sábado, 30 de março de 2024

CAPÍTULO 48 - FECHE OS OLHOS

 


Não houve sepultamentos. 

Não sem corpos. O corpo de Celeste virou fuligem. O de Enrico, sumiu, como que por encanto. Ainda sinto o cheiro de rosas em seu lençol. Eu mesma faço questão de lavar sua roupa de cama, seu pijama, lembrando-me de suas últimas palavras enquanto eu me angustiava entre o sono e a vigília. 

"Ainda não terminei minha missão".

Ele deveria estar de volta. Ou não. Talvez, eu tenha ouvido o eco de suas palavras durante a festa que Antoine organizou em celebração ao meu retorno. O retorno para o inferno de onde eu não posso sair. Não sem meus filhos.

Antoine dorme há dois dias. Sua temperatura corporal oscila entre trinta e sete e quarenta graus. Leo a protege como um fiel escudeiro. Ele não a deixa sozinha, a menos que eu insista. Revezamos a vigilância enquanto Vincenzo nos observa, à distância. Leo toma banho, come algo e retorna ao seu posto.

"Daqui eu não saio até ela acordar, tia".

Vincenzo lhe dera licença do trabalho por entender sua aflição. Ainda não consigo olhar em seu rosto, tampouco lhe dirigir a palavra. Há muito a ser dito, perguntado, respondido. Há um abismo entre mim e Vincenzo. Abismo que ele não faz a menor questão de cruzar. Sempre calado, ele sai cedo para a academia e me evita durante as refeições. Assim que retorna, ele cuida de Matteo enquanto assumo o lugar de Leo. Exausto, Leo cochila e, quando acorda, acorda aos gritos. Ainda não sei se ele se recorda do que fez ou o fez tomado por alguma força sobrenatural. 

- Tia. Vai descansar. Eu tomo conta dela.

- Depois de vc comer, eu vou. Tem sanduíches na geladeira. Esquente no micro-ondas, depois, vc volta. - Um sorriso triste e aviso. - 'Saco vazio não para em pé'. Já dizia minha mãe.

- A minha também...- Lamenta ele. - Quando Antoine acordar, vou contar a ela essa coisa de 'saco vazio'. Ela vai rir muito. 

- Tenho certeza. - Engulo em seco enquanto o vejo sair pela porta do quarto. Ele não perde a esperança de que ela vai retornar como sempre foi. Eu tenho minhas dúvidas. Nada será como antes. Por que eu não consigo ser otimista? O médico que a examinou nada encontrou de preocupante. Ele a chamou de 'A Bela Adormecida' e me pediu que a observasse. Caso houvesse um aumento significativo de temperatura ou algum outro sintoma, eu deveria levá-la à emergência. Caminhando até a cozinha, penso em como nossa vida mudou da noite para o dia. Mudou drasticamente. Abro a geladeira e deixo duas lágrimas escorrerem em meu rosto ao notar meu bolo de 'desaniversário', pela metade. 

- Quem teria comido meu bolo? Não há clima pra isso?

- Desde quando é preciso clima pra se comer um pedaço de bolo? - Enrijeço-me diante da geladeira, a porta aberta, o ar frio tocando em meu rosto. Meus pensamentos se embaralham. Minha voz some. Minha garganta seca. De olhos fechados, volto a ouvir sua voz revelar. - Eu comi. Tem problema?

- Nenhum. - Bato a porta da geladeira, com força e resmungo. - Está ali pra ser comido. - Dando a volta na ilha em mármore, alcanço a pia. Abro a ducha de água fria sem me recordar do que vim fazer aqui. 

- Comer?

- Não fala comigo.

- Já não estamos calados há muito tempo, Dess? Há mais de dois dias, vc não fala comigo. - De costas para ele, refuto.

- Digo o mesmo. Vc não fala comigo há mais de dois dias.

- Então, não nos falamos há mais de dois dias. 

- Foi isso o que eu disse, idiota.

- Não. Fui eu quem disse primeiro.

- Não banque o engraçadinho agora, Vincenzo. Hora errada pra tentar alegrar o ambiente. 

- Não sinto graça em mais nada, Dess. Meu pai morreu. Minha filha está em um lugar distante. Meu filho sente a falta do avô e minha esposa me odeia.

- Eu não te odeio e, vc se esqueceu de mencionar que sua amante morreu queimada por uma espada em chamas. 

- Eu quero...preciso te contar, Dess. Ela não foi minha amante. Isso é tão falso quanto nojento.

- NÃO! - Jogando o pano de prato em seu rosto, aviso, aos gritos. - NÃO QUERO OUVIR AGORA! POR FAVOR! DEIXA MINHA FILHA VOLTAR SEI LÁ DE ONDE! - Tocando minha mão assim que passo por ele, eu suspiro. Seu toque ainda me faz sentir algo. Ódio? Ranço? Pavor? Amor? Não sei. - Outra hora, Vincenzo.

- Vc não comeu nada! - Alega ele enquanto corro até o quarto de Matteo onde me escondo dele e de meus sentimentos. Matteo, completamente sujo, se delicia ao comer um bombom de chocolate. 

Seu rostinho borrado de marrom me faz sorrir. Suas mãozinhas grudentas tocam meu rosto enquanto seus olhos me observam ao perguntar.

- Mamãe 'dodói'?

- Não, filho. - Rindo, pergunto. - Por que vc sempre pensa que eu tô dodói?

- 'Dodói'!? - Lambendo os dedos, ele aguarda por minha resposta enquanto me faz outra pergunta. - Neném 'meguio'? Neném 'qué meguio'!

- Eu sei, filho. Eu preciso te dar atenção. É que aconteceu tanta coisa...

- 'Bobô dodói'? - Contendo meu choro, explico. 

- Vovô tá no céu, filho. No céu.

- 'Chéu'? - Indaga ele apontando o dedo lambido ao teto. - 'Papai do chéu'?

- Sim. Seu avô tá com o 'Papai do Céu'. - Um arquejo e, desanimada, deito-me em seu tapete. - Por que ele não volta?

- Mamãe 'tiste'?

- Sim. Mamãe tá triste. Muito triste. - Acariciando meus cabelos já grudentos pelo chocolate, ele se deita ao meu lado e me consola. 

- 'Num chola. Bobô voa pa casa di neném'.

- Quem me dera, filho. - Um beijo em seu rosto melado e aviso. - Amanhã, eu vou te levar à natação. Ok?

- 'Meguio'!? - Pergunta-me ele, eletrizado. Equilibrando-se em minha barriga, ele finge nadar, movendo os bracinhos abertos. - Neném chabe 'nadá'! Neném 'meguio'! - Sentindo seu hálito gostoso e o peso de seu corpo em meu ventre, permito-me gargalhar. Rindo, ele afirma. - Mamãe 'dodói' sumiu! - Observando sua alegria espontânea enquanto ele apoia suas costas em minhas pernas unidas e flexionadas, sussurro.

- Te amo, filho. Se vc não existisse, não sei o que seria de minha vida agora. - Olhando em direção à porta, ele celebra.

- Papai!

- Eu...eu não...não estava...espionando nada. Eu...só...

- Fala logo! - Ordeno, rispidamente, sem olhar em seus olhos. Erguendo meu tronco, eu me sento e, de costas para Vincenzo, indago. - O que quer?

- Vc não comeu nada. Eu te atrapalhei. Vim trazer um sanduíche. - Timidamente, ele se ajoelha e deixa, ao meu lado, um prato com meu 'Xburger' predileto com queijo 'cheddar'. Sua especialidade. Ele sempre o preparava para mim quando eu voltava da 'Just Dance', à noite. Quando nossos dias ainda possuíam algo de normal. Sorrio para o prato, sentindo sua presença, aqui, ao meu lado. - Vai ficar aí?

- Não. - Um súbito recuo e ele cai de bunda no chão. - Merda.

- Merda. - Repete Matteo rindo do pai. - Papai caiu. 'Ai ai ai'!

- Papai é bobão, filho! - Brinca Vincenzo. Matteo, caminha até ele e o abraça com força. Emocionado, Vincenzo acolhe Matteo em seus braços e confessa.  - Papai te ama tanto, filho. Não me deixa...- Arregalo os olhos ao ouvi-lo chorar, copiosamente. Ajoelhando-me diante dele, permaneço calada e comovida. Matteo beija seu rosto e, carinhosamente, repete o que sempre digo a ele quando se machuca.

- 'Vai pachá. Shhh. Vai pachá.' - Erguendo-se, ele seca as lágrimas com o dorso da mão e avisa com a voz fanha. 

- Coma antes de esfriar. - Faminta, eu o obedeço, recostada à parede, pensando em como me aproximar dele sem bancar a idiota. Matteo devora os pedaços do pão que levo até sua boquinha, sempre aberta. Animado, ele corre pelo quarto e proclama, de boca cheia. 

- Mamãe 'meguio'!!! Neném 'meguio'!!!

Como encontrar forças para seguir adiante sem Enrico ou Antoine? Como voltar a confiar em Vincenzo?


Levo um tempo até desacelerar Matteo que cismava em demonstrar suas habilidades na banheira com espuma, e colocá-lo em seu berço onde ele repetiu, por diversas vezes, a palavra 'meguio' até pegar no sono. As estrelas brilham sobre sua cabecinha quando deixo sua porta entreaberta e o abençoo. Vou até o quarto de Antoine. Como uma princesa, ela sorri ao continuar a dormir. Deve estar sonhando com Leo que, exausto, cochila ao seu lado. Afasto-me de mansinho e, caminhando até a varanda, sinto um cheiro peculiar e bastante familiar. Piso no chão em madeira com os pés descalços. De braços cruzados, observo a chuva fina molhar as árvores e arbustos do nosso quintal. Lembro-me de Enrico dançando com a pedra que ganhei do homem estranho na cafeteria. Segundo Enrico, os anjos estariam ao nosso redor. Por que deixaram que o levassem? Um arcanjo não pode morrer assim. A vaca diabólica da Celeste não deveria ter o poder de sugar as energias de um ser superior a ela.

- E não tem.

- Cacete! Sempre me assustando! - Sentado na poltrona, desleixadamente, ele comenta, de olhos fechados.

- Eu já estava aqui. Vc deveria ter olhado para os lados antes de começar a pensar.

- Vc deveria parar de ler meus pensamentos e cuidar da sua vida.

- Tô tentando...- Diz ele, baforando a fumaça do meu cigarro. - Não é seu. É meu.

- Desde quando vc fuma!?

- Desde que eu comecei a me sentir um merda. - Tossindo, ele conclui. - Desde que meu pai morreu e eu deixei de ser alguém nessa casa.

- Isso é maconha!?

- Sim. - Revirando os olhos avermelhados, arrastando a voz, ele pergunta. - Qual o problema? Vc sempre fumou.

- E vc sempre fez escândalo por isso!

- Me deixa em paz...tá tudo certo.

- Me dá isso! - Sentando-me ao seu lado, tento tomar dele a guimba do cigarro ainda aceso. Ele afasta o braço, abrindo um sorriso infantil. - Vc não sabe fumar! Tá deixando a porra da fumaça chegar aos pulmões! Isso faz mal! Sabia!? - Sorrindo, ele zomba.

- Não me diga? Eu 'tô de boas'. Se eu morrer, não vou fazer falta a ninguém.

- Me dá! - Estico meu braço até sua mão. Um novo recuo de seu braço e seu queixo roça minha bochecha. Estamos próximos demais. Afastando-me dele, resmungo. - Precisa fazer a barba. Tá parecendo um mendigo!

- Não tem importância. Ninguém liga. - Um tapa em sua mão e a guimba cai na grama úmida. Prendo o riso enquanto ele reclama, 'chapado'. - Porra. Nada a ver. Eu tô tentando relaxar...

- Não relaxe! Eu não estou relaxada! Logo, vc não tem o direito de relaxar! 

- Dess, eu tentei falar com vc. Vc não quis. Eu tô tentando ficar longe de vc. Vc vem aqui e 'corta o meu barato'. O que vc quer afinal?

- 'Corta o meu barato'!? Isso é jurássico!

- Aprendi com meu pai...- Levando as mãos ao rosto, ele volta a chorar. - Sinto tanto a falta dele. Não sei o que fazer. - Desejando abraçá-lo, eu me afasto ainda mais, escorregando no assento macio da poltrona larga. - Eu fui o culpado. Eu o matei.

- Não. Não diz isso. Eu tenho mais culpa do que vc. Eu não deveria ter ido à casa de Cassie e enfurecido Liam.

- Vc tentou salvar sua amiga, Dess. 

- Ela era mais do que isso. Cassie era uma segunda filha pra mim. Ainda ouço seus risos antes de dormir. - Olhando-me com ternura, ele pergunta. 

- Vc tem medo de saber se ela está no inferno?

- Tenho. Lúcifer disse que a alma dela pertencia a ele. Não tenho como saber onde ela está. Não tenho como ajudá-la e isso tá acabando comigo.

- Tenho como saber.

- O quê!? - Nossos olhos se encontram. Enxergo medo em seu semblante ao responder num tom sombrio.

- Onde Cassie está. Não é isso que te aflige?

- Não!

- Ué!?

- Sim! Mas não quero!

- Não quer o quê!?

- Saber! Eu não quero saber onde ela tá! Não agora!

- Vc é louca!?

- Sou! Vc me deixa louca, Vincenzo! Nenhuma mulher normal suportaria o que eu tenho suportado sem enlouquecer!

- Ok! Pode me culpar! Eu acabei com a sua vida quando te reencontrei!

- Eu te culpo mesmo! Vc me ferrou, Vincenzo! 

- Eu sei...- Lamenta ele, com os cotovelos sobre os joelhos e a cabeça entre as pernas. - Eu só fiz merda.

- Mas...também me salvou de uma vida desregrada, sem esperanças. Vc me deu um filho...

- Vc me deu dois. - Um riso curto e ele brinca. - Venceu.

- Não seja idiota.

- Eu sou.

- Olha pra mim.

- Não quero.

- Vai continuar a esconder seu passado? - Seu pescoço estala assim que ele me encara. Seu olhar triste me observa antes de responder.

- Não. Quer saber de tudo, agora?

- Sim. - Voltando-me em sua direção, cruzo as pernas e fixo meus olhos nos dele. Meu coração acelera seus batimentos quando lhe peço. - Conta tudo. Por favor. - Com as mãos cruzadas na nuca, ele parece escolher as palavras.

- Não tô escolhendo merda nenhuma. Só tô com dificuldade de raciocinar. Esse cigarrinho não te faz bem. Melhor parar de fumar.

- Não fumo há séculos. Fala.

- Qual parte?

- Desde o início, Vincenzo!

- Não grita.

- Não tô gritando! Ainda!

- Celeste mentiu. Nunca fomos amantes. 

- Não acredito.

- Problema seu. Se quiser que eu continue, finja que acredita e não me interrompa, porra. Isso é extremamente difícil pra mim.

- Por quê?

- Porque é uma história suja. Cheia de erros. Meus erros.

- Continua.

- Meu pai amava Celeste. Como eu poderia traí-lo de uma forma tão sórdida? Além disso, ela não fazia o meu tipo.

- Que tipo!?

- Vc. Vc sempre foi o meu tipo. Desde o início. Por vc, eu melhorei.

- Vc já foi pior?

- Sim. - Movendo a cabeça, parecendo espantar pensamentos intrusivos, ele prossegue. - Não tô espantando merda nenhuma. Para de pensar. Isso me atrapalha. Aonde vai? - Erguendo-me da cadeira, alerto. 

- Não saia daí. Já volto.

Caminho até a sala. Arranco a tomada de 'Alexa' da parede e, decidida a ouvir tudo o que ele tem a revelar, retorno à varanda. 

- Sério!? Tu quer ouvir música agora!?

- Se for a única forma de vc parar de ouvir meus pensamentos, sim. 'Alexa'. Tocar 'Bach'. 'Jesus alegria dos Homens'

'Alexa' me obedece. Vincenzo comenta. 

- Boa escolha. Espero que Ele me perdoe e proteja vcs...

- De quê? De quem? - Indago, diante dele, sentada na poltrona, cruzando minhas pernas. Tocando suas mãos trêmulas. - Conta, marido. Por pior que seja, eu ainda tô aqui, do seu lado.

- Dess...- Um beijo em minha testa e ele esconde o rosto entre as mãos. - Só um minuto.

- É tão grave assim? - Pergunto, assustada. - Vc matou alguém? Feriu? Por que Lúcifer me disse que o nosso amor está fadado à tragédia?

- Porque ele é um ser miserável. Nunca foi amado. Sempre desprezado e temido. Não ouça o que ele te diz, Dess. Ele quer nos separar.

