'Dess - Uma História Interessante'

'Dess - Uma História Interessante'
AMO ESCREVER

CAPÍTULO 40 - ELES ESTÃO ENTRE NÓS




- O que ela prometeu a vc!?

- Saia da minha frente. Tenho muito o que fazer.

- Dess, deixe o Arcanjo passar!

- O que ela te prometeu!? - Insisto. - Outra troca!? - Ameaçando tocar em seu tórax, Vincenzo grita, num desespero.

- NÃO! NÃO TOQUE NELE!

- Mãe, se acalma. - Pede-me Antoine, puxando-me pelo braço. - Ele precisa partir. Vovô vai viver.

- Isso teve um preço!? - Encaro o arcanjo com o olhar frio. - Me leva! Deixa minha filha e me leva! - Um sorriso de escárnio e ele argumenta.

- Vc não vale um centésimo do valor de Antoine, querida. - Algo em mim se enfraquece enquanto ele prossegue. - Vc é uma criatura interessante. Considera-se invencível. Vc se superestima e, ainda assim, é cercada por seres especiais. 

- Tio...- Lamenta Antoine. Impiedoso, ele prossegue. 

- Sua prepotência vai te levar ao fundo do poço. Mas, não se preocupe. Haverá sempre alguém que te estenda a mão. O coração de Miguel é exageradamente bondoso. Não enxerga maldade onde ela existe.

- Por que não gosta de mim?

- Não gosto de Humanos, em geral. Mais uma vez se superestimando...

- Vc é o Arcanjo da Cura. Deveria ser mais dócil, amável.

- Pra quê? Por quê? - Pergunta-me ele num tom sarcástico. - O Messias veio até vcs com  todo o Amor do Universo e o que fizeram a ele? A doçura d'Ele o ajudou a se despregar da Cruz onde vcs o mataram? O Grande Amor do Filho do Todo Poderoso foi derramado enquanto vcs riam d'Ele se arrastando pelas ruelas infestadas de parasitas. Gente imunda como vcs. - Reconhecendo a verdade em suas palavras, revolto-me e passo dos limites ao acusar.

- Vc faz parte da 'Legião'

- Dess! - Vincenzo, descontrolado, ordena. - Peça perdão!

- Nunca. - Rosno. - Eu disse o que estava na minha cabeça. Um arcanjo não pode ser tão duro assim.

- Somos superiores a vcs. Ao contrário daquele que se revoltou contra o Criador, eu me submeto às Suas ordens. Não por amor a vcs. Por servidão. Por amor a Ele. - Aspirando, exageradamente, os meus cabelos, ele me fere profundamente. - Seu sangue fede, mulher. Sua ancestralidade vai voltar à tona e, quando isso acontecer, espero que os que te cercam não sejam afetados. - Ajoelhado à sua frente, de cabeça baixa, Vincenzo intercede por mim.

- Perdoe minha esposa. Ela é impulsiva, mas seu coração é bom.

- E vc, Vincenzo, é cego. Saia da minha frente. - Antes de partir pela porta da sala, ele avisa. - Dias piores virão. Estejam prontos. Adeus, Antoine. Boa sorte.

- Tchau, tio...- Diz ela, devastada. Sentando-se ao meu lado no piso em madeira, ela tenta me reanimar. - Ele é esquisito mesmo, mãe. Não fica assim. 

- Eu tô bem. - Minto. Beijo Enrico na testa e o vejo sorrir, deitado em sua cama. - Que bom que voltou, pai. Sem vc, eu não conseguiria.

- Vc me salvou, filha. Vc. Não se esqueça disso.

Contendo as lágrimas, corro até meu quarto e tranco a porta por dentro. Vincenzo grita por meu nome enquanto tenta quebrar a maçaneta.

- Eu não podia deixar que vc continuasse, Dess! Ele tem o poder da Ira! Mais uma palavra sua e algo muito pior poderia ter acontecido!

- Foda-se! Some da minha vida, Vincenzo! Some!

- Agora não, pai. - Ouço Antoine interceder, do outro lado da porta. - Amanhã vcs conversam. - Atordoado, ele continua.

- Vc conhece a Ira de um arcanjo, filha! Vc conhece! Eu só queria salvar sua mãe!

- Ela sabe, pai. Ela sabe. Vem.

Deitada em minha cama, molhando o travesseiro com minhas lágrimas, digito no celular, 'Ira dos Arcanjos' e, então,  compreendo o pavor de Vincenzo. Imagens terríveis vão surgindo na tela enquanto, arquejante, vejo lanças, sangue, pernas e cabeças decepadas. 

- Tadinho. Ele quis me proteger. - Concluo debaixo do chuveiro. - Por que eu sou tão impulsiva? 

Antes de me deitar, destranco a porta do quarto e, silenciosamente, entre comovida e chocada, eu o vejo deitado no corredor frio, dormindo. Vincenzo, seu idiota, eu te amo.

- Ei. - Chuto sua bunda, resmungando. - Acorda. Se quiser, pode entrar. - Sorrio, de costas para ele. - Se não quiser, fica aí mesmo. - Abrindo a gaveta de seu 'closet', ele mostra que me ouviu.

- Também te amo, imbecil. Gostou do resultado de sua pesquisa? Bacana, né?

- Ah! Vá pro inferno! - A caminho do banheiro, ele comenta.

- Vou tomar uma ducha porque amanhã tem ensaio.

Sorrindo debaixo do edredom, penso em como ele é fofo.

- Obrigado. - Antes de abrir as torneiras do chuveiro, ele avisa. - Não me espere acordada porque hoje eu não quero te usar. Tá de castigo.

Gargalho.




Após o treino de Antoine que nos convenceu a aprender a lutar boxe, Vincenzo e eu ensaiamos nossa coreografia, exaustivamente no tatame enquanto ela conversa, animadamente, com Leo. Ele se apaixonou por ela. E quem não se apaixonaria? Ela tem lutado com perfeição e, estranhamente, me parece maior e mais astuta a cada dia. 

- Literalmente, ela está maior a cada dia, Vincenzo! - Afirmo sentada no tatame após o ensaio. - Ela parece ter treze anos e só tem nove! Tá mais alta! Menos franzina!

- Não sabemos com quantos anos ela estava quando vc a encontrou naquela praça. Talvez...

- Não me faça de boba, Vincenzo! Seus seios estão crescendo! Seus pensamentos são tortuosos! Só pensa em vingança! Precisamos salvar nossa filha! - Deitado, cruzando as mãos em sua nuca, ele argumenta.

- Vc ainda não entendeu o que tentamos te explicar, Dess. Vc não quer enxergar a verdade e a verdade é que nossa filha tem uma missão aqui na Terra e nós...- Beijando sua boca, eu o impeço de continuar a falar. Sem ar, ele arregala seus lindos olhos e, após me empurrar,  comenta.

- Não tenha medo. Enquanto estivermos todos unidos, nada de ruim vai nos acontecer. Por que escolheu essa música triste para o concurso? Pensei que eu poderia requebrar e mostrar que tenho molejo. - Rindo, aviso.

- Vc só requebra comigo. Em nossa cama ou sobre esse tatame. Ok? Só pra mim.

- Não há outra em minha vida além de vc, Dess. Nunca haverá. Por que a música triste?

- Não é triste. É linda. Ela significa muito pra mim. Eu a ouvia todas as noites antes de dormir chorando por vc. 

- Quando???

- Não se faça de besta! Quando vc me abandonou da última vez por ter me dado umas porradas!

- Não me lembra disso...

- Lembro sim. Eu sofri muito mais com a solidão do que com seus tapas no meu rosto. Aliás...

- O quê?

- Não me olha assim, cara...- Ameaço aos risos. 

- Assim como? - Seu sorriso cafajeste me faz arfar ao responder.

- Com essa cara de safado. Vc sabe que posso te atacar aqui, a qualquer momento, né?

- Antoine e o Leo estão aqui. Estou protegido, tarada. - Rimos juntos quando me deito sobre seu corpo e o provoco. 

- Se quiser repetir aquela experiência...

- Nunca. Eu não quero te machucar.

- E se eu quiser? - Beijo sua boca mantendo seus braços esticados acima da cabeça. Nossas mãos se entrelaçam quando ele sussurra.

- A gente nunca mais vai se separar, Dess.

- Espero que não, gostoso...

- PUTA QUE PARIU! - Esbraveja Antoine agarrada às cordas. Leo gargalha de sua atitude. - É só eu me afastar que vcs se atracam!? Leo, seus pais são safados assim!?

- Não...- Responde ele, ainda rindo. - Não tenho pai. Melhor. Devo ter, mas não o conheço. E minha mãe nunca mais quis saber de homem na vida dela.

- Taí! Gostei dela! Sem safadezas! - Erguendo-me antes de Vincenzo, dou tempo para que ele se recomponha e não mostre seu enorme pau ereto. - Ué! Pararam por quê!? Por minha causa!?

