'Dess - Uma História Interessante'

'Dess - Uma História Interessante'
AMO ESCREVER

CAPÍTULO 14 - VERDADES OCULTAS




Conto a verdade a Vincenzo. A minha verdade. Após anos de prostituição e de uma vida desregrada, preciso descansar o corpo e a alma. Preciso seguir o conselho de Miguel, o Arcanjo, que me salvara, por mais de uma vez, das consequências de meus atos impulsivos e, acima de tudo, proteger Antoine. Não posso expor minha filha aos riscos em permanecer num mundo onde posso falhar e retomar meu vício...minha compulsão por sexo a qualquer momento.

O que seria dela se algo me acontecesse? 

Ouvira, em um 'podcast', que o vício em pornografia é a porta de entrada aos desvios de conduta inaceitáveis como a pedofilia e a necrofilia. Se é verdade? Não sei. Não vou pagar para ver. Talvez eu tenha arrastado algum jovem a um desses transtornos. Talvez eu esteja exagerando. Não sei. O fato é que já não suporto ter de lidar com pessoas que não se cansam de exigir mais de mim. Mais de si mesmas. Mais de tudo. Mais do que eu posso dar. Mais do que eu queira dar.

Cansei!

Eu finalmente encontrei um bom motivo para me livrar da compulsão e, sinceramente, não vou permitir que me desviem do caminho!

Um caminho que, talvez, me liberte do espectro diabólico de Ga'al. Antoine não merece...não pode conhecer essa parte bizarra de minha vida.

Não mesmo.

- Bons motivos.

- Sério?

- Sério. - Assente Vincenzo, com lágrimas nos olhos. - Eu nunca te vi tão obstinada em não errar.

- Não entendi. Nós nunca conversamos sobre isso.

- Já sim, senhorita. No meu carro, a caminho da casa de praia. Vc mencionou algo sobre posar para 'outdoors'...

- Aaah...- Recordo-me elevando os olhos melancólicos. Exalo ao me lembrar de tudo o que vivemos naqueles dias onde eu fui feliz. Inteiramente feliz. - Lembrei.

- Eu sei. Eu nunca me esqueci daqueles dias. Nem dos anteriores àqueles dias...

- Como assim? A gente não teve nada antes daqueles dias. Vc...eu...a gente nunca trepou antes.

- Fizemos amor. - Corrige-me ele enquanto reviro meus olhos, fingindo indiferença. - A gente não trepa, Dess...

- Ok. Não fala. - Bufo. - A gente faz amor. Digo...fazia. Porque não faz mais, né? Infelizmente...- Dou de ombros enquanto ele me observa, calado. - Oi? Acorda!

- Não quero. Preciso guardar esse momento...

- Para de palhaçada!

- Ok. Parei. 

- Por que tá chorando?

- Eu não estou...- Diz ele, emocionado. - Fico feliz por vc.

- Não fique. Eu ainda não fiz nada. - Refuto, tomando a segunda taça de vinho tinto. Evito seu olhar incisivo enquanto murmuro. - Vai ser difícil sem a grana.




- Eu posso te ajudar.

- Não quero. - Rosno. - Posso me virar sozinha.

- Por que diz isso?

- Porque sim. Eu sei que vai me deixar, Vincenzo.

- Não fala assim...

- Não toca em mim. - Rebato, insegura com seu toque em minhas mãos. O dorso de sua mão em minha bochecha... - Ainda não sou tão forte assim.





- Necrofilia!? - Desconversa ele, arregalando os grandes olhos azuis. - Não é exagero?

- Não. - Estapeio seu braço estendido. Tomo outro gole do vinho e, exasperada, argumento, movendo as mãos aleatoriamente. - A entrevistada foi bem coerente. Quando o cérebro se cansa do sexo trivial, ele procura nova opções que liberem mais dopamina. 

- É aí que vc entra...- Sugere ele, contrariado. - Ou melhor...entrava.

- Isso. Não vai rolar mais. Chega de orgias, 'gangbangse outras coisas bizarras criadas por aquele diretor maluco! Ele que procure por outra atriz! Eu me recuso a ser usada dessa maneira!

- Como?

- Vincenzo! Vc não tá me ouvindo!? - Quando verei esse sorriso novamente? - Vou te explicar, idiota!

- Vc bebeu demais.

- E vc, de menos! Bebe e me escuta!

- Fala baixo. Antoine vai acordar.

- Odeio que me mandem falar baixo! - Grito. - Ela tem um sono pesado! Me escuta!

- Eu não mandei. Eu pedi.

- Vc tá me irritando. - Aviso. - Eu preciso te contar o que ela falou.

- Ela quem!?

- A mulher do 'podcast', porra!

- Fala...

- Não ria de mim.

- Eu tô sorrindo pra vc, Dess. Sorrindo...- Afirma Vincenzo abrindo um dos sorrisos que mais me encantam: o inocente. - Errou. É o de tristeza.

- Cala a boca e me ouve! Eu não quero...- Engulo em seco. A voz embarga enquanto penso em como viver sem ele ao meu lado. Por que não tenta ser independente!? Por que não morre dentro de mim, voz imbecil!? - Vincenzo, eu não quero que me conte nada sobre os seus planos.

- Fala...

- O quê?

- Da mulher do 'Podcast'. - Exalo diante de suas covinhas. Quando eu me transformei nesse ser abobalhado? - Quando me conheceu.

- Vou ligar o som! Odeio telepatia! - Aviso antes de ordenar, num grito. - Alexa! Toca "Bach"! Volume 8!

- Bach!? 

- Qual o problema!? - Indago diante de sua gargalhada ingênua. - Não posso me desvirtuar ouvindo música romântica! 

- Entendo...- Diz ele, sentando-se ao meu lado, sobre o tapete no centro da sala de estar, bem mais simples do que os que tenho em meu apartamento. Por que gastei tanto com tanta bobagem antes de conhecer Antoine? Até quando vou poder pagar por nossa vida de luxo? - No que tá pensando?

- Em nada! - Minto. - A mulher do 'podcast' disse que, depois de esgotar todas as possibilidades em sexo desregrado, o cérebro do viciado vai procurar por algo que o sacie. Então, após consumir todas as categorias de pornografia nos diversos sites desse gênero, esse cérebro somente vai encontrar prazer, novamente, em algo doentio. Eu não quero ser um instrumento que leve um adolescente a consumir esse tipo de conteúdo e, depois...sei lá...tipo...- Esvazio a terceira taça de vinho, ansiando por um beijo de Vincenzo que me encara, enquanto falo, como se eu fosse a 'Virgem Maria'. Ninguém merece! - Tipo... se transformar em um psicopata e matar crianças em um colégio estadual!

- Uau...- Sussurra ele ao meu ouvido. - Bastante coerente e linear seu pensamento.

- Não me zoa! Eu posso ter misturado um pouco, mas é basicamente isso o que ela falou!

- Um pouco?

- Dá pra se manter mais afastado?

- Não posso. Preciso guardar teu cheiro.



- Não fala assim...- Imploro, de olhos fechados. - Eu não quero ficar sem vc. Por favor.

- Não vai.

- Não minta.

- Não vou mentir...

- Por que vai partir? - Fixo meus olhos pesados em seu rosto perfeito. Seus olhos tristes me fitam com ternura quando ele desconversa.

- Vc sempre me surpreende, Dess.

- Por que não fica? Antoine precisa de vc.

- Eu sabia que largaria essa vida. Eu sempre esperei por esse momento. 

- Eu preciso de vc por perto. Fica. Não nos deixe sozinhas.

- Eu tô orgulhoso de vc, Dess.

- Eu vou precisar de sua ajuda.

- Eu te coloquei nessa vida. Eu sei que fui o culpado. Eu sempre lutei pra te tirar dela.

- Não vou conseguir sem vc.

- Enfim, vc vai se livrar disso e eu...não vou me culpar mais.

- Do que tá falando!?

- Não desista, Dess. 

- Eu nem comecei!

- Ele disse que vc não conseguiria. 

- Ele quem!?

- Eu lutei contra ele por sua causa e agora vc vai mostrar a todos que consegue!

- PORRA! ME ESCUTA! QUE PAPO DE DOIDO!

- Não grita, Dess!

- Vá pro inferno! Vc não tá nem aí pra gente! Fica divagando...

- Isso não é verdade. - Rebate ele sem disposição para discutir. - Eu amo vcs.

- Vc jamais gostou de mim, Vincenzo. - Choramingo. - Nunca tivemos tempo de guardarmos lembranças. De termos uma vida juntos.

- Já tivemos sim. Vc não se lembra? Nossos momentos na casa de praia...na cama.

- Poucos dias! Não uma vida!

- Dias intensos valem, às vezes, mais do que uma vida inteira.

- Vc não precisa ir.

- De onde tirou essa ideia, Dess? Eu tô aqui.

- Mas...em breve, não vai estar. - Soluço. - Eu sinto isso.

- Seu mal é sentir demais. Nem tudo que o sente ao me tocar é real. Já pensou nisso?

- Eu te toquei e vi um aeroporto. Faz sentido?

- Nenhum porque não pretendo ir de avião.

- Aí! - Aponto o indicador a um dos seus dois rostos. - Já era! Se entregou!

- Quero me entregar a vc. 

- Vc misturou tudo aqui, na minha cabeça, achando que eu não me lembraria...

- E do que vc se lembra, Dess?

- Graças às suas intervenções, Vincenzo!? - Acuso. - Eu me lembro de quase tudo. Sua hipnose não deu certo...- Solto um riso de triunfo e o emendo a um outro soluço. - Bobão.

- Do que se lembra? - Questiona-me ele, preocupado. - Fala, Dess.

- De quase tudo. De vc tentando me fazer esquecer de minha suposta vida passada com alguém de quem não me lembro e me pedindo para não me esquecer de vc e de tudo o que vivemos juntos. O que vivemos juntos, Vincenzo!?

- Uma vida cheia de amor, lutas, dores e superação. 

- Erros?

- Alguns.

- Me conta tudo. Eu não consigo viver com essas lembranças desencontradas. O que fomos no passado, Vincenzo? Por que me sinto ligada a vc de maneira irreversível?

- Vc deseja se afastar de mim?

- Cacete! É vc quem vai se afastar de mim, Vincenzo! Não me confunda ainda mais!

- Para! - Ordena-me ele pousando sua mão sobre minha taça bojuda. - Vc já tomou quase a garrafa inteira!

- E ainda pretendo tomar outra. - Reclamo, beliscando o dorso de sua mão. Rindo, ele libera minha taça enquanto prossigo. - Vc escorrega das minhas mãos como sabonete molhado. Nunca diz a verdade. Nunca se mostra como é e tá sempre me cercando como um abutre prestes a me salvar, surgindo do nada. 

- Abutres atacam, Dess. Eu só quero o seu bem. - Uma breve pausa e um súbito arrepio percorre minhas costas, eriçando os pelos de minha nuca onde ele acaba de pousar sua mão. Vejo asas imensas. Ouço gritos de dor. Por que diabos eu estou vendo isso?! Modulando a voz, ele rompe o silêncio. - Fico feliz com sua atitude. Deixa eu te ajudar financeiramente até vc encontrar uma maneira mais consistente para levar uma vida tranquila.