- Não vai conseguir. Me fala tudo. Não havia anjo bom como vc me revelou há alguns anos?

- Não. Eu nunca fui tão bom.

- Vc era mau?

- Não. Eu fui burro e...

- E!?

- Ok. Me ouça e, depois, faça suas perguntas. 

Com medo do que ele está prestes a revelar, concordo. 

Quando eu ainda era um anjo, visitei a Terra à procura de novas sensações. Lúcifer ainda era meu amigo. Ele me incitou a errar...a pecar. Antes de te encontrar, fiz uma mulher sofrer. Daí, vem meu transtorno. Eu a obriguei a me satisfazer...

- Vc a violentou? - Comprimindo os olhos, ele assente com a cabeça enquanto tento não perder o equilíbrio. - Ela morreu?

- Não. - Responde-me ele, baixando a cabeça. - Ela viveu. Eu pedi perdão a ela e, confuso, vaguei pela Terra até te encontrar naquela noite. 

- Não me lembro. - Minto. - Como foi?

- Um alívio. Um sopro de Deus. Vc me ensinou a ser bom novamente. Fizemos amor. Eu não te forcei a nada. Eu quis retornar ao Céu e pedir aos arcanjos que me deixassem 'cair' por vc. Eles não me atenderam. Estavam ocupados. Havia uma grande guerra no Céu, orquestrada por Lúcifer e seus amigos revoltados. Acabei 'caindo', por engano, como eu te já contei. Eles me confundiram com um dos rebelados e, até hoje, não responderam ao meu pedido.

- Não precisa. Vc já está na Terra.

- Não com o consentimento de 'Meu Pai'

- É óbvio que 'Seu Pai' já sabe, Vincenzo!

- 'Nosso Pai', Dess. 'Nosso Pai'.

- O 'Meu Criador' não se limita a conceder permissões. Ele nos deixa viver de acordo com o que achamos correto. Cada um que arque com as consequências de seus atos.

- Exato. O 'Seu Criador' é parecidíssimo como o 'Meu Pai'. Ele me deixou aqui, na Terra e eu te encontrei por diversas vezes e, enfim, construímos uma família.

- Disso eu já sei, Vincenzo. Por que aquela vaca me chamava de 'macaca'?

- Era assim que os rebelados se referiam aos Humanos. No início, vcs se assemelhavam aos primatas. Então, houve a Evolução de sua espécie, o que aumentou a ira e a inveja de Lúcifer. Ele ainda não admite ser menos amado do que vcs. 

- Vincenzo. Olha pra mim e me diz a verdade.

- Tô olhando, Dess. - Amo seu olhar puro. - Pergunta.

- Por que vc me queria longe de Liam?

- Depois de tudo, eu preciso responder!? Ele levou Cassie ao suicídio e tentou te matar, Dess!

- Antes disso, Vincenzo! Vc deu sinais de que eu deveria evitá-los! Por que o medo!? Por que aquele papo de não querer nos perder!?

- Ele quer que eu me junte à Legião e lute contra Lúcifer. - Rindo, ironicamente, ele comenta. - Como se eles fossem adversários à altura do 'Rei dos Infernos'.

- E vc é?

- Dess...eu não quero falar deles.

- Por que o medo? Eu ainda não entendi. Estamos juntos. O pior já passou. Seu pai partiu. Cassie partiu. 

- Sean ainda está com eles. - Um gemido de dor e imploro.

- Não fala. Isso tem tirado meu sono. O que eles podem fazer com o pequeno Sean, Vincenzo?

- Dess...- Suas mãos pressionam minhas têmporas quando ele revela. - Seu 'pequeno Sean' não é tão indefeso quanto vc pensa.

- O que quer dizer com isso? - Assusto-me. - Cassie, segundos antes de pular pela janela, disse que metade dele é Luz.

- Exato. Uma metade é Luz. E a outra? - Um súbito arrepio e, levando a mão ao peito, refuto.

- Não. Sean é uma criança pura. Como nosso filho. 

- Tem certeza? Por que eles ainda não o mataram? - Um arquejo de horror e pergunto.

- Vc acha que Sean é...?

- É uma criança, Dess. Uma criança que, se não for orientada por alguém com um bom coração, pode se transformar em um brinquedo mortal nas mãos de gente ruim. Ele é filho de um demônio. O que pode resultar disso? 

- O mesmo que se pode esperar de nosso filho. - Respondo, angustiada. - Não se esqueça de que sua Anahita descende da ligação entre uma humana e aquele ser maligno. Se o pequeno Sean tem um futuro marcado pelo Mal, nosso Matteo...- Abraçando-me com força, ele me pede perdão e afirma.

- Nunca! Nosso filho não tem o sangue dele! Gerações se passaram! O sangue foi modificado! Purificado! Quase nada de Lúcifer resta em nosso filho, Dess!

- Fica calmo. Isso não me atormenta. Conheço Matteo. Ele é bom. - Ainda abraçada a ele, sussurro. - Vc ainda não me disse o que te liga a Liam. Por que me pediu pra não tocar mais nele? Quando eu disse que quase o matei, vc sentiu medo. Eu vi. Eu senti, Vincenzo. No hospital.

- "Eu vi. Eu senti". - Repete ele, sorrindo. - Vou sentir falta disso, Dess...

- Fala! Por que vai sentir falta!? Vai nos deixar aqui!?

- Não se vc se mantiver longe dele, Dess.

- Por quê???

- Porque se ele morrer...- Ávida por suas palavras, não percebo o grito de Leo vindo do quarto de Antoine. É Vincenzo quem me desperta, levantando-se, apressado. - Nossa filha, Dess! 

- Antoine!?

- Vem!

Corremos juntos até o quarto. Empurramos a porta entreaberta e, arquejamos juntos ao ver nossa filha de volta a esse mundo. De volta ao seu corpo.

- Ela acordou, tia! - Exulta Leo enquanto Antoine nos surpreende com uma pergunta.

- Ainda sobrou um pouco do seu bolo de ontem, mãe? Tô varada de fome!



- Vc tá diferente, filha.

- Em quê? Eu tô com fome. Só isso.

- Foram quase quatro dias, tia. O sono alimenta, mas, agora, acordada, ela tende a recuperar o tempo perdido.

- Tempo perdido...- Repito, elevando meus olhos ao teto da cozinha, recordando a última noite de vida de Enrico. - Vcs dançaram essa música.

- Dançamos não. - Corrige-me Antoine abocanhando seu segundo 'Xburger' preparado por Vincenzo. - Pulamos. Disso eu me lembro. Música 'sinistra'.

- Tem outras, Antoine. Mais 'sinistras' do que essa. - Comenta Leo, iluminado sob a luz tênue do lustre acima de nossas cabeças. Sentados à bancada, Vincenzo e eu os observamos, atentos. - Eu vou te mostrar tudo agora que acordou.

- 'Tô ligada'!

- Vc cresceu, filha. Seus músculos, os cabelos...

- Dess, é normal.

- Não. Não é. Se eu dormir hoje, acordarei, da mesma maneira, daqui a quatro dias, Vincenzo.

- Faz sentido, pai. 

- Antoine! Coma devagar! O mundo não vai acabar hoje!

- Tem certeza? - Lançando-me um olhar indecifrável, ela sorri ao devorar seu sanduíche. - Fica calma, mãe. Foi uma brincadeira. - Soltando o ar dos pulmões pela boca, resmungo.

- Não tem graça, filha. Onde esteve enquanto dormia?

- Meu maninho tá com fome. 

- Não desconversa. - Matteo em meu colo, se diverte com o ketchup, traçando uma linha torta  sobre a bancada em mármore enquanto insisto. - Por que não quer responder? Precisamos saber o que aconteceu, filha. Vc desapareceu por quatro dias e, durante esse tempo, esteve com febre.

- Mãe, relaxa. Eu tô de volta. Fala pra ela, pai.

- Eu??? Eu eu não sei aonde foi!!!

- Por que o nervosismo, Vincenzo!?

- Não estou nervoso, Dess. Eu também quero saber onde ela esteve. Talvez, ela não se lembre.

- Talvez, eu me lembre e...- De boca cheia, ela conclui. - E não queira...ou não possa dizer.

- Talvez, eu dê uma 'surtada' agora e te obrigue a falar!

- Dess! Calma!

- Pro inferno com a calma! Nossa filha tá escondendo algo importante de nós! Vc não consegue sentir!? Ou vcs estão se comunicando enquanto o Leo e eu bancamos os idiotas!?

- Mamãe 'dodói'? - Revirando os olhos, respondo à pergunta clássica de Matteo.

- Não, filho! Não tô 'dodói'! Eu tô com raiva! É diferente!

- Mamãe 'dodói'. - Afirma ele antes de beijar minha bochecha com sua boca melada pelo suco de manga. Antoine ri do irmão que, no chão, segue em sua direção. Antoine abre seus braços e o recebe em seu colo. - Mamãe 'dodói'?

- Não, maninho. Ela tá nervosa. Só isso. Come. - Oferecendo uma batata frita a Matteo, ela se encanta e se cala. Ao redor da bancada, todos a imitam, exceto eu. 

- Filha. Fala alguma coisa.

- Eu estive com meu avô. - Vincenzo arqueja, surpreendido e emocionado. Aflita, pergunto.

- Onde!?

- Onde ele está no momento.

- Como ele está, filha? - Tocando o dorso de sua mão, Antoine acalma Vincenzo ao responder.

- Ele tá bem, pai. Muito bem.

- Ele vai voltar!?

- Não exatamente.

- 'Não exatamente' não é resposta!

- Dess, vc não poderia simplesmente aceitar o que ela fala sem pedir mais!? - Inflando as narinas, respondo.

- NÃO! NÃO POSSO, VINCENZO!

- 'MAMÃE DODÓI'! - Grita Matteo lançando um olhar furioso a Vincenzo. Engulo o riso enquanto ele bate com a palma de sua mãozinha sobre o mármore e o ameaça com um 'Ai ai ai!' - Papai feio! - Rindo, Vincenzo o toma dos braços de Antoine que, satisfeita, salta da banqueta e me beija na bochecha. Leo a imita. Ainda irritado, Matteo dá um tapa no rosto de Vincenzo. Eu o repreendo com autoridade.

- Isso é feio, filho! Peça desculpas! Agora! Ai ai ai! - Seus lábios tremulam antes de chorar. Vincenzo o mima em seu colo enquanto Matteo repete, inconsolável, um 'mamãe dodói'. - Filha, aonde vai!? Ainda não terminamos. - De mãos dadas a Leo, ela me encara por segundos antes de declarar, num tom sombrio e deixar a cozinha.

- Um terá de partir para o outro vir. 

- EI, MOCINHA! - Erguendo-me da banqueta, tento ir atrás dela, mas Vincenzo me impede e, pacientemente, me orienta.

- Depois, Dess. Depois. Dê um tempo pra ela. Ok?

- Tempo? Tempo é o que nós não temos, Vincenzo. - Ela tá crescendo e se afastando. Vc não percebe?

- Sim. - Abraçando-me com Matteo ainda em seu colo, ele me pede. - Vamos tentar viver com o que temos no momento? - Um aperto no peito e concordo. - Eu te amo. Não me deixa.

- Nunca.

- 'Mamãe dodói' passou? - Rindo, eu minto.

- Passou. 







Antes de regressar ao 'Just Dance', levo Matteo à natação. Animadíssimo, ele corre até a borda da piscina assim que retiro seu roupão com a estampa dos 'Minions'. Confiante, ele mergulha na água morna antes mesmo do início da aula. Sem as boias nos braços, ele permanece submerso até eu sair de meu estado de choque e, desesperada, observar a apatia do professor ao me encarar sem expressão alguma em seu rosto. Num salto, alcanço o fundo da piscina. Prendendo a respiração, procuro por meu filho ouvindo o som do silêncio. Movendo braços e pernas, evito emergir sem ele. Com dificuldade, nado até uma das extremidades. As roupas pesam, os cabelos flutuam, meus olhos ardem pela ação do cloro. Meu coração bate com força dentro do peito. Não posso desistir agora. Não enquanto não encontrar meu filho que, de súbito, passa por mim e emerge, agarrado a algo. Sinto seu toque em meu ombro e, lentamente, movo minha cabeça. Seu sorriso me faz arfar, aliviada. Inconscientemente, inspiro água pelo nariz. Uma dor aguda invade minhas narinas, subindo até o topo de minha cabeça. Antes de fechar os olhos, vejo bolhas por todos os lados. Matteo, ágil como um peixe, me puxa para cima. Desnorteada, toco na mão estendida em minha direção. O movimento da água distorce sua imagem, embora, eu a reconheça. Puxando-me até a borda, ele me faz deitar. Sinto frio e medo antes de cuspir água pela boca e tossir. "Nosso filho!", sussurro com dificuldade. Surpresa, eu o vejo, agachado, ao lado do pai, perfeito e sorridente. Visivelmente emocionado, sob uma saraivada de aplausos, Vincenzo cochicha em meu ouvido.

- Nosso filho acaba de salvar a vida de um amiguinho, Dess. Ele é bom. Puxou a vc.

- Sério!?

Dentro do carro, no banco traseiro, com as roupas úmidas, o cabelo desgrenhando e tremendo de frio, agarro-me ao meu filho coberto pelo roupão e, através do retrovisor interno, aviso a Vincenzo.

- Havia algo no fundo da piscina. Eu vi. Tinha olhos vermelhos e não tinha boas intenções. Ele queria o nosso filho, Vincenzo.

- Eu acredito, Dess. Eu acredito. - Diz Vincenzo fixando seus olhos assustados em meu reflexo. - A perseguição já começou. - Lamenta ele ao volante. - Estamos perto do início do fim.

- O professor viu tudo e não fez nada! Ele me olhou e não fez nada!

- Não volte a esse lugar, Dess.

- Não voltarei. Tenho medo, marido.

- Eu também. Mas não vou desistir se vc estiver comigo.

- Estarei...- Beijo a cabecinha de meu novo herói enquanto ele repete sua famosa frase.

- 'Mamãe dodói' passou? - Sentindo-me impotente, minto outra vez. 

- Passou.


Abraçada ao meu filho, sentada no chão de seu quarto, escuto a narrativa peculiar de Matteo sobre o que acontecera durante o dia enquanto Antoine penteia meus cabelos ainda úmidos e lavados. Rindo de seu vocabulário restrito e de sua dramaticidade nos gestos das mãos, boca e olhos arregalados, ela comenta.

- Meu maninho tem um poder ainda maior do que o meu, mãe. Não permita que ele se desvie.

- Não entendi, filha. - Esfregando meu couro cabeludo com a toalha, ela desconversa ao perguntar.

- Por que todas as meninas têm uma festa quando completam quinze anos?

- Oi??? De onde veio essa pergunta???

- Leo me disse que é comum. - Um suspiro e ela lamenta. - Eu queria tanto ser comum! Acho que vou sentir saudades daqui!

- Antoine. - Cubro meu rosto com as mãos e imploro. - Para, por favor. Não gosto quando começa com esse assunto.

- Ok. Não precisa chorar, madame. Seu cabelo está simplesmente esplêndido. - Olhando-me no espelho oval à minha frente, murmuro.

- Eu amo tranças. 

 - Eu também. Se um dia, eu pudesse ter uma festa de quinze anos, eu estaria com uma longa trança.

- Vc sabe quantos anos tem? - Indago entre desconfiada, curiosa e amargurada. - Pelo seu tamanho, eu te daria uns quinze ou dezesseis. - Olhando-me pelo espelho, ela concorda.

- Devo ter quinze...

- Deve? Não existe alguém, lá em cima, que te direcione?

- Sim. Existe.

- Filha, fala comigo. Sou sua melhor amiga. Ao menos, aqui na Terra.

- Vc é minha melhor amiga em todo o universo, mãe. - De súbito, choro copiosamente. Emocionada, eu a abraço enquanto Matteo corre pelo quarto, cantarolando 'nininha dodói'. Incomodada com sua fixação por doença, abro a porta do quarto e, gentilmente, eu o expulso ao gritar.

- Vincenzo! Cuida dele! - Recostada à porta fechada, indago. - Seu irmão tem razão!? Vc tá doente!?

- Não, mãe...- Revirando os olhos, ela sorri ao responder. - Ele é uma criança especial, mas, ainda assim, é uma criança. Não tô doente. Eu só estou no fim.

- Aaaah tá...- Minhas pernas enfraquecem enquanto escorrego até o chão e, sentada, puxando o ar pela boca, suplico. - Filha. Não nos deixe. Não sei viver sem vc.