- Não, mocinha. - Salto do ringue e, beijando seus cabelos, comento. - Quanto mais vc cresce, mais chata fica. Vamos. Seu avô ainda tá fraco pra ficar tanto tempo com Matteo sozinho em casa.

- E o papai!?

- Tô indo! - Avisa ele pulando sobre o tatame para ver se o pau desce. - Eu ouvi, Dess. Isso foi patético.

Rindo, empurro Antoine e Leo até a saída. 

- Não tem medo de ficar aqui e fechar a academia todas as noites, Leo?

- Não, Antoine. 'De boas'. Aqui, eu me sinto seguro.

- O problema tá na sua casa, né?

- Antoine...

- Ué! Eu sei de tudo, mãe! Leo e eu somos "BFF" agora!

- "BFF"??? - Pergunta Vincenzo, intrigado. - O que é isso??? - Revirando os olhos, Antoine resmunga.

- "Best Friend Forever", pai. Isso é básico. Todos sabem.

- Desculpa ! - Rimos de Vincenzo e de sua expressão indignada. Beijando seu rosto, esclareço.

- Estamos rindo de vc tentando parecer jovem.

- Porra! Eu sou jovem! - Protesta ele. - Eu vou completar trinta e quatro anos daqui a alguns meses! 

- Muito jovem...- Zomba Antoine rindo da risada de Leo. Ele se modifica ao lado dela. Todas as sombras se afastam dele. Nem parece o mesmo menino triste e pesado de todos os dias. - Leo, quer lanchar lá em casa hoje?

- Na na na não sei se posso. - Responde ele, envergonhado. - Sua mãe...minha mãe.

- Nossas mães. Parabéns. Desenvolve.

- Essa expressão é minha! - Observo. - Já que vcs são tão jovens e 'descolados', inventem as suas! 'Tá ligada'!?

- Ok, mamãe. Prossiga, Leo. - Ironiza Antoine. - Vamos ou não vamos?

- Vamos! - Decido. - A gente tem muito o que conversar! Né!? - Compreendendo minha indireta, ele assente com a cabeça. Um olhar furtivo a Vincenzo e ele ruboriza. Que fofo. Ele ainda é apaixonado por Vincenzo. - Vamos?

- Isso não tem cabimento, Dess. - Sussurra Vincenzo ao volante. Não é paixão. É admiração. Por favor, não confunda.

- 'Cu com bunda'! - Graceja Antoine grudada ao Leo. Ambos gargalham de tudo e de todos no banco traseiro. 

- Antoine! Desde quando vc começou a falar palavrão!? Vc sempre me repreendeu!

- Estou crescendo, mamãe. Crescendo e me preparando para a grande batalha.

- Grande Batalha? - Indaga Leo, curioso. - É algum campeonato!? Um novo videogame!?

- Tipo isso. Um campeonato onde quem perde, morre.

- Filha...- Lamento. - Não fala assim.

- Ok. Parei. - Eufórica, ela grita. - Para ali, papai! Ali tem os melhores 'sandubas' do mundo inteiiiiro, Leo! Vem! 

- Antoine! - Abrindo a porta antes de Vincenzo parar na fila do 'drive thru', ela salta do carro e arrasta Leo consigo. - O que ela tem, meu Deus? Tá piorando!

- Não é ela. São os acontecimentos, Dess. - Explica ele num tom sombrio. - A Escuridão está chegando. Precisamos nos manter unidos.

- Porra! - Abrindo a porta do carona, saio do carro e, antes de correr atrás de Antoine e Leo, peço. - Não fala mais disso comigo! Por favor!

- Isso não vai mudar nada. - Ouço Vincenzo lamentar ao volante. - Precisamos nos manter unidos.

- CASSIE!?

- Tia!? Que coincidência! Onde tá o tio!?

- No carro. Esperando os pedidos. Antoine, louca, saltou do carro e eu, como sempre, correndo atrás dela. - Uma pausa e a observo. - Vc tá bem, Cassie? 

- Sim. Por quê? 

- Não mente pra mim. Por favor. Eu te amo. Vc é como uma filha pra mim. 

- Tô bem, tia! - Insiste ela. - Eu nunca mais vi aquelas coisas horríveis lá em casa. - Beijando minhas mãos unidas, ela me agradece. - Se não fosse por vc, meu Sean não teria sobrevivido.

- Não foi por mim. Foi pelo Criador. - Corrijo-a. - Onde está o Sean? - Pergunto em meio ao pátio de recreação onde Antoine e Leo engatinham dentro de um tubo nojento e fedido, repleto de bactérias. - Cassie! Cadê o Sean!? - Distraída, ele responde.

- Com o Liam...em casa. Eu vim comprar um lanche pra galera.

- Galera???

- Sim. - Seu sorriso não me engana. Ela está com problemas. - Liam tem chamado os amigos pra se reunirem lá em casa. Eles adoram o Sean.



- Liam!? Com amigos!? Desde quando Liam tem amigos, Cassie!? Ele sempre foi solitário!

- Pois é...- Dando de ombros, ela comenta. - Sei lá. Eles se conheceram num clube ou coisa parecida.

- Clube???

- Chega, Dess. Deixa a Cassie respirar.

- Tio! - Um longo abraço e seus olhos se enchem de lágrimas. - Apareçam lá em casa. Por favor. Tenho saudades. Não quer me abraçar, tia? - Estendendo-me seus braços, ela aguarda por meu abraço. Tenho medo do que possa ver, então, eu a beijo no rosto e minto. 

- Preciso retirar Antoine daquele tubo nojento antes que ela seja infectada por  tuberculose ou coisa parecida! Já volto!

- Tia...

Meu coração se parte ao meio ao ouvir seu disfarçado pedido de socorro. Estou com medo. Insegura. Arcanjo Rafael esmagou minha pouca autoestima, minha autoconfiança. Se eu for uma farsa? Alguém que se acha o máximo e não passa de um ser desprezível que pensa ser alguém poderoso? Alguém que julga poder resolver todos os problemas de todos e ainda se manter de pé, forte, poderosa, imbatível? Meu passado me condena. Meu sangue fede. Rafael disse isso. Meu sangue fede. Não chora, porra. Não agora. 

- Mãe?

- Por que tá chorando, Adessa?

- Por nada, querido. Eu sou esquisita mesmo. - Um surpreendente abraço de Leo e desabo sentada no banco em cimento do pátio do 'Burger King'

- O que eu fiz!? - Pergunta-me ele, assustado.

- Vc não fez nada, querido. Obrigada pelo abraço. 

- Vamos! Todos pra dentro do carro! - Brinca Vincenzo ao me ver devastada. - Me esperem lá dentro. Já vamos. - Dentro do carro, Antoine e Leo me observam, compadecidos. Vincenzo, pacientemente, senta-se ao meu lado. - Dess, vc pensa muito. Imagina muita coisa. Me perdoa por ter dito aquilo. Vc é humana. Não tem que saber dessas coisas. Nem eu sei. Só ouço dizer. Todos falam do Apocalipse há milênios e eu, literalmente, nunca o vi chegar. Então, meu grande amor...- Entrelaçando suas mãos às minhas, ele me pede com ternura. - Não se preocupe tanto. Eu 'caí' pra viver do teu lado e não pra te ver morrer ao meu lado. Rafael é duro. Sempre foi. Ele cumpre ordens. Não demonstra sentimentos. Não é bom. Não é mau. Essa é a essência dos Arcanjos. Alguns, como Miguel, se afeiçoam aos Humanos. Outros não. Não leva a sério o que ele te disse, meu anjo. Vc é a melhor pessoa que conheço. Não deixe que nada mude o seu jeito de ser. Nada. Ok? - Apertando suas mãos, sussurro.

- Não me deixa mudar. Me ajuda a ser melhor, Vincenzo. Só vc pode me tirar do fundo do poço. Só vc. 

Com a mão pressionando a buzina do carro, Antoine quebra o clima triste com seus gritos. 

- MEU 'SANDUBA' TÁ ESFRIANDO! 'VAMBORA'! - Enxugando minhas lágrimas com guardanapos de papel, sentada no banco do carona, comento. 

- Vc tá ficando insuportável, Antoine! Isso é a adolescência!? 

- Tipo isso, tia. 'Tá ligada'?

 "Tia"

Que fofo.



Encantado com a nossa casa, Leo a compara com a sua e confessa ter planos para o seu futuro. 

- Quero tirar minha mãe daquela vida. Ela faz faxina desde que o meu pai me deixou quando eu ainda era um bebê. Ela rala pra 'caraca'...- Lamenta ele, abocanhando seu sanduíche, enfiando batatas fritas na boca cheia. Vincenzo e eu nos entreolhamos, satisfeitos. Enfim, Leo saiu de sua 'concha'. Enfim, posso tocar em um assunto extremamente delicado, mas não quero que seja diante de Antoine. - Isso aqui tá muito bom, tia!

- Irado! - Exulta Antoine ao seu lado à mesa de jantar. Enrico, intrigado, pergunta.

- O que a ira tem a ver com o sanduíche?

Todos gargalham. Inclusive Matteo que o chama de 'bobô'. Eu, pacientemente, explico.