- Minha vida é tranquila. - Refuto, desorientada. - Ainda posso manter Antoine em seu colégio e nas aulas de dança e, se não der pra pagar pelas aulas de dança, eu mesma a ensino a dançar, em nossa casa. Ela leva jeito. - Sorrio, orgulhosa. - De fome, a gente não vai morrer. Ainda conto com a grana do "California".

- Sem vídeos caseiros? - Pergunta-me ele, incrédulo.

- Sem vídeos caseiros ou qualquer vídeo onde eu tenha que foder com alguém. Chega! - Exclamo batendo com a palma da mão sobre a mesinha de centro, em madeira, ao declarar. - 'Adessa Love' morreu. Não quero ter que esbarrar com aquele demônio na minha casa onde Antoine ainda vive em paz sem ter noção de que ele existe.

- Ele não vai voltar, Dess. Não como um demônio. Toma cuidado. Ele já está entre nós e vc ainda não percebeu.

- Como assim!? Vc sabe quem ele é!?

- Não...

- Tá mentindo! Fala, Vincenzo! Estamos correndo riscos!? - Apoiando o cotovelo no sofá, ele descansa sua cabeça na mão direita enquanto argumenta num tom sombrio.

- Seus objetivos são outros. Até alcançá-los, não fará mal a vcs. Ele não é totalmente mau, Dess. Ele procura por paz...

- Vc parece conhecê-lo desde sempre.

- Desde que eu cruzei seu caminho e conheci vc e, por vc, me apaixonei perdidamente. - Sufoco um soluço diante de seu olhar insano. - Devo confessar que não agi bem e...

- E...???



- Deixa pra lá! Não quero estragar essa noite com esse assunto. Dança comigo?

- Putz! Vc é louco! - Jogo minhas costas contra o sofá. Deixo a cabeça tombar para trás, gargalhando histericamente até suspirar. Ergo a cabeça, encarando seu olhar incisivo quando, num tom de voz soturno, ordeno. - Me diz tudo. Eu sei que vc quer me esconder o que já sei. Vc vai sumir pra me proteger. Pra proteger Antoine. Mas não faz sentido. Quem é Ga'al? Se ele está entre nós, porque não o afasta de mim!? Ele me feriu por diversas vezes e vc o deixa livre!? Que porra de exorcista é vc!?

- Calma, Dess.

- Não! Eu não posso ficar calma! Vc fala como se soubesse de tudo! De toda a trama de minha vida e me pede pra dançar!? Não faz sentido algum!

- Não precisa fazer sentido. - Defende-se ele, sorrindo. - A história é longa, Dess. 

- Eu tenho tempo de sobra! Pode contar! 

- Agora não.

- Tira esse sorriso estúpido do seu rosto, Vincenzo! A vida de Antoine corre perigo! Se não for por mim, ao menos, por ela! Me conta!

- Dess, vc tá com sono.

- Não se atreva a me tratar como criança! - Com a mão no gargalo, ergo a garrafa de vinho, num gesto ameaçador. Inflando as narinas, volto a ordenar num desespero. - Por Antoine, conta tudo!

- Dess, escuta minha voz e se acalma. - Pede-me ele com suas mãos em meus punhos. - Ele não vai fazer mal a vcs. Eu estarei por perto.

- Eu...- Inspiro profundamente, soltando o ar dos pulmões pela boca semiaberta. Minha visão embaça enquanto pisco repetidas vezes. - Vc tá fazendo...de novo.

- O quê?

- Hipnose...

- Não, Dess. Eu tô tentando te acalmar. Falei demais. Me perdoa.

- Não. - Sussurro, de olhos fechados. - Eu não vou te perdoar quando partir novamente. Com quem lutou por minha causa, Vincenzo? Como vc poderia saber que eu abandonaria minha vida como prostituta?

- Não pensa tanto, Dess. 

- Não me trate como burra!

- Vc não é burra. Vc é chata. Fala demais.

- Vc falou demais, Vincenzo. Eu ouvi. Para de rir, Vincenzo. Isso é irritante. Vc é lindo, mas é bobo. Não me leva a sério.

- Já parei...- Diz ele, voltando à seriedade. Acariciando meus cabelos, ele me observa atentamente enquanto resmungo.

- Vc brinca comigo, Vincenzo. Isso é feio. É mau.

- Eu sei, meu anjo. 

- Eu ouvi o que disse sobre alguém com quem vc brigou.

- Eu sei. Mas vai se esquecer.

- Não se atreva a fazer de novo!

- O quê!?

- Filho da puta! Não me toca!

- Eu não vou. Escuta a minha voz, Dess. - Instintivamente, fecho os olhos pesados. - Estarei por perto...sempre.

- Sempre?

- Sim. Abra os olhos e pisque por três vezes. - Eu o obedeço, em silêncio. Faço uma careta enquanto tento me lembrar do que estávamos falando. As asas escuras...os gritos...- Dess!

- Oi.

- Vc tá bêbada.

- Não. - Engulo o que resta do vinho, no gargalo,  quando afirmo, em dúvida. - Eu tô arrasada. Irritada. Vc precisa...me...falar...

- O quê?

- Sei lá. Do que estávamos falando?

- Do quanto vc gosta de dançar comigo.

- Mentira...- Exalo. 

Erguendo meu corpo do tapete, com seus braços em minhas axilas, ele me faz deitar no sofá. Ajoelhado ao meu lado, ele beija minha testa, toca minha orelha e confessa. 

- Se eu me afastar, será para poupar vcs duas de dores maiores. Eu ainda não estou livre dele. - Revirando os olhos, elevo a perna direita e, soltando o ar pela boca, pergunto.

- Dele quem, Vincenzo? Lúcifer não é tão mau quanto parece. É sério! Por que o susto? Vc, de fato, achou que eu me esqueceria da história do pacto? 

- Não fala disso. Eu vou embora agora. - Ameaça ele enquanto eu o puxo pela gola da camisa em malha. - Me solta, Dess. 

- Não. Vc fica. Não vá antes de me dizer o que tá rolando. Eu não quero que suma. A gente ainda pode ser feliz, amor...

- Amor? - Um brilho em seu olhar e eu me desmancho. - Desde quando começou a me chamar de 'amor', Dess? - Apoiando meu tronco nos cotovelos, admito.

- Desde que descobri que ainda te amo e nunca vou deixar de te amar apesar de vc se comportar como um crápula. E eu ainda não sei de onde vem tanto amor.

- É por vcs que eu preciso ir. Ele disse que machucaria aqueles que amo. Ele levou minha mãe e, agora, quer levar vcs.

- Pelo amooorrr de Jesus! - Ergo-me do sofá, meio que tonta. Fixo meu olhar em seu cenho carregado enquanto ele se joga no lugar de onde acabo de sair quando refuto. - Isso é inaceitável! Que tipo de padre vc é!?

- Fui...- Interrompe-me ele. - Eu já não sou mais. Na verdade...

- Que tipo de padre é esse que não acredita que Deus é maior do que tudo? Cara! Quem 'leva' é Deus! Quem decide a hora e a maneira de como vamos morrer é Deus! Tô errada?

- Não. - Assente ele, desnorteado. - Mas não posso arriscar. Além disso, estou muito longe d'Ele... - Num impulso, salto sobre Vincenzo, apoiando meus joelhos no sofá. Agarro-me ao seu pescoço, recostando minha testa à sua quando suplico.

- Fica comigo. Eu não vou conseguir ser uma nova pessoa sem a tua força. Sem a tua ajuda moral.

- Ele vai te perseguir, Dess. Vai assustar Antoine e eu não vou me perdoar se algo acontecer a vcs.

- Vc não teve culpa pela morte de sua mãe, idiota. Ela morreu num acidente de carro, após o exorcismo e, pelo que eu vi, ela está em paz.

- Vc a viu? 

- Putz. Falei demais...

- Quando?

- Agora. Ela é linda e sorri pra vc.




- Ela ela ela tá aqui!? Onde!?- Sensibilizado, ele olha ao redor. Sem conseguir conter as lágrimas, ele a procura quando o abraço com força. Ele me aperta em seus braços, escondendo seu rosto em meu ombro onde sussurra. - Como ela está?

- Feliz e linda. - Respondo enquanto sinto seu coração bater contra o meu. Não quero sair de seu abraço quando a vejo desaparecer. "Fique", imploro mentalmente. "Eu voltarei", responde-me ela antes de partir. "Mantenha os olhos bem abertos". Vincenzo me sacode quando, enfim, eu o encaro e volto a mentir. - Ela tá bem. Tá preocupada com vc. Aposto que ela quer que fique comigo. Com Antoine.

- Sei...- Ronrona ele. - Tem certeza de que não é uma conclusão sua? 

- Pode ser. Mas ela não quer que desista de viver por causa de Lúcifer e desse pacto sem fundamento entre vcs dois. Vincenzo...- Comprimo seu rosto com minhas mãos e, ainda tonta e carente, insisto. - Fica comigo. Vamos enfrentar isso juntos?

Parecendo pensar no assunto, ele permanece em silêncio. 

- Fala alguma coisa!

- Dança comigo, Dess?

- Puta que pariu. - Suspiro, desanimada. Jogando-me de volta ao sofá, concluo. - Vc não vai tentar. - Sentado ao meu lado, ele esconde o rosto com as mãos e murmura.

- Eu só quero aproveitar esse momento de paz. É pedir demais?

- E eu quero saber quem é essa vaca de Morgana!

Impactado, expressando assombro, ele recua.

- De onde conhece esse nome?

- Vc me disse. Aiden me disse. Todo mundo a conhece exceto eu. - Retruco, calmamente. - E por que Lúcifer disse que ainda vou sofrer muito?

- Não sei, Dess. - Ainda afastado, ele questiona, incrédulo. - Quando ele te disse isso!? 

- Sei lá. - Dou de ombros, elevando os olhos ao teto. - Não me lembro. De algum sonho?

- Esquece isso, Dess.

- Não dá! - Agarrando-me pelos braços, ele mente. 

- Eu não serei o motivo desse sofrimento.

- Mas também não quer estar aqui quando eu estiver sofrendo, sozinha, sem o homem da minha vida me apoiando.

- Não, Dess. - Pensativo, ele argumenta. - Ele não vai fazer mal a vcs se eu estiver longe. Ele se apresenta de maneira agradável e, depois, cobra seu preço. Cuidado com Antoine. - Cacete! Ela fala com o 'Tio Lu'! - Ele é astuto com crianças.

- Cara, isso é papo de maluco. Eu não admito que vc saia da minha vida por esse motivo. É ridículo! Patético!

- Acredita em mim. Não é a primeira vez que ele faz isso. Eu o conheço muito bem. Bem até demais...

- Só uma pergunta. - Soluço, erguendo a garrafa vazia.  - Vc, como psiquiatra, não deveria ter um acompanhamento psicológico?

- Dess, eu não tô surtando! - Revolta-se ele. - Vc o viu! Vc sabe que Antoine tem um tio chamado 'Lu'! - Levantando-me do sofá, num salto, advirto.

- Parou! - Aterrorizada, levo as mãos aos ouvidos e alerto. - Não quero ouvir isso! Não quero! - Contrariando minha vontade, ele continua a falar e a me deixar insegura.

- Quem vc acha que conversa com ela à noite!? Por que vc acha que comecei a me intrometer entre eles!? Eu a ouvia conversando com ele, Dess! Eu temo por ela! É inocente e cheia de poderes! Do tipo que ele gosta! - Andando de um lado ao outro, choramingo.

