando fixamente, ele informa modulando o tom de voz.

- Mantenha a calma, Dess. Ela desmaiou. 

Desorientada, corro pela casa sem saber o que fazer. Aos gritos, acordo Enrico. Aos prantos, peço que cuide de Matteo. Seus olhos azuis e arregalados me observam, assustados. Com Matteo em seu colo, ele nos segue até a porta.

- O que ela tem!?

- Não sei, pai. Fica calmo. Ok? Voltamos logo. 

- Que Jesus a cure. - Abençoa Enrico, de pé, diante da garagem. Mais tarde, entenderia suas palavras soltas no ar. - Ela se exauriu muito ontem...

De pijama, descalça, sento-me no banco traseiro e, agarrada a Antoine, choro e volto a rezar.

- Dess, é só uma febre. - Diz ele ao volante. - Fica calma, amor.

- Eu sei. - Minto. É mais do que isso. Eu sinto. - Mais rápido, amor! Mais rápido! - Conferindo, pela terceira vez, o termômetro, alerto. - Ela tá com quarenta graus!

Os olhos de Vincenzo me encaram pelo retrovisor interno. Há medo em seu semblante ao comentar.

- Ela vai ficar bem, Dess. Confia.



Assim que chegamos ao pediatra, Antoine, acordada, tagarela enquanto é meticulosamente examinada. Sorrindo, ele a escuta atentamente. Vincenzo e eu, incrédulos, permanecemos sentados no sofá, de mãos dadas, aguardando o diagnóstico final.

- Nada.

- Nada??? Como assim??? Ela estava ardendo em febre e desmaiou!!! Como 'nada'???

- Vou prescrever alguns exames por precaução, mas Antoine está perfeita. Pronta para o ensaio. 

Aliviada, eu a vejo saltar da maca, consultar o relógio no pulso do pediatra e comemorar.

- Woohoo! Ainda dá tempo!

Olhando-nos, ainda grudados ao sofá, ela reclama.

- Vão ficar aí!? Eu tenho um compromisso!




De volta à nossa casa, Antoine corre até seu quarto, cantarolando. Ao passar por Enrico, ela o beija na bochecha e avisa num tom de cumplicidade.

- Voltei.

- Eu sabia. - Diz Enrico, sorrindo com seus olhos. Algo em mim começa a me irritar. Sinto-me um peixe fora d'água. 'A excluída'. Arrancando-me de meus pensamentos intrusivos, Enrico exulta. - Ela é extremamente forte.

- Sim. - Rosno. Segurando-o pelo pulso, pergunto. - O que quis dizer com 'ela se exauriu muito ontem'? - Prestes a me responder, Antoine e Vincenzo, de mãos dadas, caminham em direção à porta da sala. Meu olhar inseguro os acompanha. - Aonde pensam que vão!?

- Ao ensaio! - Responde-me ela, naturalmente. - Papai vai filmar tudo pra vc ver depois, mamãe! - Vincenzo coça a cabeça baixa e abrindo um sorriso amarelo, comenta.

- Ela me pediu, Dess.

- Ela te pediu??? Não me diga!!! - Num impulso de raiva, empurro Enrico e avanço sobre Vincenzo que parece prever minha reação ao se manter em posição de defesa, como em um ringue, após o início de uma luta. Diante dele, indago. - E vc aceitou sem pestanejar???

- Dess...- Cerro meus punhos e, após acertar vários golpes em seus braços, descarregando minha fúria, arfando, aviso.

- Ninguém sai daqui sem a minha pessoa! 

- Mãe! - Dramatiza Antoine. - Estamos atrasados!

- Antoine Rossi! Há meia hora, vc estava desmaiada! Agora está atrasada pra um ensaio da porra de um baile!? 

- Mãe...- Resmunga ela revirando os olhos. - Palavrão...

- Palavrão é o cacete! - Tranco a porta da sala e, ao segurar o molho com todas as  chaves da casa em minha mão, alerto. - Daqui ninguém sai sem mim, mocinha! Deu pra entender ou quer que eu desenhe!? 

- Mas mãe...

- 'Mas mãe', nada! Me espera! - Engulo o choro e a decepção ao perguntar. - Agora vc tem vergonha de mim!? Desde quando!?

