'Dess - Uma História Interessante'

'Dess - Uma História Interessante'
AMO ESCREVER

CAPÍTULO 42 - DESCOBERTAS

 



Corro, saltitante, através do corredor. Um forte abraço no aniversariante e digo  que o amo muito. Intrigado, ele pergunta enquanto alcanço a varanda. 

- Aonde vai!?

- Buscar seu presente! 

- E o almoço!? - Recuo e, lançando uma piscadela a Enrico, respondo.

- Quando eu voltar, faremos juntos!!! Como nos bons tempos!!!


- Tem certeza de que gostariam de ouvir meu relato? Seria inconveniente.

- Por que, Celeste? Estamos em família. - Ela me sorri, ainda abatida. Eu a incentivo tocando o dorso de sua mão sobre a mesa onde todos estamos reunidos para o almoço. - Agora, estamos todos unidos e nada...ninguém irá nos deter. 

- Engraçado...- Murmura  Cassie após um riso triste. - Essa costumava ser a letra da minha canção de amor  com Liam antes de...

- De...?

- Nada não, tia. - Desconversa ela mostrando-se encabulada. - Seu 'fettuccine' está fabuloso.

- Simplesmente esplêndido! - Elogia Antoine ao lado de Leo que, de boca cheia, assente com a cabeça. - Vc cozinha muito bem, mãe!

- Infelizmente, não posso levar a fama dessa vez. Enrico me ajudou. Ele praticamente fez tudo.

- Depois de seu presente, filha, era o mínimo que eu poderia fazer. - Diz ele, emocionado, abraçado a Celeste. - Como conseguiu convencer Celeste a entrar? Vincenzo e eu tentamos por dias e...nada.

- Talvez, ela me ame mais do que a vcs dois. - Evitando o olhar incisivo de Vincenzo encho minha boca com mais uma garfada da massa fumegante. - Hmmm...isso aqui tá fantástico!

- Coma devagar, Dess. Vai se engasgar. - Repreende-me Vincenzo sem deixar de me encarar. - Já alimentou o nosso filho? Ele me parece com fome. 

- Depois que eu acabar de comer, eu dou comida a ele. 'By the way', daqui, ele me parece bastante contente. Como sabe que ele tá com fome?

- Vc se esqueceu? - Um olhar incrédulo e ele replica. - Foi vc quem me ensinou.

- Aaah...claro. Eu sei. Dá pra gente continuar a ouvir a história de Celeste? Eu tô muito curiosa. - Erguendo-se da cadeira na ponta da mesa, ele resmunga. 

- Eu cuido dele, Dess. Ele tá com fome.

- Fica perto da gente, pai. 

- Já volto, filha. - Com Matteo em seu colo, Vincenzo me fuzila com seus olhos azuis até entrar na cozinha. De lá, ele grita. - Podem continuar sem mim!

- Então, a senhora entrou para a 'Legião' porque estava com ciúmes de minha mãe com meu pai e meu maninho e, agora, saiu de lá porque aceitou o amor entre eles. É isso?

- Quase isso, Antoine. - Responde Celeste, um tanto confusa. - Sua mãe e eu tínhamos brigas constantes e Enrico nunca ficava do meu lado...

- E isso é motivo pra senhora nos abandonar e mergulhar no mundo sombrio da 'Legião'!? Um anjo de sua categoria se envolver com a podridão!?

- Calma, Antoine. - Pede Leo, envergonhado. - Assim sua avó não vai terminar a história. 'Tá ligada?' - Sem olhar para Leo, Antoine observa Celeste ao refutar. 

- 'Tó ligada'. Muito mais do que vc imagina.

- Respeite sua avó, Antoine.

- Ué! - Sua voz aguda me irrita. Seu sorriso falso me afronta. - Eu estou respeitando! São só perguntas, mamãe!

- Eu vou responder, Antoine. Vou explicar melhor, meu amor.

- Vc não me ama, vó.

- Antoine! Quer ficar de castigo!?

- Por ter dito o que ela pensa? - Intervém Vincenzo com Matteo em seu colo. Sentando-se à mesa, ele alimenta nosso filho com um prato de caldo de feijão e purê de batata. Uma mistura um tanto bizarra. - Bizarra? Foi vc quem me convenceu de que era nutritivo e gostoso. Se esqueceu disso também?

- Vc poderia deixar de ler meus pensamentos e prestar atenção na história da minha...

- Sua?

- Sogra. - Concluo, arfando. - Sua mãe. Ela sofreu muito nas mãos daqueles seres impuros e nojentos. Ela era açoitada, humilhada, obrigada a fazer coisas das quais não gostava e vc ainda quer perder tempo lendo os meus pensamentos, Vincenzo!? Deixe sua mãe contar a história! - O silêncio sepucral ao redor da mesa é quebrado com a gargalhada sem sentido de Matteo que, com o rosto sujo de feijão, balbucia.

- 'Mamãe dodói'.

- Eu sei, filho. - Concorda  Vincenzo num tom baixo. - Eu sei. - Voltando seu olhar a Celeste, ele indaga. - Como conseguiu permissão para sair da 'Legião'? Eles não são do tipo que compreende emoções.

- Eu lutei, filho. Eu finalmente compreendi que não estava no lugar certo. Eu me lembrei de Enrico e de vc e do tempo em que fomos felizes, juntos, na Irlanda...- Levando a mão à boca, ela se desculpa. - Perdão, filho. É a memória mais recente que tenho de nossas vidas. Adessa, minha filha. Me perdoa. Não quis te magoar.

- De maneira alguma, Celeste. Eu entendo. Sua sobrinha a amava muito. Um tipo de amor que não se rompe com o Tempo.

- Não mesmo...- Suspira Celeste.

- Resumindo a história...- Intromete-se Antoine, largando os talheres sobre o prato. Um erro crasso. - Vovó tinha nosso amor e respeito. Vovó 'cagou e andou' pra isso...

- Antoine! Respeito! - Grito furiosa. - Peça desculpas à sua avó! Agora!

- Não precisa, filha. - Lançando-me um olhar furioso, ele me faz calar a boca quando, inflando as narinas, ordena. - Continue, Antoine. Sua avó sabe como vc é. Como sempre foi. Evite termos chulos, por favor.

- Ok, pai. Prosseguindo. - Erguendo o queixo, ela me parece estar gostando de me irritar. Apoiando seus cotovelos sobre a mesa, ela afronta Celeste com seu olhar soberano. - A senhora partiu porque brigava com minha mãe. A senhora partiu e deixou meu maninho desprotegido quando sua missão era a de protegê-lo. A senhora partiu e deixou meu avô arrasado. A senhora partiu e, mesmo dizendo que me amava, me deixou aqui sozinha quando mais precisávamos de ajuda. A senhora voltou dos 'quintos dos infernos' e empurrou a Cassie da cadeira, provocando um aborto...

- Pirralha, não...- Cobrindo o rosto com as mãos trêmulas, Cassie implora. - Esqueça isso.

- Calma, Cassie. Eu sei o que estou fazendo. - Argumenta Antoine, muito maior e mais inteligente do que no dia em que a deixei. - Daí, a senhora larga a 'Legião' e somente Deus sabe como eles te liberaram e, agora, retorna ao nosso lar e ainda quer que acreditemos em sua inocência e em suas boas intenções?

- Uau...- Vibra Leo ao seu lado. - Isso foi irado.

- Filha, tenta entender sua avó, por favor.

- Vovô, estou tentando entender. Por vc, eu estou tentando entender como alguém que era supostamente boa se transforma em alguém capaz de atacar uma gestante empurrando-a da cadeira e, de repente, passa a ser uma boa pessoa e tenta retornar à família que ela abandonou. O que vc ganhou pra deixar a gente, vovó? 

- ANTOINE! EU TE PROÍBO DE FALAR ASSIM COM...!

- Com quem, mãe?

- Com sua avó. - Rosno. - Ela se arrependeu. Todos cometemos erros. Todos merecemos uma segunda chance. Vc poderia dar uma segunda chance à sua avó? Poderia!?

- Rosnar faz mal pra garganta, mãe. - Alerta-me ela, confrontando-me. - Melhor ficar calada.

- Filha, menos. Muito menos. Ok? - Sorrindo, Antoine o obedece e, alcançando as mãos de Celeste sobre a mesa, ela fecha os olhos e, após um certo tempo em silêncio, ela pede perdão. 

- Vovó, agora eu sei que é verdadeiro o seu arrependimento. Sei o quanto sofreu naquele lugar escuro e fétido, cheio de seres rastejantes que a tocavam. Lugar onde te colocaram de castigo. Sei que, em desespero, orou pedindo ajuda...- Aos prantos, Celeste assente com a cabeça enquanto Enrico a abraça com força. - Sei que viu um arcanjo. Foi Miguel quem a ajudou. Não foi? - Com a voz embargada, ela responde.

- Sim. Foi ele. Eu me arrependo de tudo, filha. Tudo. Eu juro.

- Eu vejo, vovó. Eu vejo. 

- Tudo o que desejo é recomeçar...

