'Dess - Uma História Interessante'

'Dess - Uma História Interessante'
AMO ESCREVER

CAPÍTULO 44 - CONSEQUÊNCIAS

 



Mais uma vez, optamos pela escadaria. O único elevador do prédio onde Leo e sua mãe moram, está com defeito. Antoine e eu saltamos os degraus de dois em dois enquanto Vincenzo auxilia Celeste a subir com menos agilidade. Ela se queixa de dores nas pernas. Herança dos tempos na 'Legião'. Antoine, preocupada com Leo corre em sua direção assim que a porta de seu apartamento se abre graças ao meu chute certeiro. Eu me antecipo e a seguro pelo braço. Impedindo-a de tocar nele, pergunto, afoita.
- Não consegue ver quem está atrás dele, filha?
- Não me importo. Não tenho medo de demônios.
- Não se trata de medo. Trata-se de entender o que ele quer e o que foi feito para que Astaroth esteja aqui.
- Mãe, me solta. Leo tá sofrendo.
- Aquele não é o seu Leo, filha. Não é o nosso Leo. Preste atenção. Olhe com os olhos de sua alma pura e infinitamente mais poderosa do que a minha. - Mantendo-a segura por minha mão em seu braço, percebo seu recuo. Hesitante, ela o observa. Parecendo revoltado, ele quebra a TV com suas luvas de boxe enquanto sua mãe o assiste, apática,  jogada num dos cantos da sala. Há feridas 
nos braços de Leo  enquanto luta por não ser dominado por aquele que tem, como pecado capital, a Ira. Estudei sobre Astaroth assim que Leo o mencionou pela primeira vez. Não. Ele não fecundou a mãe de Leo. Não. Leo  não é o filho, herdeiro de Astaroth. Há muita crendice popular entre homens e demônios. Qualquer ser diabólico pode se fazer passar por um 'pop star' do inferno e fecundar uma mortal carente ou com sede de vingança. O próprio Astaroth, através das cordas vocais de Leo, diz a verdade.
- Nada tenho a ver com essa mortal idiota! Ela me invocou pedindo por vingança contra a amante do pai desse menino através daquela tábua arcaica! Revelei verdades a ela! Ela não as suportou! Preferiu acreditar que o pai dele a largou por acaso! Não! Ele se ligou a outra e nunca mais retornou ao lar, deixando-os à míngua! Mais uma vez, ela me pediu por dinheiro! Ela o gastou com tolices! Tudo o que pude fazer foi lhe mostrar o futuro! E ainda assim, ela não parou de chamar por meu nome! Isso me encheu de ira! - Revela Astaroth através de Leo completamente alheio a tudo o que acontece com seu corpo. Antoine se desespera enquanto o corpo de Leo é jogado de um lado a outro da pequena sala, quebrando tudo o que encontra pela frente. Preocupada com suas supostas fraturas nos ossos e o sangue em seu rosto, desespero-me. Antoine, prestes a entrar em combate com o 'conselheiro' de Lúcifer, retrocede assim que Celeste nos surpreende ao se ajoelhar diante de Leo e, de cabeça baixa, implorar.
- Deixe o menino livre, mestre. Ele nada tem a ver com as loucuras de sua mãe. Ela não o conhecia como eu o conheço,  'Duque'. - Conhecendo Astaroth, ela o incita a falar de seu passado antes de ser expulso do paraíso. -  Conta-me tuas histórias sobre a Criação e de como fostes amado pelo Criador. - Tocando em seu ponto fraco, Celeste nos concede tempo para resgatar Leo, caído sobre o chão, semi-inconsciente enquanto finge apreciar as histórias de Astaroth sobre como tudo fora criado e como fora injusta a forma como ele 'caiu'. Fingindo estar consternada, ela, humildemente, pede pela libertação de Leo.
- Ele não é o teu filho. Usaram de teu poder e fama a fim de ludibriar sua mãe que, infelizmente, sucumbiu à sede de vingança e ganância.  Mestre, liberta o menino. Eu te peço.
- Não sem algo em troca. - Refuta Astaroth, mostrando-se em uma de suas formas. Sozinha na sala, percebendo Leo distante e fora do controle de Astaroth, observo a beleza desse ser diabólico.
- Ele se nega ao fato de ter sido banido do paraíso. - Sussurra-me Vincenzo, protegendo-me com seu corpo. Antoine se mantem próxima à porta, acariciando a cabeça de Leo, desacordado, em seu colo. - Celeste precisa de ajuda. Ela não é páreo para alguém como Astaroth. Em breve, ele vai ser informado de que ela fugiu de uma de suas legiões e só Deus sabe o que ele, o deus da Ira, será capaz de fazer. Fique aqui. Eu ficarei ao  lado dela.
- Nunca! Vc fica! - Refuto, impulsiva, socando seu estômago com meu cotovelo. Ele se encolhe de dor e surpresa enquanto, desorientada, ajoelho-me ao lado de Celeste que, abismada, cochicha.
- O que faz aqui?
- Não faço ideia.
- Ele é perigoso.
- Então, somos duas em perigo. O que eu faço?
- Fique calada. - Os olhos amarelados de Astaroth me fitam. Desconfiado e curioso, ele se aproxima de mim e me fareja com seu olfato apurado. 
- Vc cheira a pecado. Gosto disso. - Em silêncio, percebo a movimentação entre Vincenzo e Antoine enquanto arrastam Leo até o corredor, fora do apartamento. A mãe de Leo permanece prostrada contra a parede. Contenho minha vontade de gritar: 'Sai daqui, lesada!!!' - Vc já esteve em uma de nossas legiões?
- Nunca tive o prazer. - Minto contendo a vontade de berrar de medo. - Mas conheço sua história e as injustiças que cometeram  contra vc. - Interessado, ele mantem um dos joelhos no chão e apoia seu cotovelo no outro. Sou um grão de areia comparada à sua altura e ao seu corpo esguio e musculoso. Seus cabelos longos lhe conferem um ar sedutor, embora não me encare com lascívia. Há dúvidas em seus olhos de serpente ao perguntar. 
- E o que lhe contaram?
- Que vc foi expulso do paraíso injustamente e que ainda tem a intenção de retornar a ele. Que tem o dom de prever o futuro e revelar o passado dos humanos. Que muitos te invocam sem conhecer a tua força e a tua ira. Foi o caso daquela mulher ali, inerte, feito um saco de trigo. Há alguma chance de que ela obtenha o seu perdão?
- Nenhuma. Ela fez um pacto comigo. Sua vingança e dinheiro em troca de sua alma. Gostaria de levar seu filho comigo, mas...
- Mas...?
- Ele tem muita proteção. Não quero problemas com os 'iluminados'. Foram eles que me condenaram ao exílio no inferno e a vagar nesse mundo fedido entre humanos inescrupulosos. Ao menos, essa aí não me ofereceu o filho em troca da morte da amante do marido. Muitas o fazem. 
- E a amante morreu?
- O que acha? - Um olhar de fúria e me calo. - Quem se mete comigo, tem o que merece.
- Mas a amante não tinha nada a ver com a história...- Erguendo-se, ele grita, raivoso.
- EU NÃO FAÇO JUSTIÇA! EU COBRO PELO QUE FAÇO E PONTO! - Encolhendo-me de pavor, murmuro.
- Entendi. - Temendo que algum tipo de fogo escape de sua boca e me torre por inteiro, arrisco outra pergunta. - O menino está livre do pacto?
- Completamente. Meu interesse é em sua mãe.
- Que bom...- Sussurro, aliviada. - Então, o menino  está livre de sua justiça?
- Não sou justo, criatura. - Diz ele, revoltando-se. - Sou um demônio cheio de ira, nojo, ódio pelos Humanos. Se pudesse, acabaria com a sua raça agora mesmo, mas sigo as ordens de superiores.
- Lúcifer?
- Como sabe?
- Não sei. Só imaginei. Vc é seu conselheiro. Certo? - Bem próximo ao meu rosto, ele murmura. 
- Para uma humana, vc sabe muito. Quem és tu?
- Ninguém. Há muitas histórias escritas sobre vc. Sou curiosa. Li tudo. Ou quase tudo sobre sua vida. Sinto muito pela covardia que cometeram contra vc. Creio que não merecia algo assim. Quem sabe, uma segunda chance com o Criador?
- Ele não me receberia. - Quase sem forças, de mãos dadas a Celeste, prossigo.
- Ouvi dizer que Ele é misericordioso e que não guarda ressentimentos. - Tornando-se ainda maior, ele se exalta ao perguntar.
- QUEM VOS DISSE ISSO!?
- Lúcifer. - Minto. Eles que se entendam depois. - Ele me disse que ouviu dizer que ainda discutem sobre sua expulsão. 
- LÚCIFER??? EU SOU SEU CONSELHEIRO!!! POR QUE ELE NUNCA ME DISSE NADA???
- Talvez, ele o queira no inferno e não aceite te perder...- Celeste e eu tapamos nossos ouvidos diante de seu estrondoso  urro de ódio. De olhos fechados, não o vemos levar a mãe de Leo em seus braços. Assim que os vejo, suplico. - Deixe que ela fique. Mostre ao seu Criador o quão bom vc tem sido. O quanto merece retornar ao paraíso.
- Dívida é dívida. - Diz ele enquanto ela se move, em desespero, em uma de suas mãos. - Ela me invocou para o Mal e, em nome do Mal, eu a levo como pagamento.
- E seu filho Leo!? - Repito, angustiada. - Ele está livre de vc!? De sua justiça!? Pra sempre!?
- Não o conheço. Que siga com sua vidinha nessa Terra imunda. - Celeste, compadecida, ainda implora.
- Dê uma nova chance à mãe do menino, mestre! Ela não o fez por maldade! Foi por ignorância! - Recuando, com os olhos flamejando, ele indaga.
- Por que me chamas de mestre? Ainda faz parte de uma de minhas legiões? - Antes de ouvir uma resposta tola de Celeste, minto.
- Sim. Ela lidera a rebelião contra a 'Legião dos Rebelados'. - 'Legião dos Rebelados' ??? De onde eu tirei isso??? - Daqueles que se recusam a aceitar suas ordens, grande Astaroth.