- Não fala assim! Isso dá medo! 'Seu Deus' não pode nos proteger?

- O 'nosso Deus' nos protege desde que não deixemos brechas para o Mal entrar...- Ajoelho-me entre suas pernas e, assustada, confesso.

- Eu tô tentando mudar exatamente por isso, Vincenzo!

- Não fica assim! Eu não tô te culpando! Não se trata de sexo! Eu me refiro à sua falta de temor por Lúcifer! Eu o conheço! Minha mãe o conhece! - Assevera Vincenzo lançando um olhar assustado ao redor. - Pergunte a ela, Dess! Pergunta!

- Fica calmo, amor. - Eu o abraço, tremendo de medo. - Ela não tá aqui. Não mais...- De súbito, ele se ergue. Aflita, eu me ergo, em seguida. Diante de seus olhos atônitos, leio seus lábios.

- Eu preciso ver Antoine!

- Eu também!

Sigo Vincenzo até o quarto onde tenho dormido com Antoine. Sufoco um grito assim que abro a porta e a vejo sentada na cama, sorrindo para a parede. 

- Filha? - Sorrio contendo meu nervosismo. - Por que tá acordada?

- Não estamos a sós. - Avisa Vincenzo, tomando-a em seus braços. - Vc sente isso?

- Sim. O que eu faço?

- Tio, por que tá com medo?

- Porque eu te amo, pirralha. Eu vou te proteger de tudo e de todos. - Ele abraça Antoine com tanto amor e ternura que quase não percebo a presença insidiosa no canto do quarto. Agachado, com seu terno preto alinhado, Lúcifer nos observa com um sorriso sarcástico no canto da boca. - Fica com ela, Dess. Eu preciso...- Vincenzo engole em seco. Sinto medo em suas feições. Suas mãos frias o entregam. - Preciso resolver algo antes de...

- Partir? - Insinuo.



- Eu te disse que ele iria te fazer sofrer. Não disse, meu bem? E isso é somente o início.

- Cala a boca!

- Vincenzo, se controla. Antoine tá...

- Por que o tio Vincenzo e o tio Lu estão brigando, mamãe?

- Não estamos. - Mente Vincenzo tomando-a dos meus braços. - Que tal a gente dormir juntos hoje?

- Vc, a mamãe e eu!?

- Sim! - Exulta Vincenzo, francamente desnorteado, procurando por Lúcifer com os olhos estatelados. Vincenzo não o enxerga, somente o ouve. Lúcifer esbarra em Vincenzo propositadamente e se diverte com seu nervosismo quando Vincenzo afirma, amedrontado. - Nós três na mesma cama! Que tal!?

- Isso é medo, bonitão?

- Vá embora!

- Não até vc dizer a verdade. - Num tom irônico, Lúcifer proclama. - "E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará". Não foi isso o que disse um dos seguidores de J. C.?

- CALA A BOCA, LÚCIFER! - Berra Vincenzo, totalmente descontrolado. Antoine, em seu colo, se assusta. Estendo os braços a fim de tomá-la de Vincenzo quando ele recua e, com a voz trêmula, implora. - Deixe-as em paz!

- Assim como vc me deixou?

- Para de provocar, 'Tio Lu'. - Ordeno, protegendo-os com meu corpo. - Vc não é bem-vindo em minha casa. Vá embora.

- Pelo que sei, essa casa não é sua. É do grandalhão que te protege dos perigos porque seu homem tem um estranho hábito de sumir e reaparecer repentinamente. Típico de covardes. - Sentindo a respiração aflita de Vincenzo atrás de mim, dirijo-me a ele sem desviar meus olhos de Lúcifer.

- Não escute o que ele diz, amor. Ele quer que vc se descontrole. Não vale a pena.

- Hmmmmm. - Ironiza Lúcifer exageradamente. - "Amor"? Que coisa tosca! Uma pena que só terão essa noite como lembrança. Lembrança de como ele te usou e te largou...novamente.

- ME DEIXA EM PAZ! - Grita Vincenzo enquanto Lúcifer gargalha. Sob os protestos de Vincenzo, eu o empurro para fora do quarto com Antoine em seus braços e, subitamente, tranco a porta, por dentro, à chave. Antoine chama por mim enquanto Vincenzo, aos chutes, tenta arrombar a porta. Caminho, lentamente, em direção ao 'Anjo Caído' e, sem saber o que sentir, peço.

- Por favor, deixe ele em paz. Eu preciso dele. Antoine precisa dele. Libere-o do pacto. Leve a mim quando o momento chegar. Leve a mim. Vc não deseja aquilo que ele ama? Não quer machucar seu coração? Leve a mim, mas, somente quando a minha hora chegar. Até lá, deixe-nos em paz. Feito? - Abrindo um sorriso diabólico que me faz tremer por dentro, ele divaga.

- Vou pensar, baby. Vou pensar, mas não é bem assim  'que a banda toca'

- Não entendi.

- Não é para entender.

- Seja direto!

-Já pensou no porquê do bonitão ter tanto medo de mim? 

- Não. - Assumo, insegura. - O que fez a ele?

- Segundo ele, matei sua mãe. Mas é mentira. Vc sabe...

- Sei. Vc não tem poderes pra isso.

- Ainda não...- Ironiza Lúcifer andando ao meu redor. - Quem sabe um dia? Até lá, satisfaço-me em assustar seu homem.

- Por quê!? Qual a graça!?

- Já foi traído por um grande amigo!? Uma amiga!?

- Não entendi. - Refuto, incomodada com sua proximidade. Ele cheira a enxofre e Patchouli. - O que traição tem a ver com o assunto? Vc tá se referindo a Sweet?

- Também. - Diz ele, sorrindo. - Assim como vc, odeio traidores.

- Vincenzo te traiu!?

- Eu não disse isso...

- Insinuou! - Rebato, afastando-me dele. - Vc e Vincenzo já foram amigos!?

- Mais do que isso, baby.

- Me conte o que sabe!

- Não posso. - Seus olhos escuros se elevam ao teto quando se justifica. - Ele não deixa.

- Ele!? Deus!?

- Esperta...- Diz ele enquanto pisca. -  É por isso que gosto de vc. Astuta e safadinha.

- Para de me rodear! Tá me deixando tonta!

- Cuidado. Aqueles imensos olhos azuis têm poder.

- Do que tá falando!?

- Anjos podem ser rudes, meu bem. Eles machucam corações.

- Para de falar em metáforas! Vá direto ao ponto! Por que fala com minha filha!?

- Ela é um encanto...- Sussurra Lúcifer aspirando a pele de minha nuca. - Assim como vc já foi. Antes de se perder no 'caminho'.

- Desde quando me conhece?

- Muitas perguntas, baby. Muitas perguntas.

- Me dê uma única resposta! Por favor!

- Não. Eu não farei mal a Antoine. Fique tranquila. Ela é preciosa demais. Dela, dependem muitas vidas.

- Como assim!? Fala tudo! Não me deixa nervosa!

- Meu bem, essa é a minha função aqui na Terra.  Deixar os humanos nervosos, fracos, dispostos a tudo por fama, sucesso...amor.

- Deixa Vincenzo em paz!

- Ele ainda me deve desculpas. - Rosna o 'Príncipe da Trevas'. - Tenho meus direitos.

- Ele tem os dele!

- Bobinha. Vc ainda gosta dele, mesmo depois de tudo.

- Eu não vou te ouvir! - Retruco de olhos fechados. - Vc é falso!

- Não ouça. - Rebate-me ele, dando de ombros. - Melhor assim. Continue a ser a palerma que sempre foi.

- Se afasta da minha filha! - Ordeno, abrindo os olhos úmidos. - Chega de conversar com ela! Eu te proíbo!

- Com que direito?



- Com o direito de quem possui o maior amor que existe na Terra: o amor de mãe. Eu te proíbo de falar com a minha filha em sonhos ou aqui, no mundo dos vivos. Entendeu?

- Ok. Eu sei esperar. Eu tenho a Eternidade. Não se lembra disso? Até lá, eu posso observar...de longe, o desenrolar dessa história interessante. Agora, abra a porta antes que esse idiota te dê mais prejuízos. - Um rápido olhar para a porta e eu o perco de vista. Lúcifer se foi. Talvez, para sempre. Talvez não...

- Dess! Vc tá bem!? - Pergunta-me Vincenzo, suado, atormentado. É bom vê-lo assim...por mim. Ele teme me perder? - É claro que sim, sua boba. - Confessa ele, roçando o nariz em minha bochecha. Em seguida, ele mente outra vez. - Nada do que ele fala é verdade. Eu não vou deixar que ele te faça mal.

- Ele quem, tio? 

- Ninguém, meu anjo. - De volta ao chão, Antoine nos faz tremer com sua ingenuidade.

- O 'tio Lu' pode dormir com a gente também?

- Não, filha.

- Ele não é bacana, Antoine. - Assevera Vincenzo, ajoelhado, olhando-a nos olhos enquanto me sinto uma péssima mãe, pela segunda vez. Por que não a afastei de Lúcifer antes? Por que somente agora eu o vejo como ele realmente é? Ele não é tão inofensivo quanto pensei. Por que Vincenzo o teme tanto? Eles já foram amigos? Que porra é essa!? - Vc não pode mais conversar com ele. Promete? 

- Por que tá tremendo, tio? Tá com frio?

- Sim. - Mente Vincenzo. Ele treme de medo. - Promete, pirralha? 

- Prometo, tio. - Diz ela em meu colo. Beijo sua bochecha amargando um sentimento de culpa. Ela me devolve um beijo e me pede para não chorar quando declara. - Eu tô com fome, mãe. - Sorrio olhando em seus olhos inocentes. Os braços de Vincenzo nos envolve enquanto sinto o calor de seu corpo. "Vc é uma ótima mãe, Dess", sussurra-me ele antes de, num esforço hercúleo, imprimir alegria na voz ao indagar. 

- Vamos tomar sorvete!?

- Agora!? - Antoine arregala seus lindos olhinhos surpresos. - Mamãe! A gente pode sair agora!? 

- Po po pode...- Respondo, em dúvida. Devo temer Vincenzo!? Ele está ouvindo o que penso!? Por que não se defende!? - Já passam das onze. Será que existe alguma sorveteria aberta a essa hora, aqui, nesse vilarejo?

- Tem sim! - Afirma Vincenzo com Antoine em seu colo. - Pode apostar que tem! Traga suas coisas...

- Que coisas!?

- Suas coisas, Dess. Suas coisas. - Resmunga ele enquanto segue até a porta, carregando Antoine que vibra em seus braços. Talvez ele não nos deixe. Quem sabe? - Suas coisas, Dess! - Grita-me ele ao volante do meu carro. Um beijo casto em meus lábios e eu me sento ao seu lado.

- E a sua moto? Vai deixar aqui?

- Quando eu voltar, eu a pego. - Diante de minha expressão de incredulidade, ele afirma.

- Eu vou voltar, Dess. Juro.

- Sério?

- Sim. 

Exalo, feliz.




Da janela do meu carro, exulto, ao reconhecer o lugar onde fomos felizes...juntos...por uma semana.

- Vincenzo! O que a gente tá fazendo aqui!? É a sua casa!

- Mais conhecida como 'Sorveteria do Tio Vincenzo'!

Gargalhando, Antoine uiva de contentamento, no banco traseiro. 

- Woooohooo!