- Como consegue saber de tudo isso, Antoine?

- Depois te conto, Leo. - Um sorriso encantador e, voltando o olhar a Celeste, ela conclui. - Por mim, tudo bem. Agora, peça perdão a Cassie. Ela perdeu muito com sua maldade.

- Não precisa...- Refuta Cassie, desorientada. - Já passou.

- Ela tem razão, Cassie. - Assume Celeste. - O que eu fiz não tem perdão. Mas eu não queria. Se não fizesse aquilo, eu seria açoitada novamente. Eu não queria.  Mas, eu fui forçada. Ele me forçou. Ele não queria aquele filho.

- Do que tá falando, Celeste!? - Indaga Cassie, horrorizada. - Não tô gostando disso!

- Cassie, meu anjo...- Concilia Enrico. - Ela ainda não está bem da cabeça. Está muito confusa. Não dê ouvidos ao que ela diz no momento. 

- Enrico! Ela precisa saber! - Protesta Celeste sendo erguida da cadeira por Enrico e conduzida até a varanda. Transtornada, ela ainda alerta antes de ser calada por Enrico. - Ele tem mais força do que vcs imaginam!

- Ele quem!? Ela tá falando do Liam!? - Derrubando a taça de vinho com o movimento desordenado de suas mãos aflitas, ela continua. - É sobre meu filho!? Sean!? Meu filho!? Ele tá em casa, sozinho, com Liam!

- Calma, Cassie. - Pede Vincenzo, de joelhos, ao lado de sua cadeira. - Olha pra mim.

- Meu filho corre algum risco, Vincenzo!?

- Olha pra mim, Cassie! - Ordena Vincenzo ao tocar um ponto em sua nuca e murmurar palavras em seu ouvido. Curiosa, eu o observo enquanto Antoine o auxilia, pousando sua mão no topo da cabeça de Cassie. Leo, boquiaberto, aguarda o término do que parece ser um ritual. O filho da puta vai apagar as memórias dela. Tenho certeza. - Acertou, Dess. - De volta ao seu lugar à mesa, ele confirma. - Graças a Celeste, Cassie teria um ataque de pânico irreversível. Seus nervos estão abalados e vc, como sua melhor amiga, deveria ter ajudado com aquele lenço e, até agora, não fez nada.

- Lenço???

- Nossa...- Um riso irônico e ele zomba. - Vc tá muito esquecida, Dess. Precisa voltar a tomar os remédios.

- 'No nay...'- Corrijo-me a tempo. - Não mesmo.

- O que houve? Eu dormi?

- Não, Cassie. Tá tudo certo. - Mente Antoine. - Estávamos conversando sobre aquele dia em que aquela vaca da 'outra' tentou ficar no corpo de minha mãe e te xingou de...- Revirando os olhos exageradamente, ela pergunta a Cassie. - Do que mesmo!? - Fazendo careta, Cassie tenta se lembrar. Antoine me encara ao pronunciar. 

- 'Striapach'!

- Isso! Foi disso que ela me chamou! - Rindo, Cassie comenta. - Na hora, eu nem sabia o que significava, mas, depois...depois...- Movendo a cabeça, ela se irrita ao perguntar. - O que significa mesmo!? - Sorrindo, Antoine continua a me encarar ao responder. 

- Vagabunda. Piranha. Prostituta.

- Sai da mesa agora. - Rosno. Erguendo meu braço, ameaço. - Ou sou capaz de coisa pior.

- Experimente. - Desafia-me Vincenzo ao segurar meu punho acima de minha cabeça. - Filha, já deu. Vc e o Leo poderiam nos deixar a sós?

- Claro, papai. Vou cuidar do meu maninho já que a mamãe não tocou nele até agora. Estranho, né?

- Antoine...

- Ok, pai. - Com Matteo em seu colo, ela é acompanhada por Leo que sussurra algo em seu ouvido. - Depois te conto, Leo. Deixa meu pai cuidar disso.

- Solta meu braço. Tá doendo. - Sussurro.

- Já soltei. - Avisa Vincenzo, recuando. Deixando-me sozinha à mesa. Num tom de desconfiança, ele me diz. - Vou tentar relaxar. Tem muita coisa passando pela minha cabeça agora.

- Eu vou com vc, amor.

- E a louça na cozinha? Vc nunca deixa de retirar os pratos da mesa. Muito menos, louça suja na pia.

- E vc!? Não me ajuda!? Eu não sou sua empregada! - Seguindo até a cozinha, ele deixa escapar.

- Não estou te reconhecendo, Dess. Eu lavo tudo. - Imediatamente, eu me ergo da mesa e, retirando a louça, eu o sigo até cozinha onde lhe peço perdão.

- Eu ainda tô confusa, amor. Minha cabeça dói aqui atrás...- Passo a mão num ponto acima da nuca. - Não me lembro de ter batido em lugar algum. - Jogando os restos de comida na lixeira, ele, novamente, abre um sorriso indecifrável ao lamentar. 

- Vc não se esqueceria daquilo, Dess. Não daquela briga idiota.

- Pois eu me esqueci. Eu bati em algum lugar?

- Na quina da cama de hóspedes. - Responde-me ele, fixando seus olhos nos meus. - Eu estava dormindo lá...- Lavando os pratos, ele olha pela janela,  parecendo aguardar por minha pergunta. 

- E, por que diabos, vc estaria dormindo na cama de hóspedes e não em nossa cama!?

- Não se lembra?

- Porra! Para com isso! Eu não me lembro! Isso acontece! Vc sabe que tenho lapsos de memória!

- Tem?

- Não me olha assim, Vincenzo. Me dá medo.

- De quê? Eu nunca te faria mal, Dess. - Arfando, eu o ouço repetir. - Dess?

- Porco imundo!

Enfurecida, recuo no exato momento em que Matteo se agarra em minha perna direita. Um solavanco e o 'reizinho' da casa cai contra o piso e chora. Antoine chega logo em seguida e me repreende.

- Vc o viu! Por que balançou a perna!? Não sabe que ele ainda não tem firmeza em ficar de pé!? - Vincenzo larga a louça na pia e, aflito, segura Matteo em seu colo, enchendo-o de carinho. 

- 'Dodói'...- Balbucia Matteo num choro sentido. Leo e Antoine o cercam, fazendo gracinhas para que ele pare de chorar.  Soluçando, ele aponta para mim e como um pequeno tirano, murmura. - 'Mamãe não. Mamãe não'.

Abandonada na cozinha, tomo o resto do vinho de uma das garrafas, no gargalo e, prendendo meu choro de raiva, prometo a mim mesma.

- Dessa vez, eu não vou errar.

- Filha? Por que o choro? - Abraçando-a, eu me sinto acolhida novamente. Sem conseguir explicar o que sinto, ela me pede para que eu tenha mais paciência. - Não vá com muita sede ao pote. É preciso tempo e astúcia se quiser ficar, 'mo chuisle'. Acariciando meus cabelos, ela me beija na testa e me aconselha. - Seja mais amorosa com ele. Contenha-se ou ele vai descobrir...




Em seu segundo dia de volta ao lar, tia Celeste volta a se afeiçoar às crianças. Matteo é o seu novo 'chuisle'. Antoine, sempre atenta, não a deixa sozinha um só minuto. Tio Enrico a faz compreender que nada de mau acontecerá ao seu irmão enquanto ele estiver ali.

- Algum dia eu te decepcionei, meu anjo?

- Nunca, vovô. É que eu tenho pensado umas coisas...

- Que coisa, filha? Conta pra vovó.

- Ainda não confio em vc, vovó. Não totalmente. - Percebendo a decepção no rosto de sua avó, Antoine se desculpa. - Perdão. Eu tô com medo. A senhora não estava aqui da última vez em que fomos atacados pela...- Hesitante, ela se cala.

- 'Legião'? Pode falar, filha. Eu sei o quão maus eles podem ser. Aquela noite, eu estava no portão. Muitos tentaram entrar. Foi quando eu consegui essas mordidas e arranhões...- Arregaçando a manga de seu vestido, tia Celeste mostra suas feridas profundas, em ambos os braços, a Antoine que, num recuo, se sensibiliza.

- Vc lutou por nossa família, vovó!?

- Eu tentei. Mas sou uma só contra uma multidão ensandecida...- Um súbito abraço e ambas estão unidas novamente. Seria lindo se não fosse trágico. Antoine sempre tomando o que é meu. Um rostinho angelical e todos acreditam nela. Eu fiquei sem o meu marido, meu tio, minha tia e, principalmente, sem o meu filho por causa dela! Não se atreva a falar assim da minha filha! Cala a boca, cretina. Vc agora está de castigo, Adessa. Experimente como é bom estar perdida dentro de um corpo que já foi seu. EU VOU TIRAR VC DO CONTROLE SE TOCAR NOVAMENTE EM MEUS FILHOS! Veremos...- Adessa! Vc está bem!?