- Não vou, mãe. Tô te zoando. - Mente ela. Vejo em seus olhos. Assim como o pai, ela não sabe mentir. - Levanta. - Estendendo-me o braço, ela avisa. - Hoje tem treino de 'Kickboxing'. Preciso estar perfeita para o grande dia.

- Eu me nego a perguntar que dia é esse.

- Melhor assim, mãe. Vc me leva até a academia ou peço ao meu pai? - Reunindo todas as minhas forças, respondo.

- Eu te levo. Afinal, lá é o meu trabalho.

- Se eu te mostrar uma música, vc monta uma coreografia pra mim?

- Claro, filha. - Um longo abraço e tento não chorar em seu ombro. Deus. Ela já está tão alta quanto eu...- O que quiser.

- Ok! Vou contar ao Leo que teremos o nosso próprio baile! 

- Que baile, filha!?

- Dos meus quinze anos! Vai ser simplesmente esplêndido!

- Sem convidados!? Sem salão!? Sem bolo!?

- Sim! São só detalhes, mãe! Se vcs estiverem comigo, eu estarei feliz! - Correndo até seu quarto, ela fala com Leo pelo notebook. Inocentemente encantada, ela comemora. - Vamos poder dançar aquela música, Leo! Minha mãe vai montar uma coreografia! Vai ser como uma grande festa só que de 'mentirinha'!

Recostada à parede do corredor, elevo os olhos ao teto e volto ao dia em que ela decretou o fim de sua existência na Terra. Aos quinze anos. Isso não pode passar em branco. Não mesmo. Se ela sonha com uma festa de quinze anos, ela vai ter uma. A melhor de todas. Ela merece.


Pode parecer covardia. Talvez, seja. Evito me reencontrar com Aninha e rever o 'menino carrancudo'. Ouço elogios sobre Antoine de meu colega, professor de 'Kickboxing'. Ele afirma nunca ter visto uma aluna tão disciplinada quanto ela. Tão focada em um objetivo.

- E qual seria o objetivo? Ela te falou? - Pergunto durante o intervalo entre uma aula e outra. - Ela te contou alguma coisa?

- Sim. - Confirma o professor. - Ela diz estar se preparando para alguma espécie de batalha. Não me recordo o nome...

- A 'Grande Batalha'?

- Exatamente! - Diz ele, sorrindo. - É algum tipo de jogos entre jovens? Um campeonato ou algo parecido!? - Preocupada, minto, desviando meus olhos de seu olhar curioso.

- Não. É bobagem. Antoine adora dramatizar.

- Adessa. Tá fugindo de mim? - Voltando-me para trás, eu a reencontro.

- Aninha...

- Não te vejo há tanto tempo. Desde que...

- É...- Hesito, sem jeito. - Eu tive problemas. Agora, espero voltar de uma vez por todas.

- Por que não me olha? - Por que o 'menino carrancudo' continua ao seu lado? - Adessa, eu preciso de sua amizade. É a mais sincera que eu já tive.

- Vc ainda a tem, querida. É que...

- Vc sente alguma coisa?

- Não. - Minto ao fixar meus olhos no menino ainda mais sujo e zangado. - Eu tenho andado ocupada demais. Vc melhorou?

- Sim. Parei de sangrar, mas...

- Mas? - Puxando-me para um dos cantos da academia, ela cochicha.

- Sinto dores nas costas e não consigo dormir direito. Sempre acordo de madrugada e tenho a nítida sensação de que não estou só no meu quarto. Eu tô enlouquecendo ou tem alguma coisa perto de mim?

- Não sei. - Minto novamente. Odeio mentir. Sério. Como falar que eu não aceitei o aborto e que, talvez, ela devesse reconsiderar seu posicionamento com relação aos métodos contraceptivos? - Não é assim que acontece. Preciso de concentração e calma.

- Vc falou sobre um menino. - Segurando meu pulso, ela prossegue, assustada. - Vc conversou com ele enquanto eu sangrava no dia do aborto. Vc viu alguma coisa, Adessa? Me fala. Por favor.

- Não aqui. - Um olhar de reprovação ao menino montado em suas costas e afirmo. - Não agora. Vamos conversar mais tarde.

- Promete? - Apiedando-me de seu estado deplorável, respondo.

- Prometo. - Tocando em suas costas curvadas, concentro-me ao orar ao Criador para que conceda descanso ao menino. De súbito, ela se mantem ereta e, eufórica, avisa. 

- Parou de doer! Como conseguiu!?

- Não fui eu. Foi o Criador. Acredita n'Ele?

- Sim. Mas tenho andado afastada.

- Nunca é tarde pra se aproximar d'Ele, Aninha. Ninguém melhor do que eu pra te afirmar isso.

- Posso te esperar lá em casa pra gente conversar?

- Pode. - Uma olhadela ao relógio acima de sua cabeça e comento. - Tô atrasada pra próxima aula. Depois, a gente marca um encontro. Ok? - Beijo sua cabeça e, a caminho da sala de aula, ele me faz parar.

"Não vou me afastar dela. Vc sabe disso", alerta o menino, contrariado, com seu ódio crescente. Fingindo não me importar, alego, num pensamento. 

"Por mim, tudo bem. Tente explicar isso aos outros. Os que estão acima de vc. Tudo tem um início e um fim. Até mesmo sua busca por justiça. Eu não decido nada. Com licença".

Antes de entrar em sala de aula, eu o vejo montar sobre as costas de Aninha que volta a se abater.

- Isso não pode ficar assim. - Digo a mim mesma. - Não é justo.

- Discordo. As Leis são imutáveis. Ela matou a criança por três vezes. Ela deve pagar por seu crime aqui e após a morte.

- Agora não, verme. - Rosno diante do espelho retangular enquanto as alunas se alongam. - Tenho que trabalhar. Volte pro inferno.

- Voltarei. Vim apenas para te enviar mensagem de sua Cassie. - Uma risada diabólica e Lúcifer me desequilibra. - Ela sofre como jamais imaginou e isso me faz tão bem...

- Maldito. - Sussurro ao alertar. - Eu irei atrás dela. 

- Te espero.


- Vc disse que sabe como encontrar Cassie. Eu preciso saber onde e como ela está.
- Não, Dess. Agora não. Vc ainda não pode se emocionar.
- Se vc não me ajudar, vou pedir ajuda a outra pessoa. Eu preciso saber como ela está.
- De nada vai adiantar...- Lamenta Vincenzo. - Nada vai mudar, Dess.
- Ela tá no inferno?
- Dess...não se mete nisso. - Angustiada, repito.
- Ela tá no inferno!?
- Não. Te acalma. Cassie não está no inferno. Deus é misericordioso. Ele julga pelas intenções que a levaram a cometer esse grave delito contra Suas Leis. 
- Onde ela tá, Vincenzo!?
- Se vc continuar a se exaltar, eu vou te levar ao hospital. Eu juro.
- Sai! - Puxando-me pelo pulso, ele me leva até um dos cantos do ringue, e cochicha.
- Chega, Dess. Já passou da hora de vc controlar sua impulsividade. Ela pode nos separar pra sempre. - Inspirando e expirando profundamente, penso no que ele acaba de me dizer. Mais calma, reflito antes de perguntar.
- Devemos viver nossas vidas nos escondendo dos perigos, Vincenzo? Assim como vc tem feito? - Soltando meu pulso, ele se defende, magoado.
- Eu não me escondo. Eu protejo vcs de um mal maior que vc parece não querer enxergar, Dess. Mas...tudo bem. Se quiser, siga em frente. Não pense em nada...em ninguém além de vc. Como sempre.
- Não fala assim. Isso me machuca.
- Existem coisas que irão te machucar muito mais do que minhas palavras, Dess. Pode acreditar.
- Isso tá me dando medo.
- É o que eu tenho sentido todos os dias desde que Liam e a 'Legião' surgiram em nossas vidas. Mas isso não importa pra vc. Vc vai me ignorar e fazer merda novamente e eu, como sempre, vou catar seus cacos.
- Que mágoa é essa, marido? Não entendo.
- Se vc pudesse compreender o que tento te dizer...
- Não tenta! Fala!
- Não fala mais com o Liam! Fica longe dele! Eu tô te implorando!
- João?
- Perdão, Adessa. Mais uma vez, eu interrompo vcs.
- Vc tá certo, irmão. - Diz Vincenzo, desorientado. - Aqui não é lugar pra discutir. É o nosso trabalho. 
- Vincenzo! Ainda não terminamos!
- Eu já. - Refuta ele, dando-me as costas, caminhando ao lado de João. Subindo no ringue, ele avisa. - Em casa, a gente conversa, Dess. Até lá, tenta não se meter em confusão.
- Isso não é justo. - Lamento num tom baixo. De volta ao meu carro, penso em suas palavras. É sério que ele sugeriu que sou egoísta? Egocêntrica? Tudo o que faço é por nossa família. Estamos nos afastando e eu não sei o que fazer. O que Antoine quis dizer com: 'Um terá de partir para o outro vir'? Quem convidar para sua festa? Todos se foram. Cassie, Doc, Adele, Mimi, Jujuba, Sweet, Enrico...
- Nossos amigos partiram. Estamos sozinhos e indefesos nas mãos do Mal. Isso não é justo. - Sussurro ao volante. 



Distraída, observo o vermelho intenso do semáforo até ser surpreendida por sombras que circulam ao redor do carro. Um calafrio e, pelo retrovisor externo, eu o vejo mancar em minha direção. Acelero segundos após ter o vidro de minha janela trincado por seu golpe furioso. Usando o mesmo taco com o qual tentou me matar, Liam o ergue em meio ao asfalto. Ensandecido, ouço seus gritos, seus xingamentos, sua maldição.
 
- Vou tirar todos de vc, Adessa Love! Todos! - Tremendo, ao volante, de medo e ódio, reativa, uso a marcha a ré. Olhando pelo retrovisor interno, foco minha atenção em sua imagem embaçada pelo vidro traseiro. Em alta velocidade, eu o surpreendo. Liam arregala seus olhos iluminados pelas luzes vermelhas acesas assim que piso no freio,  centímetros antes de passar por cima dele. Liam solta o taco de baseball no instante em que salto do carro, deixando a porta aberta. Determinada, sigo em sua direção. Mancando da perna esquerda, ele recua enquanto alcanço o taco no chão e o admiro sob a luz da lua. - Vagabunda.
- Desde quando vc manca, Liam? - Desdenho, movendo, ameaçadoramente, o taco. - Não me lembro dessa característica em vc.
- Pode rir agora. Sou paciente. - Avançando em sua direção, pergunto. 
- Onde está o Sean!? Ele não pode ficar com vc e aquele bando de viciados! - Sob a luz trêmula do poste, ele me parece ainda mais assustador. Mesmo assim, prossigo, com o taco em punho. - Me entrega ele, Liam. Era o desejo de Cassie.
- Cassie nunca teve poder algum sobre nosso filho.
- O filho era dela! Nunca foi seu! - Grito, atormentada pelos vultos ao meu redor. Em um beco, percebo estar sozinha...novamente. - Ele é filho de um demônio que se apossou de seu corpo, bastardo! Eu vi!
- Não...
- Vi! A 'grande pitonisa', como vc gosta de me chamar, viu tudo! Idiota! Agora, vc não passa de um corpo sem utilidade! Um corpo que manca!
- Vadia! - Golpeando o ar, afasto as sombras. Sem intenção, acerto sua cabeça. Tonto, ele tomba contra o chão, de onde me amaldiçoa. - Vai ficar sozinha na Terra. Perambular entre os 'macacos' sem encontrar a paz que eu vou tomar de vc. De um jeito ou de outro.
- Vc não pode fazer nada contra a minha família!
- Não? - Rindo, ele se ergue com dificuldade e, num tom irônico, pergunta. - Tem certeza? Já perguntou ao seu marido o que acontece se eu morrer?
- O que acontece se vc morrer? - Indago, insegura. - Fala.
- Pergunte a ele. Isso, se ele tiver coragem de te contar. Tem tanta coisa que ele esconde de vc. - Um sorriso sarcástico e ele se delicia. - Adoraria contar, mas, vai ser muito mais saboroso saber que vc ouviu a verdade da boca de Vincenzo, o falso 'anjo bom'
- Como sabe disso? - Murmuro, recuando, movendo o taco de um lado ao outro. - Ninguém sabia dessa história.
- Ninguém além de centenas de anjos que 'caíram' com ele, imbecil. Ele ainda insiste em te dizer que 'caiu' por engano?
- Babaca...- Arquejo, hesitante. Um sorriso nasce no canto de sua boca quando decide.
- Não vou falar mais nada. Estou adorando ver o medo em seu rosto de puta. 
- Não tenho medo de vc, seu monte de bosta. - Recuo até meu carro enquanto ele se mantem imóvel, cercado pelos vultos. Algo os afasta de mim e não são os meus poderes de bruxa fracassada. Apontando o taco de baseball em sua direção, eu o provoco. - Vc é a porra de um anjo falido que tentou ser mais do que seu filho que, aliás não é seu filho. - Rindo histericamente, continuo. - Não é assim que funciona, Liam. O poder que vc deseja é herdado. É genético. Sean tem algum poder. Meu filho tem poder. Antoine tem poder e, talvez, até eu tenha poder. Não é incrível como a puta tem mais poder do que o líder falido de uma legião de anjos invejosos!?
- Vc ainda vai sofrer muito e eu vou rir enquanto sofre. 
- Vc tá blefando, verme. Já perdeu tudo. Até mesmo o Sean. Sei que não pode tocar nele. O verdadeiro pai dele não deixa. - Outra risada histérica e prossigo. - Vc é um covarde. Pra que ficar com ele? Ele não vai te dar poder. Deixe que ele fique comigo. Eu cuidarei bem de Sean e vc fica livre pra se misturar aos porcos que comanda.
- Sem chances. Não tenta me enganar, puta. Isso não lhe cai bem. - Dando-lhe as costas, desistindo de lutar, abro a porta do meu carro. Decidida a sair dali, ele me diz algo que me desequilibra. - Volta pra sua casa e aproveite o pouco tempo de paz com sua família que, em breve, vai diminuir. 
- O que disse? - Fecho a porta do carro com força. Erguendo o taco com as duas mãos em sua base, inflo as narinas ao ordenar. - Repete.
- Vc ouviu. Não é surda. 'Carpe Diem', Adessa. O tempo está passando. Está perdendo tempo aqui enquanto poderia estar entre eles...- Dou dois passos adiante e, tomada pela raiva, acerto o taco em sua perna manca. Ele cambaleia enquanto gargalho.
- Ops! Foi sem querer!  Como se sente ao apanhar de uma 'macaca', Liam!? - Outro golpe em suas costelas e o faço cair. As sombras avançam sobre mim. Recuo, fazendo o taco girar ao meu redor. Um arrepio em minha nuca e as sombras voltam a recuar. Prestes a golpear a cabeça de Liam, ouço a voz alertar.
- Não, baby. Não seja impulsiva.
- Vc!? - Sua mão sobre as minhas me impede de mover os braços. Olhando em meus olhos, ele toma o taco de minhas mãos e o joga contra Liam, inerte no canto do beco sujo. - Não o mate. Pelo bem de seus filhos, se afasta dele.
- De onde veio, Aiden? - Puxando-me pela mão, ele responde.
- Não importa. - Abrindo a porta do meu carro, ele me faz sentar no banco. Um sorriso tímido e ele conclui. - Eu vim pra te ajudar a não cometer outra loucura. Mais uma, e vc perde tudo, baby. 
- Os vultos! - Alerto, assustada. - Estão voltando!
- Eu sei. Eu cuido disso. - Fechando minha porta, ele ordena num tom de voz mais alto e severo. - Agora vai!
- Não posso te deixar sozinho! São muitos! - Roubando-me um beijo, ele afirma, confiante. 
- Eu dou conta. Tenho trabalhado pra isso. Vai. Por favor. 
- Mas...
- Agora, baby!!!
Piso no acelerador segundos antes de ver a turba de demônios cercar Aiden que some dentro da escuridão. Apesar de não ter esperado para ver o final, sinto que Aiden não se deixará vencer por eles. Havia luz em sua aura. Uma luz que nunca existiu enquanto estávamos juntos, aqui na Terra.
- Meu Guardião. - Penso alto. Sorrio. Estaciono o carro na garagem. Subo os degraus da varanda ainda pensando no que Liam me dissera sobre o falso 'anjo bom' e sua queda.
- Todos conhecem a história de Vincenzo, exceto eu?
- Nem todos. Muito do que dizem é boato. - Sentado no último degrau da varanda, ele me encara enquanto o confronto. 
- Tá pronto pra me dizer o que acontece se Liam morrer, Vincenzo? 