- Nada, Enrico. É gíria de jovens. 'Irado' é algo bem bacana. Tipo 'supimpa'. Sacou?

- 'Supimpa'!? - Repete Antoine, eufórica. - Isso é simplesmente patético!

Todos riem enquanto comento.

- Patético serão seus dias de castigo sem filmes ou celular. Não é mesmo?

- Nada a ver, mãe. - Diz ela, entredentes. - Não sabe brincar, não desce pro 'play'.

- Antoine!!! Me respeita!!!

- Relaxa, Dess. Eles estão se divertindo. Eu nunca te vi assim Leo.

- Perdão. - Pede ele, engolindo a comida a seco. Pigarreando, ele comenta. - Eu me deixei levar pelo ambiente. Desculpa.

- Cara! Fala sério! Vc tá em casa! - Declara Vincenzo deixando-o corado. - Fica à vontade! - Ok. Vou tentar não pensar em besteiras, mas que ele corou, ele corou!

- Dess, come as batatas. Come. Só assim vc não pensa.

- Eu já te mandei tomar...? - Um selinho em minha boca e ele sussurra.

- Já. Mas eu não vou.

- Aí, Leo! Mais safadeza! - Leo gargalha e se mostra ainda mais.

- Quem me dera ter pais assim, Antoine. Que se amam e te amam. - Antoine o beija na bochecha e se cala.

- Agora vc tem a todos nós, querido. - Diz Enrico tocando em sua mão. Reparando as cicatrizes dos cortes em seu antebraço, ele declara. - Sempre tem espaço para mais um dentro dessa família. Seja bem-vindo. Vc ainda vai ser muito feliz.

- E minha mãe!? - Uma pausa e, suspirando, Enrico mente.

- Igualmente. Vc e ela, juntos, serão felizes.

- Wooohooo!!! - Grita Antoine. - Se meu avô fala, pode acreditar, Leo! Quer assistir a um filme comigo!? Vc vai delirar quando entrar na sala de vídeos!

- Não, mocinha. - Interrompo, antes de ouvir a resposta de Leo. - Agora não. 

- Por que não!? Ainda tá cedo!

- Cedo pra aula de amanhã, né!? 

- Aaah mãe! Deixa ele dormir aqui! Ele quer ver um filme!

- Prefiro 'animes'.

- Eu também gosto! - Mente Antoine. - Qual o seu predileto!?

- 'Death Note'. Um clássico.

- Uau. Eu amo 'animes'. Assisti a outros, mas, a esse, eu ainda não assisti. - Ela mente outra vez. Rindo, apoio meus cotovelos na mesa e a observo. Seus olhos brilham quando fala com ele. - A gente pode 'maratonar' juntos! Que tal!?

- Irado! - Lançando-me um olhar desconfiado, ele titubeia. - Vai levar muito tempo e já está tarde. Eu preciso ir pra casa. Minha mãe não dorme enquanto eu não chegar. - Enrico nos surpreende com uma de suas gargalhadas hilárias e, ruborizando, explica.

- Ele acaba de citar a letra de uma música do meu tempo. Ai ai...- Um outro suspiro e ele se encolhe na cadeira. - Como vcs dizem: 'Foi mal'.

- Vovô, o senhor é hilário...

- Leo, vc pode dormir aqui. Eu ligo pra sua mãe e peço que fique. - Proponho. Antoine, histérica, se ergue da mesa e me beija com sua boca suja de 'ketchup'. - Vc é demais, mãe!

- Sei...- Rosno. - Agora eu sou 'demais'. Antes eu não podia 'descer pro play', mas, agora eu 'demais'!? - Agitada, ela puxa Leo pelo braço, agora, exposto. Disfarço o horror em ver mais cicatrizes. Vincenzo finge não ter visto e brinca com Matteo. Enrico sugere.

- Antoine, deixa o menino terminar de comer. Por que não lavamos os pratos na cozinha e, depois, vcs assistem aos desenhos animados? - Leo, aos risos, o corrige.

- 'Animes', tio. São tipo desenhos, mas são japoneses e com temas adultos. O senhor deveria assistir com a gente!

- Eu topo! - Diz Enrico arrastando Antoine pelo braço em direção à cozinha. 

- Por que eu tenho que ir? - Murmura ela.

- Depois explico. - Cochicha Enrico. - Obedeça seu avô.

- Ok. - Rosna ela já na cozinha. Vincenzo, percebendo minha intenção, levanta-se da mesa e, com Matteo em seu colo, mente.

- Vou dar um banho nesse meninão, Leo. Se eu não der, depois apanho. - Um sorriso tímido e Leo volta a ruborizar. - Dess...

- Oi? - Provoco.

- Como diria Antoine: Vc é patética.

- Vá à merda.

- Perdão, Leo. Ela tem a boca suja.

- Sem problemas. Eu também tenho. 

- Pode ir, Vincenzo. - Forço um sorriso e o imito. - 'Já deu, burro. Já deu'.

Rindo, ele leva Matteo e, antes de sumir, controlando a luz da sala pelo celular, ele nos deixa na penumbra. Leo e eu estamos sozinhos à mesa. Ele cobre os braços com a manga do casaco e elogia a lareira.

- Eu nunca vi uma de verdade. Só em filmes.

- Nós já fomos pobres, Leo. Depois, tivemos grana. Depois, voltamos à pobreza e, agora, estamos bem. Graças a Deus. Tudo muda, Leo. 

- Não comigo, tia. Eu não consigo sair da escuridão. Como conseguir suas marcas?

- Ah! Essas!? - Mostro-lhe meus pulsos. - Vc não vai acreditar se eu te contar. É um papo muito louco. Mas, nunca foi pra me matar.

- Pode tentar explicar. - Mostrando-me as suas, ele confessa. - Eu jamais quis me matar. Só queria fugir da dor e, quanto mais eu me corto, mais prazer eu sinto e a dor nunca vai embora.

- Isso começou com aquela reunião. Não foi? 

- Qual!?

- Vc, seus dois amigos em seu quarto. Maconha, bebidas, velas e a tábua Ouija. 

- Como sabe disso!? - Pergunta-me ele, assombrado. - Eu jamais contei a ninguém. Nem minha mãe sabe.

- Eu vi. Depois te conto como isso acontece, mas eu vi e, o mais importante, Leo, é fechar o ciclo. Vcs estavam 'chapados' e não terminaram a sessão como se deve fazer. Eu detesto esse tipo de brincadeira. Abre portais e trazem energia negativa pra nossas vidas, mas, já que vcs iniciaram, deveriam ter dado 'adeus'. 

- Eles dormiram, tia. - Lamenta ele, assustado. - Eu fiquei sozinho sem saber o que fazer. Guardei a tábua e nunca mais mexi nela novamente. 

- Por que não os chamou de volta e desfizeram o erro? - Escondendo o rosto com as mãos trêmulas, ele responde.

- Porque eles estão mortos.

- Deus do céu. Mortos? Como? 

- Marcos foi atropelado por uma moto. Thiago se enforcou em seu quarto. - Leo tem uma súbita crise de choro. Eu o abraço com força. Levo um tempo até me acalmar e dizer algo que faça sentido. 

- Fica calmo. Vamos dar um jeito nisso.

- Tenho medo, tia. Eu morro de medo de ficar no meu quarto. - Confessa ele, abraçado a mim. Rompendo o laço que nos une, Antoine, com as mãos na cintura nos encara e pergunta.

- Foi pra isso que eu pedi pra vc dormir aqui, Leo!? Levanta dessa cadeira e vamos nos divertir! 

- Antoine...- Sigo-os até a sala de vídeo. Ainda devastada pelas revelações, proponho. - Vejam algo divertido. Ok?

- Vou pensar no seu caso, mamãe. - Diz ela, jogando-se sobre o sofá ao lado de Leo que me sorri e, com a voz embargada, diz.

- Valeu, tia. 

Caminho pelo corredor pensando em como ajudar Leo a se livrar dos espíritos malignos que o esperam em seu quarto.

- Vai dar tudo certo, Dess. Não se mete nisso. Por favor.

- Como não, Vincenzo!? Ele vai morrer se eu não fizer nada! 

- Dess...

- Ok. Eu sei. Eu não sou o que penso que sou e, além do mais, meu sangue fede.

- Dess!

De costas para ele, chorando, peço.

- Me deixa dormir em paz.





Leo não comparece ao seu trabalho por dois dias seguidos. Sem respostas às minhas mensagens ou telefonemas, falto às aulas da 'Just Dance' e, deixando Matteo sob os cuidados de Vincenzo, aviso que vou descobrir o que aconteceu ao 'BFF' de Antoine que, aflita, pede para ir comigo. Por que não? Ela é muito mais forte e cheia de luz do que eu. Seja lá o que tenha acontecido, ela vai me ajudar de alguma forma.

- Ele não tá bem, mãe. Eu sinto isso. 

- Vou com vcs!

- Vincenzo! Não! - Desencorajo-o - Enrico não pode ficar sozinho com Matteo!