- Eu? Perfeita! - Declaro diante de tia Celeste, tio Enrico e o casalzinho que não se desgruda. - Leo, não me leve a mal, mas, vc tem vindo aqui com muita frequência. Não tá na hora de dar um tempo? Antoine precisa estudar e...

- Eu estudo com ele! Ele é meu melhor amigo e vc, se fosse vc, saberia o quanto eu gosto da companhia dele!

- Como assim!? Desde quando vc fala assim com a sua mãe, Antoine!? - De mãos dadas a Leo, ela passa por mim e rosna.

- Desde que vc chegou. 

- Volte aqui! Me escuta! - Do corredor, Antoine me ameaça. 

- Isso não termina aqui, 'striapach!' - Eu os sigo até a porta do quarto de vídeos e, descontrolada, pioro tudo. 

- Vc pensa que conhece o Leo, filha!? Mas não conhece! Sabe de onde ele vem!? De uma foda mal dada entre um anjo caído e uma humana qualquer! Sua mãe não costuma surtar de vez em quando, Leo!? Não costuma chamar por 'Astaroth' em suas crises!?

- Do que tá falando, tia!? De onde eu vim!? Sei lá! Nasci aqui! Não gosto desse papo!

- A verdade dói, meu querido.

- Tia, hoje tu tá muito esquisita. 'Tá ligada'? Pra mim, 'já deu'Perdão. Eu já estou indo.

- Não, Leo! Vc fica!

- Eu preciso ir, Antoine. Me leva até a calçada? - Um olhar de ódio a mim e ela responde. 

- Claro. Tudo. Menos ficar aqui com quem eu não conheço.

Batendo a porta da sala, ela some. Atrás de mim, meu tio me repreende.

- Que discussão idiota é essa!? Deixe as crianças, filha! Vc sempre gostou do Leo!

- Tudo muda, Enrico. Tudo muda. Ele não é uma boa influência para Antoine.

- Pare de criar confusão, Adessa! - Ordena-me Celeste, francamente decepcionada. - Não era para ser assim! Eu quis voltar para ter uma família com paz! Vc está destruindo tudo com seus ciúmes infundados! Já para o seu quarto e medite sobre tudo o que tem feito e somente saia de lá quando quiser fazer algo de bom! 

- Tia...- Sussurro, magoada. - Vc nunca falou assim comigo antes.

- Esse foi o meu mal!

- Calma, querida. - Pede Enrico, confuso. Abraçando-a com força, ele pergunta num sussurro. - Desde quando ela te chama de 'tia'? - Chorando de raiva, caminho até o quarto onde desejo dormir ao lado do meu marido e, antes de fechar a porta, eu a ouço lamentar.

- Uma longa história, meu amor. Uma longa história.

- Pode começar a contar. Eu tenho todo o tempo do mundo.



- Vc não precisa ir, Enrico! Eu sei cuidar do meu filho! 

- Eu só quero ajudar. - Diz ele empurrando o carrinho de Matteo pela calçada. - Por que não veio de carro? Parece que vai chover.

- Porque...- Vc não sabe dirigir, piranha! Diga isso a ele! Vai lá! Diga a verdade! - Porque eu gosto de andar. Gosto da brisa fresca em nosso rosto. 

- Está frio, Adessa. Matteo pode se resfriar.

- Sempre Matteo. Sempre Matteo. - Resmungo.

- Olhe para mim! - Ordena-me Enrico, em meio à calcada, com os olhos tristes. Sua mão me segura pelo braço quando confessa. - Eu sei de tudo, Eileen. Não esconda nada de seu velho tio. O que pretende fazer aqui, de volta? - Ressentida, escondo o rosto entre as mãos e respondo.

- Voltei pra resgatar minha tia. Somente eu poderia fazer isso. E foi por vc, tio! Foi por vc e por ela que estão do lado da 'outra'! Não é justo! - Em seu ombro, choro de tristeza e saudades. - Eu não quero ser assim. Quero paz para viver com o homem que amo e que me amou. Ele me amou mais do que àquela vagabunda stripper. Eu fui a mãe do filho dele, tio. Ele precisa me amar...

- Não se cobra amor, filha. Ele existe ou não.

- Mas ele me ama. Eu sei. Em alguma parte daquele coração duro, ele me ama. Posso amar Matteo como amei o nosso bebê. O nosso Enzo...

- Filha, não é assim que as coisas funcionam.

- Comigo vai ser! - Retiro Matteo do carrinho, com cuidado e, procurando por Vincenzo em sua academia, esbarro com um homem negro que me abraça e me pergunta.

- Quando vai realizar aquela 'macumba básica' lá em casa!? Esse lugar ficou muito mais leve depois de toda aquela fumaça!

- 'What'??? - Percebendo minha surpresa, ele desiste e, tocando no rosto de Matteo, ele comenta. 

- Ele tá um meninão. - Recuando, mostro a ele minha indignação. - O que foi? Fiz alguma coisa errada, Adessa?

- Não toque nele sem a minha permissão. - Parabéns! Continue! Estou amando ver vc perder pontos com aqueles que Vincenzo ama. - Vc é...

- Não se lembra de mim, Adessa? Fala sério!? Já se esqueceu de seu afilhado também!?

- Afilhado! Vc tem um filho e eu sou a madrinha dele!? - De uma criança negra!? UAU! Vincenzo vai amar esse seu lado racista. Vai lá. Se mostra, 'mo chuisle'. - Perdão...

- João, Adessa. Meu nome é João e eu estou de saída.

- João, meu amigo! - Enrico o saúda e tenta, com sua doçura, explicar minha aversão por ele. - Ela não tem estado bem ultimamente. Levou um tombo feio. Bateu com a cabeça. Afetou a memória. Conhece alguns. Outros não. Queira desculpá-la, por favor.

- Foi grave!?

- Sim. - Mente enrico, contrito. Aproximando-se de João, ele cochicha. - Deram alguns dias para que ela volte ao normal. Peço perdão por ela.

- Sem problemas. - Um forte abraço os une quando Vincenzo me assusta ao sair do escritório.

- Mais problemas, Dess?

- Nenhum, amor! - Empolgo-me com sua presença. Seus músculos sob a camisa em malha, a barba por fazer. - Nosso filho e eu viemos te fazer uma visita!

- Eu vou começar a dar aulas agora. Não posso te dar atenção.

- Nem um pouco!? Eu caminhei por três quarteirões pra nada!?

- O que disse ao João, Dess? Ele ficou chateado.

- Nada. - Mente Enrico, novamente. - João é um excelente rapaz.

- Por que Enrico veio também? Vc não sabe vir sozinha?

- Ele quis me seguir....- Dando de ombros, reclamo. - Eu disse que não precisava.

- Por que não veio de carro? Vai chover, Dess. Como irão voltar com o  carrinho? Vc não tem raciocinado ultimamente?

- Não fala assim...

- Como quer que eu fale?

- Por que não me trata com carinho só uma vez!? Por que tem que ser sempre tão grosseiro!?

- Filha. Controle-se. Estão nos ouvindo.

- 'Fuck them'! Que ouçam! Eu não vim de tão longe para ser rejeitada pelo meu marido! - Num arroubo de raiva, Vincenzo aperta meu braço e, num rosnado, ordena.

- Volte pra casa com o nosso filho antes que chova. Lá, a gente conversa. Entendido? - Um trovão ecoa no corredor da academia quando zombo.

- Tarde demais. Seu filhinho vai ter que assistir ao pai trabalhando se não quiser pegar uma pneumonia.

- Por Deus, Vincenzo. Eu não queria te causar problemas. Perdão.

- Enrico, vc nunca me causa problemas. Ao contrário, em breve, vc vai me tirar de um. Cuida do Matteo por mim?

- Com todo meu corpo e alma.

- 'Bite me'! - Recuando, ele aponta seu indicador em minha direção e, descontrolado, refuta.

- Vc é quem vai se ferrar! Tá me ouvindo...Dess!

- Vincenzo, meu filho, se acalma. - Pede tio Enrico colocando-se entre mim e Vincenzo que, ainda me olhando com seus olhos insanos, se afasta, lentamente. Tio Enrico descansa as mãos em meus ombros e, aflito, avisa. - Se causar outro problema aqui, eu juro que digo a todos quem vc é.

- Ok. Vou ficar caladinha. - Um beijo em sua bochecha e me sento em uma das cadeiras de madeira desconfortáveis abaixo do ringue onde ele desconta sua fúria em algum aluno. Um deles reclama da canção que Vincenzo os faz escutar através dos alto-falantes.



- Ninguém merece ouvir essa música, 'bro'. Isso não é música pra lutar. É pra chorar depois de levar um chute da mulher que se ama. - Rindo, ele concorda. - Isso é dor de cotovelo, Vincenzo? - Lançando-me um olhar decepcionado, ele responde ao aluno. 

- Não...não é não. É uma dor bem maior. Saudades. - Um soco em seu rosto, e ele desperta enquanto eu me rasgo de ódio por dentro. "O sol não brilha quando ela vai embora"!? Shit! Eu estou aqui! Por vc, medíocre! Até quando, Eileen? Cala a boca, 'stripper' vagabunda. Agarrado às cordas elásticas, ele alerta. - Dess, nosso filho tá chorando! Acorda! - Irritada com o choro de Matteo, eu o entrego a tio Enrico e, mostrando-me ofendida, saio dali. Tio Enrico, abalado, me segue pelo corredor.