Com um ar desconfiado, ele me pergunta.
- Onde esteve? 
- Tentando voltar pra casa. Por quê? 
- Não tem nada pra me dizer?
- Tenho, mas, antes, é vc quem vai me contar tudo. - Erguendo-se do degrau, ele me puxa pela mão e me faz sentar na poltrona da varanda. Seus olhos tristes me encaram. Em silêncio, ele se senta ao meu lado. Incomodada com seu silêncio, penso nas árvores frondosas, no céu estrelado, exceto no que não devo pensar. 
- Aiden?
- Quem!?
- Aiden. Ele esteve com vc?
- Não desconversa, Vincenzo. Por que vc depende da vida de Liam?
- Ele te salvou novamente?
- Como sabe disso se eu não te contei!? Eu sequer pensei nisso! 
- Vc pensou. Antes de estacionar.
- E daí!? Isso não vem ao caso!
- Ele te beijou?
- Vincenzo! Vc me seguiu!?
- Tenho meus informantes.
- Que tipo de informante fica em becos escuros vigiando sua esposa, Vincenzo!? Gente boa não é!
- E não são. - Um olhar bizarro e ele confessa. - Conheço todo o tipo de gente, Dess. Inclusive, os maus.
- Os da 'Legião'!? Vc tem contato com eles!? Foram eles que te contaram sobre Aiden!? Além de maus, são fofoqueiros!?
- Não tenho contato com eles, Dess. Aliás, é tudo o que desejo evitar. Mas, vc não deixa.
- Por que não conta logo a verdade!?
- Vc beijou o Aiden!?
- Não vem ao caso!
- Beijou!?
- Foi o Liam! - Afirmo, enojada. - Babaca invejoso! Homicida!
- Beijou, Dess!?
- Liam deveria ter dito que Aiden surgiu do nada e me salvou de outro ataque daquele psicopata! E sim! Ele me roubou um beijo que eu não correspondi! Satisfeito!?
- Ele se acha um 'guardião'. - Desdenha  Vincenzo.
- Ele é um guardião, Vincenzo! - Defendo Aiden
- Se vc me amasse, não se ofenderia com um ato infantil que salvou sua esposa de algo bem pior! Mas seu amor, por mim, diminui a cada dia! É visível! 
- Idiota. - Resmunga ele, apoiando os cotovelos nos joelhos, as pernas abertas. - Vc me julga tão mal. Eu só quero ficar perto de vc e da minha família.
- De novo não! A verdade! Agora! - Ajoelhando-me entre suas pernas, seguro seu queixo com minha mão e, pergunto sem rodeios. - Liam e vc estão juntos nessa!? Já sei que não é tão bom como me contou há alguns anos! Me diz! Liam e vc jogam no mesmo time!? Vc faz parte da merda da 'Legião'!? Que diabos acontece se ele morrer, Vincenzo!?
- Eu assumo a porra da liderança da 'Legião' e terei todas as minhas lembranças dessa vida, deletadas! Satisfeita, Dess!? Vcs vão sumir da minha memória! Da minha vida! - Seus olhos injetados me encaram enquanto ele prossegue, parecendo sofrer. - Eu fiz um trato com Liam! Ele fica longe de vcs! Em troca, eu assumo a 'Legião' se algo acontecer a ele! Eu posso não ser a porra de um anjo bom, mas eu não sou mau! Eu juro! Já cometi muitos erros até chegar a vc! Deus sabe! Mas eu não sou mau! Eu me deixei guiar por instintos que desconhecia, mas, eu não sou mau! Eu não quero ser o líder deles porque eu só quero viver em paz entre vcs! Vc e nossos filhos são a minha família! Meu porto seguro! Foi pra isso que te procurei por séculos, Dess! Séculos e séculos! - Erguendo-se, de súbito, ele me empurra. Caio contra o piso em madeira. Calada, observo seu corpo todo tremer de ódio enquanto caminha de um lado ao outro. Cruzando as mãos na nuca, ele sussurra. - Eu me odeio por ter chegado a esse ponto. 
- O que te prende a ele, amor? Vc não é obrigado a nada. Ou é?
- Sou. 
- Por Liam!? - Zombo. - Ele não vale nada! Não tem poder algum!
- Chega, Dess. Eu já te contei a verdade. - Do chão, refuto.
- Parte dela. Vc me esconde mais segredos. Quais são? Por pior que sejam, eu vou compreender. Não me afasta de vc. Eu te amo. Eu preciso do teu amor, do teu toque, dos teus beijos...- Avançando em minha direção, ele me assusta ao me erguer do chão e me abraçar com força, chorando em meu ombro. - Marido. Me conta. Vc fez mal a alguém? É esse o segredo que te prende a Liam? 
- Eu...eu eu...- Beijando sua nuca, eu o encorajo.
- Fale. Não vou deixar de te amar.
- Tudo o que fiz foi antes de te conhecer de verdade...- Confessa ele, entre soluços. - Eu não te conhecia, Dess...
- Fala!
- Eles não querem dizimar a Humanidade, Dess. Eles querem se multiplicar. Querem se infiltrar. Criar seres híbridos com poderes que poderão dominar os humanos.
- Vc tá mudando de assunto. - Protesto enquanto ele me pressiona contra seu corpo. Alucinado, ele prossegue. 
- Não posso deixar isso acontecer. Se eu me tornar um deles, juro que vou dar um jeito de proteger vcs. - Recuando, fixo meus olhos incrédulos nos dele e pergunto. 
- Vincenzo! Vc já considera a possibilidade de se juntar a eles!? 
- Não. - Enxugando suas lágrimas com o dorso de sua mão, ele lamenta. - Não quero, mas eu sinto que pode acontecer. 
- Isso não explica o que te prende a Liam. Vc não 'caiu' por acaso. Vc fez parte da rebelião?
- Nunca. - Rosna ele. - Eu não me juntaria a Lúcifer. Ele se rebelou por inveja. Eu não. Nunca me compare a ele, Dess.
- Não vai me contar?
- Já disse tudo. - Um riso triste e considero.
- Tudo bem. Pode continuar a mentir. De um jeito ou de outro, a verdade sempre aparece.
- Aonde vai?
- Tomar banho. Eu tô exausta. Minha cabeça dói. Meu corpo dói. Minha alma dói.
- Posso ir com vc?
- Não. Fica longe de mim.
- Tenho saudades, Dess.
- Eu também. - Confesso recostando minha testa em seu peito. - Mas tenho medo de vc. Eu tô tão confusa...
- Deixa eu te levar, amor. - Em seu colo, pergunto.
- E Matteo? Onde ele tá?
- Assistindo aos seus filmes com Antoine. - Ainda expressando dor em seu semblante, ele beija minha bochecha e sussurra. - Ainda temos tempo. Quer uma massagem? - De olhos fechados, assinto com a cabeça. - Deixa eu te fazer feliz, Dess. Vc me ensinou a ser um homem melhor.
- Não me machuca, amor.
Dentro da banheira, sentada entre suas pernas abertas, relaxo sob o toque de suas mãos habilidosas. Meu corpo descansa enquanto ele massageia meus ombros e os beija. Abraçando minhas pernas flexionadas, deixo-me ensaboar por ele. Sua voz rouca afirma. 
- Ainda não acredita em mim.
- Acredito. Mas ainda aguardo pela pior parte de sua confissão. 
- Liam me viu pecar. Conhece parte de meus erros. Erros que não vou revelar a vc. Não quero te perder, Dess.
- Não vai.
- Vou. - Evitando que eu o encare, imobilizando meu pescoço com suas mãos fortes, ele pede. - Esquece isso, Dess. - Com os olhos arregalados, enrijeço meus músculos ao me recusar. Sua voz em meu ouvido ronrona. - Não me obrigue a ser mau novamente.
- Sou sua companheira. - Alego, acuada, aterrorizada. - Não devemos ter segredos entre nós.
- Discordo. - Num tom sombrio, ele refuta. - Existem segredos inconfessáveis.
- Vc tá me assustando, marido. Larga meu pescoço. 
- Perdão...- De súbito, ele retira suas mãos de meu pescoço e, enxaguando meus cabelos, ele desvia minha atenção ao revelar.
- Sei onde Cassie está, Dess. - Molho o piso do banheiro quando me movimento dentro d'água e, afoita, ajoelho-me diante dele. - Acho que posso ajudá-la.
- Onde ela tá!? Vincenzo! Não me faz de boba! Lúcifer possui sua alma!?
- Não. Ele não pode. Não tem permissão. - Um sorriso no canto da boca e ele ironiza. - 'O Rei dos Infernos' tem perdido muitas almas ultimamente. Cassie está entre dois mundos. No 'Limbo'.
- Deus do céu...- Jogando-me contra seu peitoral molhado, recosto minha cabeça em seu ombro e lamento. - Ela não merece isso. Posso chegar até ela?
- Não sei. Mas posso tentar, se vc colaborar...
- Que voz é essa, Vincenzo?
- Dess. Olha pra mim. - Seus olhos insanos me apavoram. Seu toque entre minhas sobrancelhas me faz pensar em sair da banheira quando ele, sutilmente, ordena. - Me satisfaça hoje, Dess. Eu tenho fome.



Dor. 
É o que sinto ao voltar ao meu corpo, pela manhã. Levanto-me da cama. Uma pontada em meu útero me faz gemer. Cólicas parecidas com as menstruais me fazem curvar o tronco para frente. Alcanço o banheiro. Olho-me no grande e retangular espelho acima da pia. Nada em meu rosto. Nenhum sinal de violência. Os hematomas estão em meu pescoço, seios e costas. Marcas de mordidas e chupões. Há manchas de sangue em meu lençol. Na cama onde me deitei após o banho. Onde experimentei o pior lado do homem com quem me casei. Não havia amor, ciúmes. Apenas uma intensa vontade em me punir. Por quê? Penso em Sweet, em Isabella e percebo que ambas foram vítimas de Vincenzo. Eu as odiei. Eu as afastei dele, julgando-as culpadas. Agora, devo sofrer até conhecer a verdade.
- Mãe? Vc tá bem?
- Sim. - Minto, tentando sorrir. - Matteo dormiu em seu quarto?
- Sim. Vcs sumiram...
- Perdão, filha. Seu pai saiu?
- Já foi trabalhar.
- Por que tá me olhando assim, filha?
- Ele te machucou.
- Não. Eu caí. - Minto, sentando-me na beira da cama de Antoine onde Matteo ainda dorme. Voltando a sentir as cólicas, emito outro gemido de dor. Antoine, sentando-se ao meu lado, decide.
- A partir de hoje, vc dorme comigo, mãe. Até meu pai voltar a ser ele mesmo.
- Como assim? Seu pai continua a ser seu pai.
- Não, mãe. Ele tá voltando a ser quem ele era antes de 'cair'. - Amedrontada, indago.
- E o que ele era antes de 'cair'? - Tapando meus olhos com uma das mãos, ela sussurra.
- Melhor ver do que ouvir. 
- Filha. Eu tô com medo.
- Concentre-se, mãe. Eu preciso te mostrar o início de tudo.
Continua...

 




sábado, 23 de março de 2024

CAPÍTULO 47 - PRIMEIRAS GRANDES PERDAS

 



Após aquela noite, tivemos uma trégua. Nada de 'Legião'. Nada de Cassie e Sean. Nada de Lúcifer, Liam ou pactos. Somente assuntos amenos entre nossa família unida. 
Bem unida. 
Antoine e Leo estão mais grudados do que nunca, embora não se toquem como namorados. Ele a beija na bochecha. Ela se aninha em seu colo enquanto assistem 'animes', ambos satisfeitos. Por que diabos ela reclamava de que ele a via somente como sua irmã mais nova se, agora, após o beijo, eles poderiam namorar?
- É assim que eles namoram, Dess. 
- Cacete! Não me assusta! - Rindo, Vincenzo caçoa.
- Viu? Fica espiando pela fresta da porta.
- Não estou espiando. Estou observando. É diferente. - Refuto recostada à parede. Arfando, afirmo. - Eles estão felizes.
- Estão. - Concorda ele apoiando suas mãos na parede. Entre elas, finjo não me abalar com sua proximidade ou com seu cheiro cítrico. - Eles são diferentes de nós, Dess. Antoine não precisa de contato físico mais íntimo e o Leo...- Ronrona ele bem próximo ao meu ouvido.
- O que tem o Leo?
- Ele também é diferente. Antoine me disse que, por ele ter morrido por um certo tempo, durante a tentativa de suicídio, ele  retornou com certas aptidões.
- Aptidões?
- Sim. E que, por amar Antoine, ele tem a proteção dos 'Iluminados'.
- 'Iluminados'!? O que é isso!? Outro time no campeonato!? 'Superiores', 'Iluminados', 'Guardiões', 'Legião'! Todos prontos para disputar a 'Grande Batalha'!? Puta que pariu! Não há humano que aguente isso!
- Fala baixo. Eles vão ouvir.
- Já ouvimos, pai! - Grita Antoine com a boca cheia de pipoca. Abrindo a porta, envergonhada, minto. 
- Eu estava de passagem. Seu pai apareceu, de repente e...
- 'De boas', mãe. Tá tudo certo. - Sorrio. - Por enquanto.
- Como 'por enquanto'!? - Invado a sala de cinema e, num desespero, indago. - Vcs estão me escondendo alguma coisa!?
- Nada, tia. - Diz Leo sugando refrigerante pelo canudinho. - Antoine adora criar um clima de suspense. Em tudo. 'Tá ligada'? Fica tranquila. - Sorrindo, ela sugere. 
- Por que vc e o papai não saem pra jantar fora? Dá pra ver que estão precisando.
- Não entendi.
- Apoio. 
- Ninguém pediu seu apoio, Vincenzo!
- Viu, mãe? Vc tá super tensa. Vão passear. - Leo gargalha diante da insinuação de Antoine. Nada sobrou do menino franzino, sombrio e revoltado que conheci na recepção do 'Round 666', há meses. O amor muda tudo. - Vai por mim, mãe. Vcs precisam de um tempo juntos, longe daqui.
- Era o que me faltava. - Resmungo. - Uma criança me dando conselhos. Sai! - Grito ao empurrar Vincenzo com a lateral de meu corpo enquanto ouço Leo sussurrar um , 'Vai lá, tio' antes de sair do quarto. Vincenzo o obedece e, passando por mim, impedindo-me de entrar em nosso quarto, ele me convida.
- Quer jantar com seu marido, Dess?
- Não. - Olhando em seus olhos, refuto, magoada. - Quando o encontrar, diga que já se passaram três semanas e ele ainda não me tocou. 
- Dess...
- Me solta! - Arremessando-me contra o colchão, ele tranca a porta do nosso quarto. Retirando sua camisa pela cabeça, ele a joga no chão enquanto caminha em minha direção. Ergo-me da cama e corro até a porta. Esperando por seus risos, encontro seu olhar insano. Antes de me arremessar de volta à cama, ele avisa num tom soturno.
- Não me provoca, Dess.
- O que vc tem? - Pergunto antes de ter meu vestido rasgado, minha lingerie arrancada de meu corpo. - Vincenzo. Olha para mim. - Peço antes de ser obrigada, por suas mãos fortes, a ficar de joelhos sobre o colchão, de costas para ele. - Vincenzo! Assim não! - Peço minutos antes de ser penetrada por seu pau ereto. Agarro-me na cabeceira em ferro e, voltando no tempo, penso estar num dos meus filmes adultos.
Pela primeira vez, em anos de convivência, eu sinto dor.
Assim que ele goza em minhas costas, ouço sua voz me perguntar.
- Por que tá chorando, amor?
- Por nada. - Respondo enrolada em meu lençol. Correndo em direção ao banheiro, confusa, abro o chuveiro com pressurizador, multitemperatura, dentre outras funções. Debaixo d'água, choro ao me recordar dos dias felizes em nosso apartamento modesto onde brigava com Vincenzo por não ter água morna. Dias normais em uma vida normal. Vida longe de todo o mal que nos cerca. Dias onde ele jamais me tocou como agora.
- Não, Vincenzo! Fica longe!
- Me perdoa! - Pede-me ele, invadindo o box. - O que eu fiz!? Eu te machuquei, Dess!?
- Sim.
- Onde!?
- No corpo e na alma, Vincenzo. - Enrolada na toalha, peço, secando minhas lágrimas. - Sai daqui. Me espera lá fora. Por favor.
- Ok...- Diz ele, amargurado. - Não sei o que tem acontecido comigo, Dess, mas, não me deixa, por favor.
- Não vou. - Afirmo enquanto procuro por outra camisola. Mostrando-me um de meus vestidos, parecendo arrependido, ele implora.
- Vamos sair daqui?
- Pra onde?
- Pra qualquer lugar, bem longe daqui, Dess. Só vc e eu.
- Vamos.
Sorrio.