Minutos de apreensão enquanto ele observa Celeste que treme dos pés à a cabeça e, enfim, ele se despede ao ordenar.
- Acabe com todos. Só pode haver uma rebelião: A nossa. A primeira e única.
- Deixe a mãe de Leo! - Grita Celeste, emotiva. Sem lhe dar respostas, ele nos dá as costas levando consigo a mulher que ousou invocar um demônio da alta hierarquia por motivos banais. Abraçando Celeste, ouvimos os gritos de pavor da mãe de Leo antes de ser tragada pelo buraco que se abre em meio à sala do apartamento. Desgastadas e amedrontadas, corremos até o corredor onde Vincenzo nos aguarda em oração. Antoine abraça Leo que, entre esperançoso e furioso, pergunta.
- Minha mãe? Onde ela está?
Sem responder com palavras à sua pergunta, baixo a cabeça e a escondo no pescoço de Vincenzo.
- Minha mãe! - Grita ele, atordoado, machucado. - Pra onde ela foi!? - Celeste o abraça e, com lágrimas nos olhos, mente.
- Ela morreu antes do fim. Astaroth não conseguiu levar sua alma. Antes de partir, ela disse que te amava mais do que tudo, filho. Foi uma mulher forte, até o fim. - Um gemido de dor e ele volta a indagar.
- Como sabe que ele não levou sua alma!? Onde está seu corpo!? Preciso ver minha mãe!
- Calma, Leo. - Pede-lhe Antoine, chorando por sua dor.
- Eu vi tudo, Leo. - Minto junto a Celeste. - Sua avó veio buscá-la. Ao menos, ela a chamou de 'mamãe'. Diante dos olhos úmidos e tristes de Leo, eu o abraço com força. Sentindo que ele não vai conseguir viver com essa lembrança pelo resto de sua vida e, principalmente com o inexplicável sumiço do corpo de sua mãe, pela primeira vez, imploro a Vincenzo assim que me afasto de Leo. - Apague suas memórias desse dia terrível. Por favor. - Ainda confuso, Vincenzo o ajuda a caminhar até o carro e, inseguro, responde.
- Vou tentar.


Com o auxílio de Enrico, Vincenzo leva Leo até a sala de treinos e fecha a porta, deixando-me do lado de fora. Caminhando até o quarto de Matteo, pergunto-me se um dia, Vincenzo seria capaz de apagar minhas memórias se isso o beneficiasse em algo. O riso de Matteo me tira do transe e me traz de volta à vida.
Vincenzo jamais faria algo de mau contra mim.
Espero...
 