- Não vá! Não seja idiota!

- Tio!? Vc nunca me xingou!

- Largue o filho dele aqui e hoje mesmo ele descobre quem vc é! Já não percebeu suas desconfianças, estúpida! Eu não vou fazer parte de seu plano egoísta de ficar com ele em detrimento do bem-estar das crianças! Entendeu!? Hai capito!?

- Si. Scusa.

- A chuva parou. Vamos embora.

- Quero esperar por ele!

- VAMOS PRA CASA! AGORA!

- Tá bom. Não precisa gritar. - Choramingo.


Visto uma de suas camisolas curtas e decotadas. Ela tem bom gosto. Aprendeu com o tempo e o dinheiro que deveria ser meu. Uso seu melhor perfume. Seco meus cabelos diante do espelho e gargalho de sua expressão de horror do 'outro lado' da superfície plana. Triunfante, aviso.

- Hoje eu vou foder com o nosso homem e, talvez, eu te deixe assistir.

- Falando sozinha, mãe?

- Deveria ter batido na porta, Antoine?

- Eu bati. Vc não ouviu. Gosta de espelhos? - Pergunta-me ela, observando sua imagem refletida. 

- Sim.

- Eu também. São portais. Ah! Mas disso vc já sabia, né!?

- Sim. Portais poderosos. - Antoine me surpreende ao me abraçar pela cintura e me pedir perdão.

- Tenho sido muito rude com vc, mamãe. Tem razão. Leo não é um bom amigo pra mim. 

- Sério? Vc acredita em mim agora? 

- 'Total'. - Enxugando meus longos fios com uma toalha, eu a vejo atrás de mim. Relaxo enquanto ela massageia minha cabeça e sussurra em meus ouvidos. - Eu adoraria saber como atravessar portais. Ver outros mundos. Ir e voltar...

- Isso é fácil. - Sorrio, revirando os olhos de tão relaxada. Ela continua a mover os dedos delicados em meu couro cabeludo enquanto revelo meu segredo. - Se quiser passar para o 'outro lado', precisa se dar bem com o seu 'outro eu' e simplesmente tocar no espelho e se deixar levar. Depois te ensino as palavras certas a serem usadas.

- E se eu não gostar do meu reflexo? Se ele quiser roubar o que é meu e me deixar presa do 'outro lado'?

- Aaah...- Sorrio, confiante. - Então tudo muda. - Sentando-se ao meu lado, ela se mostra interessada. - Se quiser trocar de lugar com seu reflexo invejoso, basta encará-lo e repetir por três vezes: eu te condeno ao exílio eterno e, com algum objeto, quebrar o espelho. Se ele se partir em vários pedaços, 'a outra' nunca mais voltará a esse mundo. - Num sussurro, ela me questiona.

- Então, se tiver uma outra de mim querendo tomar o que é meu nessa vida, ao partir o espelho, ela ficaria presa do 'outro lado' pra sempre?

- Ela não só ficaria presa como desapareceria, querida. Pra sempre.

- Uau...vc é muito inteligente, mamãe.

- Mas não tente fazer isso. Pode ser muito perigoso.

- Imagino. Não vou tentar. Pode ficar tranquila. - Ela me beija no rosto e, sorrindo, fecha a porta. Ouço sua gargalhada no corredor. Aproveito meu estado de extremo torpor e me deito, à espera de Vincenzo. Adormeço.  Acordo com seu beijo em minha boca. Feliz, retribuo o beijo com devassidão. 

- Faz tanto tempo que espero por isso, amor.

- Imagino...- Ronrona ele. - Não vai mais precisar esperar. 

- Me beija, amor. 

- Estou exausto, Dess. Podemos deixar para amanhã?

- Não! Eu quero agora! Eu esperei por isso por muito tempo!

- Eu sei, amor. Me espera. Amanhã à noite, teremos um momento só nosso. Eu te juro. Vc e eu, pra sempre.


Um beijo rápido e frio e ele se vira para o outro lado e dorme.

Ao menos, finge dormir. Deitada ao seu lado, de olhos fixos no teto, lamento num tom baixo.

-Vc não percebe o quanto eu ainda te amo, Vincenzo?


Inconformada com seu desprezo, eu o acordo com seu pau em minha boca. Entre confuso e excitado, ele se entrega ao prazer e me fode como antes. Antes da 'outra' aparecer e tomá-lo de mim. Antes, quando éramos somente nós dois em uma linda ilha chamada Irlanda. Recusando-se a gozar dentro de mim, ele se levanta da cama e me repreende.

- Vc não deveria ter feito isso.

- Por que não? Vc é meu marido. 

- Sou? - Debaixo do chuveiro, ele me repele ao mentir. - Agora não. Estou atrasado. Preciso levar Antoine ao colégio. Depois, vou trabalhar.

- Fica comigo. Preciso de vc. - Nua, diante dele, eu me ofereço. - Faz amor comigo mais uma vez.

- Nosso filho precisa de vc, Dess. Ele já acordou. - Eu o enlaço pelo pescoço e, saltando sobre seu corpo, ele me segura pelas coxas. Eu cruzo minhas pernas em suas costas. Nossos corpos estão unidos. Sinto seu coração pulsar com força. - Hesitante ele, sussurra. -  Não posso...

- Vc já me amou uma vez. Me ama de novo...- Imploro. - Por favor.

Dessa vez, ele se entrega de corpo e alma. Ainda que chame pelo nome da 'outra', não me importo. Sei que seu coração ainda me pertence. Antes de partir para o trabalho, ele me beija na bochecha, ao lado de Antoine que, enciumada, indaga.

- Não vai trabalhar? Tem faltado muito às aulas. 

- Aulas!?

- Na 'Just Dance', mãe. Vc se esqueceu? Deve ter sido por causa do tombo. Né?

- Sim. O tombo.

- Se quiser, passo lá e digo que vc tá doente. 

- Seria ótimo, filha. Não quero ficar longe de Matteo. - Lançando um olhar de expectativa a Vincenzo, concluo. - Preciso cuidar dele. Nosso filho precisa de mim. - Num tom sombrio, divago. - Nosso pequeno filho irlandês...

- Enrico, poderia ficar em casa com seu neto? - Compreendendo o estranho receio de Vincenzo, ele responde.

- Não vou tirar os olhos dele um minuto sequer. Vá em paz. - Antoine beija a testa do meu tio e, ao beijar a minha bochecha, comenta.

- Vai ser por pouco tempo, mãe. Daqui a alguns dias, vc vai voltar.

- De onde!?

- Pra academia, mãe! - Responde ela, sorrindo. - Pra academia. Não fica nervosa.

- Não estou. - Um passo adiante e, beijando a boca de Vincenzo, aviso. - Vou te esperar, amor.

- Eu sei. - Diz ele, friamente. - Vamos Antoine. Estamos atrasados. - Antes de eu  chegar ao carro, ele dá a partida e acelera, deixando-me para trás.

- Vc precisa me amar, Vincenzo. - Rosno próxima ao portão.

- Não se implora por amor, filha.

- Tia, ele é meu. - Caminhando até o quarto de Matteo que não para de chorar, grito. - Ele é meu! Só meu! Por que diabos essa criança chora tanto!?

- Não fale assim com ele, filha! É uma criança! Não a culpe por sua falta de amor!

- Eu tinha amor pelo meu filho, tia! Não por esse aí!

- Não toque nele! - Alerta tia Celeste protegendo Matteo com seu corpo. 

- Sai da frente, tia! - Rosno. - Ou vou bater nos dois!

- Vc está desequilibrada, Eileen! Controle-se!

- NÃO QUERO! QUERO MINHA VIDA DE VOLTA! FAZ ESSA CRIANÇA PARAR DE CHORAR! - De súbito, Tia Celeste me dá um tapa no rosto. Surpresa e enraivecida, ameaço. - Se não me ajudar a conquistar o meu Vincenzo, eu a entrego à 'Legião' de onde eu a salvei!

- Vc não faria isso...- Duvida tio Enrico, desolado. - No que vc se transformou, filha?

- Um longo tempo na Escuridão faz a gente repensar em muitas coisas, tio. - Um sorriso sarcástico e prossigo. - Tomaram o que é meu. Agora, é a minha vez de ter de volta o que tiraram de mim!

- Aonde vai!?

- Adivinha! - Corro até o banheiro. De frente ao espelho, eu a encaro. Aos gritos, a vagabunda tenta me impedir de completar o ritual de passagem. Impedida por tia Celeste que segura meu braço, pergunto, furiosa. - Por que não agora!?

- À noite, filha. - Aconselha-me ela. - Quando todos estiverem dormindo, nós duas realizaremos o ritual, juntas.

- Celeste! - Protesta Enrico. - Vc não pode! Isso é maligno! - Acariciando seu rosto, minha tia refuta.