- Dess, não é vergonha. 

- Vincenzo!!! - Inflando as narinas aviso. - Depois a gente conversa!!! Não saiam dessa sala sem mim!!!

- Nem daria...- Resmunga Antoine, de braços cruzados, sentada no sofá. - Vc tá com as chaves. - Um passo em sua direção e Vincenzo me segura pelo punho. Sua voz doce me pede.

- Agora não, Dess. Depois. Vai se vestir. Eu te espero. - Meus lábios tremulam ao concordar e me afastar. Ela gosta mais do pai do que de mim. Puxando-me pelo braço, ele sussurra. - Não pensa assim. Ela te ama. Só tem medo de vc não gostar do amigo dela. - Um beijo em minha bochecha e ele me solta. - Vai. E não demora. - Ainda chateada, de braços cruzados, ela me pede. 

- Não vai de botas. 

De costas para ela, caminho até meu quarto, com lágrimas nos olhos. Pela primeira vez, eu me sinto distante de minha filha. 

A sensação é terrível. 

Em frente ao espelho, enxugo meu rosto e capricho na maquiagem. Meus olhos se destacam sob a ação do lápis e sombra escuros e rímel daqueles que curvam meus cílios ao máximo. Cílios grossos que quase alcançam as sobrancelhas. Opto por um batom mais suave. Não quero chocar seu amigo com meu look 'puta vencida'. A puta que já foi amada antes de um pai angelical surgir e tomar o meu lugar. 

- Que ódio. - Resmungo calçando minhas botas texanas, cano longo. Poderia calçar as que cobrem meus joelhos, mas a intenção não é retornar aos velhos tempos do 'job'. Logo, procuro por um vestido largo, em viscose, florido, com cadarços abaixo de meus seios. - Perfeito. - Digo ao meu reflexo. A raiva cresce dentro de mim quando rasgo as ataduras e as retiro de minha cabeça. - Que horror. Meu cabelo tá uma merda. - Improvisando uma trança, sinto dor nos pontos e a raiva crescer. Minha visão embaça. Tonta, fecho os olhos. Ao abri-los novamente, eu a vejo sorrir para mim. De volta ao controle, puxo o lençol de nossa cama e o arremesso sobre o espelho, cobrindo-o por completo. Num tom sarcástico, alerto. - No. Nay. Never. Hoje quem manda sou eu, Eileen!

 




Retornando à sala, anuncio.

- Estou pronta. - Vincenzo deixa escapar um 'wow' antes de se levantar do sofá e me elogiar. - Obrigada. Vamos. - Digo friamente. - Não devemos atrasar o ensaio.

- Vc tá linda, mamãe. - Sorrio ainda temendo que 'a outra' tome o meu corpo. Dentro do carro, concluo que a raiva alimenta Eileen. Emoção alimenta Anahita. Se descobrir quais são os sentimentos que atraem 'as outras', talvez eu consiga total controle sobre as personalidades. Talvez, seja o início da cura. Vincenzo, ao volante, pousa sua mão sobre a minha coxa e murmura.

- Essa é uma grande descoberta, Dess.

- Não me diga. - Zombo. - Conhece o significado da palavra 'privacidade'?

- Vc tá linda.

- Vá pro inferno. - Rosno antes de sair do carro e encarar pais e alunos no estacionamento do colégio do tão aguardado ensaio do baile à fantasia de crianças irritantemente alegres. Vincenzo, ao meu lado, entrelaça os dedos de sua mão aos meus. - Não vou fazer escândalo. - Aviso, magoada. - Fique tranquilo.

- Dess. Eu te amo de qualquer jeito. Seja vc mesma. - Engulo em seco e deixo escapar um riso bobo assim que ele me pede. - Não chora. Vai borrar sua esplêndida maquiagem. 

- Ok. - Antoine corre até seus amigos. Eles se abraçam enquanto me apoio em Vincenzo. Temo tropeçar ou saltar sobre os pais que me olham com estranheza. Vincenzo caminha ao meu lado e, num ato solidário, encaixa sua mão em minha cintura, puxando-me para si. Confiante, sussurro. - Obrigada.

- Ainda quer me bater?