Sean dorme em nosso quarto, em um berço antigo de Matteo. Após alguns curativos e um dos meus 'comprimidinhos mágicos', Leo, aéreo, conversa com Antoine na sala de cinema, relembrando os bons momentos que tivera ao lado da mãe que, segundo ele, fora enterrada há um mês. Motivo do óbito: infarto fulminante durante o trabalho. Ele conta tudo com tantos detalhes que chego a pensar que nada do que aconteceu hoje foi real. Que todo aquele horror não passara de algo que inventei. Celeste descansa ao lado de Enrico, na varanda, enquanto procuro por Cassie no quarto de hóspedes. Suas roupas espalhadas pelo chão me fazem crer que ela demorou a escolher uma delas. Eu as cato e sinto seu suave aroma floral. Antes de jogá-las no cesto de roupa suja, capto uma visão assustadora. Cassie sorrindo ao desligar seu celular enquanto abre o portão de nossa casa. Sua voz sedutora sussurra: 'Me espera, 'coelhinho'. Já estou indo!'.
- Porra! Eu não acredito!
- Em que, Dess!? 
- Cassie foi ao encontro daquele maldito, Vincenzo! Tudo o que fizemos não valeu de nada! Ela ainda o quer!
- Calma, amor...- Com Matteo em seu colo, ele beija minha testa e me fala com ternura. - Não dá pra controlar tudo. Ela vai enxergar quem ele é.
- E o Sean!? Não quero que ele saia daqui! - Choro contra seu peito. Matteo faz carinho em meus cabelos ao balbuciar um 'mamãe dodói'. Beijo sua bochecha e um longo abraço nos une até que Vincenzo sugere. 
- Que tal pensarmos em nós dois só por hoje? - Meus olhos úmidos o encaram. Matteo, animado, beija a bochecha de Vincenzo enquanto ele me  pergunta. - Há quanto tempo não tomamos um banho naquela banheira com hidromassagem? - Reviro os olhos e respondo.
- Nossa. Nem me lembro. Tanta coisa aconteceu...- Seu olhar sedutor me faz arfar quando ouço sua voz ronronar.
- Tem algum compromisso pra daqui a uns vinte minutos, esposa? - Sorrindo, respondo.
- Não, marido. Mas não me parece que o nosso filho queira dormir tão cedo. 
- E pra que existem irmãs mais velhas!? - Um beijo em minha boca e ele avisa. - Me espere no banheiro, nua, em dez minutos. Ok?
- Ok. - Respondo, aos risos. Eufórica, corro até o nosso quarto e, dentro do banheiro, retiro meu vestido e o arremesso contra o cesto de roupa suja. Abro as torneiras e, pensando na noite em que inauguramos essa banheira, espero a água cobrir todos os jatos da hidro. Derramo sais de banho de lavanda e alecrim na água e brinco com as espumas. Retiro minha calcinha e prendo meus cabelos num coque desalinhado. Penso em uma canção antes de me conectar à 'Alexa'. Prestes a mergulhar na banheira, sua mão me puxa para si. Eu o abraço, beijando todas as partes de seu rosto perfeito. Um sorriso inocente e ele refuta.
- Meu rosto não é perfeito.  Já levei tanta porrada, Dess. Tá tudo torto. 
- Torto está seu pau dentro dessa cueca. Que tal libertá-lo?
- Apoiado...- Ronrona ele após um beijo cheio de paixão e saudades. Tropeçamos em suas roupas no chão. Rindo, derrubamos os vidros dos sais de banho. Recostada à parede fria, aqueço-me com seus beijos em meu pescoço. Um chupão e me surpreendo.
- Marido!
- Doeu!? 
- Quase nada. Continua. - Gemendo de prazer, sinto seus lábios em meus mamilos. Seus braços prendem os meus acima de minha cabeça. Seus olhos insanos me encaram enquanto tento beijar sua boca semiaberta. Um sorriso e ele me puxa até a banheira coberta por espuma. Ele me antecede e se senta à minha espera. Fazendo charme, elevo minha perna direita e, sedutoramente, a mergulho na água morna. Antes mesmo de fazer o mesmo com a esquerda, ouvimos gritos do lado de fora do banheiro. Vincenzo, num gesto de desânimo, cobre o rosto com as mãos molhadas enquanto resmungo.
- Não é possível...
- É sim, Dess! - Diz ele, furioso, secando-se com sua toalha. - Mais um problema. 
- Vincenzo...- Lamento. Ele me abraça e me cobre com meu roupão. Fazendo o mesmo com o seu roupão, ele abre a porta e me puxa pela mão até o corredor onde a encontramos, gritando pelo nome do seu filho. Completamente descontrolada, Cassie vem em minha direção e, colérica, pergunta.
- Onde vc escondeu meu filho, tia!?
- Calma aí, mocinha! - Defende-me Vincenzo protegendo-me com seu corpo. - Olha como fala com a minha esposa!
- Ela quer meu filho, tio! E vc não enxerga isso! 
- Quem te disse essa merda!? O homicida do seu 'coelhinho'!? Idiota! - Passo por Vincenzo e a enfrento. - Como vc pôde se encontrar com o monstro que quase te matou e deixou o Sean naquele estado!? Acorda, Cassie! Lembra da incubadora!? Das agulhas no corpinho dele!? Do buraco em seu pescoço após a retirada do acesso!? Lembra de como vc sofreu!?
- Isso nunca aconteceu! - Afirma ela tentando se convencer. Seus olhos se movem de maneira estranha em suas órbitas, suas mãos e braços tremem desordenadamente antes de me acusar, aos berros. - VC MENTE! ELE ME DISSE QUE VC MENTIRIA! ELE ME DISSE! 
Vincenzo me detém com suas mãos em meus braços quando penso em reagir e tentar ajudá-la. 
Tarde demais, ele me libera.
Ouço o som da pancada da cabeça de Cassie contra o chão em madeira. Por segundos, sem saber o que fazer, eu a vejo ter sua primeira convulsão.


Antoine se desespera ao ver sua melhor amiga se debatendo no chão do corredor. Leo, ainda lerdo, a abraça e diz que tudo vai passar. Vincenzo alcança um de nossos travesseiros e o coloca debaixo da cabeça de Cassie cujos olhos revirados e brancos, me assustam. 
- O que eu posso fazer!?
- Nada! Se afasta! - Responde Vincenzo, nervoso, ajoelhado ao seu lado, evitando que a toquem. Matteo e Sean choram ao mesmo tempo. Celeste socorre Sean enquanto Enrico abraça o neto em seu colo. Atordoada, sigo as ordens de Vincenzo assim que Cassie aquieta seu corpo. - Deixe-a de lado. Isso evita engasgos. Levou mais de cinco minutos a convulsão? 
- Na nã não sei. - Respondo, aflita. - Acho que não.
- Ela precisa acordar ou teremos de levá-la ao hospital.
- Meu Deus. Isso nunca vai ter fim? - Sussurro, devastada. - Parece que a gente não sai de hospitais e cemitérios.
- Minha mãe foi enterrada no mês passado, tia. - Informa Leo, necessitando de cuidados. Um sorriso triste e replico.
- Eu sei, querido. Eu sei.
- O que houve? 
- Vc teve uma convulsão. - Respondo a Cassie que, voltando a si, ergue seu tronco com dificuldade. Ofereço minha ajuda. Ela se recusa a aceitar, lançando-me um olhar desconfiado. Vincenzo a ergue do chão e caminha com ela em seus braços até sua cama. Deitada, ela se queixa de dor na cabeça. Vincenzo sentado na beira da cama, esclarece.
- Vc caiu e bateu com a cabeça. Vc se lembra de alguma coisa?
- Não muito. Eu cheguei da rua e procurei por Sean e...depois...eu...eu...não sei.
- Vc teve uma convulsão, Cassie. Consegue entender isso? - Enrico e Celeste se aproximam da cama. Antoine a observa, com seu olhar astuto. Leo, sentado na poltrona em couro, solta um riso sem sentido. Repetindo a pergunta, Vincenzo aguarda pela resposta de Cassie.
- Convulsão? Eu? Nunca tive isso...
- Foi depois da 'overdose'. - Elucida Antoine de maneira um tanto ríspida. - Vc se lembra de quem tentou te matar?
- Filha! Esse não é o momento!
- Foi mal, pai. - Um sorriso no canto da boca e ela se cala. Do que Antoine desconfia???
- Vc me salvou. - Beijando o dorso da mão de Vincenzo, Cassie o agradece. Uma súbita raiva toma conta de mim. Não sei se por ter sido desprezada por ela ou por ter percebido um lampejo de malícia em seu olhar lânguido. Sem conseguir conter meus sentimentos, corro até a cozinha, onde, isolada, grito de ódio. Calma. Ela é como uma filha para mim e para Vincenzo. Não surta. Abrindo uma garrafa de vinho tinto, encho um taça bojuda e a esvazio de uma só vez. Trazendo Matteo em seu colo, Enrico parece me compreender ao afastar a garrafa de mim e alertar.
- Não é hora de perder o equilíbrio, filha. O Mal tem muitas faces. Esteja de olhos bem abertos. - Segundos de silêncio fixando meus olhos nos dele e, 'puta da vida', explodo.
- Porra, Enrico! Tu quer me assustar!? Isso parece um texto retirado de algum  filme de terror! - Suas bochechas ruborizam enquanto ele ri de mim e observa.
- Vc é muito engraçada, filha. Meu filho tem muita sorte em ter vc perto dele.
- Não sei não. A vida parece que tá nos afastando. - Luto com sua mão pela garrafa de vinho. Ele me encara e, antes de liberar a garrafa, repete. 
- Mantenha seus olhos bem abertos. - Matteo se joga em meu colo. Eu o abraço com força, temendo perder as únicas pessoas que realmente me amam: meus filhos.
- Idiota!!!
- Sai daqui! Fica longe, bastardo!
- Me dá meu filho! Vc tá bêbada, Dess!
- Não seja patético! Eu só tomei uma taça! Até agora! - Enrico toma Matteo de meu colo e adverte. 
- Bebam juntos e não durmam sem antes fazerem as pazes. - Beijando nossas testas, ele nos deixa a sós na cozinha. Outra taça de vinho vazia e o confronto.
- Deu banho em sua paciente?
- Caralho! Que merda vc tá falando!? - Apoiando-se na pia, ele indaga, irritado. - Por que fugiu daquele jeito!? Ciúmes, Dess!? De mim!? Com ela!? Ela é praticamente minha filha!
- MAS NÃO É! - Berro em seu rosto. Tapando minha boca com sua mão, ele ordena com aquele olhar insano.
- Fala baixo, porra. Antoine, Leo e meus pais estão acordados.
- Foda-se. - Digo contra sua mão em minha boca. Com a mão livre, ele agarra meus cabelos por trás e os puxa para baixo. Erguendo meu queixo, eu o encaro com raiva. - Vai falar baixo ou vou ter que te dar uma lição? - Tonta, reviro os olhos, demonstrando desprezo. - Não faz isso, Dess. Se comporta. Vou deixar vc falar. Mas não grita. Ok?
- Vai tomar no cu, anjo de merda! - Essas são as minhas primeiras palavras assim que ele libera minha boca. Inspirando e expirando profundamente, recuo com a garrafa de vinho na mão direita. Um gole no gargalo e o acuso. - Vc gostou! O bom moço! O grande psiquiatra, médico, protetor, hipnólogo! Todos te admiram, Vincenzo Rossi! Sempre disposto a cuidar de todos, exceto de mim! EXCETO DE MIM! - Debruço-me sobre a bancada e, humilhada, repito num tom baixo. - Exceto de mim. Se vc soubesse, me trataria com o carinho que deu a Cassie. 
- Soubesse de que, meu amor?
- Fica longe...- Peço num soluço. - Não confio em vc, tampouco nela. 
- Não surta, Dess. Ela tá doente. Liam a drogou novamente. Ela nem sabe o que fez. - Antes de tomar o terceiro ou quarto gole de vinho (sei lá), recuo, esbarrando na banqueta. Ligeiro, ele evita minha queda. Seus olhos tristes e confusos me observam.