- Eu sei o que estou fazendo, amor. É para o bem de todos. Confie em mim, Enrico. Confie em mim.





Preparo o jantar com esmero. Tia Celeste e tio Enrico me ajudaram a montar os pratos típicos de nossa Irlanda. Matteo, no colo de tio Enrico me evita. Parece me temer. Melhor assim. Não preciso fingir que o amo. Esperava um jantar romântico ao lado de Vincenzo, mas sou obrigada a aturar a presença de Leo, Cassie e de seu filho Sean em seu colo. Antoine, sentada à mesa, diante de mim, elogia meu tempero. Dessa vez, minto.

- Obrigada. Foi muito cansativo, mas, valeu a pena. Ver Vincenzo saborear minha comida me faz feliz. 

- Não só ele. - Replica Cassie, limpando os lábios com guardanapos de linho. - Eu estou super apreciando sua comida, tia. Não sabia que conhecia tão bem a culinária irlandesa. Lembra de quando estivemos lá!? - Um suspiro profundo e ela comenta. - Foram dias tão felizes...

- Dias felizes com Aiden?

- Ai, tio! Perdão! Eu não quis dizer isso! Eu nem me lembrei dele! - Rindo, ele se levanta da mesa e a beija na bochecha ao gracejar.

- Fiz de propósito, bobinha. Não tenho ciúmes algum dele. Vcs se divertiram e é isso o que importa.

- Deveria ter. - Provoco. - Aiden ainda ronda a nossa casa.

- Isso não procede, Adessa. Por que não me serve mais vinho? - Aconselha Enrico inflando as narinas. - Não se fala em coisas desagradáveis à mesa.

- Uau, vovô! Eu nunca te vi falando assim com a mamãe! 

- Sinistro...- Cochicha Leo ao seu lado. - Ela não se parece com a sua mãe. Não com a que eu conheci.

- Depois te explico tudo, Leo. Essa noite é especial. 'Tá ligado'?

- Sério!?

- Super!

- Por que, Antoine!? O que pretendem fazer!?

- Te conto mais tarde, mãe! Agora, eu quero comer a sobremesa! Aposto que é aquela torta de morango!

- 'Pavlova'...- Elucida Celeste com os olhos marejados. - Fizemos porque sei que é a sua preferida, meu anjo.

- Valeu, vovó. 

- Fui eu que fiz. - Protesto arrancando o sorriso do rosto de Antoine. - Agradeça a mim. Levei horas dentro daquela cozinha.

- Então, não teve tempo pra cuidar do nosso filho. - Conclui Vincenzo, afastando seu prato com as duas mãos. 

- Claro que sim...- Hesito antes de prosseguir. - Enquanto a torta assava, eu brincava com ele e o alimentava.

- Não me diga!? - Ironiza ele. - E em nenhum momento, nosso filho chorou!?

- Não...- Minto, sorrindo. - Ele é muito fofo. Adora me ver cozinhar.

- Entendo...- De olhos fixos em mim, ele se mantem calado. Todos à mesa se entreolham. Meus tios expressam tristeza em seus semblantes. Antoine demonstra uma eufórica ansiedade. Cassie tenta alimentar, em vão, seu filho quando, incomodada, aviso. 

- Ele não vai comer enquanto o pai dele continuar envenenando seu sangue, palerma!

- Tia!? - Horrorizada, ela recua. Derrubando a cadeira onde se sentava, ela se levanta e, aos prantos, indaga com o filho em seus braços. - Por que diz isso!?

- Porque é a verdade! Acorda! Liam não é quem vc pensa que ele é!

- Cale-se, filha! - Ordena-me tia Celeste, exaltada. - Já passou dos limites!

- Vai me deixar de castigo!?

- Deveria! Mas não tenho mais nenhum poder sobre vc! Infelizmente!

- Poder!? Do que tá falando, vovó!?

- O que Liam tem feito ao meu Sean, tia!?

- Não me chame de tia! Eu tenho a sua idade, idiota!? Vc nunca percebeu as picadas nas coxas de seu pequeno Sean!? Que mãe relapsa!

- CALA A BOCA! AGORA!

- Puta que pariu. Agora vai rolar uma 'treta'. - Constata Leo abraçado a Antoine que parece apreciar as cenas que se desenrolam. - Ela tomou alguma coisa? Tipo...'Crack'

- Eu não uso drogas, seu viciado suicida! - Curvando-me sobre a mesa, tentando alcançá-lo, ordeno. - Sai da minha casa agora!

- Ele fica! - Afronta-me Vincenzo.

- Boa, pai!

- Vai deixar que ela fale assim comigo, Vincenzo!?

- Vou recolher os pratos. - Avisa Celeste, constrangida. 

- Eu te ajudo. - Replica Enrico com Matteo em seu colo. - Leo, vc gostaria de nos ajudar? 

- Sério!? Agora que 'o bagulho tá doido'!?

- Vai, Leo. - Pede Antoine ao cochichar. - Preciso ajudar meu pai...

- Ajudar em quê!?

- Alguém me diz o que pensar...- Implora Cassie agarrada ao seu filho esquálido. Tia Celeste a afasta de mim e a leva até a cozinha, beijando sua cabeça como fazia comigo quando alguém me magoava. TRAIDORA!

- Conhece essa mulher, Dess!? - A tela de seu celular está diante de meus olhos perplexos. Colérico, ele esclarece. - É vc, querida! É o meu filho chorando hoje, pela manhã e ele só não foi ferido por vc porque Celeste te impediu!

- Como gravaram isso?

- Temos câmeras espalhadas por toda a casa, mamãe. Ou eu deveria te chamar de Eileen?

- Vaca! Vc sabia o tempo todo! Sua bruxa miserável! - Antes de avançar sobre ela, Vincenzo me arrasta, da sala até o corredor, com seu antebraço em meu  pescoço enquanto luto por me libertar dele. Sufocando, aviso. - Tá me machucando...

- Vc ainda não viu nada. - Exulta Antoine ao nos  seguir. - Temos uma surpresinha pra vc, Eileen.

- ME SOLTA! - Dentro de nosso quarto, ele pede a Antoine.

- Tranque a porta, filha!

- Já tranquei, papai! - Livre de seu braço, sentada na beirada de nossa cama, tentando respirar sem dor ouço o apelo de minha tia.

- Deixem-me entrar. Por favor. Eu quero ajudar. - Finalmente, minha tia recobrou o juízo.

- Me ajuda, tia! Eles estão me machucando! 

Ela entra no quarto e, ao trancar a porta à chave, recostando-se na madeira, ela revela.

- Infelizmente, filha, é o que vc merece. Não sei de onde veio dessa vez, mas vc trouxe a Escuridão consigo. Já não é a minha Eileen.

- VACA TRAIDORA! - Prestes a avançar sobre minha tia, Antoine a defende com seu corpo e, erguendo uma das mãos, cria um muro invisível contra o qual eu me jogo sem conseguir tocá-las. - MALDITAS! EU NÃO VOU SAIR DAQUI! NÃO SEM O MEU VINCENZO DE VOLTA!

- Ele não te ama, 'striapach'. Ele ama a minha mãe. Aquela que está presa naquele espelho.  - Uma gargalhada histérica e declaro.

- Onde vai permanecer pela Eternidade! Ela não pode sair de lá sem que eu queira voltar, 'vagabundinha'!

A janela do quarto se abre, violentamente. A chuva forte molha o piso em madeira. Penso em pular e fugir quando, Vincenzo, decidido, com seu braço de volta ao meu pescoço, me mantem diante do espelho oval com bordas em bronze. De olhos fechados, evito ver meu reflexo. - NÃO É ASSIM QUE FUNCIONA, ESTÚPIDOS!

- Eu sei! Vc me ensinou, piranha burra! Basta proferir aquelas palavras e quebrar o espelho e vc desaparece!

- 'YOU'RE SUCK'! BRUXA IDIOTA! ELA ESTÁ DO LADO ERRADO! SOU EU QUEM VAI QUEBRAR A PORRA DESSE ESPELHO E ME LIBERTAR DAQUELA QUE ME ROUBOU TUDO! TUDO! - Chego a ver a confusão no rosto de Vincenzo que ainda me mantem presa. Um olhar a Antoine e ele demonstra medo. - Amor, olha pra mim. Eu posso te fazer feliz. Vamos embora daqui e recomeçar uma vida nova. - Suplico ao seu reflexo. - Vc ainda me ama. Eu sei. - Num desespero, ele ordena ao enxergar a mãe de Matteo escolhida,  ajoelhada, aos prantos, do outro lado do espelho. 

- Tira a minha Dess de lá! Eu prometo que vou embora com vc!

- NÃO, PAI! EU SEI COMO TRAZER MAMÃE DE VOLTA!

- TENTA! - Provoco, histérica. Assim que sua mão toca o espelho, ele a suga e a queima. Recuando, ela grita de dor e tristeza. Um riso satânico e esclareço. - ESSE NÃO É SEU MUNDO, ANTOINE! VC NÃO PODE CRUZAR PORTAIS DE ESCURIDÃO, IDIOTA! 