Meu coração se comprime quando penso que toda essa alegria pode acabar a 
qualquer momento.

Antoine não merece sofrer.



Estamos deitados na mesma cama, Vincenzo e eu, quando sua mão se entrelaça à minha, acima da cabeça de Antoine. Ele se esforça em me fazer acreditar que estamos mais unidos do que nunca, mas...eu não consigo acreditar.

- Porque é boba. - Cochicha ele. - Estamos unidos como antes. Como sempre.

- Não. - Rebato, num tom baixo. - E não começa com esse papinho de 'antes', 'sempre'!

- Fica quieta, Dess. Vai acordar nossa filha.

- Ela é minha. - Refuto sentindo borboletas batendo suas estúpidas asinhas em meu estômago. - Para de me fazer acreditar no que não existe.

- Vc sabe que existe, tanto, que acredita.

- Vincenzo!

- Mamãe, eu quero dormir. - Resmunga Antoine de olhos fechados. - Não briga com meu tio...

- Dormiu. - Constata Vincenzo abrindo um sorriso cafajeste. Olhando para a janela fechada, agradeço por estarmos mergulhados na escuridão de seu quarto de hóspedes. Não quero que ele me veja corar. Desde quando uma puta se dá ao luxo de 'corar'?

- Vc não é mais uma pu...- Interrompo-o com um 'Shhh' exasperado. - Ih! Foi mal! - Concorda ele, escondendo seu riso gostoso debaixo do travesseiro que deve ter custado o olho do meu c...- Shhh! Sem palavrões! Nossa filha quer dormir...Dess. - Jesus, Maria e José! É muita tentação encarar seus olhos devassos e não poder fazer nada! - Por que não?

- Não leia meus pensamentos! Não agora! Vc leu meus pensamentos antes!?

- Do que tá falando?

- Da conversa que tive com...

- Shhh! - Interrompe-me ele, voltando a gargalhar debaixo do travesseiro. 

- Vc sabe! - Cochicho. - Ele me disse algumas coisas sobre...

- Shhh!!!

- Não faz 'Shhh' pra mim! - Irrito-me. - Vincenzo! Para de rir!

- Mamãe! - Protesta Antoine, bocejando. - Amanhã eu quero correr na areia. Eu preciso descansar... - Rimos juntos de Antoine que abraça Vincenzo, triunfante. De olhinhos fechados, ela balbucia. - Tio, dá um beijo nela. Só assim ela vai ficar quieta.

- De onde ela tirou essa!? - Erguendo meu tronco, pergunto entre abismada, encantada e indignada. - Ela tem seis anos mesmo!?

- Acho que não! - Erguendo-se da cama, cuidadosamente, ele a circula e vem em minha direção. Finjo observar os pingos da chuva contra o vidro da janela quando ele me ronrona um 'Vem comigo, amor'. Deus! Isso está acontecendo ou eu estou tendo mais uma de minhas alucinações? - Então, estamos tendo uma alucinação coletiva. Vem! - Deixo-me levar por sua mão quente após beijar a testa de minha filha. - Dess, aqui ela tá protegida. Fica tranquila.

- Ela sim. Eu não. - Encosto a porta do quarto enquanto ele me aguarda no corredor.

- Não entendi. - Diz ele puxando-me contra si, suas mãos em minhas costas. Nossos lábios estão absurdamente próximos quando ele questiona. - Do que tem medo? 

- De vc, Vincenzo. Da dor que vc vai me causar e de tudo o que me esconde.

- Não pensa nisso. Vou dar um jeito em tudo.

- Eu posso resolver essa coisa entre vc e aquela criatura.

- Caralho, Dess! O que vc fez!? O que ficou fazendo do outro lado da porta!? Por que não abriu logo!?

- Não se exalte. - Peço, assustada. - Eu tive uma curta conversa com ele e, algo me diz que ele não vai mais te importunar. Vc não nos ouviu!?

- Não consegui!

- Por que não!?

- Não sei! Só sei que não consegui!

- Nada!? Nadinha!? - Questiono, incrédula. - Não minta pra mim, Vincenzo!

- O que fez, Dess???

- Nada. - Minto. - Só pedi pra ele se afastar de todos nós.

- Ele não recebe ordens de humanos.

- Talvez eu seja uma humana especial. - Recuo, rodopiando pela sala de estar. Estaco diante da lareira acesa. O fogo crepitante me faz ajoelhar e observar sua dança hipnótica. 



- Se afasta, amor.

- Por quê?

- Vc tem medo do fogo...- De pé, ao meu lado, ele me estende seu braço e me afasta da lareira. Curiosa e incomodada, questiono.

- Quem te disse isso?

- Vc não se lembra, né? Ainda bem...- Reviro os olhos e ironizo.

- Ai! Mais uma de minhas muitas vidas!? - Aborrecido, ele me dá as costas e resmunga.

- Esquece. - Temendo quebrar o clima romântico, desculpo-me.

- Foi mal...

- Deixa pra lá. - Dando de ombro, ele caminha até sua coleção de discos em vinil e se demora em escolher um dentre muitos, diante da estante. Exulta ao encontrar algo que o faz sorrir. - Eu amo essa canção e aposto que vc também.

- Mais uma de nossas inúmeras canções sem uma história de amor?

- Não. - Atento ao disco rodando na vitrola, ele curva seu tronco, posicionando a agulha na beirada do vinil. O ruído característico e sublime desse encontro torna tudo ainda mais especial. Vindo em minha direção, ele esbanja seu charme ao declarar em sua voz rouca. - Nossa história tem muitas canções. Uma pena vc ter se esquecido de quase todas.

- Aaah...perdão por não conseguir me lembrar de todas as minhas vidas desde o 'Período Paleolítico'.

- Vc é boba, Dess. - Atesta ele com seu polegar em meu queixo. Ao fundo, Jimmy Helms canta "Gonna make you an offer you can't refuse" enquanto inicio um choro patético, sentindo que o momento de nossa despedida se aproxima.

- Vamos lutar juntos. - Insisto. - Não nos deixe por causa dele. Me conta a verdade, Vincenzo. Nada pode ser tão terrível que me faça parar de te amar.

- Vem...- Estende-me ele o braço direito. Carinho, tristeza e desejo se mesclam em seu rosto, em seus olhos ainda mais claros. - Não pensa em nada. Só dança...em silêncio.

- Tenho outra opção?

- Não.




- Essa música tem gosto de despedida. - Insisto recostando meu rosto em seu peito. - Eu vou te odiar, Vincenzo, se vc me largar.

- Fica quieta, Dess. Dança comigo, amor. Meu único e eterno amor. - Enquanto dançamos, resmungo.

- Odeio quando fala assim.

- Por quê?

- Vincenzo, vc tem sérios problemas mentais. Parece que se esquece do passado com enorme facilidade.

- O que eu mais guardo comigo é o nosso passado, Dess. Eu 'caí' por vc...

- Caiu de onde, Vincenzo!? - Ameaço olhar em seus olhos. Com sua mão em minha cabeça, ele me força a continuar recostada em seu peito quando, incomodada, repito. - Caiu de onde, Vincenzo!?

- Maneira de dizer e...- Ele faz uma breve pausa, beijando minha testa antes de declarar. - Eu jamais me esquecerei do nosso passado, Dess.

- Eu tô falando do nosso passado recente, idiota. De como foi cruel comigo desde que nos conhecemos naquela cafeteria.

- Nos conhecemos muito antes...- Seus olhos fixam o teto enquanto percebo que ele está há séculos de distância. Como eu pude amar um homem louco assim!? Melhor abstrair. Com certeza! É melhor abstrair, estúpida! Abstraia tudo o que te faz duvidar dele! Shhh!!! Não estrague o meu momento! - Sinto saudades, Dess.

- Tenho saudades de Giulia. - Desconverso. Minha voz embarga. Vincenzo me abraça forte enquanto seguro o choro. - Ela poderia estar aqui, Vincenzo, se eu não tivesse sido tão arrogante com aquele monstro.

- Vc mesma disse, Dess. Ele já era um monstro e, monstros cometem atrocidades por serem monstros. A culpa nunca foi sua.

- Por que ela me aparece em sonhos?

- Porque, talvez, ela sinta a sua falta também.

- Por que, pela primeira vez, estamos conversando como adultos equilibrados? - Minto. Ele é completamente insano. - Por que tá sorrindo?

- Porque vc tá crescendo. - Responde-me ele, num leve sarcasmo. - Vc tá diferente. Antoine operou milagres em vc. 

- E vc sempre teve um comportamento irrepreensível, né? 

- Esquece isso, Dess.

- Qual seria o seu transtorno? 

- NENHUM!

- AHAM! Atingi seu ponto fraco! Um psiquiatra exorcista com transtornos mentais! Ou seriam de personalidade? 

- Nenhum, Dess. Eu sou normal.

- Super!!! - Continuamos a dançar em silêncio até que eu o quebre e, eufórica, diga o que acabei de me lembrar. - Vc é um 'TSS'! É isso! Transtorno de Sadismo Sexual!

- Eu já te espanquei alguma vez, Dess?

- A mim, não. Mas Sweet disse que...

- Sweet é uma mentirosa compulsiva. É capaz de tudo para atingir seus objetivos que, em sua maioria, são torpes.

- Nossa! Como vc a conhece!

- Não gosto de ironia. 

- E eu detesto mentiras! Como a conhece tanto!?

- Eu não a conheço! Ela mentiu naquela noite, na casa do João!

- Por que se escondeu de Aiden na casa do João?

- Porque ele iria me matar.

- Por que diabos Aiden te mataria!?

- Dess...- Resmunga ele. - Fica caladinha. Por favor.

- Vincenzo! - Protesto. Mantendo-me junto ao seu corpo, ele ordena.

- Não fala nada. Só dança. - Conto, mentalmente, até dez quando volto a falar.

- Vc e ela já...? - Revirando os olhos, ele bufa.

- Não há nada entre nós dois.

- Mas já rolou. Não minta. - De olhos fechados, ele cantarola a canção. Fragilizada, perco meus dons. As imagens difusas de Sweet e Vincenzo vem e vão como em um pesadelo. Quero ir mais fundo nas visões quando ele me desconecta de tudo e beija meu pescoço. - Golpe baixo. - Sussurro. - Eu sei que se encontraram, Vincenzo. Sei que Lúcifer me disse algo sobre vcs dois...juntos.

- Não ouça o 'Pai das Mentiras'. Ele semeia a discórdia e, tudo o que desejo nesse momento e estar com vc. De corpo e alma.

- Mais corpo do que alma? - Gracejo.

- Safada...

- Me fala a verdade, Vincenzo. 

- Eu falo. Vc ainda tá bêbada.

- Não estou! Não depois do sorvete de chocolate!

- Vc ama chocolate. - Suspira ele. - Sempre amou. Foi assim que te conquistei da penúltima vez...

- Quando!? - Protesto, sarcástica. - Eu tomava um cappuccino antes de vc entrar na cafeteria, atrás de mim!

- Eu não estava atrás de vc. Eu entrei e te encontrei.

- Mentira! - Exclamo enquanto rimos juntos. - Vc já confessou que me perseguia, panaca!

- Pois é. Eu me esqueci...

- Fica parado. - Exalo. - Deixa eu guardar esse sorriso...pra mim.

- Dess...para com isso.

- Seu verme...

- Vc é linda!