- Vc ainda a defende, bandido.
- Dess, vc tá me escondendo alguma coisa. Fala pra mim. Deixa eu te ajudar. - Jogando-me para trás, deixo a garrafa sobre a bancada e resmungo.
- Vai ajudar a puta que te  pariu. - Em seus braços, passo pela sala e corredor. Nas paredes, retratos de nossa família, unida nos bons e maus momentos. 






Nosso casamento. Minha imensa barriga aos nove meses. Antoine vestida de borboleta. Os primeiros dentinhos de Matteo sorrindo para mim. Vincenzo e eu dançando na chuva. A antiga e abençoada Kombi florida. Vincenzo sorrindo sob o sol na casa da praia. Cassie e eu abraçadas em seu casamento. Com a voz entaramelada, lastimo. 
- Éramos mais felizes sem grana, filho da puta. Me põe no chão, vigarista. Egoísta. Vai lá ver a sua nova paciente.
- Cala a boca, Dess.
- Que merda é essa?
- Água, Dess. Água pra lavar sua boca suja e seu corpo lindo. Relaxa. Eu vou cuidar de vc, 'barraqueira'
- Não se atreva a tirar a minha roupa.
- Vc já está nua, pateta. - Rindo, eu relaxo e permito que ele lave meus cabelos. Na banheira, sentada entre suas pernas, de costas para ele, brinco com a espuma enquanto ele enxagua meus cabelos. Massageando meu couro cabeludo, ele confessa.
- Tenho medo de te perder, Dess. Me conta o que tá me escondendo.
- Não sei do que tá falando. - Antes de pensar na consulta médica, grito 'Alexa', tocar...- Rindo, perco o momento certo de pedir pela música e sou obrigada a ouvir a irritante mensagem mecânica de 'Alexa': 'Desculpe. Não entendi'. Precisão. É disso que necessito ao pedir por uma canção à porra de um ser com inteligência artificial. 
- Esquece, Dess. Vc tá bêbada...- Ronrona ele ao meu ouvido. Numa segunda tentativa, peço, concentrada, sem intervalos. 
- 'Alexa', tocar 'Song for a winter's night' de Sarah 'Macmaclan lan'. - Rindo de mim mesma por não saber pronunciar o nome da cantora, bato palmas, eufórica. - Ela entendeu!!!
- Ela não é burra como vc, Dess.
- Cala a boca. - Minha voz embarga ao pedir. - Ouve essa música, marido. É a sua mão que eu quero segurar nas noites de inverno que ainda virão. Não me deixa.
- Nunca...
 

Matamos as saudades de nossos corpos em nossa cama. Unimos nossas almas ao som da mesma canção que ouvíramos na banheira. Ele me tocou com delicadeza e os olhos úmidos. Seu coração batia tão acelerado quanto o meu enquanto me penetrava sem desviar seus olhos dos meus. Uma dor no peito e arquejo quando ele goza em mim. Procuro por sua boca mais uma vez e recomeçamos tudo até chegarmos no limite de nossas forças. Meu coração ainda dói quando, de conchinha, ele dorme em paz sem conhecer a verdade. 
Tudo o que Vincenzo precisa saber é que meu coração pertence a ele.
Que se foda essa tal de 'cardiomiopatia'.

Algo de maligno tem possuído Cassie. Ao menos, quero acreditar nisso. Não posso crer que, de repente, ela tem pensado em roubar Vincenzo de mim. Não 'a minha Cassie'. Antoine pensa da mesma forma. Tem se mostrado fiel a mim e ao meu sofrimento enquanto vejo Cassie conversar com Vincenzo durante o jantar. Juro que, se não fosse por Sean, eu a teria expulsado de nossa casa quando, de maneira ousada, ela o beijou no rosto e lhe sussurrou algo que não ouvi. Vincenzo se nega a compactuar com minha suposta neurose.
"Ela me falou algo sobre sua expressão, Dess! Disse que está pálida! Que, talvez, esteja doente e vc não me diz nada!?"
Entre enciumada e amedrontada com meu diagnóstico, eu me afasto dele e me isolo dentro de minha própria casa. Cuido de Matteo e de Antoine que tem se doado a Leo. Ele, aos poucos, vai se adaptando à realidade que Vincenzo e Enrico criaram para sua vida através da hipnose. Leo mal se lembra da mãe sofrida, carente e vingativa. Em sua mente, sua mãe lutara, bravamente, por lhe dar um futuro digno deixando-lhe uma pequena herança depositada em um banco da cidade. Melhor assim. Leo não merece conhecer a verdade. Ele e Antoine merecem vivenciar a felicidade, ainda que por poucos meses ou anos. 
Quanto a mim, eu não mereço nada além de ver meu filho crescer feliz, longe de sua hereditariedade maligna.


Antoine não voltara ao colégio. Ela nos convenceu a estudar em casa, online, já que é autodidata e, pelo que já percebemos, mais do que especial. Em suas horas vagas, ela luta 'Kick Boxing' na academia onde continuo a dar aulas de dança. Eu a influenciei a abandonar o boxe a fim de usar mais suas pernas em lutas que, talvez, tenhamos que travar em um futuro próximo. 