- Muito. - Afirmo ao me sentar na arquibancada do pátio esportivo do colégio. A algazarra entre alunos e professores abafam minhas palavras. - Vc não sabe o quanto. Em casa, a gente conversa. - Roçando os dedos em minha nuca, ele confessa.

- Estou ansioso.


O ensaio foi um desastre. Não havia controle dos professores sobre os alunos reunidos em bandos. Da arquibancada, avisto Antoine cercada por meninos e meninas que lutam por sua atenção. Graças ao 'meu barraco', agora, eles a adoram. Isso é bom. Se precisasse, faria outro escândalo. Tudo o que desejo é ver minha filha feliz. 
- Ela é, Dess. Para de pensar assim. Cuidado com as brechas.
- Brecha vc vai ver no seu rosto amanhã quando se olhar no espelho.
- O que eu fiz de tão grave???
- Vincenzo Rossi! - Agarrando-o pela gola de sua camisa, alerto. - Não me olhe desse jeito! Vc sabe do que sou capaz de fazer! - Olhando para o lado, ele abre um sorriso benevolente ao me avisar, entredentes.
- Sua filha está se aproximando. Se controla, mulher.
Assim que a vejo, recuo. Penso em me esconder dentro do carro enquanto ela vem em nossa direção, de mãos dadas a um menino um pouco mais alto do que ela. "Tire suas mãos sujas da minha filha", penso assim que Vincenzo me prende pela cintura com sua mão forte e sussurra.
- Menos, Dess. Menos. - Cerro os punhos. Prendo a respiração assim que a ouço, eufórica.
- Esse é o meu amigo, pai!
- Eu estou aqui, Antoine. Não vai me aprecsentar ao seu amigo?
- Essa é a minha mãe. - Diz ela, aos risos. Rindo, o menino me observa com um olhar inocente. - Ela não é linda!?
- Muiiito.
- Eu te falei. - Ratifica Antoine. - E ela luta muito.
- Wow. A senhora é profissional? - De quê!? Do que falam!? Por que ele me olha como se eu fosse um ser de outro planeta!? - Antoine me contou sobre a luta. Irado!
- Dess...- Estalando os dedos diante dos meus olhos, Vincenzo me traz de volta e me irrita, ao mesmo tempo. - Foi mal, mas...- Um de seus sorrisos que amo e ele brinca. - Ground Control to Major Tom! Ele te fez uma pergunta. - Meu ranço por Vincenzo aumenta. - Caraca...- Bufa ele.
- Ela é assim. - Explica Antoine ao menino sem nome. - Distraída. Saca?
- Sei. Eu também sou. Tenho TDAH. Dificilmente eu foco muito tempo em alguma coisa.
- Vc tem nome, 'Menino com TDAH'?
- Dess...- Repreende-me Vincenzo ao revirar os olhos. - Menos.
- Ele é o Thor, mãe! 
- Thor!? Thor de Thor!? Como assim!?
- Thor é a fantasia dele, Dess. - Um olhar fulminante a Vincenzo e esclareço.
- Eu não preciso de intérpretes. Obrigada. De nada.
- Eles vivem brigando, mas se amam muito. - Observa Antoine ainda de mãos dadas ao menino sem nome que lamenta.
- Meus pais nem se falam. Els se odeiam tanto que, às vezes, eu me sinto muito só. - Antoine acaricia seu rosto com o dorso de sua mão e, num gesto solidário, sugere.
- Quando ficar triste, vai lá pra casa. É enorme e super maneira. Minha mãe cozinha muito bem e meu maninho já sabe andar. Vc precisa conhecer meu avô. Ele é simplesmente esplêndido!
- Wow. Deve ser bom ter uma família unida. - A brisa fria toca meu rosto quando troco um olhar de compaixão com Vincenzo. Recostados em nosso carro, controlo meu ciúme e volto a perguntar com doçura.
- Qual o seu nome, Thor?
- Gabriel, senhora. - Diz ele, estendendo-me sua mão. - É um prazer conhecê-la. - 
Não há prazer algum em cumprimentar aquele que, talvez, roube o coração de minha filha, mas, ainda assim, aperto sua mão e minto.
- Igualmente. - Rindo de mim, Vincenzo o cumprimenta, eufórico. Ele não percebe o risco que corremos!? Cochichando em meu ouvido, ele me adverte. 
- Ele só dez anos, amor. Daqui a uns cinco anos, a gente se preocupa com isso. Ok? - Soltando o ar dos pulmões pela boca, fico movendo a cabeça antes de responder.
- Ok. Gabriel, vc gostaria de lanchar com a gente?
- Ele pode, mãe??? - Pergunta Antoine, histérica. - Vai ser irado passar a tarde com vc!!! - 'Irado' vem de ira. Raiva. Ranço. Fúria. - Ele pode, mãe???
- Claro. Se os pais dele permitirem...
Em fração de segundos, Antoine e Gabriel correm, aos pulos, de volta ao ginásio enquanto Vincenzo me observa, calado. - O que é??? Fiz besteira???
- Qual é o truque, Dess? - Um sorriso no canto da boca e declaro.
- 'Quando não puder contra seu inimigo, junte-se a ele'. 