- Não desconversa! Vc e Sweet! Como vou saber se não treparam quando vc sempre dá um jeito de me hipnotizar e me fazer esquecer de tudo? - Encaro Vincenzo forçando-o a parar de dançar. - Como vou saber se vc me diz a verdade?

- Meu amor por vc é real, Dess. Olha nos meus olhos. O que eles dizem? - Que vc é louco? Perigoso? - Dess. Olha pra mim.

- Não. - Desisto, recostando-me, de volta ao seu peitoral. - Não gosto de olhar nos seus olhos. Eu me perco neles...

- Sempre foi assim.

- Sempre?

- Sim. Eu sempre te acho, amor.

- E a gente se casa?

- Sim. - Seu sorriso morre num suspiro. - E depois eu te perco...

- Como? - Sua expressão de amargura se modifica bruscamente quando responde, meio que eufórico.

- Deixa pra lá. Hoje eu tô nostálgico. O que mais minha mãe te falou?

- Que vc desconversa sempre que o assunto fica sério.

- É bem típico dela...- Diz ele puxando-me para si, voltando a me conduzir antes da música findar. - Vcs duas se dariam bem.

- Eu sei. Ela é tão inteligente quanto eu e gosta de dançar.

- Ela era linda, assim como vc...

- Por que Aiden quer te matar?

- Porra, Dess!

- Diz!

- Eu disse num sentido figurado, pateta. Vc leva tudo a sério. - Diz ele, sorrindo...novamente. - Vc se amarra nos meus sorrisos, né? - Enrubesço. - Que coisa fofa!

- VINCENZO!!!

- Fala baixo, Dess. - Pede-me ele rindo e se esquivando dos meus tapas. - Nossa filha vai acordar.



Imobilizo-me. 

Meu coração quer sair pela boca quando peço num fio de voz.

- Repete...

- Nossa filha?

- É...

- Nossa filha, Dess. Antoine é nossa filha.

- Não me faz sofrer. - Imploro.

- Não vou. Eu amo vcs.

- Antoine não merece sofrer. Não tem pai, nem mãe. Ela se apegou a vc, Vincenzo. Se vc sumir...

- Antoine tem pai e mãe, Dess. Nós a encontramos. Vc a encontrou naquela praça. Após séculos, estamos juntos...amor.

- Não fala assim. É cruel demais.

- Te amar é cruel demais, Dess. - Um súbito abraço e ele me confessa num sussurro. - Vc não faz ideia do quanto sofri até chegar aqui. Nós três...juntos novamente.

- Do que tá falando, Vincenzo? - Ele me prende em seu abraço enquanto responde.

- De nada, Dess. De nada.

- De onde caiu? Quem é vc!? Por que eu tenho medo de saber quem vc é, de verdade!?

- Para de falar, Dess. Vai ferrar com a nossa noite, amor...

- Vincenzo! Fala a verdade! - Peço abraçada a ele. - Como sabia da festa onde eu fui violentada!? 

- Não fala disso. - Pede-me ele, ansioso. - Já passou.

- Não. Eu não consigo me lembrar de como fui parar lá.

- É melhor assim...- Confusa e irritada, eu o empurro.

- NÃO É, VINCENZO! TEM UM BURACO NO MEU CÉREBRO! UMA IMENSA BRECHA EM MINHAS RECORDAÇÕES! E PARA DE ME FAZER DANÇAR! EU PRECISO DA VERDADE! - Ele se afasta um pouco e, erguendo os braços na defensiva, promete.

- Vou contar tudo. 

- Quando?

- Depois.

- De quê?

- De te amar novamente.

- Não me deixa.

- Sempre estarei por perto.

- Quem é vc? Por que não gosta de Aiden?

- Shhh...- Seus lábios tocam os meus quando me pede. - Fica quieta. Por favor.

- Não vou suportar ficar longe de vc.

- Quando precisar, me chama...

- Não vai, Vincenzo. Por favor. Eu tô com medo.

- Não fica. Eu tô aqui. Eu sempre estive. Eu sempre estarei.

- Não vai, amor.

- Não vou.

- Fica. 

Suspiro antes de beijar sua boca e me entregar a ele, acreditando que ele permaneceria ao meu lado.



Ainda tenho medo de abrir o envelope e me decepcionar com o que estiver escrito no bilhete. Tranco-me no banheiro da casa de Doc e, apoiando minhas mãos sobre a pia, encaro meu reflexo. 

- Estúpida. - Rosno de ódio. - Vc acreditou nele novamente!? Vc merece! 

Abro a torneira e choro copiosamente enquanto a água escorre pelo ralo. Antoine bate à porta. Engulo meu choro porque preciso ser forte e hábil ao inventar alguma mentira e responder à sua pergunta inocente.

- Cadê o tio, mamãe!?

Enxugo meu rosto com a mesma toalha onde Vincenzo enxugou seu rosto enquanto me olhava com um brilho apaixonado nos olhos, em nossa última noite. Seu cheirinho de maçã verde está impregnado no pano felpudo. Ao menos, ele não mentiu quando afirmou que retornaria à casa de Doc. Ele nos trouxe até aqui e fugiu, covardemente, levando a moto consigo.

Ainda consigo sentir o peso de seu corpo contra o meu. A maciez de seus cabelos sem corte entre meus dedos aflitos...sua boca...a língua.

Ele cumpriu o que prometera. Voltamos juntos até a casa de Doc onde nos deixara antes de partir, na manhã seguinte à nossa última noite quando estivemos absolutamente unidos em corpo e alma. Por que tudo precisa acabar? Trinco os dentes e rosno, abrindo a porta.

- Idiota. Vc merece sofrer.

- Eu, mãe!?

- Filha! - Desperto. - Não foi com vc, meu amor! - Meu único e eterno e verdadeiro amor. De joelhos, respondo à sua pergunta. - Eu não estou triste, filha. De onde tirou isso?

- A senhora tá chorando. - Constata ela, desolada. - O tio vai voltar, mamãe. Não chora.


- Não vou chorar, filha. - Prometo diante da grande lua amarelada. Sentada ao meu lado, no balanço em madeira no quintal de Doc, ela me abraça enquanto minto. - Eu não vou ficar triste, filha. Vai dar tudo certo.


- O céu parece com o teto do meu quarto, né mãe?

- Sim. - Respondo, angustiada. Até quando poderei pagar pela vida confortável que prometera a Antoine? Por que, apesar de ter sido abandonada por ele, novamente, ainda o amo com todo meu coração? Por que a imagem distorcida de asas gigantescas surgem em minha mente quando olho para o céu? - Essas são as estrelinhas do seu quarto, filha. Elas estão aqui e lá pra te protegerem de todo o Mal. Quando quiser conversar com alguém, converse comigo. Ok? Nunca mais converse com o 'Tio Lu'. Combinado?

- O 'Tio Lu' é mau? - Pergunta-me ela com os olhos fixos no céu deslumbrantemente estrelado. - Por que meu tio Vincenzo tem medo dele?

- Não sei, filha. - Respondo com o olhar distante. Minha mão está em sua cintura quando divago. - Tá aí uma coisa que eu gostaria de saber... - Abrindo um sorriso matreiro, ela confessa.

- Ela me disse que ele vai voltar quando tentar matar o dragão. Mas o dragão nunca morre... - Desperto, num desespero enquanto volto meus olhos estatelados a Antoine e pergunto.

- Quem vai voltar!? Que dragão!? Ela!? Com quem tem falado, filha!?

- Com a Dayse. - Aflita diante de sua calma, refuto.

- Bonecas não falam, filha! Qual o nome de quem fala através de sua boneca!

- Dayse. - Insiste ela enquanto a retiro do balanço num supetão. - Ai, mãe...- Choraminga Antoine em meu colo. Seus olhinhos estão marejados quando a beijo em sua bochecha e, inspirando e expirando profundamente, tento recuperar o meu frágil equilíbrio. - Doeu.

- Desculpa, filha. Diz pra mãe o nome da boneca que falou isso pra vc. E não me diga que é a Dayse. - Um outro sorriso matreiro e ela cochicha em meu ouvido. 

- Ela não quer que eu fale.

- É o 'tio Lu'? - Cochicho de volta. - Pode falar, filha. A mãe não vai se zangar.

- Não é não. É outra pessoa e ela tá zangada com a senhora. - Puta que pariu! Quanto mais eu rezo...- Ela não quer que eu fale que ela fala comigo.

Transtornada, eu a abraço com força enquanto um súbito vento frio nos envolve. Um pequeno ciclone de folhas secas se forma diante de nossos olhos perplexos.




Não há nuvens no céu. Nenhum indício de chuvas ou tempestades. Meus cabelos alvoroçados arrancam risos de Antoine que não enxerga perigo ao nosso redor. Um arrepio intenso percorre minha coluna vertebral quando, de súbito, corro em direção à porta de entrada da casa de Doc e, assim que chegamos à sala, eu a empurro, trancando-a à chave. Arfando, eu me recosto à porta ainda agarrada a Antoine que reclama.

- A senhora tá me esmagando, mãe.

- Perdão. - Peço enquanto a libero, de volta ao chão. Ainda pressentindo uma estranha presença entre nós, arfando, insisto. - O nome de quem fala através de Dayse.

- Mãe...

- O nome, Antoine! - Revirando os olhos, ela alerta.

- Ela vai ficar zangada.

- E eu já estou zangada! O nome dessa criatura que não tem o direito de invadir nossas vidas e atormentar a minha filha! - Grito, pateticamente, em meio à sala,  girando em meu entorno. - Qual o seu nome!? O que deseja com a minha filha!? Deixa a gente em paz! - Saio do meu êxtase quando Antoine puxa a barra de meu vestido e, com receio de olhar em direção ao sofá, sussurra algo me atinge em cheio. 

- Giulia. O nome dela é Giulia, mãe. - Recostada à parede, escorrego até o chão. Sentada, encolhida de medo, ouço Antoine explicar o que mais temia. - Ela disse que não vai embora até a senhora matar o monstro.

- Que monstro!? - Questiono, aterrorizada. - Qual o nome do monstro!?

Nada me deixaria preparada para ouvir o que Antoine revela, de maneira inocente.

- Ja Je...- Pressionando os olhinhos a fim de se lembrar do nome, ela se irrita consigo mesma quando, enfim, num grito eufórico, me destroça por dentro. - Jack! Jack Te Te Ta...

- Tequila.

- Isso, mãe! 'Jack Tequila' é nome de monstro?

- Sim. - Retorno, mentalmente, ao nosso cativeiro e, revendo as feições sinistras de Jack, sentindo repulsa, grito para que Giulia, onde quer que esteja, ouça. - Eu vou matar o monstro, Giulia! Por vc e por Antoine! Eu prometo! Enquanto isso, não machuque minha filha... - Minha voz embarga. Engolindo em seco, abraço Antoine e, num tom de voz quase inaudível, suplico. - Não machuca a minha filha, por favor. Eu sei que fui a culpada. Sei que vc sofreu por mim. Vc poderia estar viva...

- Mãe, não chora. - Pede-me Antoine enxugando minhas lágrimas amargas. A culpa me corrói por dentro. - Ela é legal, mãe.

- Ela não pode ficar aqui. - Penso alto. - Precisa encontrar a paz.

- Mãe. - Ignoro Antoine enquanto procuro por Giulia, olhando de um lado ao outro. - Eu te amo, Giulia. Eu te amava como filha. A filha que eu não consegui salvar. - Assumo entre soluços. - Eu juro. Eu vou te vingar. Fala comigo. Aparece!