- Vcs ainda não confiam em mim...- Lamenta Enrico.

- Meu querido pai...- Beijando sua bochecha rosada, afirmo, carinhosamente. - Confio plenamente em vc. Mas ainda temo a 'Legião' e Celeste. Ela pode entrar aqui como entrou naquele dia. Por favor, me entenda. Em breve, vou tentar dar um jeito em tudo. Prometo. Vou atrás da bondade de sua esposa e trazê-la de volta aos seus braços.

- Jura!? - Amo seus olhos risonhos. - Como!?

- Depois explico, Enrico. Agora, eu sinto que Leo precisa de nossa ajuda. Vincenzo...- Peço, receosa. - Cuida do nosso filho?

- Sempre. - Beijando minha boca, ele me deseja sorte. - Vão com Deus. - Beijo sua boca e abraço meu filho antes de partir com Antoine ao meu lado, no banco do carona. Alcançando-nos na calçada, Vincenzo me entrega seu crucifixo bento por Padre Pietro e sugere. - Só por precaução.

- Valeu. - Outro beijo e Antoine resmunga.

- Tá atrapalhando, pai.



Estaciono em frente à casa de Leo em um bairro humilde, distante da academia de boxe. Gritamos por seu nome, da calçada. O portão antigo está encostado. Antoine, aflita, invade a casa. Eu a sigo pedindo que ela me espere.
- Tem alguma coisa errada aqui, mãe!
- Não abra essa porta!
- Ele tá lá dentro e não tá sozinho!
Um chute de seu coturno contra a porta do quarto e ela se escancara. Um forte odor de algo podre nos faz recuar. Seguro Antoine pelo braço e, impedindo-a de entrar, ordeno.
- Vc fica. Eu entro primeiro. 
- Ele é meu amigo! - Protesta ela enquanto olho ao redor e contenho a ânsia de vômito. Restos de comida em pratos no chão atraindo baratas. Um computador ligado. Na tela, a imagem de algum ser demoníaco, personagem de algum videogame. Sobre a cama, lençóis sujos de sangue, cheirando à urina. Prendo o braço de Antoine e, em silêncio, aponto meu indicador ao teto ao perguntar num tom baixo.
- Consegue ver? 
- Sim. As manchas. - Responde-me ela, assustada. São parasitas do 'Outro Lado' que costumam sugar a energia dos vivos. Estão em estado latente, à espera do hospedeiro. - Eu preciso encontrar o Leo, mãe.
- No banheiro! - Alerto. - Não toca nele, Antoine! - Ela me desobedece e o chacoalha com os braços, estapeando seu rosto com força.

- Acorda, Leo! Acorda!

Seu grito desperta os seres que rastejam pelo teto até a parede do banheiro onde entro e protejo Antoine com meu corpo. Leo está mergulhado na banheira, com o braço esquerdo pendendo para fora. Seu sangue mancha o piso escorregadio. Tentando não cair, retiro o corpo de Leo da água imunda e o arrasto, pelas axilas, deixando um rastro vermelho até o quarto. 
- Ele cortou os pulsos há pouco tempo. - Concluo, atormentada. Antoine, tomada pelo ódio e repulsa, faz surgir bolas de um fogo púrpura de suas mãos e as atira contra os seres que se alimentam do sangue sobre o piso. 


Gritos estridentes escapam das bocas descomunais das criaturas que se dissolvem em contato com o fogo. Com o corpo de Leo em meu braço, não sei se continuo a observar a coragem e o poder de minha filha ou se tento reanimá-lo.
O fogo púrpura se espalha pelo quarto sem nos queimar. 
- Ele vai morrer, mãe! Não deixa! - Implora Antoine voltando a ser humana. - Acorda! Faz alguma coisa! Vc pode!
- O quê!?
- O crucifixo do papai!
- Mas ele não tá possuído! - Refuto desorientada, enquanto a chama violeta se espalha pelo cômodo, espantando outras criaturas sombrias escondidas nos armários e debaixo de sua cama. Leo, com a pulsação fraca, abre os olhos e murmura.
- Me perdoa...
- Não dorme, Leo. Fica comigo. - Afastando-a de Leo, rasgo partes limpas do lençol e, percebendo seu olhar desesperançado, envolvo seus punhos, estancando o sangramento. Extremamente fraco, ele aponta para debaixo de sua cama. Antoine, quase desaparece por completo ao esticar o braço, tateando o chão asqueroso. Debaixo da cama, ela exulta.
- Encontrei! Era isso!? - Perplexa, ela pergunta.
- Que porra é essa, Leo!? - Desde quando ela fala e age como eu? - Que tábua é essa!?
- Uma tábua Ouija, filha! - Um olhar ao redor e enxergando os rostos patibulares dos mortos que nos cercam, aviso. - Sem tempo para explicações, filha! - Dois deles eram amigos de Leo. Um desses supostos amigos o incitou ao suicídio. - Me ajuda, filha! Temos que sair daqui agora mesmo!
De joelhos, ao lado da cama, peço que Antoine puxe o corpo de Leo e o jogue contra minhas costas. Erguendo-me com dificuldade, auxiliada por ela, caminho por um corredor escuro que parece se alongar à medida em que avançamos. Ao final dele, seres espectrais nos desafiam.
- Daqui ninguém passa. - Afirma a voz gutural. Antes de assistir Antoine perder mais de sua energia, ergo a cruz benta de Vincenzo e, em silêncio, peço ajuda ao meu amigo Arcanjo Miguel. Espero que ele me ouça. Com fé, decreto.
- Príncipe da Milícias, defendei-nos no combate! 
- Deu certo, mãe!
Os seres recuam. Corremos até a calçada. Alcanço o carro. Antoine abre a porta traseira onde jogo Leo, desacordado, sobre o banco. Antoine se senta ao seu lado. Ela o estima mais do que eu imaginava. Mais do que eu gostaria de imaginar. Chorando, ela diz a ele que vai dar tudo certo.

Ao volante, apavorada, percebendo que sua vida se extingue lentamente, ligo o carro e piso no acelerador. Pelo retrovisor interno, vejo luz escapar das mãos de Antoine e invadir a boca aberta de Leo.
- Filha! Não! Vai te enfraquecer!
- É preciso, mãe. É preciso.