- Mas eu posso.

- NÃO, TIA!

- Sinto muito, filha. Vc se deixou contaminar pelo Mal.

- SE ATRAVESSAR, EU JURO QUE TE ENTREGO À 'LEGIÃO' NOVAMENTE! ELES AINDA A QUEREM!

- Celeste não...- Lamenta Vincenzo. Um abraço forte em Antoine e ela me lança um olhar extremamente decepcionado ao confessar.

- Apesar de tudo, eu sempre vou te amar. - Com a ajuda de Antoine, Vincenzo me empurra no exato momento em que Celeste me puxa consigo para o portal aberto entre esse mundo e o outro. Luto contra minha tia enquanto 'a outra' é resgatada pelas mãos amorosas de Vincenzo. Minha ira triplica ao vê-los abraçados em nosso quarto. Seres da 'Legião' nos cercam. De olhos fechados, tia Celeste espera pelo pior quando meu tio, num gesto ligeiro, a resgata com seu braço em sua cintura. - Quebre o espelho, mãe! 

- Filha!!! 

- Quebra agora, mãe! - Desnorteada, enrolo uma toalha de rosto em minha mão esquerda e, recitando por três vezes: 'Eu te condeno ao exílio eterno, Eileen', com um 'jab', eu o acerto em seu centro.



O espelho se fragmenta diante de nossos olhos incrédulos. Ainda ouvimos seus gritos de horror ao ser dizimada pela 'Legião'

Choro por ela no ombro de Vincenzo. Celeste urra de dor ao ver sua sobrinha partir de maneira tão trágica. Enrico a acolhe em seus braços, escondendo as lágrimas em seu rosto.

Antoine, com um taco de baseball, bate com força contra o que restou do espelho até que nada dele se mantenha de pé. Assustada com seu arroubo de ferocidade, eu a ouço declarar, girando o bastão em sua mão.

- Acabou. Isso me deu fome. Preciso de um pedaço de torta.


De volta à vida, ainda traumatizada por tudo o que aconteceu, após cada aula na 'Just Dance', visito a creche onde deixo Matteo, mesmo que Celeste e Enrico se ofereçam para cuidar dele. "Confio em vcs. Confio muito. Mas os espelhos ainda me assustam"
Com Matteo em meu colo, volto a ver seu sorriso lindo e a beijar todo seu rostinho enquanto ele gargalha. Sentado em sua cadeirinha no banco traseiro, eu o observo pelo retrovisor interno assim que ele balbucia um 'mamãe dodói'? Com lágrimas nos olhos, lembrando-me do quanto ele sofreu com minha ausência, respondo ao estacionar em frente ao colégio de Antoine.
- Não, filho. Nunca mais. Prometo.
Observando a expressão de Antoine assim que cruza o portão do colégio, eu me preocupo. Imponente, exuberante sem a intenção de ser, ela atravessa a rua, caminhando em minha direção. Nem mesmo eu consigo acreditar no quanto ela cresceu. Séculos dentro daquele maldito espelho me deixaram lesada.
- O que houve, filha? Por que essa carinha triste?
- Pra lá, eu não volto! - Afirma ela, decidida. Jogando sua mochila no banco traseiro, ela beija seu irmão com doçura enquanto eu aguardo por mais uma 'bomba'. - Eles são insuportáveis! - Voltando-me para trás, pergunto.
- Quem!? Os alunos!? Eles voltaram a falar de seus cabelos!?
- Não! - Grita ela, irritada. - Agora o alvo são os meus seios! Merda! - Matteo repete 'merda' e gargalha. Engulo meu riso e, focando nela, peço.
- Filha, calma. Vamos conversar. - Sério? Não sei o que dizer a ela. De fato, seus seios cresceram muito e em muito pouco tempo. - Eles não te conhecem. Não sabem que...
- Que eu sou uma aberração!? Que alguém me largou aqui, nesse planeta, sem manual de instrução!? 
- Não fale assim. - Repreendo-a com ternura. - Não te largaram aqui. Seja lá quem tenha te trazido à Terra, conhecia seu potencial. Sua Luz. Sua Força, filha. Vc é especial e sabe disso.
- Não quero ser especial. Quero ser uma garota normal. Quero ser amada por alguém especial como vc e o papai se amam.
- Oi??? - Matteo aponta seu dedinho em minha direção e volta a gargalhar. A expressão de surpresa misturada à de pânico se congela em meu rosto. Em silêncio, giro meu corpo e, com a testa no volante, sussurro. - O que eu faço agora? Querubim na puberdade? Essa é foda!

A porcaria do Leo não se decide! Ele ainda me vê como sua irmã mais nova! Eu cresci! Sei lá como! Mas eu cresci! Quero ficar com ele! Brincar com ele! Lutar com ele! Eu me recuso a voltar pra escola! Eu não preciso estudar! Até o diretor percebeu que a porcaria dos meus peitos cresceram!
- Seios! - Corrijo-a, intrigada. - Por acaso, ele tocou em vc!? Falou algo com vc!?
- Não, mãe! - Reclama ela. - Eu ouvi seus pensamentos!
- Que tipo de pensamentos, Antoine Rossi!?
- Dess! Menos!
- Menos é o 'cacete'! - Olhando-a incisivamente, repito. - Que tipo de pensamento pervertido aquele filho da puta teve!?
- Relaxa, mãe. Ele é gay. Só achou estranho. Queria me perguntar se eram de silicone. - Rindo de si mesma, ela comenta. - Silicone!? Eu!? - Voltando a se irritar, ela declara. - Eu não quero silicone! E eu não piso naquela escola!
- Calma, filha! Tá assustando seu irmão!
- Ele tá rindo, mãe! 
- Ele é tão fofo...- Suspira Celeste. Enfim, enxergo bondade em seus olhos. - Parece entender tudo o que falamos.
- Eu não preciso estudar. - Prossegue Antoine em sua primeira crise de histeria adolescente. - Eu gabarito todas as provas, mãe. Antes da professora ensinar um novo conteúdo, eu já o conheço.
- Uau. - Surpreendo-me. - Na sua idade, eu era muito burra.
- Ainda é.
- Vá pro inferno, Vincenzo! Estamos tendo uma conversa importante e vc fazendo gracinha!?
- Mas não foi uma piada. - Defende-se ele cobrindo o rosto com os braços enquanto distribuo tapas aleatórios intencionando acertar sua cabeça. - Para, Dess. Isso dói.
- Tá vendo! Vcs brincam. Brigam e estão sempre juntos! Eu quero isso! - O sorriso no rosto de Vincenzo some e surge no meu quando ironizo.
- Agora entendeu a gravidade do assunto, marido?
- Creio que temos um problema. - Comenta Enrico enquanto escolhe os tomates na seção de 'hortifruti'. Matteo, dentro do carrinho de compras, brinca com as bananas. Eu empurro o carrinho tendo Vincenzo ao meu lado. Sua mão em minha cintura me traz de volta a sensação de segurança que perdera dentro daquele espelho bizarro. - Seus pais são casados, filha. Tudo tem seu tempo. É preciso esperar.
- Vovô! O senhor sabe que eu não tenho tempo pra esperar! - Engolindo meu choro, eu a repreendo.
- Nunca mais diga isso, Antoine! Nunca mais!
- Mas é verdade! 
- Antoine, meu bem! - Exulta Celeste, diáfana, flutuando pelo corredor, em nossa direção. - Olha o que eu encontrei pra vc!
- Um batom, vovó!? Um batom vermelho!? É simplesmente esplêndido! - Abraçada a Celeste, ela suspira. - Acho que o Leo vai gostar...
- De onde tirou isso Celeste!? Estamos em um supermercado! - Espantada, ela responde com seu polegar apontando para trás. 
- Da sessão de 'Beleza e Higiene Pessoal'. Ao menos, é o que estava escrito na plaquinha. - Sorrindo, ela divaga. -  Nossa menina está crescendo.
- E muito! - Retruco, impaciente.
- Menos, Dess. Qual o mal de nossa filha usar um batom? - Escolhendo verduras e legumes, resmungo.
- Primeiro vem o batom. Depois, o beijo e, daí, só Deus sabe o que pode acontecer. - Abraçando-me por trás, ele ronrona em meu ouvido. 
- Ciumenta. Deixa ela viver um pouco. - Horrorizada com a ideia de que o tempo de Antoine pode estar se esgotando, protesto.
- Celeste! Não apoie as loucuras de Antoine! Retire essa batom, por favor!
- Mas ficou tão lindo...- Lamenta Celeste retocando o batom vermelho ressaltando a beleza exótica de Antoine. Seus lábios carnudos chamam a atenção de muitos. Volto no Tempo e me recordo de ser vista da mesma maneira, com lascívia, e isso não me agrada. - Ok. Se quiser, eu retiro agora.
- Não, mãe! Ficou lindo! - Exulta Antoine tentando se ver na superfície espelhada acima das frutas. - Eu tô bonita, pai?
- Muito. - Responde Vincenzo, comovido. - Mas, lembre-se de que vc ainda é uma criança. Ok?
- Sou?
- Sei lá! - Rindo, ele considera. - Criança ou não, obedeça sua mãe. Ok?
- Certo, chefe! - Arregalando seus olhos amendoados, ela exclama. - CASSIE! - Correndo na direção contrária à nossa, ela nos faz seguir seus passos. Vincenzo me impede de demonstrar meu espanto ao sussurrar.
- Cautela, Dess. Ela não precisa sofrer ainda mais.
- Cassie?
- Tia? Vc melhorou?
- De quê?
- A 'outra morreu'! - Esclarece Antoine abraçada a Cassie. - Essa é a minha mãe de verdade!
- Graças a Deus...- Um sorriso triste e ela tenta esconder os hematomas dos braços e pescoço, cobrindo-os com seu casaco largo. - Criatura bizarra aquela. Eu nunca mais vou me esquecer do que ela disse.
- Quem disse o quê?
- Nada, Liam. - Responde Cassie, visivelmente acuada, a voz trêmula. - É bobagem.
- Liam, vc está bem? - Indaga Vincenzo, intrigado.
- Nunca estive melhor. E vc? Ainda 'em cima do muro'? - Como em uma partida de tênis, nossos olhos atônitos vão de Vincenzo a Liam e de Liam a Vincenzo que, contrariado, responde à altura.
- Quando 'caí', não havia muros, irmão. Não havia lados. Meus pés estão firmes na terra úmida e fresca. Lamento que os seus estejam sujos de lama.
- Uau. Essa foi boa, papai. - Assustada, protejo Matteo com meu corpo assim que enxergo fagulhas de fogo nos olhos de Liam ao rosnar.
- Seu batom cor de puta lhe cai bem, Antoine. Puxou à mãe.
- Liam! - Exaspera-se Cassie tomando Sean de seus braços segundos antes de Vincenzo cerrar os punhos e golpeá-lo com um 'uppercut' no queixo, levando-o ao chão. Do chão, Liam sorri ao limpar o sangue de sua boca na manga de sua camisa. Desorientada, Cassie me entrega Sean e o socorre. De joelhos, ela contem o sangue das narinas de Liam com a fralda de Sean. Em meu colo, aproveito segundos de distração e alvoroço entre minha família e os clientes do supermercado e me concentro. De olhos fechados, enfim, enxergo a verdade.
Uma terrível e irreversível verdade.