- Mãe...

- Não tenha medo. - Peço, amedrontada. - Mamãe tá aqui.

- Mas...mãe...

- Pode aparecer, Giulia. Eu não tenho medo. - Minto.




- Mãe! Ela já foi!

- Foi!?

- Já! - Diz Antoine, tranquilamente. A tranquilidade dos que transitam entre dois mundos sem temer nada, em nenhum deles. - Mas ela disse que vai voltar.

- Vai!?

- Sim. Porque o monstro 'Jack' fica atrás dela. - Filho da puta miserável! 

- Eu vou acabar com ele. - Rosno. Onde está Vincenzo quando se precisa dele? Como eu vou encontrar Jack? Como exorcizar algo como Jack? Por onde anda Padre Pietro? Não. Eu não vou pedir nada a Ga'al! Nunca mais! - Por que tá rindo, filha?

- Ele é engraçado. - Um jato de adrenalina percorre minha corrente sanguínea quando, histérica, questiono.

- Quem!? Jack, o monstro, fala com vc também!?

- Não, mãe! - Afirma ela, rindo. - É meu outro tio. - Estirada sobre o piso frio da sala, solto o ar dos pulmões pela boca. Fecho os olhos. Berro contra a almofada jogada no chão. Conto até dez e, esforçando-me para não entrar em pânico, lanço outra pergunta.

- Antoine. Que tio é esse? Miguel? Me diz que é o Miguel!

- Não é não, mãe. - Puta que pariu. Puta que pariu. Tem alguém aí em cima que possa me ajudar? - Tá zangada comigo , mamãe?

- Nunca! - Levanto-me do chão e a ergo pelas axilas. Em meu colo, ela beija minhas bochechas e, numa euforia infantil, desconversa.

- Eu tô com fome. A gente 'podemos' comer pizza?

- A 'gente pode', filha. A gente pode. - Corrijo-a. Alegre, ela comemora.

- Pode!?

- Pode. - Desisto de explicar a correção. Não é hora para aulas de Português. Estou perto demais de surtar quando ela avisa. 

- Eu não vou contar o nome do meu tio, mãe. Ele disse que vai ser uma surpresa. - Meu coração se joga contra as paredes da cavidade torácica enquanto caminho em direção à cozinha. Eu não quero ouvir. Eu não quero me preocupar com mais um dos milhares de tios que rondam a minha filha. Não hoje! HOJE NÃO! - Ele disse que vai visitar a gente lá na nossa casa. - PERFEITO! ALGUÉM AÍ EM CIMA??? - Fala comigo, mãe.



- Mais uma fatia, filha? 

- Posso? É a terceira! - Sorrio diante de sua doce inocência. Cercada por lobos, ela sabe que pode vencer a todos porque eu estarei aqui, ao lado dela. Sempre! Sentadas à mesa da cozinha, ela adverte de boca cheia. - Come, mãe! A senhora precisa ficar forte!

- Pra quê? - Engasgo com um pedaço da pizza de calabresa ao ouvir sua resposta.

- Pra lutar contra o monstro. Ué!

- Aaah...tá.




Exausta física e emocionalmente, deito-me ao lado de Antoine na cama de casal de Doc, em nossa última noite de férias. Ao lado da cama, na mesinha de cabeceira, o envelope ainda fechado e, sobre ele, as chaves da casa de praia de Vincenzo. Pedindo ajuda ao Arcanjo Miguel, tomo coragem e, finalmente, leio o bilhete que, certamente, vai dilacerar o pouco que resta do meu coração esmagado. 



Sento-me na beirada da cama, certificando-me de que Antoine dorme profundamente. 

- Coragem, Adessa. - Digo a mim mesma ao abrir o bilhete dobrado em quatro partes. Minha mãos tremem quando inicio a leitura.

"Amada Dess,

Sei que deve estar sentindo medo ao ler o que escrevo, mas não sinta, amor. Eu nunca mais serei o estúpido que te afastou de mim por insegurança. Eu te quero ainda mais. Mais do que sempre te quis. Eu não estou te abandonando. Não mesmo, pateta. Só estou me ausentando para resolver uns problemas burocráticos na cidade. Fique com as chaves da minha casa. Ela é sua também. Em breve, estarei de volta e vou me casar com vc antes que algum idiota apareça e te conte mentiras sobre mim. Eu te amo e sempre te amei. Agora que reencontramos Antoine, estaremos em família, novamente. Ainda sinto o gosto dos seus beijos, do seu corpo junto ao meu. 

Se puder, me espera, Dess.

Volto logo. Vai escolhendo o seu vestido de noiva, panaca! O mais lindo e caro que puder! Vc merece tudo!

Te amo pra sempre.

Explique tudo a Antoine. Não quis te acordar. Vc precisa de muitos dias para se recuperar da 'surra de pau' que te dei ontem...

Minha linda e amada, Dess.

Me espera.

Beijo na boca, 

De seu homem, Vincenzo.


P.S.: NÃO RECEBA VISITAS EM SUA CASA. SOMENTE O DOC E MAIS NINGUÉM. OK? VIGIE ANTOINE. 

Te amo...'per sempre'."

Rindo e chorando de contentamento, levo ao coração seu bilhete manchado por minhas lágrimas de alegria. Ainda que esteja extremamente feliz com o que acabo de ler, não posso deixar de concluir que Vincenzo é um predador e eu...

Sou a sua presa.



No caminho de volta à cidade, ouço uma canção que me faz lembrar de Vincenzo e da promessa contida em seu bilhete. Sob a luz da lua cheia, eu prometo num tom de voz baixo.
- Eu vou te esperar. Mas o vestido, nós vamos comprar juntos...



Um estúpido sorriso se estampa em meu rosto enquanto procuro por algum motociclista abusado que me faça perder o controle ao volante. Desanimada, constato ao olhar pela janela do meu carro.

- Não. Ele não está aqui. Que assuntos burocráticos seriam esses!? O vestido mais caro!? Como ele tem tanta grana assim!? Trabalhando num galpão de boxe!? Então...tá. - Dou de ombros enquanto observo, pelo retrovisor interno, Antoine no banco traseiro. - Onde tá a Dayse, filha?
- Dormindo. - Responde-me ela, bocejando. - Mamãe, a gente vai voltar pra casa de praia do tio Vincenzo? Eu gostei de lá...
- Vamos sim. - Minto. Não faço ideia de como, quando ou - SE- irei reencontrar Vincenzo. Não posso me esquecer de que aquele bilhete fora escrito por um transtornado, logo, pode ter sido escrito em meio a uma crise ou...não. Talvez ele o tenha escrito para me encher de esperanças tolas e rir de mim, ao final. Com os olhos fixos na estrada, pergunto. - Gostou do passeio, filha? Da casa do tio Doc?
- Uh-huh. Gostei mais da casa do tio Vincenzo. 
- Por quê?
- É mais bonita. Ainda bem, né? - Arrisco uma olhadela a Antoine antes de questionar.
- Por que 'ainda bem'?
- Porque eu vou poder chegar no mar mais rápido.
- Mas...filha...- Refuto, preocupada com o nosso futuro. - Talvez demore pra gente voltar. Ok? A mãe precisa trabalhar pra ganhar dinheiro e viajar novamente. Vc não gosta do nosso apartamento?
- Gosto sim. - Um outro bocejo e ela tomba para o lado. Deitada sobre o assento, ela sussurra algo que quase não consigo ouvir. Quase. Entre amedrontada e perplexa, peço que repita. Com os olhinhos pesados de sono, ela me obedece e repete. - Ainda bem que o tio deixou a chave pra gente entrar.
- Não entendi, filha. Como sabe da chave!? Por que diz isso!? 
Giro o volante bruscamente. Estaciono no acostamento. Com os olhos desmesuradamente abertos, eu a ouço explicar.
- Porque é lá que a gente vai morar...ué.
Ela adormece enquanto choro, sem forças, com a cabeça recostada ao volante.

'Há alguém aí em cima'?


- Doc, vc leu tudo? Desde o início?
- Sim, filha. - Responde-me ele, contido. - Tudinho. Ele vai voltar. Se ele diz, no bilhete, que vai voltar, ele vai.
- Ah, Doc!  - Reclamo sentada num banquinho, em madeira, no bar do 'California'. - Vc sempre ameniza as coisas quando se trata de Vincenzo! Ele não é o santo que vc imagina!
- Eu confio nele.
- Doc, vc não faz ideia do que ele me falou! Coisas estranhas...tipo...sem sentido! Saca!? E eu estou super super preocupada com Antoine! Por que Vincenzo some quando eu mais preciso dele!?
- Quem sumiu!?
- Ninguém. - Minto a Sweet, sempre inconveniente e suada, logo após o show. 
- Vincenzo sumiu!?
- Eu não disse isso. - Nego.
- Disse sim, boba. Eu ouvi. Desde quando ele sumiu!? - Pergunta-me ela, irônica. Extremamente autoconfiante, ela me provoca. - Se eu não me engano, eu o vi ontem, correndo na orla. A gente até trocou algumas palavras. Rolou meio que um clima, mas...
- Mas o quê!? - Salto do banquinho e avanço contra Sweet. Sou contida por Doc que me impede de apertar, com minhas mãos em garra, o delicado pescoço de  Sweet. Eu a odeio. Eu odeio seu corpo perfeito. Seu cabelo perfeito. Seu jeito livre e desencanado de ser. Odeio sua lascívia que a faz se entregar a todos sem culpa. Odeio não ser como ela. Sou cheia de traumas. Que merda! Vc a inveja. Nunca! Sejamos sincera, meu bem. Vc a inveja e a odeia porque sabe que Vincenzo a deseja. Talvez, ele não a ame, mas ele a deseja. Ela satisfaz seus impulsos sádicos e ele gosta disso. CALA BOCA! NÃO ME MACHUCA! - MENTIRA, VADIA! ELE NUNCA MENTIRIA PRA MIM! NÓS ESTÁVAMOS JUNTOS DURANTE TODO ESSE TEMPO EM QUE NÃO ESTIVE AQUI!
- E, assim que ele se despediu de vc, arranjou um tempo pra se encontrar comigo. Não é suspeito? Ele fode muiiiito bem.
- MISERÁVEL! - Berro enquanto a derrubo no chão acarpetado. Doc me impede de prendê-la entre minhas pernas, porém, minhas mãos tocam o espaço entre seus seios de onde capto imagens que me fazem chorar.
- CHEGA, SWEET! - Protesta Doc. - Some daqui, cobra peçonhenta! Some agora! - Gargalhando, seminua, ela concorda.
- Pedindo com tanta doçura, não dá pra recusar. Tenho mais o que fazer...tipo...foder gostoso com o dono dessa espelunca.