Mais próximo do que eu poderia imaginar.

- Vc não pode continuar a me evitar, Dess.
- Estou ocupada. Não percebeu?
- Vc invade meu galpão de boxe quando quer. Logo, posso vir até o seu trabalho. Vc é minha esposa e eu não pretendo mudar isso.
- Então, mude sua atitude com a Cassie ou...- Segurando-me pelo braço, ele pergunta, angustiado.
- Ou o quê? Agora é vc quem vai me largar? Fugir dos problemas como eu fazia?
- Agora vou dar uma aula. - Sussurro diante de Aninha, na recepção da 'Just Dance'. - Vai embora.
- Não! - Refuta ele, resoluto. - Não vim por vc! Vim buscar minha filha!
- Sua filha vai comigo! Eu sou a mãe! - Um sorriso cafajeste e ele retruca.
- Deixemos que ela escolha então. Daqui, eu não saio. A menos que Aninha me expulse.
- Eu??? Nunca!!! - Um sorriso triste e ela comenta. - Vcs são fofos brigando.
- Aninha! Me poupe! - Dando as costas a Vincenzo, aviso. - Minha filha vai demorar! É melhor esperar deitado!
- Não me importo! - Refuta ele. O som de seu riso inocente me faz arfar...ainda. - Já sei o que fazer enquanto aguardo  minha filha! Vou assistir à aula de uma bailarina talentosa que tem arrebatado corações! - Erguendo o dedo médio, apresso meus passos com um sorriso irritante em meu rosto. Antes de entrar na sala de aula, eu o ouço confessar a Aninha, num tom alto. - Ela me maltrata, mas me ama!
Durante minha aula, Vincenzo me observa através da parede de vidro que nos separa dos outros alunos da academia. Diante do espelho da sala de aula, consigo ver seu reflexo. Sentado, desleixadamente, em um sofá no corredor, sob a luz indireta do sol, seus olhos brilham enquanto tento me concentrar na coreografia. Ouço o burburinho de minhas alunas comentando sobre a beleza de Vincenzo e seu sorriso encantador. Percebo o quão cativante ele é ao cumprimentar a todos, desde o proprietário da academia até a faxineira. Sua luz atrai pessoas com extrema facilidade. Seu jeito espontâneo de ser, os prende a ele. Estou presa a ele por algum tipo de magia ou é somente amor? Por que diabos ele 'cairia' por mim? O que eu possuía de tão importante àquela época para ele querer justamente a mim? Ele tem  me traído com a Cassie? 
- Professora! Acorda!
- Oi!?
- Vamos repetir a coreografia? - Pergunta-me a aluna mais disciplinada. Uma outra, mais assanhada, comenta. 

- Ela tá de olho naquela coisa linda lá fora! 

- Não estou não. - Minto, sem forças. Estou ficando mais fraca a cada dia. - Vamos repassar tudo mais uma vez e eu as libero do ensaio. Ok?

- Ok. - Concorda uma das alunas na pré-adolescência.  - Mas depois vc vai ter que explicar porque aquela coisinha deslumbrante não para de te olhar.

- Ele é meu marido. - Revelo, insegura.

- Uau, professora! Ele é lindo! Não tem ciúmes dele!? Se eu fosse casada, jamais traria um homem como ele até meu trabalho! Sabe como é, né!? Inveja é uma merda!

- Eu não o trouxe. - Refuto, contrariada. - Ele veio por vontade própria. Veio buscar nossa filha.

- Antoine???

- Sim. Vc a conhece?

- E quem não a conhece nessa academia, professora!? Ela é praticamente a 'diva' desse lugar! Todos gostam dela! Todos querem estar ao lado dela! Ela tem um carisma absurdo!

- Como sabe disso tudo? - Indago à aluna que costuma se manter distante das demais. Sempre a considerei estranha, no entanto, agora, eu me comparo a ela. Detesto estar entre as pessoas. Mais um transtorno!? Merda! - Vc conhece Antoine?

- De vista. Mas, assim que a vi, sabia que se tratava de alguém especial. Diferente. O mesmo acontece com aquele homem bonito, ali fora. Ele é especial. Não sei o que dizer sobre ele, além de ser especial. Ele gosta de vc, professora. - Longe das demais alunas, pergunto, intrigada.

- Vc sente isso?

- Sim. Seus sentimentos são verdadeiros. Seus caminhos, tortuosos.

- OI??? - Parecendo despertar de um transe ela me olha e pergunta.

- Na próxima aula, teremos aquele salto que vc tem proibido por achar que iremos nos machucar?

- O que quis dizer com 'seus caminhos são tortuosos'!?

- Eu disse isso!? Do que tá falando!? - Solto seus braços e, pedindo-lhe perdão, eu a dispenso. - Até amanhã, professora!

- Até amanhã. - Sorrio. Arrumando a sala vazia, após a aula, deixo-me levar por meus pensamentos. Sem notar sua presença, assovio a canção da coreografia enquanto guardo minhas sapatilhas em minha bolsa num dos cantos da imensa sala. Se eu não me cuidar, já não terei a mesma disposição de antes. Alongando-me na barra, assusto-me ao ouvir sua voz indagar.

- Se não se cuidar, vai perder o bonitão, meu bem. Sabe que sua querida Cassie não vai parar até conseguir atingir seu objetivo que, aliás, não é dela. É do quase novo líder da 'Legião' que tenta ser melhor do que a minha 'Legião'.



- Some daqui...- Rosno ao seu reflexo. - Me deixa em paz.

- Já não posso. Estamos unidos desde que usou aquele punhal, 'darling'. O pensamento de que poderia ter matado um ser humano te atordoa até hoje, não é mesmo? - De olhos fechados, imploro.

- Vá embora. Eu não estou bem. Não quero te enfrentar. Não aqui. Não agora.

- Nem eu, meu bem. É bom estar com o coração forte para o que está por vir e, dessa vez, não hesite. Acerte-o no peito, se possível, por diversas vezes. - Ainda de olhos fechados, pressionando minhas mãos na barra, grito.

- SOME, MALDITO!

- Dess?

- Vincenzo. - Despenco, recostada ao espelho. Minhas mãos frias o assustam. Meu rosto pálido o faz se sentar diante de mim e exigir.

- O que tem no coração, Dess? Conta agora ou eu te levo ao hospital e ouço a verdade da boca de um especialista. Escolha.

- Eu vou contar. Mas não aqui. Preciso desocupar a sala. Me ajuda? - Erguendo-se com destreza, ele me oferece seu braço e me faz levantar. De pé, diante dele, eu o encaro e, com medo da resposta, pergunto. - Por que escolheu Anahita dentre tantas humanas? Por que ela? Por que eu?

- Não sei. Assim que vi vc, eu me senti atraído e, o resto, vc conhece.

- Vc não mentiria pra mim, né? - Apagando as luzes da sala, ele responde num tom sombrio.

- Não. Não sobre o meu amor por vc. - Sentindo-me fraca, tento me concentrar ao segurar suas mãos. Por segundos, vejo o rosto de Liam. Seus lábios se movem. Sua mão direita cumprimenta uma outra. Algo reluz na mão sem rosto: nossa aliança de casamento. - Dess!? Sua pressão está baixando!

- Eu vou...

Desmaio.


- Por que não me disse antes, Dess!? Essa doença é grave!