Jantamos em uma cantina, longe de tudo e de todos. Somos os únicos clientes em uma madrugada fria e chuvosa. Ainda ressentida, sentada à mesa coberta por uma toalha quadriculada em branco e vermelho, tento não me recordar de nossa última viagem à Itália. Tento não pensar em Cassie e em sua contagiante alegria, em lua-de-mel. Dou graças à música alta que impede Vincenzo de ouvir meus pensamentos voltados a Aiden no dia em que dançamos sob a chuva na Toscana. 
- Uma moeda por seus pensamentos, esposa. - Seus olhos tristes brilham sob a luz da vela acesa. - Com certeza, não pensou em mim.
- Como pode saber? O som tá alto.
- Seu olhar. Ele mudou.
- Não seja patético. Nada mudou.
- Mudou sim. Eu mudei e vc sabe disso. Eu te machuquei hoje. 
- Não quero falar disso.
- Eu preciso falar, Dess. - Implora ele, pousando suas mãos sobre as minhas. - Sinto que minha compulsão está voltando. Eu jamais te machucaria como eu fiz hoje. Vc sabe disso. Não sabe?
- Sei...- Tomando um gole do vinho que o garçom, elegantemente, deixa jorrar sobre a taça, pergunto. - Por que tá me escondendo a verdade? Não confia mais em mim? - Esvaziando a taça, sem rodeios, faço outra pergunta que o deixa abalado. - De onde veio essa violência, marido? De qual época? Antes ou Depois de Cristo? 
- Do que tá falando? - Ergo meu braço. O garçom volta à nossa mesa disposto a encher a minha taça quando eu o interrompo com uma proposta.
- Vamos evitar seu cansaço, querido? Já é tarde. Vc deve estar exausto. Que tal deixar a garrafa aqui? 
- Dess, é o trabalho dele.
- Exato! Trabalho! - Encarando o garçom, prossigo. - É o que eu quero poupar a ele, Vincenzo! Deixa ela aqui! - Agarro-me à garrafa enquanto Vincenzo ri de mim e, delicadamente, num piscar de olhos encantador, faz com que o garçom desista de lutar comigo. - Vc é estranho...- Resmungo enquanto encho minha taça e a esvazio num gole. - Gosta de manipular as pessoas. Eu sou uma completa idiota em suas mãos. Era assim que agia quando 'caiu'? Cara. Vc tá me escondendo alguma coisa que eu não consigo captar quando te toco.

- Vc tá bêbada, Dess. - Tomando a garrafa de minha mão, ele me imita ao esvaziar sua taça. - Eu me recuso a discutir com bêbados e loucos. 
- Não discuta. Só me responda. Em quem mais vc bateu além de Sweet? Quem vc machucou?
- Para. Por que trazer, à tona, um assunto desses quando eu te trouxe aqui pra ficarmos longe de tudo? - Revirando os olhos, resmungo.
- Ok. Por hoje, eu me calo.
- Dança comigo? É a nossa canção.
- Vincenzo! - Gargalho. - Nós temos muitas 'nossas canções' e, essa, com certeza, não é nossa. Eu nem a conheço.
- Vem. - Estendendo-me seu braço, de pé, ele me olha com ternura e me diz. - Eu sou e sempre serei seu grande amor, seu amante. - Afogando minhas suspeitas em outra taça de vinho, deixo-me conduzir por ele na pequena pista de dança. Aspiro o cheiro de maça verde em seu peitoral e sorrio. Lembro-me da primeira vez em que dançamos na casa de praia quando ele dizia fugir de Lúcifer por temer um pacto. Outra mentira. Vincenzo, por que tantas mentiras? - Para de pensar e dança, esposa. - Roubando-me um beijo, ele me faz arfar. - Me perdoa por hoje?
- E, se eu pedir que repita?
- Dess!

- Como assim, mãe!? Vc caiu e bateu com os olhos no chão!?
- Exato. - Minto. Como dizer à família reunida à mesa de jantar que eu fui usada de maneira violenta pelo pai de meus filhos, com o meu consentimento??? 
- Consentimento não. - Sussurra-me Vincenzo. - Vc pediu. Não eu.
- Pai!
- Oi!
- Explica isso! Tem a ver com a 'Legião'!?
- Não, filha. Foi um tombo da moto. - Minto. - Só isso. - Sorrindo, Leo apazigua.
- Antoine. 'Pega leve'. Eles estão bem. Isso é o que importa.
- Tu tá me zoando?
- Não, 'bebê'.
- 'Bebê'???
- Para, mãe!!! - Gargalho enquanto Antoine cobre o rosto com as mãos. - Isso não tem graça, Leo. Eu te pedi...
- Desculpa. Foi mal. Não fica assim.
- Dess! Para de rir!
- Enrico também riu e ninguém brigou com ele!
- Eu??? - Pergunta-me ele com as bochechas rosadas. - Eu não ri do 'bebê'!!! Eu ri de sua gargalhada!!! - Rimos juntos enquanto Antoine ameaça deixar a mesa. Engulo meu riso e lhe peço desculpas.
- É que me pegou de surpresa, filha. Vc era o meu bebê e...- Meus lábios tremulam antes de prorromper em lágrimas. Entre soluços, protesto. - Agora vc é o bebê do Leo. Isso não é justo.
- Caraca, mãe! A parada é comigo e vc é quem chora!?
- Eu sou sensível, filha.
- Não, Dess. Vc gosta de chorar. Admita.
- Vá à merda.
- Mamãe 'dodói'. Papai feio.
- Eu??? Eu não fiz nada, filhão!!! - Com Matteo em meu colo, eu o faço comer outra colherada de banana amassada e, perdida, repito. - Papai feio. 
- Mãe, não chora. É só um apelido. Ele me chama de 'bebê' porque me acha nova demais. 
- E vc é, filha. - Até hoje não sei quanto anos Antoine tem, ao certo. - Pode ter crescido, mas ainda é inocente como a minha menina. A menina que encontrei no parque.
- Essa história de novo, Dess? - Outra gargalhada de Enrico e Vincenzo graceja. - 'Já deu, burro. Já deu'. Não há ninguém, daqui ao Japão, que não conheça essa história. 
- É bom que saibam mesmo. Foi a mim que ela procurou. Não foi por vc, por Enrico, nem por Celeste. Foi por mim que ela procurou. Devo ter alguma importância.
- Tem muita, tia. - Afirma Leo, engolindo seu café, erguendo-se da cadeira, apressando-se para o trabalho. Quase posso ver a vida que Antoine e ele poderiam ter se...- Não chora, tia. - Um beijo em minha cabeça e ele sussurra. - Vou precisar de sua força. Fica forte.
- Quando!? - Um sorriso triste e ele se despede de todos à mesa. - Volta!
- Fica quieta, mulher. - Ralha Vincenzo, passando manteiga em seu pão. - Vc me confunde. Não sabe se ri ou se chora. Tá sempre querendo saber de alguma coisa...alguma trama sórdida.
- Cala a boca, cretino. Ele é o namorado da nossa filha.
- Não é, mãe. Nós somos amigos. Amigos que se amam muito.
- Interessante. - Comenta Enrico. - E, por que não estão namorando?
- Porque esse tipo de amor me enfraqueceria, vovô. Leo pensa da mesma maneira. Nós dois precisamos estar atentos a qualquer sinal. Ninguém é confiável até que prove o contrário.
- Nossa. Isso me deu medo. - Brinca Celeste, acuada.
- É bom mesmo...- Replica Antoine, num tom de ameaça. O clima tenso é cortado à faca com a pergunta de Matteo.
- Mamãe. Neném 'meguio'? - Abraçando-o com força, respondo num lamento.
- Não, filho. Hoje não tem mergulho. Culpa daquela vaca. Na próxima semana a gente volta às aulas de natação, tá?
- Vaca faz 'muuuh'! - Arrancando risos de todos, ele gargalha enquanto percebo o olhar suspeito de Antoine sobre Celeste. O que houve? O jogo virou no segundo tempo? 
- Menos, Dess. Menos.
- Vá pro inferno.
- Prefiro ir trabalhar. - Um beijo em minha boca e Matteo, enciumado, solta um 'Eca! Que mojo'. - Ajoelhado, rindo de felicidade, Vincenzo o beija na bochecha e, antes de partir, declara.
- Papai te ama, filho. Vc é o presente mais valioso que eu poderia ter recebido de Deus. E eu nem mereço...- Emocionado, ele tenta não chorar quando Matteo volta a nos surpreender com seu crescente vocabulário.
- 'Neném ama papai feio'. - Vincenzo engole em seco. Enrico deixa cair uma lágrima. Antoine e eu encaramos Celeste que, parecendo desconfortável, comenta.
- Nosso neto está cada vez mais parecido com o pai. Não é Enrico?
- Discordo. Ele é lindo e espirituoso como a mãe. - Tocando em sua mão, agradeço.
- Te amo, Enrico, mas ele é a cara do pai. - Uma repentina visão e retiro minha mão num gesto abrupto. Ainda assustada, ergo-me da cadeira e entrego Matteo a Antoine. Catando os cacos dos copos que derrubei da mesa, tento não acreditar no que vi. - Não precisa, Enrico. - Seus olhos que riem me fazem chorar. - Obrigada. Obrigada por tudo. Eu nunca mais vou te esquecer.
- Nem eu, meu anjo. Nem eu.



Entro no quarto de Antoine. Em frente ao computador, ela estuda Matemática, Física e História, ao mesmo tempo. 
- Como consegue, filha?
- Eu já sei de tudo, mãe. Só estou revendo.
- Onde aprendeu, antes?
- Quer mesmo saber? - Uma careta e respondo.
- Melhor não. - Matteo anda de um lado ao outro, chutando sua bola de futebol enquanto me sento ao lado de Antoine e a vejo assistir a um vídeo no celular. Antes mesmo de eu perguntar, ela responde. - 'Linguagem Não Verbal', mãe. Porque preciso analisar exatamente o que algumas pessoas expressam através do corpo. Assim como vc que, agora mesmo, tá me olhando com espanto, certamente, pensando como eu saquei tudo isso. Fácil. Está tudo no seu corpo. Na forma como gesticula, olha, move os lábios.
- Credo! Melhor eu não ficar perto de vc! - Rindo, ela concorda.
- Se não quiser que eu descubra como conseguiu esse olho roxo...
- Antoine! Para! - Movendo meus braços aleatoriamente como um guarda de trânsito britânico na hora 'rush', pergunto. - O que viu em sua avó? Vc suspeita de algo? 
- Ainda é cedo, mãe. Preciso estudar tudo sobre essa linguagem corporal antes de 'fechar o diagnóstico'.
- 'Fechar o diagnóstico'!? Uau! Vc tá levando isso a sério!
- Mais do que imagina, mãe. - Diz ela com os olhos amendoados fixos nos meus. - Eu não vim à Terra a passeio. Preciso terminar minha tarefa.
- Parou! - Protesto, apontando meu indicador ao meu rosto. - Consegue ler minha linguagem não verbal agora!? Não!? Eu explico! Eu não quero mais ouvir vc falar de tarefa, Terra, Iluminados, Illuminatis, Superiores e o 'escambau'!
- 'Escambau'??? - Rindo, ela comenta. - Isso é novo pra mim!!!
- Então estuda aí e continua comigo! Ok!? Não se atreva a me deixar! - Aviso correndo atrás de Matteo. Com ele em meu colo, pergunto, antes de fechar a porta. - Compreendeu!? - Da cadeira giratória, ela responde abrindo um sorriso iluminado.
- Compreendido, chefe! - Entre a brecha da porta, cochicho.
- Quando souber algo sobre o soldado 'C', me avisa. Tenho sérias suspeitas a seu respeito. Copiou? - Rindo de mim, ela responde.
- Copiei. Câmbio. Desligo.

Recostada à parede, fora do quarto, puxo o ar pela boca enquanto deixo Matteo livre para correr até a 'brinquedoteca'. Por que eu sinto que estou perdendo, aos poucos, todos os que amo?
- Meu celular! - Grito enquanto o procuro nos cômodos da casa. Eu o odeio. Eu o largo em qualquer lugar. Não quero...não desejo receber notícias do exterior dessa casa, porra! - Achei!
- 'Alô mamãe'!? - Frenética, confirmo.
- Achei 'alô, mamãe', filho! - Deitando-me no chão da 'brinquedoteca', olhando para o teto estrelado, aguardo a voz de Aninha, do outro lado da linha. Matteo se deita ao meu lado como se soubesse que preciso de companhia.
- Aninha! Fala!
- Adessa...- Sua voz fraca me arrepia. - Fiz merda. Me ajuda?
Desligo o celular. Com as  mãos na cabeça, xingo.
- Porra. De novo não. - Imitando meu gesto, Matteo, dramatiza.
- 'Porra de movo não'.
Ainda rindo da nova fase de Matteo dirijo até a casa de Aninha. Imagens da noite passada me vem à mente. O prazer em sentir dor causada por Vincenzo me faz morder os lábios. Antoine não poderia me ver assim. Certamente, 'fecharia meu diagnóstico' como 'pervertida' por tirar seu pai do 'Bom Caminho'. Seus beijos, mordidas, chupões. Seu apetite voraz. Seus gestos bruscos seguidos de carinho. Nunca o vira tão selvagem, bruto, quase que diabólico e...eu gostei. 
Estaciono o carro diante do prédio antigo. Subo os degraus até o quinto andar. Toco a campainha. Bato à porta. Nada. Encosto minha orelha na madeira da porta. Ouço a voz de Aninha, fraca, distante. Afasto-me e, com a perna mais forte, eu a arrombo. Dou quatro passos e, horrorizada, sigo a trilha de sangue respingado no chão em tacos de madeira antiga. Corro até seu quarto. Antes de cruzar o batente da porta, sou empurrada contra a parede do corredor. Um menino carrancudo avisa num rosnado.
- Não toque nela. Deixa a vadia morrer. - Entre irritada e confusa, avanço em sua direção. Uma olhadela no pequeno banheiro lavado de sangue e arquejo de pavor. - Não entra!
- Sai! - Revido, empurrando-o com a lateral de meu corpo. Encarando-o, alerto. - Se me tocar novamente, vai levar porrada!
- Com quem tá falando...amiga?
- Com o menino. - Respondo antes de sufocar um grito ao retirar o lençol manchado de vermelho do corpo encolhido de Aninha sobre sua cama. - O que fez, Aninha? - Indago num tom de lamento. - Eu disse que te ajudaria. - Erguendo-a com dificuldade, eu a amparo com meu ombro enquanto caminhamos, vagarosamente, até a porta da sala. - Vai dar tudo certo. Fica calma. - Minto. 
- Ela precisa ficar! 
- Sai da frente, garoto! Isso não é hora pra brigar, brincar...sei lá o que tu quer! Vaza! 
Diante do olhar curioso e maledicente de uma das vizinhas, peço ajuda.
- Liga pra emergência! São cinco andares! Não vou conseguir descer sozinha com ela! O elevador tá quebrado!
- Isso não é problema meu. - Refuta a mulher azeda ao fechar a porta.
- Filha da puta covarde. - Rosno enquanto ajudo Aninha a descer o primeiro degrau do quinto andar. Suas pernas pinceladas pelo sangue que escorre, me deixam ainda mais nervosa. O corpinho ainda em formação de seu bebê morto dentro do vaso sanitário não sai da minha cabeça. - Calma, querida. Não chora. Vou te levar pro hospital.
- Não vai dar...tempo. Eu...fiz...
- Não fala. Vc tá muito fraca. - Assusto-me com o garoto carrancudo assim que alcançamos o quarto andar. - Porra! Como tu conseguiu!?
- Ela não pode ir. - Rosna ele com ódio. - Ela me deve isso.
- Deve o que, garoto!? - Antes de chutá-lo com a perna esquerda, ele some. Olho ao redor e pergunto, intrigada. - Pra onde ele foi!?
- Quem?
- Vc não o viu!?
- Posso ajudar?
Sorrio ao jovem que se apressa em levar Aninha em seu colo. Sem perguntas ou julgamentos, ele parece não se importar com o sangue ensopando sua camisola. Eu o sigo até meu carro onde ele a deita no banco traseiro. Reparo em seu macacão sujo de graça. Suponho que seja mecânico de carro, morador do mesmo prédio.
- Nossa. Muito obrigada. Não sei o que seria dela sem vc. - Antes de entrar no carro, eu o cumprimento, apertando sua mão. Ele me sorri ao replicar.
- Não me agradeça. Estamos aqui para ajudar. Não desista de lutar pelo que é certo, Adessa.
- Vc me conhece!?
Um gemido de Aninha e volto meu olhar a ela. - Aguenta firme, amiga! 
Sentada ao volante, pergunto-me pelo homem com macacão que desapareceu, em fração de segundos. Meu coração dispara ao perceber, pelo retrovisor interno, a imagem do menino carrancudo ao lado de Aninha. Um forte arrepio e, sem lhe dar atenção, piso fundo no acelerador, rumo ao hospital mais próximo.