 - Pena que a mãe dele não deixou ele ir. - Lamenta Antoine no banco traseiro.
- Que pena. - Minto no banco do carona. Vincenzo, o bom pai, a consola.
- Teremos outros dias, filha. Não fica assim.
- Teremos...- Sorrio, vitoriosa. Enfim, o Thor largou a mão da minha filha. - Claro que teremos.
- Vc deixa ele dormir lá em casa, mãe? - Engolindo em seco minha indignação, respondo entredentes.
- Claro. E por que não? - Uma gargalhada e Vincenzo comenta ao volante.
- Dess. Vc não tem jeito mesmo. - Num rosnado, aviso.
- Aguarda que, o que é teu, já está a caminho.


- Ainda com raiva de mim?

- Raiva??? Eu???

- Dess, conversa comigo.

- Estou tomando banho. Esse cabelo tá um nojo de sujo. Me deixa em paz.

- Quer que eu te ajude a lavar? - Do box, com os olhos fechados, ameaço.

- Não se atreva. É melhor ficar distante de mim hoje.

- Não consigo. - Diz ele antes de sair do banheiro. Sorrio assim que ouço uma de minhas canções prediletas vinda do quarto. - Essa é nova, Dess. Tipo. Uma canção velha, mas é nova pra mim.



- E daí? - Provoco Vincenzo ao sair nua do banheiro e, caminhar, lentamente, até minha gaveta de lingeries. Meus cabelos úmidos me fazem tremer de frio. Uma olhadela e o vejo extasiado sentado na beirada de nossa cama. - O que é? Nunca me viu antes?
- Já. - Um suspiro e ele prossegue. - E sempre que te vejo, é assim que me sinto. Como se fosse a primeira vez. - Vestindo-me com rapidez, retiro a toalha enrolada em minha cabeça. Diante do espelho, por segundos, posso jurar que meus cabelos mudaram de cor. Bobagem. - Vincenzo! Não me assusta!
- Eu já estava aqui. Por que o susto?
- 'Non lo so'.
- Não sabe? Por que fala em italiano?
- Italiano??? De onde tirou isso, Vincenzo???
- Dess...
- Não fuja de mim. - Ordeno cravando meus dedos em seus cabelos macios. Fixando seus olhos azuis e gentis, comento. - Vc me maltratou o dia inteiro, cachorro.
- Dess, eu não...
- Vc não quis bancar o pai perfeito!? Sério!? Acha que eu não sei que ela gosta mais de vc do que de mim!?
- Dess, eu não tô gostando...
- Do quê? - Ronrono em seu ouvido. - Não gosta de sua mulherzinha raivosa? Da lingerie nova? Arranca ela do meu corpo. Rasga tudo. Me rasga ao meio.
- Dess! - Diz ele num tom mais alto, agarrando-me pelos braços. Seus olhos bem abertos me fitam, curiosos. - O que deu em vc!?
- Raiva, ranço, fúria, ira! Irado! Não é!?
- Dança comigo? - Convida-me ele, inseguro.
- Não! - Recuo. - É assim que vc me acalma!? Me engana!? Dançando comigo!? - Um tapa em seu rosto e ele recua, assustado. - Não é assim que vc gosta!? - Ironizo. - Não era assim que tratava Sweet!?
- Dess! O que isso tem a ver com o dia de hoje!?
- Tudo e nada! Niente
- Não estou gostando disso. - Repete ele, afastando-se de mim. Dois passos à frente e o confronto.
- Não quer me bater, covarde? Prefere bancar o bom moço diante de sua filha? Onde está o homem que costumava gostar de espancar suas mulheres? 
- Chega.
- Não vai! - Grito ao puxá-lo pela camisa. Rosnando, ordeno. - Fica e me machuca como antes.
- Me larga, Dess.