- Não posso ficar aqui, tia. Minha mãe...
- Leo, sua mãe está em outra casa bem melhor do que a antiga. Pra lá, vcs não retornam mais. Ok?
- Eu preciso voltar a trabalhar. - Diz ele, desorientado, deitado na cama de nosso quarto de hóspedes. - Não é justo ocupar o tempo de vcs. O dinheiro...
- Leo, seu trabalho na academia não vai fugir de vc. Ok? - Brinca Vincenzo sentado à sua frente. - Vc precisa se recuperar e, quando estiver 'de boas', vc volta ao trabalho.
- Vincenzo. - Resmungo. - Por favor. Certas palavras já não combinam com vc.
- E com vc, 'novinha'!? Vc pode falar tudo e eu nada!? Tu só tem quatro anos a menos do que eu!
- Vcs vão discutir na frente do Leo? - Pergunta Antoine, abatida, mas feliz. - Os dois estão velhos. Velhos e lindos. - Um repentino abraço nos une quando ela se declara. - Eu amo vcs...
- Porra. Não me faça chorar, Antoine.
- Começou, Leo. Agora não para mais. - Zomba Vincenzo. - Isso é um saco.
- Vá pro inferno, Vincenzo...- Enxugando minhas lágrimas com a manga de meu casaco, defendo-me. - Sou emotiva. Eu sinto as coisas. Não sou fria como vc. - Abraçando-me, Vincenzo me pede desculpas.
- Eu sei, amor. Tô brincando. Quero descontrair nosso hóspede.
- Meu hóspede, papai. - Corrige-o Antoine. - Leo é o meu 'Best Friend Forever'...- Diz ela, exalando um longo suspiro. - Não vou sair daqui até vc ficar 'novinho em folha', Leo. Enquanto isso, a gente pode assistir ao 'Death Note'. O que acha?
- Ótima ideia. - Responde ele, abrindo um lindo sorriso. Vincenzo e eu nos entreolhamos e, em silêncio, saímos do quarto enquanto eles continuam a conversar animadamente.  
No corredor, choro no ombro de Vincenzo que, compreendendo meus receios, sussurra.
- Deixe isso nas mãos de Deus, amor. Não podemos interferir em nada.
- Ela tá fraca, Vincenzo. Perdeu muita energia salvando o Leo. - Alego num tom baixo. - Vc viu os olhares que eles trocaram? Tá sentindo o clima? Ela já não é a criança que dançou com o 'Thor'. Ela é uma moça. Não me pergunte como, mas agora, em menos de um ano, ela é uma moça que sente algo forte por esse menino que tem quase o dobro da sua idade seja lá quantos anos ela tenha!
- Calma, Dess. Isso vai te fazer mal.
- O que me faz mal é ver vc sempre calmo! Que ódio! 
- Acordou nosso filho. Parabéns.
- Vá pro inferno.
- De novo?
- Não me segue.
- Não estou te seguindo. Estou indo ver meu filho que, por acaso, é o seu também.
- Vc é ridículo. Te odeio. - Minto retirando Matteo de seu berço. - O que vc tem, meu filho? Fala pra mamãe. Fala.
- Ele tá febril, Dess.
- Eu senti. O que a gente faz?
- Dá um antitérmico e deixa o corpo dele combater o vírus ou sei lá o quê? - Um olhar enfurecido e rosno.
- Eu tô com ranço de sua calma, Vincenzo.
- E eu tô preocupado com o nosso concurso. Até hoje, a gente não ensaiou novamente.
- Nosso filho tá febril e vc pensando em concurso de dança!?
- Posso pensar em outras coisas...- Um olhar desafiador e entendo sua intenção em me irritar.
Empurrando-o com a lateral de meu corpo, sigo até a cozinha. Procuro por algum antitérmico. Ele o alcança no armário acima de minha cabeça antes de mim enquanto me observa. - Me dá essa merda, Vincenzo. Não brinca comigo. - Ameaço sacudindo Matteo em meu colo. - Nunca mais insinue algo com aquela vaca ruiva ou eu te mato. Eu tô falando sério.
- Desculpa. Eu queria te provocar ciúmes. - Administrando a dose correta do remédio na boquinha aberta de Matteo, ele volta a me pedir desculpas. - Fala comigo.
- Não quero. Tô nervosa. 
- Com uma febrícula, Dess?
- Com tudo, porra! - Tomando Matteo de meu colo, ele me ouve. - Vc não viu o que nós vimos! Foi horrível! Antoine vai ficar traumatizada pelo resto de sua vida! E vc ainda vem com brincadeiras envolvendo aquela ruiva que ainda não saiu da tua vida que eu sei!?
- Eu nunca mais a vi, Dess!
- Mas o João vê!
- Foda-se o João! Foda-se a ruiva! 
- Foi vc quem começou! - Acuso. - Agora aguenta, seu filho da puta!
- 'Puta'. Mamãe 'puta'. - Balbucia Matteo. Rindo, Vincenzo me parabeniza. 
- Mais um palavrão aprendido com vc. - Alterada, abro uma garrafa de vinho e tomo duas taças. Uma atrás da outra. - Dess! Para! Tá passando dos limites!
- Vc não viu nada. - Rosno bem próxima ao seu rosto. - Se eu te encontrar com aquela mulher, eu sumo da tua vida. Mas, antes, eu mato aquela piranha!
- Para, amor...- Cambaleando, volto ao quarto de Matteo. Um grito de horror e pergunto.
- Que faca é essa na tua mão, Antoine!?
- Eu que pergunto, mãe!
- De onde isso surgiu, filha?
- Sei lá, pai! Eu vim ver se o maninho estava bem e vi o berço vazio. Tinha alguma coisa brilhando debaixo do travesseiro. Eu levantei e vi isso!
- Chega!!! Eu não aguento mais!!! Chega!!! Chega!!!

Berro antes de tocar na adaga e, exaurida, apagar.


- Eu não consigo te ver. Onde vc tá?
- Bem pertinho de vc, meu bem. Só não quero ser visto. Não estou nos meus melhores dias.
- Deixa meu filho em paz, por favor.
- Mas eu não fiz nada contra ele, sua louca. - Defende-se Lúcifer. - Tudo o que fiz foi deixar um presentinho pra vc, mas Antoine, 'abelhuda', o encontrou antes. 
- Um punhal no berço do meu filho, maldito!?
- Um punhal que vai ser útil daqui a algum tempo.
- Do que tá falando!? Aparece, merda! Acende a luz!
- Prefiro assim. Não quero te assustar. O presente foi dado. Se quiser aceitar, aceite. Se não o quiser, jogue fora, mas, lembre-se: vc vai precisar dele. Mais cedo ou mais tarde.
- Por que me ajuda?
- Porque não tenho com quem contar nessa porcaria de mundinho cheio de humanos burros. Vc é uma das poucas criaturas que não tem medo do perigo. Deve estar no sangue.
- Não brinca com isso. Não tenho o seu sangue. Ninguém pode provar.
- Ninguém além de Anahita, de sua mãe, velha e caquética, e de mim. Óbvio.
- 'Pai da Mentira'! Aparece!
- Ai...por San Juan Diego. Chega desses títulos antiquados. Inventem outros. 
- O que tá acontecendo!? Eu tô caindo!?
- Sim, meu bem. Lembre-se de guardar o meu presente em um lugar seguro. Vc vai precisar usar.
- Só se for em vc, verme!
- Pode ser. Quem sabe? Agora acorda.


- Vc acordou. Graças a Deus.
- Por quantas horas eu dormi, Vincenzo?
- Quarenta e oito horas e trinta minutos.
- Meu Deus! - Ergo o tronco da cama. Minha cabeça gira. Meu estômago ronca. - Cadê meu filho!?
- Ele tá bem, Dess. Eu cuidei de todos. Ok? Antoine está mais forte. Leo já foi trabalhar e está super contente com sua nova casa e com o novo emprego de sua mãe. Ele pediu pra te dar um beijão e é o que eu pretendo fazer assim que vc escovar os dentes. - De olhos fechados, volto ao travesseiro. Vincenzo beija minha boca e graceja. - Eu já te beijei. Agora é a sua vez de acordar e voltar às nossas vidas, Dess. Ela não tem graça sem vc.
- Por que dormi tanto?
- O médico disse que foi um 'burnout'. Chique, né? Um jeito fresco de dizer que vc teve uma crise de extrema exaustão.
- Exaustão. É. É isso. Exaustão. 
- Quer tentar levantar? Nosso filho tá morrendo de saudades de vc.
- Meu filho! A adaga!
- Ei! Devagar! - Alerta Vincenzo impedindo que eu caia contra o chão de nosso quarto. Apoiando-me nele, peço. 
- Me leva até o nosso filho. Por favor.
- Com prazer. - Um riso infantil e ele pergunta. - Por que tá me olhando como se me visse pela primeira vez?
- Eu tô?
- Tá.
- Não me lembro de nada, ao certo. Só tô confusa. - Esclareço caminhando lentamente. - Antoine tá no colégio? - Assentindo com a cabeça, ele indaga, preocupado.
- Vc se lembra de mim, né? De que me ama e de que eu sou o homem da sua vida?
- Não...
- Dess!
- Tô brincando, idiota. Eu odeio te amar tanto...- Sentada em minha cadeira de amamentação, recebo Matteo dos braços de Vincenzo que me observa , curioso. - O que é? Não posso mais demonstrar amor por meu filho?
- Pode. - Beijando a boquinha de Matteo, volto à realidade. Sinto que não estou sonhando. Estou onde sempre quis estar. - Ele te ama, Dess. Nós te amamos. Vc não precisa tentar resolver tudo sozinha. Aliás, vc não tem que resolver nada. Aprenda a deixar fluir. - Sem olhar em seus olhos, resmungo.
- Se eu tivesse 'deixado fluir', vc não teria seu recepcionista de volta, Vincenzo.
- Meu assistente, Dess. - Corrige-me ele. 
- Sério??? Que máximo!!!
- É! - Diz ele, sorrindo. - Ele tá super animado ensinando alguns golpes aos novos alunos. Acho que ele pensa ser uma daquelas personagens dos 'animes' malucos que ele assiste com Antoine. Aliás, ele tem me dado muita força nesses dias em que eu não trabalhei.
- Por que não!?
- Dess...- Revirando os lindos olhos, ele elucida. - Vc esteve 'apagada' por dois dias. Lembra do que eu te falei?
- Ah tá. Lembro. Ele tá maior, né? Nosso filho é lindo. Eu faria de tudo por ele.
- Até matar?
- Sim. Sem dúvida. - Encarando-o, afirmo. - Por meus filhos, eu estou disposta a tudo.
- O que pretende fazer com a adaga, Dess? - Pergunta-me ele, sentando-se sobre o tapete de estrelinhas, abraçando os joelhos flexionados. - Não tenho o seu dom, mas eu tenho certeza de que não vem de um bom lugar.
- Vou guardar...- Ergo-me, cautelosamente, com Matteo em meu colo. - Ele tá com fome. - Caminho até a cozinha. Vincenzo, mais uma vez, me segue. 
- Eu não te sigo, idiota! Eu estava conversando com vc e vc me deixou no 'vácuo'!
- Onde estão as bananas? - Desconverso, passeando pela ampla cozinha. - Acho que mamão é melhor. - Agarrando-me pelo braço, ele avisa.
- Não precisa tentar não pensar. Eu não sei onde esteve durante seu longo sono ou com quem conversou. Sinto muito que vc não confie em mim. 
- Não é isso, amor...- Afastando-se, magoado, ele alerta. 
- Não se pode servir a dois senhores, Dess. Isso eu ouvi da boca de um dos apóstolos, pessoalmente. Escolha de qual lado vai ficar.
- Vincenzo! Fica! - Dando-me as costas, ele comenta.
- Preciso trabalhar. 
- Nossos ensaios! - Grito do portão da garagem. Matteo move as mãozinhas, acenando para o pai dentro do carro. - Vc ainda tá comigo!?
- Sempre, Dess. - Responde-me ele, ao volante. - Sempre.
- Te vejo à noite no ringue?
Contendo um sorriso, ele diz que sim e me deixa na calçada. Seu carro dobra a esquina e meu coração aperta no peito ao me recordar do sonho que tive. As palavras de Lúcifer sobre a adaga ecoam em minha mente aflita enquanto protejo meu filho do frio cortante.
"Vc vai precisar dele. Mais cedo ou mais tarde".