- Não é não, Antoine! 
- Mas eu não preciso estudar! Vc sabe disso! Não gosto da maneira como me olham! Eu tenho o dobro do tamanho deles!
- São os hormônios, cacete!
- Não, mãe! Acorda! Eu sou uma aberração! - Largo as compras no chão da cozinha e, segurando-a pelos braços, aviso. 
- Nunca mais repita isso. Entendeu!? Vc é a minha filha! Eu te encontrei na praça vendendo balas! Vc é Antoine Rossi, filha de Vincenzo Rossi e Adessa Rossi. Irmã de Matteo Rossi! Entendeu!? - Revirando os olhos, ela resmunga. 
- Entendi. Haja saco pra tanto 'Rossi'. - Uma gargalhada histérica e, Celeste comenta.
- E ainda faltaram o meu 'Rossi' e o de seu avô! - Vendo-a daqui, rindo e tomando vinho, percebo que o tempo na 'Legião' afetou sua cabeça. Tadinha. - Vc faz parte de uma família especial, meu anjo. - Diz ela, cambaleando até se ajoelhar diante de Antoine. Num tom de voz imponente, ela continua. - Não despreze isso. Vc é muito mais do que ainda imagina e veio ao mundo com uma grande tarefa.
- Qual, vovó!?
- Não sei! - Outra risada histérica e, sem força para se levantar, ela conta com a ajuda de Enrico que, sempre compassivo, a ergue do chão. Confusa, ela resmunga. - Eu costumava ser mais flexível.
- Já não somos tão jovens, meu amor.
- É verdade. - Um beijo casto e sorrio para Vincenzo que se emociona. - Mas ainda estamos dentro do jogo!
- Sempre! - Exulta Enrico erguendo seus braços, mais feliz do que 'pinto no lixo'.
- Aí! Até eles têm o que eu não tenho! Dois velhos têm o que eu não tenho! Eles namoram! Eles são amigos!
- Ei, mocinha! Respeite seus avós! - Incrédula, encaro Vincenzo. - O que é!? Estou disciplinando! Não é isso que vc sempre me diz pra fazer!? - Um beijo em sua bochecha e o chamo de 'fofo'. Ele sorri, orgulhoso. Antoine está prestes a protestar novamente quando ouve o 'ringtone' de seu celular tocar, irritantemente.
- É O LEO! - Grita ela antes de correr até a sala e, suavizando, absurdamente,  a voz, dizer um 'Oi. Tudo bem?'
- Sério!? - Vincenzo arregala seus lindos olhos indignados. - Onde está a adolescente revoltada!? - Dando de ombros, alerto.
- Aí vem coisa! Podes crer!

Arrumo as compras no armário da cozinha. Matteo pede 'nanana' ao pai. Celeste e Enrico trocam juras de amor eterno sobre a bancada. Seria patético se não fosse fofo. Ele esperou tanto por esse momento...- É o quê???
- Leo me convidou pra uma festa irada, mãe! Eu preciso de um vestido novo...tipo de uma princesa!
- Oi??? 
- Ela precisa de um vestido de princesa. - Esclarece Celeste, aos risos. - Nossa neta vai ao baile, Enrico! Isso é tão excitante!
- Sua neta não vai à baile nenhum, Celeste! Ela vai estudar porque amanhã tem prova! - Movendo os braços, aleatoriamente, ela insiste.
- Mamãe, eu preciso ir! É o baile do ano! Tipo! Eu não posso faltar! Ele me chamou pra dançar com ele! 'Tá ligada'!?
- Super! - Empurro Vincenzo, o 'apaziguador' e avanço sobre Antoine ao esclarecer, num tom mais alto. - Tô super ligada! Ligada até demais! Desde quando a mocinha tem idade pra frequentar esse tipo de baile! Ele estuda entre jovens! E vc é ainda uma criança!
- Não sou! Eu tenho seios! - Finjo não ter ouvido a gargalhada espontânea de Vincenzo e, descontrolada, prossigo. 
- Pois então, guarde-os dentro de uma blusa bem larga, mocinha! Nada de bailes!
- Isso parece com aquele filme que vimos onde a menina se fazia de criança, mas, na verdade, era adulta. - Cochicha Celeste. Enrico, aos cochichos, a corrige.
- Não, amor. Agora é o contrário. A menina quer parecer com uma moça.
- Mas ela já se parece com uma! - Refuta Celeste. Ambos riem enquanto reviro meus olhos e bufo.
- Não faz sentido algum vc entre adultos!
Atordoada, ela refuta, aos gritos.
- Eles não são adultos! São jovens! É um baile no colégio do Leo! A namorada de um amigo dele vai completar quinze anos e escolheu o ginásio do colégio como salão de festas! O amigo do Leo exige que ele vá e ele não pode dançar sozinho! O Leo quer participar e disse que não encontraria ninguém melhor do que eu pra dançar com ele! Entendeu!? Ele me escolheu! Entendeu!?
- Eu não sou surda nem burra, Antoine! Não vai!
- Por que não!?
- Porque não e pronto!
- Isso não é resposta!
- É sim! Ouça de novo! Não é não!
- Pai! Me ajuda! - Com as mãos cobrindo o rosto, ele implora.
- Parem as duas de gritar. Seu filho tá chorando, Dess. Vc não é assim. - Aos prantos, tomo Matteo dos braços de Vincenzo e caminho até a varanda. 'Mamãe dodói', murmura ele, soluçando. 
- Não, filho. Eu tô com medo. Só isso. Muito medo. - Antoine continua a lutar por seus direitos na cozinha enquanto Vincenzo me abraça ao perguntar.
- De quê, Dess?
- Não se lembra do que ela disse há algum tempo? Que não chegaria aos quinze anos?
- Ela está longe dos quinze, Dess.
- Tem certeza disso!? Olha como ela está! Seus hormônios estão à flor da pele e ela nem deveria ter isso agora! Ela não pode ir! E se eles...!?
- Nossa filha foi muito bem educada por vc, Dess e ela não é do tipo assanhada. Não puxou à mãe. - Enxugando minhas lágrimas, peço.
- Não brinca. Isso é sério. Ela parece crescer perto dele.
- Leo é um bom garoto, Dess. Ele jamais tocaria nela dessa maneira. 
- Vc não me ouviu!? Ela parece crescer...envelhecer perto dele! E eu não quero perder minha filha!
- Não vai, amor. Não vai. - Afirma Vincenzo, beijando minha testa e a de Matteo quando Antoine, saltitante, passando por nós, corre até o portão. De lá, ela avisa.
- O Leo tá chegando!
- Puta merda...- Resmunga Vincenzo.