- Nem tanto. - Resmungo enquanto sorrio ao ver Matteo correr, com seu aviãozinho na mão direita, ao redor da bancada em nossa cozinha. Ele imita o som do avião fazendo biquinho. Ele está cada vez maior e mais forte. Ele é tão cativante...

- DESS!? ME OUVE! 

- Não me assusta! Quer me matar antes da hora!?

- Ninguém aqui vai morrer. - Avisa Antoine ao entrar na cozinha vestindo sua camisola longa, larga e branca. Seus músculos estão mais definidos, seus cabelos, mais longos. Seus seios, maiores. Definitivamente, eu perdi a minha garotinha e sou abraçada pela adolescente amorosa e fiel. - Se vc tomar os remédios corretamente, mãe, não vai ficar cansada. - Revoltado, Vincenzo move os braços aleatoriamente enquanto protesta.

- Ela não pode se extenuar, filha! Essa doença causa o espessamento das paredes do músculo cardíaco, dificultando a circulação sanguínea! Quanto mais esforço ela fizer, mais ela vai exigir de seu coração que vai trabalhar menos!

- Fica calmo, pai. Assim, nervoso, vc piora tudo.

- Quem sabe seja esse o plano? - Sugiro, encarando-o incisivamente. - Piorar tudo. Talvez, eu esteja sobrando nessa casa.

- Nunca mais fale uma merda dessa, Dess. - Rosna ele, debruçando-se sobre a bancada. Suas mãos pressionam meu rosto quando ele, com os olhos marejados, magoado, retruca. - Isso me ofende, Dess. Não vaguei pela Terra por tantos séculos pra te deixar morrer ou te fazer morrer. Nunca mais duvide de meu amor por vc. Eu morreria por vc. Entendeu? - Minha voz embarga ao responder.

- Sim. - Ainda debruçado, ele argumenta, mais calmo.

- Vc precisa parar de dar aulas, Dess. Eu vi seu esforço. Eu vi seu empenho durante a aula. Seu cansaço. É visível. - Irritada, refuto.

- Eu não vou largar algo que levei minha vida toda  pra alcançar. Esquece isso. - Um soco contra o mármore e ele se exalta.

- Vc precisa se cuidar! Deixa de ser teimosa! - Assustado, Matteo corre em minha direção e pede colo. Agarrada a ele, choro em silêncio. - Dess, me perdoa. - Sentando-se na banqueta ao meu lado, ele sussurra. - Eu não quero te perder. 

- Não vai, pai. Eu prometo. Eu não vou deixar.

- Antoine Rossi! - Repreendo-a, aos prantos. - Não se atreva a pensar no que deve estar pensando!

- E o que a pirralha tá pensando? - Cassie, usando uma de minhas camisolas sexys, caminha, sensualmente, ao redor da ilha até tocar no ombro de Vincenzo e, olhando-me triunfante, beija seu rosto. De frente para Vincenzo, enxergo uma mistura entre desprezo e surpresa em seu rosto antes de se erguer e a repreender com severidade.

- Nunca mais faça isso novamente! Entendeu!? - Recuando, indignada, ela choraminga. 

- Mas...tio...!

- Não sou seu tio! Nunca fui! E essa mulher aqui! - Grita ele, descontrolado,  apontando seu indicador para mim. - Nunca foi sua tia! Ela te acolheu em sua casa quando vc perdeu seus pais! Ela te tratou como filha, mas ela não é sua mãe! - Imobilizada, aprecio cada momento de seu descontrole. - Acorda, Cassie! Vc já passou dos limites! Se quiser ficar nessa casa, respeite minha esposa e a mim! Deu pra entender!? Responda! - Com ódio nos olhos, ela responde num tom grave.

- Deu, Vincenzo. - Seu corpo treme antes de se dividir em dois em fração de segundos. Sua imagem desfocada, revida. - Mas não foi isso o que me disse ontem. - Sufoco um soluço enquanto ela nos dá as costas e, passando por Celeste, com Sean em seu colo, abre a porta da sala e desaparece.

- Eu não fiz nada, Dess. - Defende-se Vincenzo. - Eu juro. Jamais a toquei. - Levando a mão ao meu coração, puxo o ar com a boca aberta e aviso.

- Não precisa se defender. A 'minha Cassie' não é aquela mulher que saiu daqui, agora. 

- Ela sequer olhou para o próprio filho. - Lamenta Celeste, abismada. - Eu conheço aquele cheiro. Eu jamais vou me esquecer dele.

- Que cheiro, vovó!? - De olhos fechados, ela se arrepia antes de responder.

- Do inferno. 

- Aquela não é a Cassie. - Afirmo, preocupada. - Eu vi.

- Suas visões te roubam energia, Dess. 

- O que eu posso fazer? Não é algo que eu possa controlar.

- Mas pode evitar encrenca. Nem pense em tentar ajudá-la. Dess, olha pra mim. Tá me ouvindo? - Exausta, encaro Vincenzo e, amedrontada, indago.

- E quem vai livrar a Cassie da porra daquele súcubo!? 


Cassie, após aquela noite, desaparece, deixando seu filho à sua espera. O pobre Sean chora noite e dia sem nos dar sossego. Ele se nega a se alimentar com leite de fórmula. Cassie, antes da 'overdose', fazia questão de amamentá-lo até seus seis meses, no mínimo. Ainda me recordo de seu sorriso singelo enquanto o embalava até ele golfar em seu ombro. Por que tudo muda a todo instante? 

- Por que vc não para de chorar, bebê? - Pergunto ao pequeno Sean em meu colo. - Tá com saudades de sua mãe? Eu também. Ela vai voltar. Eu prometo. - Abraçando-o com força, choro ao me lembrar da 'minha Cassie'. Ela jamais o deixaria passar fome. 




A canção triste que vem da sala, faz meu coração doer. Na cadeira de balanço, eu o embalo sem ter noção do que fazer. A 'Mãe Natureza', perfeita, guia sua pequenina mão até meu seio esquerdo. Uma ideia estúpida surge em minha mente exausta. Meu coração dolorido sugere: 'Tente. Por que não?'

Sozinha, no quarto de Matteo, deixo cair a alça de meu vestido, mostrando-lhe meus seios. Instintivamente, Sean procura por meu mamilo e, com sua boquinha, o suga, insistentemente. Há meses, deixei de amamentar. Não poderia supor que a vontade de viver do pequeno Sean fosse tão persistente. 

- Deus...- Sussurro, perplexa, assim que o leite sai de mim, a princípio, ralo. Posso enxergar, de olhos fechados, os seres de Luz dentro do quarto enquanto revezo os seios e, enfim, eu o alimento. Enfim, seu choro cessa. Meus lábios trêmulos, beijam a testinha do pequeno grande Sean. Da porta do quarto, Vincenzo me observa, impactado, emocionado. - Não deixe nosso filho entrar. Não quero que ele fique enciumado. - Imploro, sentindo-me culpada e feliz. Beijando minha boca, Vincenzo seca suas lágrimas com o dorso de sua mão e responde.

- Deixa comigo. Vou levá-lo à pracinha. Fica tranquila.

- Obrigada...- Sorrio, chorando. Da porta, ele confessa antes de partir.

- Te amo ainda mais, Dess.


Não paro de chorar e de  amamentar até que ele se farte e durma em paz. Levando-o até seu berço no quarto de hóspedes, sinto que doei mais do que meu leite ao filho de Cassie. Doei meu amor e um pouco de minha hereditariedade.

Não. Não vou me preocupar com isso agora. No corredor, tocando no retrato onde Cassie e eu nos abraçamos na areia da praia, antes mesmo de Liam surgir em sua vida, penso no título da canção e sussurro.