Em nosso último ensaio, fazemos as pazes. Vincenzo me faz rir ao reclamar que não passa de um boneco no meio do palco, sentado em um banco. Eu o convenço de que ele é a alma da nossa coreografia.
- É por vc que eu danço. Perdida, solitária, em busca de salvação. Como diz a letra da música, é vc quem me guia. É de vc que eu preciso, logo, vc é a personagem principal da coreografia.
- Idiota. Vc não precisa disso. Eu tô aqui por vc. Eu não vou te deixar perdida ou solitária.
- Eu sei, Vincenzo! - Revirando os olhos, explico. - Isso é Arte! Encenação!
- Ah tá...- Lamenta ele. - Isso é falso.
- Não. - Afirmo, saltando em seu colo, agarrando-me em seu pescoço, cruzando minhas pernas em suas costas. - Nunca. - Sussurro contra seus lábios. - Vc é a minha salvação. Sem vc, eu não existo. Eu fico perdida. Sem rumo.
- Isso é bom...- Alega ele antes de me beijar e me fazer girar em seus braços. Deixo escapar um grito eufórico e ele avisa. - Espero que continue assim. Eu sou seu macho. - De volta ao chão, confirmo.
- Disso ninguém duvida, imbecil.
Ouço aplausos ao redor do ringue. Pelos olhos assustados de Vincenzo, já posso imaginar quem seja. Giro meu pescoço lentamente e, então, eu a vejo sorrir e caminhar em nossa direção. Ágil, pulo do ringue antes de Vincenzo e, inflando as narinas, pergunto.
- O que faz aqui? A academia tá fechada.
- A porta estava aberta e...
- Pensou que poderia entrar?
- Dess...
- Vincenzo! - Exulta a ruiva siliconada antes de abraçá-lo efusivamente. Ele recua e, meio que sem graça, se desculpa.
- Eu tô suado. - Um ligeiro olhar para mim e ele me apoia. - Não deveria ter entrado. Perdão, mas, após o horário de funcionamento, não permitimos a entrada de estranhos.
- Não sou estranha! Sou sua aluna!
- Já foi. - Refuta ele, resoluto. - Seu professor é o João e, minha esposa e eu estávamos ensaiando. -  Sorrio, triunfante. - Se nos der licença, ainda não terminamos. - Dess. Vc tá bem? - Piscando excessivamente, tento enxergar a imagem embaçada da ruiva. - Caiu algum cisco em seu olho?
- Não. - Apoio-me em seu braço ao mentir. - Tá tudo certo. - Ainda tentando focar na imagem distorcida da ruiva, peço, incomodada. - Vc poderia nos deixar a sós? Como o meu marido disse, ainda não terminamos.
- Sem problema. Eu só queria dar meus parabéns ao casal. Certamente irão vencer o concurso. - Recuando, ela me faz uma ameaça velada ao tocar em meu braço. - Aproveite enquanto pode.
Um forte arrepio e recuo, sobressaltada. Assim que ela alcança a calçada, tranco a porta da academia à chave e, ainda tremendo, tento entender o que vi.
- Dess, não se deixa abater. Isso é coisa de gente pequena que gosta de intriga.
- Não é isso, Vincenzo. Eu vi alguma coisa. Ela não parece ela. Não é a mesma com quem conversei naquele dia.
- O que viu quando ela te tocou?
- Nada. Esse é o problema. Eu só vi escuridão e...
- E? - Pensando em Matteo, desconverso.
- Deixa pra lá! Vamos pra casa! Pobre Enrico! Além de cuidar de Matteo, agora tem que aturar Antoine e sua fixação por Leo!

Longe de Vincenzo, pergunto-me qual seria o significado das fagulhas de fogo que enxerguei enquanto ela me tocou. 



Vencemos o concurso!
 
Fomos aplaudidos de pé pela plateia que me pareceu ter se emocionado mais com a atuação de Vincenzo do que com a minha. Ele se deixou levar pela canção, pela orquestra sinfônica, pela letra do autor que sofre por um amor complicado. Eu amei ver seus olhos fixos em mim enquanto eu me esforçava em não cometer erros nos passos arriscados, cheios de paixão. Ele se movia na cadeira, acompanhando cada salto, cada gesto meu. Embevecido, contrariando o que havíamos ensaiado, ele se empolgou, chutou a cadeira e num repentino ato de amor, ao final da apresentação, ele, com seus braços fortes,  me elevou acima de sua cabeça e me fez girar. Erguendo meus braços, sob o brilho dos holofotes, um 'déjà vu' me incomodou por frações de segundos. 
Deixo rolar. 
Estou tão feliz por ele ter se envolvido com tanto fervor em meu sonho que o beijo diante de todos. Enrico, Antoine, Cassie e Leo, dos assentos, nos arremessam flores. Liam me encara com uma expressão indecifrável. Um súbito pavor me faz procurar por Matteo. No colo de Enrico, ele se encontra distante de Liam. Sean, no colo de Cassie, chora sem parar.
- Dess, agradeça. - Cochicha-me Vincenzo antes de fecharem as cortinas. De volta ao corpo, presto reverências ao público num 'pliê'. De mãos dadas a Vincenzo, sorrio, super feliz. Enfim, estou no palco que sempre quis estar, ao lado do homem que amo e que demonstrou me amar. - Te amo. - Declara ele, arfando, atrás das cortinas. - Acho que me empolguei.
- Por mim, vc pode se empolgar sempre...- Jogo o buquê de flores para o alto e o beijo na boca, com ardor. Suas mãos envolvem minha cintura enquanto elevo minha perna direita como nos filmes de romance.

Seria um ótimo final para nossa história...

Mas, quem disse que eu nasci para ser feliz?
Comemoramos nossa vitória em nossa casa. Entre nossos amigos, bebemos, comemos e dançamos juntos. Sem tirar os olhos de Vincenzo, um tanto embriagado pelo vinho, encantado por ter sido aplaudido de pé e estar contando todos os detalhes de nossa apresentação, pela segunda vez, não deixo de me sentir insegura. Cassie e Sean estão juntos, encolhidos num dos sofás da varanda. Enrico aplaude Vincenzo a cada passo que ele pensa ter dançado. Antoine e Leo ainda maratonam 'Death Note' na sala de vídeo, comendo pipoca do mesmo pote. Ela o observa, encantada, enquanto ele não tira os olhos da tela de cem polegadas sugando, pelo canudinho, refrigerante com gelo. Ainda sentindo um aperto no peito, sigo até o quarto de Matteo onde o deixei dormindo há cerca de uma hora. Assim que abro a porta, eu o assusto com meu grito de pavor.
- O que faz aqui!? Solta meu filho!
- Ele estava chorando. Eu só queria ajudar.
- Já ajudou. - Tomo Matteo de seu colo e, recuando, desconfiada, argumento. - Não faz sentido algum, Liam. Por que vc estaria aqui enquanto todos estão lá fora!? 
- Eu já disse.
- Eu não acredito em vc. - Rosno, afastando-o de Matteo ainda mais. - Desde quando tem amigos? Desde quando tem feito minha Cassie infeliz!? Acha que não percebo o quão triste ela está!? Por que me pediu para tirá-la da depressão se vc a está jogando no fundo do poço novamente!? 
- Não seja estúpida. Vc não conhece nada de nossa vida. Estamos felizes. Isso te incomoda?
- Não. Seu olhar me incomoda, Liam. Não é mais o mesmo. - Uma risada sarcástica e ele zomba.
- Ok. E todos devemos acreditar na vidente, paranormal, bruxa, santa, parteira, curandeira e bailarina do ano. Vc não faz ideia de quem eu sou.
- É verdade. E isso me dá medo, Liam. Eu não te conheço mais. Eu nunca te conheci. Eu deixei que vc entrasse na vida da minha Cassie imaginando que vc fosse um anjo como o meu Vincenzo...
- Ainda sou. - Um sorriso no canto da boca e ele conclui. - Com algumas diferenças. 
- O que quer dizer com isso!? - Impedindo-o de sair do quarto com meu corpo, insisto. - Quem é vc!? De verdade!?
- Saia da minha frente. Seu filho está chorando. - Um olhar frio a Matteo e ele comenta num tom sombrio. - Ele é especial e isso pode ser perigoso. Tome conta dele e deixe a vida dos outros em paz.
- O que quer dizer com isso!? - Grito, num desespero. 
- O que eu disse...- Observa ele, ironicamente. Antes de sair do quarto, ele me fere ao concluir. - Seu sangue fede. Alguém já te disse isso?
Cambaleando, jogo-me contra a cadeira de balanço e, protegendo Matteo, choro sozinha até me recompor e seguir até a sala onde todos estão reunidos. 
- Fique com ele e não o solte de maneira alguma, Enrico. Proteja seu neto.
- Vc está me assustando, Adessa. Algum problema?
- Sim. Eu só não sei o que é ainda. Proteja meu filho, Enrico, por favor.
- Com todo meu corpo e alma. - Promete-me ele. 