Apesar de ser contra, o corpo é dela. Não meu. Quieta, ao seu lado, no leito do hospital, sinto a frieza com que o médico a trata após sofrer uma curetagem e ainda estar sentindo cólicas. Contenho minha impulsividade em discutir com o homem de jaleco branco porque algo me incomoda mais do que sua falta de tato: o menino carrancudo, de pé, ao lado de Aninha.



- Por que não a deixa em paz?

- Por que ela não me deixa em paz!? Eu só queria uma chance de voltar! É a terceira vez que tento e ela me mata! Isso é justo!?

- Não. - Lamento. - Não sei o que dizer.

- Não precisa. Agora, vou ficar aqui e me vingar.

- Por que não tenta seguir adiante?

- Porque não quero. Ela precisa sofrer o que eu sofri. Sentir a dor que eu senti. - Antes de correr pelo longo corredor do hospital, ele grita. - Me deixa em paz!

Eu a levo à casa de sua namorada após a 'alta hospitalar'. Desconhecendo a verdadeira causa de sua internação, a namorada a recebe com carinho. Despeço-me de Aninha e, angustiada, revejo o menino carrancudo sentado no sofá da sala. Minha intuição me diz que devo permanecer distante.

Por enquanto.


- Aonde foi, Dess?

- Ajudar uma amiga. - Respondo com o olhar distante. - Por que chegou cedo em casa?

- Antoine me ligou. Disse que meu pai estava estranho.

- Enrico!?

- Espera, Dess! - Caminho até o quarto de Enrico. Vincenzo me segue. Deitado ao seu lado, Matteo faz carinho no rosto do avô e revela.

- 'Bobô dodói'.

- Não, meu anjo. - Refuta Enrico, pálido, estirado sobre o colchão. - Vovô tá bem. Sem 'dodói'.

- O que houve, Enrico? - Sentando-me na beirada da cama, encosto o dorso de minha mão em sua testa. - Vc tá frio. Muito frio. - Assustada, olho para Vincenzo e indago. - O que ele tem!?

- Não sei. - Responde-me ele, impotente. - Ele não quer dizer.

- Enrico! O que houve!? - Insisto. - Quem drenou sua energia!?

- Ninguém, querida. De onde tirou essa coisa de 'drenar energia'? - Erguendo-me da cama, encaro Celeste que surge, repentinamente, no quarto, e a confronto.

- Vc já fez isso uma vez. Não seria novidade se fizesse de novo.

- Dess! Ela já pediu desculpas!

- Vincenzo! Eu não confio em sua mãe!

- Ela não é a minha mãe. - Rosna ele. - Vc sabe disso.

- Não sei! Tá complicado de entender! Por que Enrico é seu pai, casado com Celeste, e ela não é a sua mãe!? Explica!

- Porque meu pai reconhece a Escuridão quando a vê, mãe. Simples. Copiou?

- Não! Não 'copiei', filha! - Puxando-a pelo braço, eu a arrasto para fora do quarto de Enrico e, num tom baixo, pergunto. - O que vc quer dizer com isso!?

- Que suas suspeitas não são infundadas, porém, ainda não são comprovadas.

- Cacete! Vc quer dizer que Celeste pode ser nociva à nossa família!? - Horrorizada, penso alto. - Ela cuida do meu filho! Do seu irmão!

- Calma, mãe. - Cochicha ela. - Não é tão ruim quanto parece. Eu ainda não tenho certeza das intenções da vovó. Mas...que ela esconde algo, esconde.

- Por que diz isso!?

- Olha pro vovô, mãe! Ele tá tenso! Ele a ama e não quer que ela sofra! - Impulsiva e descontrolada, declaro.

- Eu amo o seu avô e não quero que ele sofra!

- Espera! - Antoine me impede de voltar ao quarto de Enrico ao segurar meu braço e pedir. - Me deixa entender o que tá acontecendo, mãe. Ninguém, mais do que eu, precisa desvendar esse mistério. Eles me cobram isso. - De joelhos, agarrando-a pelos braços, indago, assustada.

- Eles quem?

- Vc não quer ouvir. - Revela ela, desanimada. - Já me falou isso hoje de manhã.

- Agora eu quero! Quem!?

- Filha. Agora não.

- Mas...pai...- Aflita, protesto.

- Que porra de domínio vc tem sobre ela, Vincenzo! - Um olhar sombrio e ele responde.

- Algo que vc jamais será capaz de compreender e aceitar, Dess. - Fixo meus olhos nos dele quando Matteo se prende à minha perna e avisa.

- 'Papai dodói. Bobô dodói. Bobó mau. Ai ai ai. Neném qué nanana'.

Carregando-o em meu colo, insegura, sigo até a cozinha. Sem tempo para chorar, descasco duas bananas com meu filho em um de meus braços. Sua segurança é minha prioridade. Eu nunca acreditei naquela história idiota de que Celeste teria proposto a Liam sua rendição em troca da vida de meu filho ou na bosta da teoria de que a 'Legião' teria o poder e a inteligência capaz de criar um ser vivo ou um vírus letal com o sangue de Sean e Matteo. Isso é patético. Já passou em algum filme de zumbis que, agora, não me lembro do nome.

- Vagabunda. - Penso alto enquanto me sento na banqueta com Matteo em meu colo. - Eu acabo com ela, com Liam e o resto da porra dessa 'Legião' de merda.

- Merda. - Repete Matteo ansioso por sua banana com aveia. - 'Mamãe dodói'?

- Não, filho. - Um beijo em sua bochecha e agradeço. - Vc tá sempre preocupado comigo. Vc é o único, filho. Ninguém...nada vai me separar de vc. Eu juro.

- Eu tenho certeza.

- Sai, Vincenzo! Volta pra sua amiga, mãe, amante...sei lá! Volta pra vaca da Celeste enquanto ela suga a vida do teu pai! - Sentando-se na banqueta atrás de mim, ele nos abraça com força e demoradamente. Matteo reclama com um 'Nanana, papai' enquanto eu choro recostando minha testa no ombrinho de nosso filho. - Quando vai me contar a verdade, marido? - Sussurrando em meu ouvido, ele responde com sofreguidão.

- Tô tentando, Dess. Tô tentando. Não me deixa, por favor. Não me deixa na escuridão. Tenho medo de nunca mais ver vcs.



Aninha ainda não retornou ao trabalho. Há uma recepcionista provisória em seu lugar. Enquanto tento seguir minha vida com uma certa estabilidade, envio mensagens a ela. Mensagens sem respostas. Vincenzo me pediu para que me afastasse dela, temendo por minha saúde. Mais uma vez, tive de ouvir que não sou a porra de uma heroína. Disso, eu já sei! Eu não quero ser a heroína da história. Tudo o que desejo é viver em paz com a minha família. Já passei por muita coisa ruim até chegar onde estou. Vincenzo deveria ter visto, com seus próprios olhos, o que é ter seu corpo usado por estranhos, dia após dia, sem ter esperanças de que algo iria mudar.
- Talvez tenha visto.
- Quem falou!? - Assustada, olho ao meu redor e vejo pessoas escolhendo frutas e verduras, mergulhadas em seus mundinhos secretos e obscuros. Assim como eu, todos têm a escuridão dentro de si. Ninguém parece ter falado comigo. As vozes não voltaram, logo, só há uma opção a ser considerada. Quem se atreveria a me desorientar em um supermercado? - É vc, maldito? - Sussurro enquanto escolho os iogurtes próximos às frutas. - Eu sei que está aqui. Sinto seu cheiro.
- Ao menos, eu não me escondo por trás de aromas cítricos. 
- Não posso ficar falando com os iogurtes, idiota. Vão pensar que sou louca.
- E não é? Louca e cega por um amor fadado à tragédia. 
- Tragédia!? - Chamando a atenção de alguns clientes do mercado, finjo brincar com Matteo que, dentro do carrinho, 'fazendo cara de mau', aponta seu dedinho a um ponto atrás de mim. Um forte arrepio percorre minha coluna vertebral enquanto finjo falar ao celular. - Suma de nossas vidas, maldito. Tudo o que vc deseja é semear a discórdia entre nós. - Rosno. - Te afastas do meu filho.
- Estou longe, meu bem. O que o meu 'tatatatatatataraneto' vê atrás de vc é algo bem menor e menos poderoso do que eu. - Um risinho sarcástico e Lúcifer me pergunta. - Quer que eu o afaste ou pretende lutar contra um dos famosos e idiotas componentes da 'Legião'?
- Acabe com ele. - Ordeno enchendo-me de ódio. - Não deixe que eles toquem em minha família.
Um grito de dor e percebo o ar se movimentar atrás de mim, eriçando os pelos de minha nuca. Matteo, sorrindo, avisa. 
- 'Dodói sumiu'.
- Não pense que vou agradecer por isso. 
- Vc me pediu. Eu matei um deles antes que tocasse na linda criança. Creio que me deve um favor.
- Não. Nunca. - Rosno ao celular desligado. - Vc não vai me comprar. Não vou ter qualquer tipo de pacto com vc. Esqueça.
- Uma pena. - Zomba Lúcifer se materializando diante de mim. Arrancando Matteo do carrinho, eu o agarro em meus braços e escuto o 'Anjo Caído', entre assustada e enraivecida. - Se ouvisse minha versão dos fatos, pouparia muita dor em um futuro próximo. 
- Que versão!? Do que tá falando!?
- De Vincenzo, Enrico, Celeste...- Tocando em uma das maçãs na gôndola, ele a faz apodrecer em segundos. Olhando-me de esguelha, ele ressalta. - Poderia te contar uma história intrigante de como se conheceram há alguns séculos. Milhares de séculos. Vc, certamente, adoraria saber que seu príncipe é um sapo. E dos mais fedidos. Mas...agora não. Depois. Nesse momento, creio que vc vai se meter em outra encrenca. Só pra variar. - Outra risada e ele avisa. - Estarei lá antes de tudo terminar, 'darling'.
- Não entendi! Volta!
- Tia? - Voltando-me em sua direção, deixo escapar um 'aimeudeus' num tom de lamento. - Eu sei. - Assume ela, baixando a cabeça. - Estou feia, abatida. - Mostrando-me seu sorriso ingênuo, ela prossegue. - Aposto que não me reconheceria se eu não te chamasse de 'tia'.
- Eu te reconheceria dentre milhões de pessoas em uma noite escura, Cassie. 
- Vc sumiu. 
- Eu...- Pensando em várias mentiras, conto a verdade. - Eu tive que sumir. Me perdoa. Se eu me aproximasse de vc ou de Sean, as vidas de meus filhos e de Vincenzo estariam em risco. - Um olhar incrédulo e ela questiona.
- Como assim!? Desde quando Sean e eu oferecemos riscos a vcs!? - Ela não se lembra. Ela não se lembra de nada. Não estrague tudo. Ela estava drogada, dominada por Liam e, pelo visto, ainda está. - Tia!? Tá ouvindo as vozes!?
- Não. - Minto. - Elas sumiram. 
- Tem tomado os remédios? - Voltando no tempo, revejo nossos momentos. Bons momentos em que ela cuidava de Antoine e de mim. Por que não se pode voltar no Tempo? - Tia! Acorda!
- Vc ainda usa o crucifixo...- Sorrio ao tocar no pingente em seu pescoço. Sem olhar em seus olhos, peço. - Nunca o tire. Ele te protege de todo o Mal.
- Tenho saudades, tia. Posso visitar a 'pirralha'? - Hesitante, digo que sim. - Vc tem medo de mim, tia?
- Não. Nunca. - Deixando Matteo no carrinho, afirmo. - Jamais teria medo de vc. Eu te amo, Cassie. Vc é como uma filha pra mim. Não posso lidar com o homem que vc escolheu. Não dá. Nossa convivência se tornou impossível.
- Eu sei. - Seus olhos lacrimejam ao revelar. - Eu me lembro da briga, tia. Eu não posso viver com ele. E não posso viver sem ele. Não sei explicar. - Um olhar ao redor e ela cochicha. - Ele não é bom como imaginei, tia. Tenho medo de fugir novamente e ele matar meu filho. Sei que parece loucura, mas...
- Não parece, Cassie. Ele...- Não posso falar. Por que não? Que mal isso faria a Vincenzo? Que porra Vincenzo me esconde? Medo de Liam!? Fala sério! - Liam não serve pra vc, Cassie. Quando quiser se livrar dele, de verdade, me liga. 
- Se livrar de quem, 'Little Princess'? - Minhas narinas inflam assim que eu o encaro e me despeço de Cassie. - Já vai? Tão cedo? Que tal um café?
- Liam, pegue o café e enfie no seu cu. Verme.
- Nossa! - Um sorriso irônico e ele comenta com uma das mãos no ombro de Cassie, acuada como uma presa. - Vc continua a ter a classe de sempre.
- E a força também, 'Liam da Irlanda'. Algo me diz que, da próxima vez que nos encontrarmos, vc não vai sorrir. 
- Tia! - Num arroubo de coragem, ela se desvencilha da mão pesada de Liam e me abraça forte. - Te amo! Eu nunca mais vou me esquecer daqueles dias antes da escuridão! - Puxada por Liam, Cassie se afasta sem olhar para trás. Meu coração volta a doer de tristeza. Acabo de me lembrar de que me esqueci dos remédios. Chorando, debruço-me sobre o carrinho, abrindo minha bolsa. Enquanto procuro por meus comprimidos, Matteo abre sua mãozinha direita e, em seu dialeto, pergunta. 
- 'Neném chuta boia'?
- Que papel é esse, filho!? - Tomando de sua mão a pequena bola de papel, afoita, eu o desamasso. Inspirando e expirando com dificuldade, identifico a letra de Cassie em um pedido sombrio.
"Cuida do meu filho, tia?"


- Não vai.
- Tenta me impedir.
- Eu te pedi pra ficar longe deles, Dess.
- Vc vai deixar a Cassie sofrer porque tem medo do Liam!?
- Não tenho medo dele! Não quero que eles voltem às nossas vidas!
- Ela tá doente! Esquálida! Não deve tomar um banho há dias! O que quer que eu faça!? Lute no ringue como vc!? Escute música enquanto dá aulas, tranquilamente!? O que houve com o homem bondoso com quem me casei, Vincenzo!?
- Isso não é hora pra discussão. - Rosna ele. - Estamos no meu trabalho. Vá pra casa.
- Não. - Insisto num tom baixo sobre o tatame. - Não vou deixar minha Cassie fazer besteira. Vc não estava lá. Vc não a viu.

Repentinamente, sinto-me enjoada. A música que vem dos alto-falantes me atormenta. 
Por quê? Não me lembro. Levo a mão ao rosto enquanto ele continua a falar.
- Ela voltou pra ele, Dess. Voltou porque gosta do que ele faz com ela. - Descontrolada, avanço em sua direção ao indagar.
- E o que ele faz, Vincenzo!? Diz!? Vc sabe mais do que eu!? Tá me escondendo o quê!? Seu passado!? Como vc me encontrou naquela festa!? Na maldita festa onde me machucaram!? Que porra de música é essa!? EU A ODEIO! - Exalto-me, comprimindo minha cabeça com as mãos. De joelhos, imploro. - Faz parar...por favor. - Flashes de rostos e risos. Corpos nus. Dor, asfixia... - Vincenzo. 
- Vou te levar pra casa, amor.
- Não. Eu preciso...- Em seus braços, ouço a voz de João ao se defender.
- Eu não mexi no som! Juro! A música começou a tocar do nada!
- Deixa pra lá. - Resmunga Vincenzo carregando-me em seu colo. Sentindo seus passos apressados, ouço o sinal sonoro da porta do carro sendo aberta. Ainda tonta e enjoada, pergunto, sentada no banco do carona.
- Aonde vamos?
- Pra casa. Vc não está bem.
- Eu estava. Aquela música. Eu sei que já a ouvi em algum momento ruim da minha vida. Mas não me lembro quando. Por que eu sinto dor e nojo? Por que tá me olhando assim? - Um toque de seu indicador entre minhas sobrancelhas e ele ordena, modulando o tom de voz.
- Esqueça, Dess. Esqueça.