- Incomoda? É disso que se trata? Dor? Vc bate e sente prazer em sua dor? É isso? Sabe o quanto eu sofri hoje por sua causa? Sabe o que é ser rejeitada por uma filha? Por que não me mostra seu pior lado, Cassiel? - Outro tapa em seu rosto e enxergo raiva em seus olhos. - Quase lá, seu anjo de merda. Quase lá. Reaja! - Cerrando os punhos, acerto seu queixo. Caído no chão, ele avisa. 
- Para. Tá passando dos limites, Dess.
- É exatamente isso o que eu quero, meu senhor. Me machuca como antes. 'Mi fa male'. - Tentando se levantar do chão, eu o chuto com força no abdômen. Montando sobre seu corpo, comprimo sua garganta com minha mão esquerda enquanto a direita o acerta com um soco no nariz afilado. - Reaja, Vincenzo. Reaja.
- Para. - Rosna ele apertando meus punhos com suas mãos. - Não queira acordar esse meu lado. Eu já estou curado, Dess. Vc me curou.
- Será???
Um terceiro tapa em seu rosto e ele me derruba de seu colo. Seu braço direito recua. Seu punho se contrai. Olhando-me com fúria nos olhos, ele luta contra seus impulsos mais profundos e pervertidos. Desistindo de me acertar com um soco, ele se ergue. Corro até a porta e a tranco ao sussurrar.
- Daqui vc não sai sem antes me fazer gritar de dor, cretino. - Um chute entre suas pernas e o vejo tombar contra o tapete felpudo. Descontrolada, provoco. - 'Reagisci', Vincenzo! Volta pra mim! - Chuto suas costelas. Ele rola sobre o tapete e, de súbito, se ergue. Visivelmente abalado, ele balança a cabeça como se algo o perturbasse. O quarta tapa em seu rosto o faz despertar. -
- 'Dov'è l'uomo che conosco'!? Cadê vc, Vincenzo!? Onde está o pai!? O anjo que envergonhou a puta!? Que a fez chorar de raiva hoje!? - Agarrando-me pela garganta, ele me ergue com facilidade. A parede fria em minhas costas me desperta tarde demais. Tão fria quanto a água do lago. O peso de seu soco em meu rosto me faz cuspir sangue. Sobre o colchão, tento respirar. Sua mão ainda pressiona meu pescoço. Seus olhos expressam agonia. Antes de sufocar, sinto a pele do meu rosto arder com o primeiro de seus tapas. Sua voz grave, lamenta.
- Eu pedi pra não acordar esse lado, Dess. Agora é tarde. - Perdendo a conexão com o mundo exterior, eu a ouço pedir.
- 'Chiamami' Isabella.


Assim que acordo, procuro, desesperadamente, por Vincenzo. Sentindo uma pungente dor na cabeça, grito seu nome. Saudade invade meu coração atordoado sem que eu entenda o porquê. Sem que eu entenda o porquê, temo abrir o envelope sobre a pia de nossa suíte. Antes de ler o que está escrito no bilhete, começo a chorar.

"Perdão meu grande amor. Eu te machuquei no corpo e na alma. Infelizmente, ainda não aprendi a viver com a culpa. Afasto-me de vc e de nossos filhos por temer que o velho homem retorne.
Te amo pela Eternidade, Dess.
Adeus".
- Não é justo. - Sussurro ao meu reflexo. Em meu rosto, marcas de sua violência. Violência que eu provoquei por ciúmes, infantilidade e possessão.
- Não vou desistir de vc, amor. Volta pra casa.
Suplico.




Continua...




 




CAPÍTULO 36 - SOZINHA

  Dessa vez, não vou culpá-lo pelo abandono. A culpa é minha. Eu o provoquei. Eu acordei o monstro que ainda habita nele. Vincenzo não é tão...