Nervosa, sussurro no ouvido de Vincenzo.
- Precisamos conversar agora.
- Amor! - Exulta ele, abraçando-me pela cintura. Um de seus sorrisos puros e ele chama a atenção de todos. - É por essa mulher que eu vivo! Uma bailarina brilhante e uma parceira fiel, forte e lutadora!
- Amor. Vem comigo. - Insisto sob os aplausos de Cassie, Enrico e Liam que pisca, discretamente, para mim. Trêmula, arrasto Vincenzo que não compreende minha apreensão. Vendo Liam se aproximar de Matteo no colo de Enrico, perco o controle e grito. - Vincenzo! Eu preciso falar com vc! Agora!

Todos se calam e me encaram, surpresos. Cassie tentando fazer Sean parar de chorar em seu colo, pergunta.
- Alguma problema, tia? Posso ajudar?
- Não, 'Little Princess'. Vc não pode ajudar. A heroína aqui é e sempre será a bailarina.
- Vc nunca mais me chamou assim. - Revela  Cassie, fragilizada. - Desde que seus amigos começaram a frequentar nossa casa.
- Que amigos, Liam? - Provoco, posicionando-me entre Enrico, com Matteo em seu colo, e ele. - Por que não nos explica de onde eles surgiram?
- Dess, o que vc quer falar comigo? Por que tá nervosa, amor? - De costas para Vincenzo, pergunto. 
- Não consegue ver? Não consegue ler os pensamentos dele, Vincenzo? Ele já não é aquele a quem vc chamava de 'irmão'.
- Dess, se acalma. Por favor. Essa noite tá sendo tão bacana...- Livrando-me dos braços de Vincenzo, pergunto num tom alto.
- Por que Sean não para de chorar, Cassie!? 
- Não sei, tia. - Responde-me ela, confusa. - O que tá rolando aqui? Por que eu sinto que vc e o Liam não estão se entendendo?
- Porque ela é desequilibrada. - Responde Liam abrindo um sorriso malicioso. - Ela sempre enxerga problemas onde não existem. Sempre quer ser o alvo das atenções.
- Liam, não fala assim da minha esposa. Somos amigos, cara.
- Não somos, Vincenzo! - Refuto encarando-o nos olhos serenos e avermelhados de cansaço e vinho. - Ele mudou! Vc não vê isso!? Ele estava no quarto do nosso filho enquanto todos estávamos aqui!
- Ele estava chorando! Eu já me expliquei! - Diz ele alterando o tom da voz. - Por que vc sempre vê maldade em tudo!?
- Por que não tenta fazer o seu filho parar de chorar!? Do meu filho cuido eu! 
- Tia!
- Cassie...- Aproximando-me dela, peço. - Deixa eu segurar o Sean. Ele precisa parar de chorar.
- Não encosta nele! - Protesta Liam tomando Sean dos braços de Cassie.
- Por que não!? - Pergunta Cassie, assustada. - Ela só quer o bem dele! Liam, me dá o meu filho de volta!
- Não! - Rosna ele, furioso. - Vamos embora!
- Porra! Alguém pode me explicar o que tá rolando aqui!? Dess! Que briga boba é essa!?
- Não é boba, Vincenzo! Se não estivesse bêbado já teria enxergado os sinais!
- Eu não tô bêbado! - Defende-se ele, indignado. - Eu tô feliz! Nós vencemos o concurso! Não era isso o que vc queria!? Por que não tá feliz!?
- Porque ela não estava sendo o centro das atenções até agora, Vincenzo! - Assevera Liam. - Vc ainda não conhece a esposa que tem!?
- Irmão, eu não tô gostando do rumo dessa conversa.
- Ele não é teu irmão, Vincenzo! Acorda!
- Dess...- Sinto mágoa em sua voz. Voltando-me em sua direção, peço perdão e imploro.
- Precisamos conversar. Eu senti algo. - Batendo palmas lentas e espaçadas, Liam ironiza enquanto Sean continua a chorar. - Eis que o show vai começar. A vidente mais poderosa desse planeta tem algo a revelar. - Diante dele, olhando em seus olhos, ameaço.
- Ainda não. Mas vou descobrir. 
- Tenta. - Provoca-me ele.
- Liam! Para! - Pede Cassie, aos prantos. - Me dá meu filho. Ele não tá bem.
Enrico se afasta com Matteo assim que tento roubar Sean dos braços de Liam. Cassie, descontrolada, atordoada, me empurra para longe. O que vejo me faz arquejar de pavor. Vincenzo me abraça com força, impedindo-me de tocar em Sean e completar a conexão.
- O que vc tem, Dess!? Tá me assustando, porra!
- Para, tia! Por que essa raiva toda!? - Presa por Vincenzo, entre irritada e amedrontada, pergunto.
- Há quanto tempo o Sean tá assim, Cassie!? Não minta!
- Não fala nada, Cassie. - Ordena Liam. - Vamos pra casa. Agora.
- Pra casa!? Casa!? Que casa!? - Cassie gargalha histericamente. - Desde quando aquele lugar voltou a ser a nossa casa, 'coelhinho'!? Nossa! Há quanto tempo eu não falo essa palavra! Como eu poderia!? Seus amigos não saem daquela casa! 
- Cala a boca, Cassie. - Rosna Liam. - A gente conversa em casa.
- Não! - Revolta-se Cassie tomando Sean dos braços de Liam. - Pra lá eu não volto até que seus mais novos amigos de infância nos deixem em paz!
- Ela fica aqui! - Apoio Cassie. - Vc não pode obrigá-la a voltar pra lá se ela não quiser! Ela deve ter bons motivos pra não querer voltar!
- Fica então! Mas o Sean vai comigo!
- Não! - Grita Cassie, horrorizada. - Não toca no meu filho!
Liam, colérico, avança sobre Cassie.
- Parem! Pelo amor de Deus! - Pede Enrico, apavorado. Vincenzo defende Cassie e Sean com seu corpo e assim que pede para que Liam reflita, recebe um soco no rosto. Instintivamente, ele o devolve, golpeando o queixo de Liam que cai contra o chão. Perplexo e triste, Vincenzo suplica.
- Alguém pode me dizer o que tá acontecendo aqui? Por que chegamos a esse ponto?
- Sua esposa. - Responde Liam erguendo-se do chão. - Ela é prepotente. Pensa ser alguém com grandes poderes. Uma heroína. Uma bruxa, uma cristã. Alguém que pensa ser amiga de arcanjos, mas é íntima do 'Anjo Caído'. Por conta de seu suposto dom, ela se convenceu de que pode resolver todos os problemas de todos que a cercam, mas não é capaz de resolver os seus. Afinal, as vozes ainda estão aí dentro. Não estão, 'Dessss'. - Sua voz sibila ao pronunciar meu apelido com desdém. Vincenzo, devastado, comenta.
- Mas ela te ajudou tantas vezes...
- Eu me pergunto como. Usando de Magia? Colocando pensamentos tortuosos na cabeça de minha esposa?
- Maldito. Eu amo a Cassie. Jamais faria mal a ela. - Num acesso de raiva, ele aponta seu indicador a Cassie e, aos gritos, ordena.
- Faz essa criança parar de chorar! - Cassie, em choque, não se move. Caminho até ela. Liam me puxa pelo braço, impedindo-me de tocar em Sean. Vincenzo o empurra e, com ódio em seus olhos, avisa.
- Não toca na minha mulher novamente. Vc já não é bem-vindo a essa casa. - Presunçoso, ele refuta.
- Eu não tenho a menor intenção em retornar a esse lugar onde uma prostituta com sangue impuro manda em todos. - Dessa vez, sou eu quem segura Vincenzo pela cintura e imploro.
- Se controla, amor! Chega!
- Não quero ir, tia! Me ajuda! - Pede-me Cassie ao ser arrastada por Liam. Toco no braço de Liam e, engolindo meu orgulho, peço.
- Deixe que Cassie e Sean durmam hoje aqui. Por favor. - Retiro minha mão de seu braço e, propositadamente, toco em Sean. Apurando minha visão, recuo, incrédula. - Em nome de quem vc já foi, eu suplico. Deixe que eles fiquem. - Um sorriso sinistro e ele responde.
- Não.
Aos gritos, Cassie se recusa a caminhar. Sean berra em seu colo quando, de súbito, Antoine passa por mim e, em silêncio, separa Liam de Cassie e segura Sean em seu colo. Beijando sua testinha, ela o faz parar de chorar.
- Vá. - Ordena ela a Liam. - E não volte a pisar em nossa casa. - As mãos de Liam quase tocam o pescoço de Antoine quando ela, em transe, proclama. - 'Quis ut Deus?'
Com os olhos tomados pela fúria, Liam a obedece, em silêncio.
Assim que ele sai de nossa casa, lembro-me de respirar, soltando o ar pela boca. Leo ampara Antoine que, sem forças, desmaia em seus braços. Deitando-a no sofá, ele a beija na testa e, amorosamente, chama por seu nome.
Atônitos, Vincenzo, Enrico, Cassie e eu assistimos à cena em profundo silêncio. Como por encanto, Antoine abre seus olhos e, sorrindo, pergunta.
- Quer que eu faça mais pipoca?
Rimos, absolutamente abalados.