- Dói, Vincenzo. Para.
- Não. Vc gosta. Eu sei que gosta. Eu vi.
- Não. Para. Por favor.
- Shhh. Deixa eu gozar.
Uma dor excruciante em meu queixo e penso ter quebrado um dente antes de desmaiar.
Abro os olhos e, encarando o teto de nosso quarto, me pergunto: 'Quem é o homem que dorme ao meu lado?'






- Por que essa mesa farta?
- Porque vc merece, Dess. - Em meu ouvido, ele sussurra. - Me perdoa?
- Perdoar? 
- Senta, mãe! 
- Estamos te esperando, filha. 
- Enrico, vc tá tão pálido...
- Impressão sua. - Refuta ele à mesa do café da manhã. - Estou melhor do que ontem. Sente-se ao meu lado. Por favor. - Atendendo ao seu pedido, encaro Celeste que desvia seu olhar do meu. - Café?
- Não. Vai doer.
- O que dói, tia? - Movendo minha mandíbula, tento responder à pergunta de Leo e não consigo. - Tia?
- Não sei. Acho que caí.
- De novo, mãe? 
-Não me olha assim. - Protesto. - Eu não me lembro mesmo. Consegue entender minha 'linguagem não verbal'?
- Consigo. - Responde-me Antoine lançando um olhar indecifrável ao pai. - Mais um desses tombos e vc dorme comigo. Ok? - Confusa, demoro a responder. Vincenzo, praticamente, joga Matteo em meu colo ao declarar.
- Ele tá morrendo de saudades da mãe.
- Por quê? Eu viajei? Eu me lembro de ter chegado aqui, ontem, à noite.
- É uma brincadeira, Dess. Relaxa.
- Tô tentando, mas, a dor não deixa. 
- Tome um desses.
- Não aceito nada vindo de vc, Celeste.
- Jesus...- Dramatiza ela. - Eu acabei de retirar da cartela. É tão somente um analgésico. Juro que não tem magia sobre ele.
- Tome, filha. - Pede-me Enrico num sussurro. - Vai te fazer bem. - Recusando o comprimido, decido-me.
- Quando eu voltar, quero falar com vc, Enrico! Me espere acordado! Antoine!?
- Sim, chefe!
- Fique com seu irmão! Não deixe que ninguém se aproxime dele! 'Copiou'!?
- Nem mesmo o papai!?
- Ele pode. - Apontando o indicador a Celeste, alerto. - Ela não.
- Por que isso agora, Dess?
- Eu acordei, Vincenzo. - Rosno. - Eu estou despertando, aos poucos. Não toca em mim.
- Tia, vc tá bem?
- Tô, Leo. Fica com Antoine hoje? Preciso de seu apoio.
- Fico! Claro que fico!
- Dess. Aonde vai? - Erguendo-me da cadeira, ainda sentindo dor na mandíbula, eu o confronto.
- Fazer o que deveria ter feito ontem antes de vc me trazer pra casa e...sei lá o que fez comigo. - Um olhar a Antoine e me contenho. - Não tenta me impedir. - Aviso antes de ser tocada por ele. - Quando voltar, vamos conversar, marido.  - Beijo Matteo na bochecha e cheiro seu pescocinho antes de entregá-lo à irmã. - Cuida dele, filha. - Cochicho. - Fica de olho no soldado 'C'. 'Copiou'?
- 'Copiei'. Câmbio. Aonde vai, mãe? - Próxima à porta da sala, devastada por dentro, respondo fixando meu olhar magoado em Vincenzo.
- Evitar uma tragédia. 'Câmbio. Over'.


Levo mais tempo do que o normal até chegar à sua mansão. Encontrando os portões suntuosos, abertos, entro. Ressabiada, observo tudo ao meu redor. Nada. Nenhum ser de outro mundo. Nada de 'Legião'. Nada além de uma voz a me incitar: "Não desista. Ela precisa de vc".
Cobrindo minha cabeça com o capuz de meu casaco, invado a casa pela porta da frente. Temendo um possível ataque, aguardo por alguns minutos antes de subir os degraus que me levam ao segundo andar. Ainda me lembro do brilho do mármore assim que eles se casaram. Assim que Cassie, absolutamente feliz, disse ter realizado seu desejo: "Enfim, tenho minha própria casa, tia. Minha família. Meu amor".
Encarando o mofo, a cada degrau que subo, tento não surtar. As luzes que vinham dos lustres pendentes, em cristal, se apagaram. Resta apenas a penumbra vinda da lareira acesa. A chuva vergasta a fachada em vidro da grande sala de estar enquanto subo, receosa. Esgueirando-me pelo longo corredor, sigo até o quarto de Sean. Eu o encontro dormindo, em seu berço. Atordoada, verifico sua respiração com o dorso de minha mão em sua boquinha. Ele respira. Graças ao Criador. Ele cresceu. 
- Como cresceu! 
- Não é incrível!?
- Liam!?
- Não! Papai Noel! - Um riso curto e ele refuta. - O que pensava encontrar aqui quando invadiu nossa casa, Adessa Love!? - Acuada, penso antes de responder.
- Gostaria de ver a minha Cassie.
- Vc não é bem-vinda. Sabe disso.
- Sei. Deixe que eu a veja e sumo de suas vidas. Prometo. - Um sorriso macabro e ele afirma.
- Vai sumir. De um jeito ou de outro.
- Tia!!! - Ouço seu grito vindo de um outro cômodo. Atordoada, corro até a porta do quarto de Sean. Liam tenta me impedir de passar. Um soco em seu pescoço e, mais uma vez, tenho a sorte de nocauteá-lo. No chão, ele luta por voltar a respirar enquanto sigo a voz de Cassie até o quarto de hóspedes. Próxima à grande janela, ela me sorri como no dia em que a vi, pela primeira vez. Um sorriso triste e puro. Ela havia perdido os pais de maneira sombria e inexplicável. Entrou em nossas vidas, de mansinho, como baby-sitter e, com o tempo, nos conquistou. Antoine a acolhera em seus braços e me ensinou a amar Cassie como uma segunda filha. Algo em seu olhar me aflige. - Recebi seu bilhete. Vem comigo. Vc ainda pode ser feliz com seu filho. Longe daquele verme.
- De mim?
- Fica longe dela! - Aviso, entre enfurecida e acuada. Afastando-me dele, imploro. - Ela precisa sair daqui! Vc já tem o quer! - Desdenhando, ele indaga.
- E o que eu tenho, 'grande pitonisa'? O que eu quero?
- Não posso falar. Ela não merece ouvir. Liam. Não se aproxime.
- Graças a vc, eu não tenho nada. Nada além de uma pequena parte do que me cabe. O que eu desejo vai além de sua compreensão, humana medíocre.
- Ok. Não quero brigar. - Ergo as mãos num ato de rendição. - Só quero levar Cassie e Sean daqui. Não vou me meter em seus assuntos com relação àquele grupo. Prometo.
- Quem disse que preciso de sua promessa?
- Ninguém, 'Coelhinho'. Parem de brigar. Eu tô tão cansada. - Desabafa Cassie sentando-se no peitoril da janela. - Eu só queria rever aquele sorriso lindo do dia em que nos conhecemos no mercadinho da praia. Queria que vc fosse pobre e bom. Queria que amasse nosso filho como um pai normal. Queria que não trouxesse aqueles homens horríveis à nossa casa e que não machucasse nosso filho. Ele é tão pequeno e tão indefeso. - Cantarolando a canção que os uniu em minha casa, ela prossegue. - Queria não te amar tanto, Liam. Isso dói...
- Cassie...- Um passo adiante e ela grita.
- Fique onde está, tia! Nem um passo a mais! - Voltando seu olhar insano a Liam, ela pede. - Não maltrate nosso Sean. Metade dele é Luz.
- Cassie! Olha pra mim! - Peço enquanto ela retira o colar com o crucifixo bento de Vincenzo e o atira em minhas mãos trêmulas. 
Solto um grito de pavor assim que ela, de pé, sorri e ergue os braços paralelos aos ombros. 
- Enfim, eu vou ter paz, tia. Te amo.

Segundos me separam dela.

Um baque surdo contra as pedras do jardim e eu a perco.

Para sempre.

Minha Cassie. Minha pobre Cassie.

A primeira de minhas grandes perdas.

Em choque, debruço-me sobre a janela e fico ali, aguardando Cassie se levantar e rir de mim quando sinto o peso de sua mão em minha nuca, empurrando-me contra o peitoril de onde sua esposa acaba de pular. Cedendo à pressão, agarro as laterais da janela com minhas mãos e me arrisco a cair ao flexionar minhas pernas e dar um coice nos colhões de Liam. Urrando de dor, ele se afasta enquanto eu me recosto à parede e procuro organizar meus pensamentos. Desorientada, ainda acredito que Cassie possa estar viva, à espera de socorro. Levanto-me e caminho até a porta. Ainda no chão, Liam puxa minha perna com força. Caio de bruços, batendo com o queixo no piso em madeira. Volto a sentir a dor na mandíbula enquanto chuto seu braço, ouvindo seus risos diabólicos.
- Sua amiga está morta, Adessa Love. Aceite. É melhor assim.
- Maldito! - Grito antes de acertar um chute em seu abdômen e me libertar. Engatinho até o corredor. Ouço o choro de Sean. Meu coração aperta dentro do peito. Tonta, apoio-me na parede. Respirando com dificuldade, entro em seu quarto. Volto a gritar ao perceber a imagem do ser demoníaco, que vira durante o ritual, ao lado do berço. Recuo, assustada. Com o crucifixo de Vincenzo nas mãos, fecho os olhos e peço por ajuda ao 'Crucificado'. O ser avança em minha direção.  Ainda enxergo pavor em seus olhos vermelhos com uma fenda no meio. Algo o faz recuar e desaparecer. Desesperada, debruço-me sobre o berço e, antes de tomar Sean em meus braços, eu a vejo reluzir, pulsante como as artérias em meu pescoço. A pressão em minha cabeça aumenta quando a toco. Um desejo descomunal de vingança percorre todo meu corpo até chegar à mão que a segura pelo cabo. 

- Eu não pedi por sua ajuda. 
- Não é hora de bancar a boa moça, meu bem. Termine o que já começou.
- Não posso.
- Ele está vindo. Quer perder o pobre órfão? Sabe o que Liam deseja fazer ao próprio filho que, aliás, não é dele?
- Te afasta, Lúcifer. - Peço, quase sem forças. - Me deixa sair daqui. - Erguendo os braços, ele alega.
- Não estou te impedindo, ingrata. Só vim porque vc pediu por ajuda. - Confusa e puxando o ar pela boca aberta, refuto.
- Não foi a vc que pedi. 
- O 'Crucificado' não está disponível no momento, criança. Não perca tempo. O monstro está chegando.
 

Liam caminha em minha direção, com os olhos cheios de fúria. Sean continua a chorar. Nas mãos de Liam, um taco de baseball longo e pesado. Agacho-me e escapo do primeiro golpe. Decidido a me acertar com o taco, ele erra novamente enquanto rolo no tapete e, cambaleante, eu me ergo. Perco a voz ao ser atingida nas costas. Caio de joelhos contra o piso frio. Meu coração 'queima'.
- Vai deixar ele vencer? - Indaga-me Lúcifer, de cócoras, ao meu lado. A dor no peito se espalha pelas costas, o que me impede de respirar. - Não me decepcione. - Pondo a adaga no chão, diante de mim, ele sugere. - Um golpe em seu tornozelo e ele cai, meu bem. 




Instintivamente, rolo meu corpo para a esquerda. Escapo de outro golpe. Seu taco destrói um dos brinquedos de Sean. De costas para mim, ele gargalha, histericamente. Sem tempo de raciocinar, volto a sentir a pulsação da adaga em minha mão direita cortar, profundamente, a pele de seu tornozelo esquerdo, atingindo o 'Tendão de Aquiles'. Outro urro de dor e ele tomba, de joelhos. Arrastando-se, ele ainda tenta me atingir com o taco. Sem perceber, estou sorrindo de prazer ao cravar o punhal em suas costas, próximo aos pulmões. Ouço palmas ao retirar a adaga de seu corpo com a facilidade de um açougueiro experiente.
- Termine o que já começou. Ele é o líder daqueles seres que ameaçam a sua família. 

Exausta, com arritmia e sem respirar, sob pressão, deixo de seguir minha intuição e, sentando-me em suas costas, penso em puxar sua cabeça pelos cabelos e deslizar, lentamente a navalha em seu pescoço. A voz em minha cabeça grita: "NÃO!". Horrorizada, recuo, largando a adaga sobre o tapete manchado de sangue. Trôpega, alcanço o berço. 
- Tola! Por que não terminou!?
- Porque era isso o que vc queria. - Exalo. - Não sou assassina, maldito.
- Seu coração vai falhar a qualquer momento, idiota. Será que alguém virá te salvar?
- Volta pro inferno...
 - Não agora. Não sem a alma da maluquinha lá embaixo.
- NÃO! 
- Ela é minha. Suicídio. Lembra?
- Nunca!
Reunindo todas as forças que me restam, desço os degraus, agarrando-me no corrimão. Cambaleio até o jardim. Quase sem ar, jogo-me sobre o corpo sem vida da mãe de Sean e, antes de ceder à imensa dor em meu tórax e perder os sentidos, imploro.
- Arcanjo Miguel, leva a alma da minha Cassie.

A última imagem que tenho é a de Lúcifer sorrindo.

Cassie desceu ao túmulo e e eu não estava presente. Internada, às pressas, submeteram-me a um cateterismo cardíaco de emergência. Minha cardiopatia tem um nome pomposo: 'Cardiomiopatia de Takotsubo' ou 'Síndrome do Coração Partido', facilmente confundida com um infarto. Não poderiam definir melhor o que sinto. Meu coração está partido em vários pedaços, embora eu já esteja cansada desse quarto claustrofóbico com paredes tão pálidas quanto meu rosto. Com quatro costelas fraturadas, permaneço, em observação. 
- Não reclame. Tem gente morrendo nos corredores de hospitais públicos, sem atendimento.
- Eu sei. Não estou reclamando. Quero ir pra casa.
- Sério!? Não pensou nisso quando invadiu a casa de Liam e lutou com ele!? 
- Ele tentou me matar! Queria que eu não resistisse!?
- Calma, Dess!
- Lúcifer estava lá! Ele me incitou a matar Liam! Era o que eu deveria ter feito e não fiz! Quem vc acha que fraturou minhas costelas, Vincenzo! Liam se empenhou em me aniquilar!
- Se não se acalmar, vou chamar a enfermeira e ela vai te sedar.
- Por que não me ouve, Vincenzo!? Ele tentou me matar e ainda riu da morte de Cassie! Eu tentei salvar Sean, mas havia um demônio ao lado do berço e...de repente...ele...sumiu...e Lúcifer me deu a adaga e eu...- Sentindo-me enjoada, contenho a ânsia de vômito. Movendo meu tronco para o lado, vejo uma cuba inox em uma das mãos de Vincenzo que, ao segurar meus cabelos com a mão livre, me avisa que posso vomitar, se eu quiser. De volta ao travesseiro, confesso. - Eu enfiei uma faca nas costas dele, Vincenzo. Era duro. Eu senti a lâmina penetrar a pele, romper os músculos, quebrar os ossos. Foi horrível e, ainda assim, continuei. Eu queria matar aquele verme. Matar a sede de vingança que ardia dentro de mim. Então, ouvi a voz gritar em minha cabeça. Não sei quem era, mas eu a atendi e não cortei seu pescoço. 
- Jesus...
- Não. Ele não estava lá, marido. Lúcifer estava. Por causa dele, eu quase matei um homem. Um homem mau. A porra de um anjo falido do mal, mas, ainda assim, um homem. Não quero me lembrar.
- Não se lembre. Não toque em Liam. Por favor.
- Por quê? - Indago, curiosa e intrigada. - O que acontece se ele morrer? - Hesitante, ele responde.
- Não sei. Não quero que se aproxime dele, Dess.
- E se eu o tivesse matado?
- Para.
- Por quê!? Tem medo!?
- Não! Não quero que cometa um ato contra Deus! Só isso!
- Vc não sabe mentir, marido. - Lamento. - Não sabe.
- Dess. Acabou. Vc está aqui. É tudo o que importa. Ok?
- Ok. - Concordo, contrariada. - Tá tudo certo.
- Fala, Dess...- Resmunga ele, abrindo um sorriso.
- Ele riu de mim. De Cassie.
- Isso é horrível, amor. Vc viu tudo?
- Sim...- Respondo de olhos fechados. Lágrimas escorrem pelo meu rosto enquanto me recordo de seu sorriso antes do fim. - Ela não morreria deixando o filho sozinho, Vincenzo. Não a minha Cassie. Ele a induziu à morte.
- Não pensa nisso, amor. Não chora. Vc não pode se emocionar.- Sentando-se na beira do leito, ele me abraça forte e me pede perdão. - Por que não me disse a verdade? Poderíamos ter ido juntos.
- Vc já não é o homem que eu conheço. - Choro contra seu peito. - Não sei se posso confiar em vc.
- Eu sei que tenho feito coisas estranhas, mas eu jamais jamais vou te machucar novamente. Prometo. Vc precisa me ajudar, Dess. Sem vc, eu fico perdido.
- Sem vc, eu não vou suportar, marido. Não me esconda nada. Por pior que seja, não me esconda nada. - Afastando-me com as mãos em meus braços, ele me olha nos olhos e promete num tom sombrio.
- Quando voltarmos pra casa, eu te conto tudo.
- Tudo mesmo? Inclusive o que te prende a Liam?
- Tudo. - Mente ele. 
- Jura não se meter em encrencas novamente, Dess? Seu coração não pode sofrer grandes emoções. Vc ouviu o médico.
- Não são as grandes emoções que me deixam fraca. São a decepções, Vincenzo. Posso enfrentar legiões, furacões, erupções vulcânicas, mas não vou suportar outra perda. Não permita que o mal toque em nossos filhos. Afasta Celeste de nossas vidas, marido. Por favor. Eu não confio nela.
- Eu também não. - Observando, pelo monitor, meus batimentos cardíacos acelerados, ele me pede com ternura. - Descansa, Dess. Amanhã, eu te levo pra casa. Seu filho tá morrendo de saudades. - Volto a chorar enquanto confesso.
- Eu também. Não deixe que toquem nele, Vincenzo. Não deixa.
- Não vou. Mesmo que custe a minha vida, ninguém toca nele. - Um abraço nos une enquanto penso em Antoine. - Ela sabe se defender, Dess. Não se preocupa. Por favor. Volta pra casa. Aquele lugar não tem vida sem vc.