- Somente o amor pode quebrar seu coração. É isso, Cassie. Uma vez, eu te trouxe de volta à vida. Vou tentar te resgatar da Escuridão, querida. Seu filho precisa de vc. Mesmo que isso me tire um pouco  mais de minha saúde, eu vou te trazer de volta à vida.

Sean ainda te espera.


Antoine e Leo dançam juntos na pista de dança. Matteo os acompanha, do seu jeito desengonçado e fofo. Animadíssimo com sua primeira festa de aniversário, nosso filho chama a atenção dos poucos convidados. Não alugamos salão de festas. Por tudo o que vem acontecendo em nossas vidas, optamos por algo mais simples e aconchegante e, principalmente, seguro. O galpão de boxe de Vincenzo fora transformado em um 'playground' com direito à cama elástica, piscina de bolinhas coloridas, brinquedos infláveis e tudo o que Antoine poderia imaginar para alegrar a festa de um ano e meio de seu maninho. Como sempre, eu reclamei sobre o exagero. Afinal, Matteo não tem amiguinhos ainda. As únicas crianças presentes na festa não puderam brincar como ele. A filha de João ainda não anda. Sean sequer consegue se sentar sem tombar para o lado. As netas de meus queridos e inesquecíveis amigos Doc e Adele, se surpreenderam com o  notável desenvolvimento de Antoine que ainda brinca como uma criança. Leo e ela pulam na cama elástica aos berros. Competem para saber quem pula mais alto e com mais estilo. Antoine vence, descaradamente. Leo comemora sua vitória com um forte abraço. Antoine ruboriza diante da câmera do meu celular. Ela me confessou que Leo lhe dera um 'selinho' na boca antes de chegarmos à festa. Eu a adverti, enciumada e apavorada: 'Melhor parar por aí, filha. O menino ainda tá cheio de traumas'. Vincenzo, sempre me contrariando, comemora. 

- Finalmente ele acordou! - Brinda ele, erguendo uma tulipa de cerveja entre seus alunos e amigos. Sentindo-me estranha e solitária, eu me distancio de todos. Ainda espero que Cassie atravesse a porta da academia e, com seu riso inocente, exclame, eufórica: "Tia! Que cara é essa!? Vamos nos divertir!"

Mas ela não veio. Ela não retornou desde que fugira de nossa casa vestindo uma de minhas camisolas, carregando consigo, um ser diabólico. Liam é o culpado. Ele a comanda agora. 



- Eu vi.

- O que, Dess? O que viu? - Embriagado, ele ri enquanto eu o puxo em direção à porta da academia e o confronto.

- Vi sua mão apertar a mão de Liam, Vincenzo. Isso não faz muito tempo. Por que fez isso? O que tem com ele? Vc é um deles? - Esvaziando sua terceira tulipa de cerveja, ele se enfurece e retruca.

- Nem vou te responder, Dess! Hoje eu não quero me chatear! É o dia do nosso filho, porra! Para de pensar no que não existe! - Dando-me as costas, ele arremessa a tulipa contra a parede chapiscada. Os cacos de vidro brilham sob os letreiros em neon. Apesar de sua fúria, eu insisto.

- Mas eu vi! O que vcs têm em comum!? Por que se encontraram!? - Dando meia volta, enfurecido, ele vem em minha direção e esclarece.

- Fizemos um trato! Ele não toca em ninguém da minha família e eu não me meto em sua vida! Ele aceitou! Apertamos nossas mãos e eu voltei pra casa! Satisfeita!? Ou quer detalhes!? Quer saber qual foi o preço que paguei pelo pacto!? Quer saber como eu me vendi pra não ver vc se foder!? Sabe quem ele queria, Dess!? Sabe o que eles queriam fazer com vc e com o nosso filho, porra!? Com aquela criança inocente que tá brincando e se divertindo na porra da festa que sua filha, meus pais e eu organizamos porque vc foi contra desde o início!? - Temendo seu descontrole, eu me encolho e, de olhos fechados, tento me explicar.

- Eu...eu não acho seguro...

- CLARO! NADA PRA VC É SEGURO! TUDO TEM QUE TER A PORRA DO SOBRENATURAL AGINDO POR TRÁS DE TODOS NÓS! VC NÃO ACEITA A VIDA COMO ELA É! VC TÁ DOENTE, DESS! PARA E PENSA! VIVA! VIVA COMIGO! VIVA POR MIM E POR SEUS FILHOS E PARE DE SURTAR, PELO AMOR DE DEUS!

Agachada num dos cantos da recepção, eu choro entre estarrecida e amedrontada. Eu nunca vi Vincenzo tão alterado. Eu o vejo partir em direção à festa  enquanto tento parar de tremer. Pacto? Ele fez um pacto com o líder da 'Legião'? Que preço ele pagou?

- Filha...- Reconheço sua voz impregnada de compaixão antes mesmo de olhar em seus olhos que sorriem. - Vem. Vamos conversar.

- Tô com medo, Enrico. Alguma coisa ainda vai acontecer e eu já não sou forte como antes. Quem vai defender nossa família? Quem vai proteger o pequeno Sean? 

- O Criador. Ele sempre cuida de tudo. Vem. - Estendendo-me seu braço, ele me ergue do chão. Arfando, caminho ao seu lado. - Tomou seus remédios hoje?

- Sim.

- Fique calma, querida. Vai dar tudo certo. - Apazigua Celeste com Sean em seu colo. Um súbito arrepio e corro em direção a Matteo que, eletrizado, tenta imitar sua irmã ao deslizar no escorregador inflável. Antes de ele tocar seus pés no chão, eu o retiro do brinquedo e o afasto de todos. Vincenzo, colérico, vem em minha direção quando, do nada, o escorregador inflável estoura, assustando  crianças que esperavam por sua vez. Um pequeno alvoroço e me afasto com meu filho em meu colo. Antoine, atenta, nos protege com seu corpo. Leo está atrás de mim como se algo de terrível e importante estivesse prestes a acontecer. Cantamos o 'Parabéns pra vc'. Ainda assustada, com Matteo em meu colo, sopro a vela faiscante enquanto ele vibra e bate palminhas. Assim que a vela se apaga, ele pede.

- "De movo! De movo!"  

Vincenzo captura sua alegria com sua câmera profissional. Ainda magoada com ele, eu o encaro. De longe, ele me lança um olhar arrependido. Antoine e Leo o empurram até mim. Ao meu lado, diante do bolo, ele me pede perdão.

- Eu me descontrolei, Dess. Tenho medo de te perder...

- Eu também. - Sussurro prendendo o choro. Antoine, agitada, berra.

- Dá pra olhar pra câmera ou tá difícil!?

Rimos juntos enquanto Vincenzo me puxa para si com sua mão em minha cintura. Matteo me beija na bochecha. Vincenzo o pega no colo e se afasta de mim, dando espaço a Celeste que corta fatias do bolo aos convidados e se encanta com a vela faiscante acesa por Leo a seu pedido. Enrico, inquieto, lança um olhar suspeito ao redor enquanto embala Sean em seu carrinho. 

A festa termina em paz. Todos os convidados se foram. Extenuados, Antoine e Leo se deitam, desleixadamente, sobre o tatame. Eu retiro minhas botas de salto alto e descanso minhas pernas sobre a cadeira em madeira. Vincenzo ainda tem forças para correr atrás de Matteo que, aos risos, ergue os bracinhos e se joga sobre mim.