Uma absurda tristeza se instala entre todos nós. Enrico, com sua imensa ternura, tenta acalmar Cassie enquanto Sean dorme, tranquilo em seu colo na sala de estar. Vincenzo, com os olhos cheios de lágrimas, brinca com Matteo em seu berço até que ele adormeça. Leo abraçado a Antoine, na cadeira de balanço suspensa da varanda, abre um sorriso triste ao me perguntar.
- Posso te ajudar, tia?
- Vc já me ajudou, querido. E muito. Vc a trouxe de volta e, por isso, eu te abençoo. - Beijo sua testa e a de Antoine e volto a caminhar pela casa sentindo um imenso vazio em meu coração. Cassie, em nosso quarto de hóspedes, abraçada a Sean, confusa, confessa.
- Não posso ficar longe dele, tia. Eu o amo muito. Ele é o pai de Sean e, além disso...
- Continue, Cassie. - Encorajo-a, arrependida. - Eu não vou te culpar. Eu te peço perdão. Eu me descontrolei e causei tudo isso. Talvez, Liam tenha razão. Eu penso ser alguém especial e não passo de uma puta velha à procura de confusão.
- Nunca mais diga isso. - Ordena-me Vincenzo, com um dos olhos, roxo, e a voz embargada. - Vc é a mãe dos meus filhos. Minha esposa leal e fiel. Vc é amiga de todos e o seu dom é real. Não há nada de errado em querer ajudar os amigos. Liam perdeu o controle e eu não faço ideia do porquê.
- Sean tem chorado muito, tio. Tenho medo de que esteja doente. Já o levamos ao médico, mas não encontramos nada.
- Vc precisa comer, Cassie. Tá fraca e muito triste. Precisa estar forte pra cuidar de Sean. - Argumento. - Vincenzo vai te fazer companhia na cozinha. O omelete dele é o mais gostoso que já comi. - Um ligeiro olhar a Vincenzo e ele capta minhas intenções. Ouvindo meus pensamentos, ele assente com a cabeça. - Eu cuido de Sean. Confia em mim?
- Claro, tia. - Desanimada, ela faz planos. - Vou comer e tomar um banho e, amanhã, eu volto pra casa com meu Sean. - Um de seus risos eufóricos e ela mente para si mesma. - Vai dar tudo certo. Eu sei. Tudo vai voltar ao normal. Meu Liam vai se afastar daqueles amigos e vai voltar ao normal. - Abraçando-a com força, minto num sussurro.
- Vai sim. Vai dar tudo certo, meu anjo.
Vincenzo a conduz através do corredor. Assim que os vejo entrar na ala da cozinha, encosto a porta do quarto e, cuidadosamente, procuro por algo no corpinho de Sean sem saber ao certo o que procurar. Algum sinal, hematoma....
- Deus...- Sufoco um soluço e, aterrorizada, confirmo o que vira há algumas horas ao tocar em Liam. - Podem ser mosquitos. Para de surtar. - Digo a mim mesma. Não parecem picadas de insetos. Acenda a lanterna do celular. - Vai acordar o pobre Sean...- Acenda! Tire uma foto e faça o que tem que ser feito! - Não não não...- Examinando as dobrinhas de suas coxas fofinhas, choro ao comprovar minhas suspeitas. De olhos fechados, pedindo ajuda ao 'Crucificado', vejo o que jamais deveria ter visto.


Sean em seu berço. Liam sorrindo para ele. Rostos estranhos ao redor do berço. Um choro súbito de dor. Sangue preenchendo, lentamente, o espaço vazio da seringa.
"É o suficiente", diz uma das vozes. "Por enquanto, é o suficiente".
Cobrindo seu corpinho, eu me deito ao seu lado e, desesperada, encolho-me, perdida, sem ter noção do que fazer ou falar a Cassie.
Ela não vai suportar a verdade.
Isso, se ela acreditar em mim...
- Ela não vai acreditar.
- Quem está aqui!? - Protegendo Sean, cubro-me com um lençol até a cabeça. - Por favor. Hoje não. Chega. Não quero ver mais nada.
- Nem mesmo um velho amigo? - Reconhecendo sua voz, choro de emoção. Retirando o lençol do meu rosto, eu o vejo. Seu sorriso inocente, as lágrimas em seus lindos olhos. - Não posso demorar, meu anjo. Só vim agradecer pelo que fez por mim e por minha Adele. - Aos prantos, não consigo mover minhas pernas. Estendo meu braço e, tentando tocar meu grande amigo, ouço sua voz doce me alertar. - Não posso ser tocado. Eles ouviram seu apelo, sua dor. Por algum motivo, estou aqui. Vc é luz, meu anjo. Vc sempre foi. Nunca duvide de seu potencial. Nunca desista de lutar contra o Mal. Minha Adele está comigo. Está se fortalecendo. - Minha voz embarga. Minha visão embaça. De olhos fechados pronuncio seu nome.
- Doc. Eu tô com medo. Não sei o que fazer. Eu não valho nada. 
Abro os olhos ao sentir a energia de sua mão pairando sobre minha cabeça. Ela me acalma. Sinto-me leve. Ele se afasta e, antes de partir, avisa.
- Cassie não vai acreditar e vai sofrer. Confie no Criador. Vc não está só, Adessa. Seja forte. A Escuridão está chegando. Estarei contigo. - Desesperada, grito.
- Doc, volta!
- Dess!? Vc tá bem!? - Sentando-se ao meu lado, ele pergunta, preocupado. - Sonhou com Doc!?
- Sim. - Minto ainda com os olhos fixos na luz que Doc deixou para trás. - Ele tá bem, Vincenzo. 
- Que bom...- Um abraço forte e ele me revela, pesaroso. - Cassie quer voltar pra casa, Dess. 
- Perdão, tia. Ele me ligou e me pediu desculpas. Ele chorou por mim, tia. Eu não quero desistir da minha família. Vc me entende?
- Sim. - Impotente, entrego o pequeno Sean a Cassie e, ao me despedir, retiro do meu pescoço o crucifixo que Vincenzo me dera há anos e o coloco em seu belo pescoço. - Não, tia! Foi presente do tio! - Protesta ela, encabulada.
- Aceite. - Imploro com a mão espalmada entre seus seios. - Aceite e, quando se sentir com medo, peça ajuda ao Criador. - Antes de Vincenzo dar partida no carro, corro até a janela do carona e, enfiando minha cabeça dentro do carro, beijo sua bochecha e a de Sean. Sem conter minhas lágrimas por seu sofrimento, suplico. - Não se esqueça de me ligar. Eu sempre estarei aqui por vcs dois. Sempre. - Emocionada, ela abre um sorriso triste e, tentando me alegrar, afirma.
- Vai dar tudo certo, tia! Te ligo amanhã!
Da calçada, atordoada e incapaz, eu os vejo desaparecer debaixo da chuva fina de uma noite fria. A imagem da adaga surge em minha cabeça dolorida. Enchendo-me de raiva pela covardia que cometeram contra meu pobre Sean, lembro-me das palavras do 'Portador da Luz'.
"Se não o quiser, jogue fora, mas, lembre-se: vc vai precisar dele. Mais cedo ou mais tarde."

Decido não compartilhar minhas visões com Vincenzo. Ele acaba de chegar da casa de Cassie, arrasado.
- Ela não confia nele, Dess. Por quê? Assim que chegamos lá, Sean voltou a chorar. Precisamos fazer alguma coisa. Vc sabe o que tá rolando? Conta pra mim.
- Não sei. - Minto. Ao acordar, decido contar tudo a Vincenzo. A caminho da academia de boxe, penso alto. - Ele é o único com quem posso contar. Meu amigo, meu parceiro. Por que não falei ontem?

Deveria ter seguido minha intuição e me poupado de uma dor excruciante. 
Uma dor que me separaria de meu grande amor por algum tempo.

Tempo de Escuridão.
 
Continua...













 






CAPÍTULO 40 - ELES ESTÃO ENTRE NÓS

- O que ela prometeu a vc!? - Saia da minha frente. Tenho muito o que fazer. - Dess, deixe o Arcanjo passar! - O que ela te prometeu!? - Ins...