Dando-nos as costas, ela desaparece destruindo minhas últimas recordações de tudo o que Vincenzo, Antoine e eu vivemos juntos na casa de praia.
- Não dê ouvidos a essa mulher vulgar. Ela mente.
- Não mente não, meu amigo. - Lamento enquanto me recomponho. - Eu os vi conversando na orla. Eu os vi.
- Isso não quer dizer que eles tiveram algo.
- Não. Mas prova que ele mentiu pra mim.
- Adessa, ele disse que viria até a cidade para resolver assuntos burocráticos e não que iria se isolar num 'banker pós apocalíptico'! - Sorrindo, admito.
- Tem razão. - Subitamente, eu o abraço com força. Chorando compulsivamente, agradeço. - Obrigada por sempre me fazer enxergar o melhor de tudo. Te amo.
- Também te amo, filha. Segue adiante até que ele retorne e, enfim, vcs se casem. E, por favor, se afasta dessa mulher.
- Vou tentar, Doc. Vou tentar.
- Vc não pode se deixar descontrolar com tanta facilidade. Agora vc é mãe.
- Eu sei. Me perdoa.
- Não me peça perdão, Adessa. Tenta se controlar, por favor. Ela conhece teu ponto fraco. Ela vai usar isso contra vc.
- Eu sei. - Assumo, envergonhada. - Eu não sei o que fazer. Eu não suporto saber que ele me usa e depois corre atrás dela. Eu odeio ver os dois juntos, Doc. Odeio. - Volto a chorar, agora, de raiva. - Eu vou enlouquecer se continuar assim. O que eu faço, amigo? O que eu faço? Eu não posso deixar Antoine sozinha nesse mundo!
- Não vai, filha. Conta comigo. - Diz Doc enquanto me abraça. Beijando o topo de minha cabeça, ele me faz refletir. - A impulsividade pode te levar ao fundo do poço. Pense antes de agir, meu anjo. Pense antes de agir.
- Vou tentar.

Prometo.



Ainda chorando, caminho até o camarim quando ouço cochichos vindos da sala do dono da boate. Encosto meu ouvido na porta e o que ouço me faz arquejar de pavor. Reconheço duas vozes. Uma é a do homem que paga pelo meu salário. A outra é, sem dúvida, a de Sweet.
- Não! Não é justo! 
- O que mais quer que eu faça, benzinho!? 
- O que deve ser feito! O que é justo! Se não fizer o que eu te pedi vc nunca mais encosta a porra dos teus dedos em mim! Entendeu!?
- Sweet, meu docinho de coco, senta aqui! Senta!
- Vai fazer o que te pedi?
- Tudo e muito mais...
- Quero ela fora disso. Entendeu?
- Entendi. Agora chupa...




Enojada e desesperada, dirijo até o meu apartamento. Imaginando milhões de versões para o que acabo de ouvir, escolho acreditar que Sweet não faria mal a mim. Não a mim. Somos amigas! Ao menos, já fomos! Eu sou a madrinha de suas filhas! Ela não prejudicaria Antoine!
- Não mesmo! - Grito dentro da cabine do elevador que sobe ao meu andar. Num desespero, abro a porta da sala e corro até o quarto de Antoine. Sorrio, aliviada. Cassandra, nossa babysitter, lê um dos livros prediletos de Antoine: "A Bela e a Fera". Minha paz escoa pelo ralo quando me recordo de Sweet e de sua conversa com o dono do 'California'. Se eu for despedida, não vou conseguir sequer pagar pelo condomínio, tampouco por uma babysitter. Sem o que ganho como stripper, não me resta nada. POR QUE NÃO RETOMA SUAS ATIVIDADES COMO GAROTA DE PROGRAMA? Nunca! Eu prometi a Vincenzo e a mim mesma e, mesmo se quisesse, eu perdi meus clientes. Todos eles. CORREÇÃO! VC OS DEU, DE BANDEJA, À MULHER QUE TE APUNHALA PELAS COSTAS! Não fala isso. Vc não sabe de nada. Eu não sei de nada. Cacete! Eu não vou perder meu tempo discutindo com a porra de uma voz dentro da minha cabeça! COMO SABE SE ESTOU FORA OU DENTRO? Dentro ou fora, cala a boca!



Prestes a arremessar minhas botas contra o vidro da janela da sala, ouço a campainha tocar. Confusa com meus pensamentos, abro a porta sem perguntar quem está do outro lado. A figura imponente e máscula de Aiden surge diante de mim, abrindo um sorriso singelo. 

Parto seu sorriso ao meio quando, rispidamente, pergunto.
- O que deseja?
- Boa noite pra vc também.



- Eu não estou bem, Aiden. O que quer?
- For God's Sake. Nada. Eu vou embora.
- Fica, tio. - Pede Antoine entrelaçando os dedos de sua mãozinha, aos meus. Estranhamente emocionado, eu o vejo se ajoelhar diante dela. Ele a observa, em silêncio, tocando seus dedos nos cachinhos de minha filha que acaricia seu rosto com o dorso de sua mãozinha. - Por que tá chorando, tio?
- Não estou. - Mente Aiden francamente desarmado. Rindo feito criança, ele esconde o rosto entre as mãos e, repentinamente, se ergue. Ele engole em seco enquanto olho para os dois, desorientada. O que está acontecendo aqui!? - Vc é linda, Antoine. 
- Obrigada, tio. Minha mãe me acha linda também. Cassandra tá lendo meu livro preferido. Quer ouvir?
- Não. - Respondo por ele. Finjo não notar seus olhos úmidos quando me agacho e  peço. - Volta pro quarto, filha. Já tá tarde. - Cochicho. - Daqui a pouco, vou passar lá e roubar meu beijo. - Rindo, ela se afasta, caminhando em direção ao quarto. Observo Aiden que, por sua vez, observa Antoine. Antoine se volta para Aiden e, do corredor, antes de entrar em seu quarto, nos surpreende com uma de suas frases espontâneas.
- Tio! Vc é a 'Fera' e a mamãe é a 'Bela'!
- Sou mesmo? - Questiona Aiden, inseguro. Contenho o ímpeto de me intrometer entre os dois e cortar o elo que, estranhamente, os une quando ele a questiona com a voz impregnada de doçura. - E vc acha que a 'Bela' gosta de mim, meu anjo?
- Gosta sim, tio. - Arquejo, incomodada. Sem desviar os olhos de Antoine, ele a ouve, ofegando. - Ela gosta de vc, mas tem medo.
- Medo da 'Fera'?
- Chega! - Interfiro, irritada. - Antoine! Já pra cama! 
- Não...- Lamenta Aiden, enfim, olhando-me nos olhos. - Eu gosto tanto dela...
- Desde quando, paspalho!?
- Desde sempre. - Reviro os olhos e resmungo. 
- Porra. Vc também? Aiden, vá embora. Por favor. Eu tô com muita dor de cabeça. Amanhã...

Antes de ter tempo de inventar uma mentira que o afaste de mim, Antoine nos surpreende, uma segunda vez, ao correr pelo corredor e, num arroubo de compaixão, abraçar as pernas de Aiden que, inexplicavelmente, não contem suas lágrimas. Perplexa, eu o vejo erguer Antoine em seus braços e, num abraço forte, balbuciar.
- Meu anjo. Senti sua falta.
- OI??? - Exclamo, enfurecida. - Solta ela!!!
Alheios ao meu desconforto, eles continuam abraçados quando a ouço cochichar em seu ouvido.
- A 'Fera' no final da história conquista a 'Bela'.
- Eu sei. - Confessa Aiden, de olhos fechados. - Eles vão dançar juntos novamente?
- Se meu tio deixar...- Diz ela, reticente, de volta ao chão. Correndo até o quarto, ela grita, antes de fechar a porta, com receio de meu olhar de censura. - VC PRECISA PEDIR PRO MEU TIO!



Quebro o silêncio que se instala entre nós dois quando explodo.
- Que porra de conversa foi essa!? Que merda de tio é esse!? 
- Eu não sei...- Mente Aiden, sorrindo. - Me diz vc.
- "Vá pro inferno" é o que eu te digo, Aiden! Vá embora!
- Me deixa ficar. - Pede-me Aiden enquanto tento trancar a porta da sala, empurrando-a contra ele que insiste em me irritar, do lado de fora, com seus risos infantis. Se eu não estivesse tão 'fora da casinha', eu o acharia fofo. Seu perfume selvagem, másculo e amadeirado me faz arfar. Tentando afastar de minha mente a imagem de Vincenzo e Sweet juntos, na orla, e a impertinente desconfiança de que ambos tenham um 'affair', desisto. 
- Entra.
- "Go raibh maith agat".
- Hein!?
- 'Obrigado' em irlandês. - Esclarece-me ele enquanto se posiciona  diante da enorme fonte de água, no hall de entrada. Mais uma de minhas extravagâncias enquanto ganhava 'horrores' com a prostituição. Tocando nas pedras encrustadas na parede, ele exala. - Isso é lindo!
- Vc já viu, Aiden. - Resmungo. - Não é a primeira vez que vem aqui. Não toca nas plantas, por favor. - De costas para mim, ele ignora meu pedido.
- Eu sei. Digamos que hoje eu esteja mais inspirado. Eu gosto de plantas, árvores, troncos...- Sem a menor disposição em esconder minha contrariedade, interrompo seu momento idílico e, de maneira rude, explico.
- Aiden, hoje não é um bom dia para visitas. Eu tô morrendo de dor de cabeça...
- Seu coração dói. 
- Não entendi. - Recuo, assustada. Ele me fita com seriedade. - Do que tá falando?
- De amor, dor, traição. Música...dança.
- Aiden...- De costas para ele, giro a maçaneta da porta, francamente decidida a lhe expulsar de minha casa, quando sinto o peso de sua mão em meu ombro. Sua voz grave sussurra uma verdade.
- Ele te fez sofrer novamente. - Engulo em seco e, sem mover um músculo, admito.
- Sim.
- Isso sempre se repete.
- Aiden, para de falar e vai embora. - Dou meia volta e encaro seus olhos fúlgidos quando ele me propõe.
- Deseja conhecer o início de tudo? Se livrar dessa dor, desse peso em sua vida? Deseja recomeçar? 
- Sim. É tudo o que desejo. - Confesso, desarmada.
- Me diz o que quer. - Sugere ele, bem próximo a mim. Não me oponho à sua proximidade. Ao contrário, gostaria de ser abraçada por ele. Consolada...- Olhe para mim, Adessa. Fale. 
- Desejo descansar, Aiden. Gostaria de nunca ter conhecido Vincenzo e ter me apaixonado por ele.
- Talvez vc possa.
- Como?
- Voltando a um passado longínquo e entender o que te liga a ele e o que te deixa tão vulnerável assim. 
- Isso é impossível. - Rumino.
- E se eu te disser que não é?
- Vou pensar que tem algum tipo de transtorno mental. - Abro um sorriso triste quando concluo. - Acho que todos nós temos algum.
- Qual seria o seu?
- Não te interessa.
- Ninfomania? - Arregalo os olhos assustados e, num ímpeto, caminho até a cozinha. Aiden me segue. Abro a porta da geladeira. Reflito. Concluo que preciso ir às compras. Um receio de que, num futuro próximo, talvez não tenha como manter a despensa cheia de guloseimas me faz tomar um litro d'água gelada, no gargalo. Quase posso sentir a respiração de Aiden em minha nuca. Empurro seu corpo com o meu enquanto o ouço rir de mim e comentar.
- Vc sempre fez isso...
- O quê?
- Me empurrar quando estava com raiva.
- Puta que pariu. - Apoio-me na pia da cozinha. Abro a torneira e umedeço minha nuca com a mão molhada. Exaurida, peço. - Pelo amor de Deus, não começa com esse papo bizarro de outras vidas.
- Ok. Não vou. Tá com fome?
- Como sabe!?
- Foi só um palpite! Não me olhe como se eu fosse um ser maligno!
- Não ria. A minha vida tá parecendo um filme de terror onde eu não quero ser a protagonista. Anjos, demônios, exorcistas, bonecas que falam. Monstros que retornam do mundo dos mortos. Lúcifer...
- Demônios?
- Sim. Na verdade, é só um. Mas deu trabalho.
- Deu? Não dá mais?
- É. Sumiu. - Afirmo, pensativa, enquanto lavo a garrafa vazia. - Ele sumiu mesmo...
- Compreendo.
- Por que tá sorrindo assim pra mim?
- Assim como?
- Com ternura.
- Não é ternura. Digo...não é somente ternura. - Ergo uma das sobrancelhas enquanto observo os traços de seu rosto. Sua boca carnuda é um convite ao pecado...- Adessa!
- Tá quente aqui! - Exclamo enquanto prendo meus cabelos num coque despenteado e sigo até meu quarto. Estaco diante de Aiden quando, indignada, questiono. - É sério!? Vc realmente pretende entrar no meu quarto!?
- Não! - Recua ele, desconsertado. - Eu não sabia que viria pra cá.
- Nossa...- Exalo, abanando a cabeça. De olhos fechados, eu me arrependo. - Perdão. Eu fui estúpida com vc. Novamente...
- Não se importe com isso.
- Vc é legal.
- Vc sempre foi assim. E eu sempre te admirei por ser impulsiva e desequilibrada.
- Eu!? Desequilibrada!? - Gargalho enquanto me defendo. - Desconheço isso! - Minha gargalhada morre em um suspiro quando mergulho em seu olhar enigmático e, num murmúrio pergunto. - O que vc quer, Aiden? - Seu braço roça no meu enquanto ele abre a porta do meu quarto e, com elegância, ele me reverencia, curvando o tronco para frente. Inspiro seu cheiro de floresta. Cerro os olhos. Vejo machados cravados em troncos. Fumaça escapando do topo de uma casa em madeira em meio a uma floresta. Ouço risos, gritos, gemidos de prazer...corpos nus. - Aiden!