Leo, com sua educação e carinho, repreende Antoine por querer impor sua vontade. Ao lado dele, ela se acalma e me pede perdão. Um abraço forte nos une novamente enquanto Enrico e Celeste festejam a paz solicitando músicas e mais músicas à 'Alexa'. Celeste está simplesmente encantada com a caixinha que 'conversa' com ela. Sentados no sofá da varanda, Vincenzo, Leo e  Antoine conversam sobre o baile. Matteo, em meu colo, exige que eu continue a balançar a cadeira suspensa. Caso contrário, ele chora de raiva. Atenta á conversa, tento manter a calma. 
- Se vc não quiser, tia, tudo bem. 'Tô de boas'. Não preciso ir à festa. Não é a 'minha praia'. Eu só pensei que Antoine gostaria de ir porque ela, assim como vc, ama dançar. Ama Música. Ela é jovem. A galera do baile também. 
- Faixa etária da 'galera'? - Indago, sem rodeios.
- Entre quinze e dezenove. Não os conheço. Meu amigo é bacana. Não se mete com esse lance de drogas e...
- Tábua Ouija!? - Rindo, ele afirma.
- Nada de tábuas, tia. Já foi. Aprendi a lição. Graças a vc, hoje eu sou outra pessoa. 
- Antoine não tem quinze anos.
- Mãe!
- Não!? Ela disse que tinha!
- Eu tenho! - Mente Antoine olhando-me com desespero. - Tipo...quase isso, Leo! - Ela não tem sequer dez anos! Alguém me ajuda a não surtar! - Tenho quatorze. - Outra mentira!!! Ela fugiu da turma dos bons 'querubins' e foi jogada na Terra??? - Tipo...faltam alguns meses pra completar quinze. Né, mãe?
- É? 
- Sim. - Mente Vincenzo. - Mas isso não vem ao caso, Leo. Temos receio de ter nossa filha em um ambiente estranho, entre pessoas estranhas. Entende?
- 'Tô ligado'. Por isso, vim fazer um convite, em nome da aniversariante, namorada do meu amigo.
- Convite? - Indago, engolindo em seco. - Que tipo de convite?
- Não sou ligado a essas frescuras, mas ela conhece seu trabalho na 'Just Dance'. A irmã dela é uma de suas alunas. Daí, ela me pediu pra saber quanto vc cobraria para criar uma coreografia para o baile. Aquela coisa zoada de 'príncipe', 'princesa' e 'tals'.
- Eu??? 
- Quem mais, tia!? Vc 'manda muito bem' no que faz e, ainda poderia estar perto de Antoine no caso dela surtar e querer lançar chamas em todo mundo!

Todos riem e comemoram a bela jogada de Leo, exceto eu.
Não quero ver minha pequena Antoine se apaixonar e sofrer depois e, depois, sumir da minha vida.

- Tô exausta. - Desabafo ao lado de Vincenzo, em nossa cama. - O dia foi tão longo.
- Suas emoções te consomem, Dess. É preciso ser mais fria.
- Vc é frio como um gelo. Nunca mais me tocou e não encare isso como um pedido. Eu vi tudo dentro daquele maldito espelho.
- Não começa, Dess...- Implora ele. - Se viu tudo, viu como foi covarde a forma como aquela coisa me provocou.
- Sei. Ok. - Cobrindo meu rosto com as mãos, suplico. - Deixa pra lá. Não quero pensar em mais nada além do que preciso pensar. - Puxando-me para si, ele me abraça forte e beija minha nuca. De costas para ele, faço o de sempre: choro compulsivamente. 
- Dess, perdão. Não fica assim por minha causa. Eu te amo e...
- Não é por vc, amor. Foi pelo que vi hoje.
- Enquanto segurava Sean?
- Sim...
- Vc se ausentou, amor. Sequer viu a confusão. Seguranças, gerente do supermercado, câmeras de celulares apontadas para mim e Liam. Se não fosse por meu pai, Matteo teria ficado no chão.
- Perdão...- Peço entre soluços. - O que vi me abalou profundamente. Acho que briguei com Antoine por estar muito nervosa.
- Quer me contar o que viu ou vou ter que te provocar até ouvir seus pensamentos? - Encolhida, sussurro.
- É terrível. Não quero que se envolva. Vou dar um jeito sozinha. - Saltando sobre meu corpo, do meu  lado da cama, ele me encara mantendo sua mão em meu queixo ao protestar.
- Chega de tentar salvar o mundo sozinha. Ok? Vc ficou presa na porra de um espelho pra salvar minha mãe. Jamais serei capaz de te agradecer por isso, mas, nunca mais faça esse tipo de coisa. Não sozinha. Estamos juntos nessa missão, Dess. Vc e eu, juntos, sempre. Dá pra me entender? - Sem conseguir pronunciar uma palavra sequer, assinto com a cabeça. - Então me conta tudo. Agora. Sei que Cassie tá sofrendo nas mãos imundas de Liam. O que mais seu coraçãozinho tá escondendo, meu grande amor?
- Sean...- Suspiro.
- O que tem ele?
- Não vai sobreviver se eu eu continuar a viver minha vida e não ajudar a Cassie.
- Ele tá doente. Deu pra ver. Cassie também. Como podemos ajudar, Dess? Olha pra mim! Me diz que o que vc viu é mentira!
- Não é. Infelizmente, não é. Sangue de bebês os alimentam e os fortalecem. - Sentada no colchão, tentando respirar, cruzo minhas pernas e, apoiando meus cotovelos nos joelhos, baixo a cabeça ao concluir. - A 'Legião' se alimenta do sangue de inocentes e se multiplica, Vincenzo. Aquele homem que se casou com Cassie e me pediu para ajudá-lo já não existe mais. Cassie tá vivendo com um monstro que a machuca de todas as formas e está sugando a vida de Sean, aos poucos. 
- Maldito. - Rosna Vincenzo. - Como vamos tirar Cassie e Sean dele, Dess?
- Vc tá comigo? - Indago entre surpresa e esperançosa. - Tá disposto a retirar os dois daquela casa maldita onde a 'Legião' se reúne enquanto o pobre Sean morre, vagarosa e dolorosamente? - Enchendo-se de ódio e coragem, Vincenzo pergunta.
- Como e quando, Dess!? - Recuperando minhas forças, revendo meu plano, respondo.
- Na noite do baile.




Impressionantemente, os jovens de hoje, por algum motivo, se apegam à músicas ouvidas por seus pais que, por sua vez,  ouviam músicas de seus pais enquanto jovens. Surpreendo-me, positivamente, quando a debutante me pede que eu crie uma coreografia que nos remete ao mundo dos flashbacks.
"Elliot James é o meu 'crush', tia. Não deixa meu namorado saber disso. Eu amo essa canção!", confessara a aniversariante antes de ensaiarmos exaustivamente até um dia antes da grande noite. Noite que ainda persiste. Apesar da devassidão entre jovens, ainda existem aqueles que desejam encontrar seu grande amor em um baile, eu uma noite morna de verão. Aquele que vai estar ao seu lado nos bons e maus momentos. O que uma puta, stripper e atriz pornô pode dizer a uma linda menina cheia de expectativas? Que, talvez, seus sonhos não se realizem?
- Todos em seus lugares! Esse é o último ensaio! Não estou lidando com crianças....- A imagem do pequeno 'Thor' me vem à mente. Imediatamente, engulo a vontade de chorar e, observando Leo e Antoine em perfeita harmonia, sentimentos contraditórios fazem meu coração bater mais forte. Ele, finalmente, a vê com outros olhos. Ela deixou de ser sua irmã mais nova e se tornou a garota de seus sonhos. - PORRA! EU NÃO ADMITO ERROS! - Sob os olhares assustados de jovens esperançosos, desculpo-me. - Vamos recomeçar. Antoine e Leo erraram.
Uma chuva de vaias e palmas e ouço alguns comentários do tipo: 'Eles chamam isso de amor!'. Emocionada, engulo em seco. Ok. Eu preciso terminar isso aqui e, 'de quebra', salvar Cassie e Sean no momento certo. Literalmente, um passo errado e estrago toda a coreografia de resgate traçada em minha mente. Vincenzo e Matteo me aguardam na calçada do colégio. Chorando em seu ombro, confesso.
- Não sou tão forte assim, amor. Eles se amam. Eu vi. Eu senti. Vamos perder nossa garotinha.
Acariciando meus cabelos, beijando minha testa, com a voz impregnada de tristeza, ele me lembra.
- Ela nunca foi nossa, Dess. Nunca. Tenha fé. O Amor muda tudo. 
De mãos dadas, Leo e Antoine caminham em nossa direção. Pela primeira vez, percebo a aura reluzente de Leo e, emocionada, repito a frase de Vincenzo.
- O Amor muda tudo.


Continua...











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CAPÍTULO 42 - DESCOBERTAS

  Corro, saltitante, através do corredor. Um forte abraço no aniversariante e digo  que o amo muito. Intrigado,  ele pergunta enquanto alcan...