Sorrio ao exalar.






Demoro minutos ao abraçar Matteo que, feliz em me ver, faz sua clássica pergunta.
- Mamãe 'dodói de movo'?
- Não, filho. - Aos prantos, recostando minha testa na dele, respondo. - Não. Mamãe não tá 'dodói'. Ok?
- Ok? - Repete ele expressando incredulidade em seu lindo rostinho.
- Ok. - Rindo, com ele em meu colo, olho ao redor e revejo minha família reunida, talvez, pela última vez. Vincenzo revira os olhos e, antes de ralhar comigo, resmungo. - Ok. Não vou mais pensar em coisas ruins. Prometo.
- É bom mesmo, Sra. Takotsubo! - Leo gargalha enquanto Antoine, cuidadosamente, me encaminha até a mesa de jantar e, eufórica, avisa. - Hoje teremos uma noite especial!
- Não me diga? - Brinco. - O que tem nessa cabecinha de minhoca?
- Surpresa! - Um arquejo e ela me me olha com seus olhos arregalados. - Calma! É uma ótima surpresa! Simplesmente esplendida! - Abraçando-a, sussurro, emocionada.
- Vc é simplesmente esplêndida, meu anjo. Vc.

Após o jantar preparado por Enrico, Antoine e Leo, sinto-me impulsionada a rezar. Todos concordam e, de mãos dadas, ao redor da mesa, agradeço ao Criador por ter uma família mais do que especial. 
- Não sou digna de tanta alegria. Tenho um passado pesado, cheio de pecados e, agora, estou aqui, com os que mais amo nesse mundo. O que mais posso querer? - Meus lábios tremulam enquanto Matteo deixa escapar um insensato 'Meguio, mamãe? Neném meguio? - Mordo o canto da boca e a custo, mantenho-me firme até Vincenzo provocar.
- Não chora. 
- Cretino. Estou rezando...
Lágrimas voltam a molhar meu rosto enquanto Antoine, ao meu lado, sussurra.
- Te amo, mãe. Pode chorar. Faz bem.
Escondendo meu rosto com o guardanapo de pano, choro de soluçar. Matteo, em meu colo, puxa o guardanapo de meu rosto e, inocentemente, faz 'Boo'. Sorrindo, ouço as gargalhadas de todos ao redor, exceto de Celeste que me encara ao comentar.
- Vc chora à toa. - Como faca afiada, refuto.
- Sou humana. Vc não sabe o que é isso. 
- Nem quero saber.
- Não pode, Celeste. - Corrijo-a, secando meu rosto com o dorso de minha mão. - Vc não pode mais ser humana e também não consegue voltar a ser um anjo. O que diabos vc vem a ser, meu bem?
- Dess. Agora não. 
Um de seus sorrisos puros e desisto de arrancar a verdade da mulher ao lado de Enrico, cada vez mais fraco e pálido. - Vamos comemorar seu retorno ao nosso lar.
- Concordo. 
- Woohoo! - Exulta Antoine como nos velhos tempos. - Vem, mãe! Temos surpresas!
- Filha! Devagar! - Repreende-a Vincenzo, com doçura. - As costelas...
- Estou perfeita, marido. - Mordendo o canto da boca, encantada com sua preocupação, insinuo. - Os médicos me liberaram para qualquer atividade física. 'Copiou'?
- 'Copiei'! - Diz ele, rindo, jogando sua cabeça para trás, como nos velhos tempos. Fixando seus olhos nos meus, ruborizado, ele graceja. - Hj à noite,  testaremos. Câmbio!? - Rindo, concordo.
- 'Câmbio. Over'.
- Vem, mãe! Para de safadeza! - Imediatamente, o rosto de Cassie surge em minha mente. Minha 'Cassie, a  safada'. Puxando-me pelo braço, Antoine resmunga.
- Vc chora muito. - Escondendo suas lágrimas, ela me leva até o quarto onde costumo ensaiar minhas coreografias. Arquejo, deslumbrada, ao ver balões coloridos por todos os lados. Presos no teto e soltos sobre o piso. Num dos cantos da sala, um painel com estrelinhas em neon e um bolo de aniversário sobre a mesa decorada.
- Mas...meu aniversário tá longe.
- E daí!? - Pergunta-me ela, indignada. - Quem disse que é proibido ter dois aniversários em um ano!? - Encantada, observo Leo que comenta.
- Coisas de Antoine, tia.
- Vc merece, meu anjo. - Sussurra-me Enrico. - Nasceu de novo. Vamos comemorar.
- Vamos...pai. 
- Se chorar de novo, vai desidratar. - Gargalho, contendo minhas lágrimas. Vincenzo deixa Matteo, ensandecido, correr atrás das bolas que brilham, enquanto faz girar o globo espelhado acima de nossas cabeças. Matteo pula de alegria. Antoine avisa.
- Tem mais!




Apagando a luz no interruptor, ela faz surgir corações em neon, de vários tamanhos, colados às paredes. 
- Todos são seus, mãe. - Agora são os lábios dela que tremulam. - Todos os nossos corações pertencem a vc. Pra sempre.
- Puta que pariu...- Resmungo, aos prantos. - Como eu posso não chorar?
- Dançando. Vem, Dess...
- Putz...- Revirando os olhos inchados,  pergunto. - Vc quer que eu me controle com uma canção como essa?
- Vem, mulher. - Abraçando-me com cuidado, ele murmura. - Bem-vinda ao lar, meu grande e único amor. Minha 'Cathy'.
- Heathcliff.
- Como vc me fez jurar, um dia, mesmo depois de morto, eu irei ao seu encontro.
- Digo o mesmo, amor. Deixe as janelas abertas...








Recostando minha cabeça em seu ombro, observo Antoine e Leo, juntinhos, embalados ao som da canção tão sombria quanto minha vida. Tão forte quanto meu amor por Vincenzo. Num dos cantos do cômodo, Enrico, sentado em uma poltrona, brinca com Matteo quando poderia estar dançando com Celeste. Ambos amavam dançar. O que os distancia agora? 
- Amor, posso dançar com seu pai?
- Deve...- Responde-me Vincenzo, levando-me até ele. - Concedo-te minha dama, pai. Mas não se acostume. É só por hoje. - Engolindo em seco, com os olhos lacrimejando sob a luz fragmentada do globo espelhado, ele repete, desanimado.
- Só por hoje.

Enquanto danço com Enrico, tento, com todas as minhas forças, captar o que ele sente, sem sucesso. Arcanjos não são acessíveis nem mesmo aos anjos. 
- Enrico, vc não tá bem. Por que não me conta? Eu quero te ajudar.
- Depois, meu anjo. Depois. Por enquanto, deixa-me aproveitar esse momento de paz. - Em seu ouvido, imploro.
- Não nos deixe, Enrico. 
- Não pretendo, filha. Não pretendo. Minha missão ainda não acabou.
- Te amo.
-  Te amo ainda mais, meu anjo. Não deixe meu filho se perder.
A música cessa. Meu coração se comprime ao deixar Enrico partir. De cabeça baixa, ele caminha até a porta, de onde acena forçando um sorriso.
Parada sob as luzes em neon, tento espantar os pensamentos intrusivos enquanto Leo e Antoine dançam como se não houvesse amanhã.
E, talvez, não haja. Adoraria me juntar a eles e gritar: "Selvagem!!!"
Mas não acho que seja prudente. Não depois do que passei.


- Vincenzo! Me põe no chão!
- Chega de pensar em bobagens, Dess. Hora de descansar.
- E Antoine...?
- São jovens, Dess. Pra eles, 'a noite é uma criança'
- Mas...e o bolo?
- A gente come amanhã.
- Mas...
- Quer ficar aqui ou matar as minhas saudades em nosso quarto? Em nossa cama?
- Vc não vai me...?
- Não. Nunca mais eu vou te machucar novamente, esposa.
- Te amo, marido.
Declaro-me antes de fazer amor com ele e sorrir antes de dormir, 'de conchinhas'.
Enfim, ele voltou a ser o 'meu Vincenzo'.
- Dorme, Dess. - Ordena-me ele, num bocejo. - Para de pensar e dorme.
Antes de adormecer, repito o refrão do maior poeta de todos os tempos:

"Não tenho medo do escuro. Mas, deixe as luzes acesas, agora".

Penso estar sonhando ao ouvir seu lamento. Seu grito de pavor. Acordo com o movimento brusco de Vincenzo que se levanta da cama e, sem me ouvir, veste a calça de seu pijama e caminha até o corredor. Confusa, mas consciente do que ouvira, cubro-me com meu roupão e o sigo, resfolegando. 
- Vincenzo...
- VOVÔ!!!
- Antoine!? - Recupero meu fôlego e corro até o quarto de Enrico. Da porta, arquejo, horrorizada. Vincenzo vem em minha direção e tenta me impedir  de ver o que já vi. - ENRICO! - Como uma bola de boliche enlouquecida, arremesso para longe, Vincenzo e Leo que tentam me impedir de chegar até o corpo estirado na cama. - ACORDA! - Ordeno ao mesmo tempo em que o esbofeteio no rosto sempre corado, agora, pálido como cera. Frio como o inverno. Mudo como Vincenzo e Antoine que me observam, atônitos. - Acorda, Enrico! Não tem graça! Acorda! Sua missão ainda não acabou!
- Mãe!
- Cala a boca, Antoine! Me ajuda! Seu avô precisa de sua ajuda!
- Dess!
- CALA A BOCA, VINCENZO!!!
Um olhar ao teto e suplico por ajuda enquanto realizo as manobras de 'RCP'. Esforço-me ao máximo enquanto a ouço rir de mim. 
- Não adianta, querida. Ele já se foi.


- Tira ela daqui. - Aviso, entredentes. - Tira-ela-daqui. - São minhas últimas palavras antes de avançar em sua direção e, com os punhos cerrados, acertar seu rosto com 'jabs' sem intervalos. Recuando, ela mantem seu sorriso maquiavélico. 
- Foi vc a culpada. Eu não precisaria aniquilar meu amante se vc não tivesse interferido no curso dos acontecimentos. - Cuspindo sangue, ela me provoca. -  Vc é a culpada pela morte de Enrico. Vc enfureceu Liam. Ele me entregaria a Lúcifer. Eu me recuso a retornar àquele inferno de ser possuída pelo 'Anjo Caído' novamente. 
- Cala a boca. - Um último soco em seu nariz e ela se apoia na parede salpicada por seu sangue, rindo histericamente.
- Eu precisava me proteger já que Enrico só tinha olhos para vcs. Eu suguei suas energias por algum tempo e ele, tolo, me irritava com seu amor incondicional. Odeio homens fracos.
- Cala a boca! Para! - Grito enquanto sou arrastada por Vincenzo. Distante dela, revelo. - Eu nunca confiei em vc! - Ajeitando os cabelos com as mãos sujas de sangue, ela confessa.
- E eu nunca gostei de vc, 'macaca'. Vc mesma me deu a resposta que eu precisava ao me perguntar o que eu sou. Se não sou um anjo ou uma humana, o que eu devo ser? Vc decretou a morte de Enrico. Se eu não o matasse, estaria nas mãos de Lúcifer novamente. Sem ajuda da 'Legião', seria alvo fácil nas mãos dele. Eu precisei escolher já que, nem mesmo Vincenzo, meu filho, amigo e amante, poderia me ajudar.
- Amante??? Vc disse 'amante'??? 
- Sim. - Responde ela, lançando um olhar de lascívia ao meu marido. - Nós, anjos falidos, temos um passado, querida.
- PODRE!!!

Luto contra Vincenzo que me prende a ele gritando.
- Não lhe dê ouvidos! Ela enlouqueceu!
- Que morra!!!
- Que morra. - Repete Antoine, antes de revirar os olhos flamejantes. Sua aura se expande, seus cabelos se eletrizam, seu corpo todo treme. Leo devolve Matteo ao chão. Matteo, com medo, corre em minha direção. Vincenzo o abraça e implora. 
- Filha! Não! - Arrepio-me com a voz gutural de Antoine ao encarar Vincenzo e perguntar.
- Quer que eu deixe esse ser imundo vivo? - Vincenzo infla as narinas ao olhar para Celeste e, num rosnado, responder.
- Não. Prossiga.
O ar pesado faz o quarto diminuir de tamanho. Algo de estranho está prestes a acontecer. Livre, devastada, cambaleio até o corpo de Enrico. Sem lágrimas, deito minha cabeça em seu tronco enquanto assisto à ira de Antoine contra Celeste, em sua forma demoníaca. Vincenzo cobre os olhos de Matteo e se agacha num dos cantos do quarto. 




De súbito, uma espada reluz nas mãos de Antoine que a manuseia com a habilidade de uma guerreira medieval. Encurralada, Celeste pede por clemência segundos antes de ter a cabeça decapitada, rápida e violentamente. A cabeça rola sobre o chão. Leo a faz parar com um dos pés e, sem demonstrar emoção, aceita a espada das mãos de Antoine. Erguendo-a, ele faz o fogo surgir de uma extremidade a outra da lâmina de metal. Em segundos, o corpo de Celeste é incinerado junto à sua cabeça, diante de nossos olhos incrédulos. 
Afasto-me do corpo de Enrico enquanto Antoine volta à sua forma humana. Dois passos em sua direção e, sem palavras, eu a encaro. Leo, num gesto ligeiro, impede Antoine de cair contra o chão, ao desmaiar. Leo a leva ao seu quarto enquanto meu pé direito toca nas fuligens do que restara do corpo da avó de meu filho. 
- Isso não é real. - Digo a mim mesma, confusa, tonta, enojada. - Não é.
- Dess...

- Não me toca. - Aviso puxando o ar pela boca. - Fica longe. Verme imundo. Vc matou seu pai. 
- Não, Dess. Não foi assim. Respira. Olha pra mim.
- Me dá meu filho...
Estendo os braços tentando alcançar Matteo no colo do pai, mas não consigo.
Um ruído agudo ao respirar e, mais uma vez, enxergando a vergonha no rosto de Vincenzo, apago.
 
Em agonia, entre dois mundos, ouço sua doce voz me avisar.

"Ainda não terminei minha missão".


Continua...







EPÍLOGO

  Abro os olhos. Encaro o teto do quarto, tentando não me recordar do sonho. Um sonho ruim. Chove lá fora. Dentro do quarto, faz frio. Meu c...