- Quero água. - Responde-me ele, com as mãos em concha, debaixo da torneira na pia do meu 'closet'.
- Tem filtrada na cozinha!
- Prefiro essa. Natural. Livre, fresca...gostosa. - A água escorre por entre seus dedos quando ele molha o rosto, displicentemente. Um lento sorriso vai se abrindo em sua face úmida quando leio em seus lábios rubros. - Adessa, acorda.
- Aaah...tá. - Lembrando-me de respirar, solto o ar represado, pela boca. Ele arrepia seus cabelos curtos com as pontas dos dedos enquanto reparo seu pescoço másculo, o colar em prata com pingentes tão enigmáticos quanto ele. A blusa solta com o decote em 'V' me deixa ver partes de suas inúmeras tattoos. Inconscientemente, umedeço meus lábios com a ponta de minha língua, como o fazia nos filmes que deixara no passado.

- Algum problema?
- Não. - Deixo escapar uma risada idiota. Posso jurar que ele ouviu o que pensei, mas posso estar surtando também. A fim de quebrar o constrangimento que paira no ar, indago. - Essas tattoos têm algum significado especial?
- Todas têm. 
- Eu sei. Putz. - Reviro os olhos, encabulada. - Eu sei que todas têm. Estúpida que eu sou. Quem iria tatuar a pele por nada? - Recostada à pia, reformulo a pergunta. - Existe alguma que tenha um significado especial?


- Tem sim. - Afirma ele, retirando, de súbito, a blusa. Meu queixo caí diante de seu torso nu. Há várias 'tattoos' em seus braços, peitoral e costas. - Gosto muito dessa aqui. - Diz ele apontando o indicador à sua virilha bem desenhada. - Uma pena que vc não possa ler tudo o que está escrito.
- É. - Concordo, abestalhada. - Daqui fica difícil. É 'Morte'? - arrisco.
- Errou. - Brinca ele, piscando. - É um nome.
- Aaah tá. - Cerro os olhos e volto a arriscar. - Morena? Monique? - Seu riso ingênuo volta a me encantar quando ele me pede.
- Para. Vc não vai acertar.
- Morgana!?
- Como sabe!? - Pergunta-me ele, ansioso.
- Não sei. Eu 'chutei'. - Confesso, confusa. - O que houve? Vc tá pálido.
- Nada. - Responde-me Aiden, meio que desnorteado. De cabeça baixa, ele volta a sorrir enquanto contenho meus instintos adormecidos. Seus olhos me fitam por debaixo dos cílios. Arrepio-me, movendo os ombros involuntariamente. Algo em seu olhar me incomoda quando ele ergue a cabeça e, num arroubo de infantilidade, faz menção em retirar a calça. - Se quiser ler mais...

- Não se atreva! - Protesto. - Antoine e Cassandra estão aqui!
- Boba. - Diz ele, escondendo um sorriso ao vestir a camisa. - Eu nunca faria isso. Eu te respeito muito.
- Isso é bom. Quem é a mulher tatuada em seu peito? Percebi que não há outra mulher além dela.
- E nunca haverá. - Confessa ele, ofegante. - É por ela que vivo. É por ela que morro todos os dias. É por ela que retorno. Por ela , eu mataria. É por ela que me perco e, por ela, serei salvo.
- Uau...que lindo. - Suspiro. - Mulher de sorte. Queria ser amada assim. - Num impulso, ele pousa sua mãos frias em meu rosto e sussurra.
- Vc é, Adessa. Vc será.
A sede de beijar sua boca carnuda é contida com a súbita aparição de Cassandra que, num desespero, proclama.
- Antoine não quer dormir, tia!
- Por quê!? - Pergunto, enfim, livrando-me do estranho fascínio que Aiden exerce sobre mim. Caminho até o quarto, resmungando. - O que ela tem!? Algum novo tio quer falar com ela!?
- Não sei! - Responde-me Cassandra que é seguida por Aiden. - Por San Juan Diego! Outro tio não! Filha! Já passou da hora de dormir! - Agarrada à sua boneca macabra, ela sorri para Aiden quando me faz tremer de medo ao declarar.
- A Giulia disse que o tio Aiden pode matar o monstro, mãe! Não é legal!?
- Muito. - Resmungo, despencando contra a cama de Cassandra. - Desisto.


Vendo Aiden se sentar ao lado de Antoine e fazê-la sorrir, permito que ele jante conosco, já que fora ele quem pagou pelo jantar delicioso. - Eu amo massas.
- Eu me lembro de como vc devorou aquele macarrão. - Comenta Aiden à minha frente, à mesa de jantar. - Vc estava faminta.
- É...- Suspiro levando minha mão à barriga. - Ele ainda estava aqui.
- Ele quem, mãe? - Indaga Antoine brincando de 'beliscar' o nhoque no prato de Aiden. Surpresa em perceber a leveza de Aiden em lidar com Antoine, divago.
- Seu irmãozinho. Agora ele é um anjo.
- Igual ao tio Miguel? - Reviro os olhos, meio que sem saber o que responder. 
- Não, filha. Não sei. Acho que seu 'Tio Miguel' é o chefe dos anjos. - Soluço. - Tipo... sei lá...'Simply the best of the best". É. Ele é o chefe.
- Então meu irmãozinho trabalha pra ele? - Entorno mais vinho em minha taça vazia. Ergo meu tronco e me debruço sobre a mesa. Meio que tonta, beijo sua testinha e, orgulhosa, exulto. 
- Ela não é uma graça?! Tão inteligente! - Caio de encontro à minha cadeira. Aiden concorda com chamas em seus olhos. 
- Eu bebi demais ou seus olhos estão queimando?
- Vc bebeu demais, meu anjo. O que vc vê nos meus olhos são as chamas das velas. - Argumenta ele apontando o garfo para os castiçais sobre a mesa. 
- Eu vou vender esses castiçais. - Lamento. - Devem valer alguma coisa. - Soluço.
- Não vai não, meu anjo. - Retruca Aiden. - Esqueça isso.



- Outro anjo!? Minha mãe não é um anjo! É, mãe!? Putz! - Protesta Antoine. Aiden e eu estamos rindo de sua expressão de indignação quando ela insiste. - Meu tio Miguel tá com meu irmãozinho, mãe?
- Tá...- Exalo. - Espero que sim. - Pousando sua mão fria sobre a minha, Aiden afirma, solidário.
- Está sim. Certamente.
- Como sabe?
- Não sei. Suponho.
- Meu tio Miguel falou com vc, tio? - Uma gargalhada súbita e estridente e Aiden responde, levando o guardanapo à boca.
- Não, querida. Eu não conheço seu tio. - Seu riso morre quando Antoine, de boca cheia, o refuta.
- Conhece sim. 
- Antoine! - Repreendo-a. - Não seja mal educada. Se ele disse que não o conhece...
- Mas meu tio Miguel conhece o tio Aiden sim, mãe! Eu vi os dois juntos! - Ouço o tilintar dos talheres de Aiden sobre o prato vazio. Sem olhar em sua direção, ergo-me da cadeira e sigo, cambaleante, até a cadeira de Antoine, sentando-me ao seu lado. Eu a abraço enquanto sinto a pressão do teto baixar sobre nossas cabeças. Diante do olhar incisivo de Aiden sobre Antoine, eu me assusto ao ouvir sua voz gutural replicar.
- Não. Eu definitivamente não o conheço.
- Ele disse que conhece. - Rebate Antoine, poderosa e absoluta. Temendo por algo que não consigo definir, esvazio a terceira taça de vinho quando declaro, com a voz entaramelada.



- Chega! Chega de 'tios' por hoje! Seu irmãozinho não trabalha para o seu tio Miguel porque ainda é muito novinho! Seria ilegal! Trabalho escravo! Quando crescer, ele será um grande anjo e vai proteger a gente de bonecas, demônios, fantasmas e homens QUE FAZEM PROMESSAS QUE NÃO PODEM CUMPRIR!  - Escondo meu rosto e a vergonha entre as mãos e, entre soluços, choramingo. - Filha, come a sobremesa. Eu não sei até quando...
- Calma, Adessa. - Por entre meus dedos, eu o encaro.
- Seus olhos...
- O que têm eles? 
- Estão mais claros...
- Impressão sua. - Replica Aiden, observando-me através das chamas das velas acesas. - Vc bebeu demais. - Recuo, intrigada. Pisco meus olhos por diversas vezes e, então, os dele surgem, lindos, grandes e azuis. Os olhos de Vincenzo me fazem arfar. Sua mão toca a minha ao se declarar. - Eu te amo. Dança comigo?
- Agora? Não tem música. 
- Tem sim, mamãe. - Sorrio, indecisa, para Antoine que cochicha em meu ouvido. - Não fica com medo. Vai dar tudo certo.
- Aaah....tá. 
Como em um dos contos de Antoine, a música surge no ar, espalhando-se por todos os cantos da sala. De sua cadeira, Antoine bate palmas e adverte.

- Vc só tem uma hora, tio!



- Vem!? - Convida-me Vincenzo. Embriagada, magoada e carente, deixo-me levar por ele...- Eu vou te guiar, Morgana. Vou te mostrar o caminho de volta.
- Ok. Dessa vez, eu serei mais suave.


Prometo, de olhos fechados.



Continua...






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CAPÍTULO 42 - DESCOBERTAS

  Corro, saltitante, através do corredor. Um forte abraço no aniversariante e digo  que o amo muito. Intrigado,  ele pergunta enquanto alcan...