- 'Bate papai, mamãe'! - Pede-me ele, suado e feliz. Sentando-se ao meu lado, Vincenzo, suado e exalando seu cheiro de maçã verde, comenta.

- Eu mereço. Pode bater. Vc me perdoa por ter te tratado tão mal?

- Esquece. - Um beijo em minha bochecha me faz sorrir. - Talvez, vc tenha razão. Tenho visto coisas ruins em tudo e acabo perdendo o melhor da vida.

- Fica comigo, Dess. Não deixe que nada nos separe. Por favor. - Um beijo em sua boca e prometo.

- Nada vai nos separar. 

- 'Nada mamãe papai', balbucia Matteo em meu colo. Vincenzo e eu beijamos suas bochechinhas rosadas enquanto ele gargalha. Um grito de pavor nos assusta. Ergo-me, de súbito, deixando Matteo no colo de Vincenzo. Meu coração dispara ao perceber o desespero de Celeste segurando o carrinho de Sean...

Vazio.



Impulsiva, corro até a calçada sob os protestos de Vincenzo que me segue. Alcanço Cassie e a puxo pelos cabelos, obrigando-a a parar. Dentro do carro, próximo à calçada, Liam abre um sorriso sinistro. 

- Deixa o Sean comigo!

- Não posso, tia. - Recuo, horrorizada. 'Minha Cassie' está cadavérica. Cabelos ralos, os lábios ressecados. Os braços e pescoço tomados por hematomas. Seguindo meu instinto, eu a abraço com força, envolvendo Sean em seu colo. Chorando por seu sofrimento, sinto o que ela sente. Pavor, medo, solidão, tristeza, desesperança. - Ele vai matar meu pobre Sean se eu não não entrar no carro, tia.

- Cassie!? - Constrangida diante de Vincenzo, ela se desculpa.

- Tio, perdão por ter te tratado com desrespeito. Eu não sei o que deu em mim.

- Esquece, Cassie. Eu te conheço. Vc é uma boa menina. Não se deixe levar por ele.

- É tarde demais, tio...- Lamenta ela, recuando em direção ao carro. - Amo vcs.

- Vincenzo, não deixa Liam levar os dois! - Imploro enquanto Cassie abre a porta do carro e me lança um olhar de profunda tristeza. - Faz alguma coisa!

- Ele não pode, Adessa. - Debocha Liam. - Temos um trato. Ele te contou, não é? - Ignorando-o, suplico. 

- Não entra, Cassie! Fica! - O carro se move. Descalça, eu tento impedi-lo de avançar, segurando-o pela janela aberta como se eu tivesse o poder de parar um carro em movimento. Dentro do carro, Liam gargalha enquanto Sean chora como se me pedisse por sua ajuda. Agora, ele faz parte de mim, assim como eu faço parte dele. É o meu leite que o alimenta. - Cassie! Acorda! Eu te amo! Eu amo o Sean! Fica com a gente!

Vincenzo logo atrás de mim, ordena.

- Para, Dess! Isso vai te fazer mal! - Antes de Liam acelerar, Cassie beija o dorso de minha mão e me diz adeus. Debaixo da chuva forte, continuo a correr tentando alcançar o carro. Vincenzo me segura pelo braço e grita.

- Chega! Eles se foram! Já não podemos fazer mais nada! Ela quis assim!

- NÃO! ELA NÃO QUIS! EU SENTI, VINCENZO! ELA ME PEDIU AJUDA!

- VC TÁ DOENTE! NÃO PODE SE CANSAR! DESS, FICA COMIGO! 

- NÃO! NÃO AGORA! QUEM FEZ O PACTO FOI VC! NÃO EU!

Ainda consigo enxergar o carro de Liam quando volto a correr. Um cansaço intenso toma conta do meu corpo. Cambaleando, grito por Sean. Sem ar, caio de joelhos no asfalto. Desesperançada, choro sob as gotas da chuva que vergastam minhas costas.


É quando os vejo passar por mim, tão rápidos e fortes como guepardos. 

- Filha. - Sussurro esticando meu braço, tentando tocá-la.  - Cuidado...com...

Ergo-me com dificuldade e, aos poucos, volto a correr. Vincenzo me alcança e, sem me olhar, me ultrapassa. De onde estou, consigo enxergar Antoine do lado esquerdo do carro, estilhaçar o vidro dianteiro, com golpes fortes e precisos com um taco de baseball. Do outro lado, Leo, enlouquecido, com um martelo nas mãos, amassa a porta de Liam, junto à maçaneta, impedindo-a de se abrir. Vincenzo, com a ajuda de Antoine, abre a porta do carona e resgata Cassie e Sean. Leo, parecendo maior do que costuma ser, chuta a porta, tranca Liam lá dentro e, logo em seguida, destrói, com seu martelo reluzente, o mecanismo de abertura da porta. Preso, Liam urra como uma fera enjaulada. Mantendo-me de pé, consigo sorrir ao reconhecer Cassie cobrindo o corpinho de Sean com o seu, vindo em minha direção. Imponentes, marchando como dois soldados, Antoine e Leo brilham na escuridão da noite. Vincenzo, encarando-me com raiva, me segura pelos pés e, forçando-me a cair sobre seu ombro esquerdo, me carrega como um saco de batatas. Ainda lúcida, volto no tempo e nos vejo na casa de praia quando ele me carregou assim até o seu interior.  Éramos jovens, saudáveis e cheios de planos para o futuro. 

Num esforço hercúleo, ergo meu tronco e, ao sorrir, chamo por seu nome.

- Cassie. 'Minha Cassie'.

- Tia! O que vc tem!? Sua voz tá fraca!

- E o Liam? - Indago num fio de voz. Orgulhoso, Leo com o martelo em seu ombro, comenta. - Esse aí não vai poder andar por um bom tempo. Martelei os dois joelhos.

- Wooohoo! - Vibra Antoine. Vendo-me preocupada, ela me alcança e cochicha. - Descansa, mãe. Vai dar tudo certo. Ok?

Perco os sentidos, em paz.



Cassie e Sean estão de volta ao nosso lar e, infelizmente, nada mudou. Eles ainda correm riscos enquanto Liam estiver vivo.

- A lei funciona pra todos os anjos que caíram?

- Que lei, Dess?

- Não fala assim comigo. - Peço, ainda em recuperação. Após meu imenso esforço, debaixo da chuva forte, contraí pneumonia. A terceira ou quarta...sei lá. - Eu estou querendo entender o que fizemos.

- O que vc fez, Dess! - Corrige-me Vincenzo sentado em sua poltrona enquanto não consigo me livrar da porra dessa cama. - Não consegue porque é teimosa! Quer se meter onde não deve! Quer ser a heroína da porra da história! 

- Não fala assim...- Peço com a voz fraca. - Liam teria matado os dois.

- Eu já havia acionado a polícia, Dess! - Resmunga Vincenzo. - Ele seria preciso por sequestro de incapaz!

- Duvido. Eles estão infiltrados, amor. Há membros da 'Legião' em todos os lugares.

- Falou a especialista em legiões demoníacas...

- Não fale assim com ela, filho. - Defende-me Celeste, sentada na beira da cama, acariciando meus cabelos. - Ela foi uma heroína sim. Nem quero imaginar o que seria do pobre Sean se Adessa não os tivesse resgatado.

- Não fui eu, Celeste. Foram as crianças. Foi...- Arfando, continuo. - Foi incrível. Eles surgiram do nada e frustraram com os planos daquele ser diabólico. Vc precisava ter visto sua neta. - Sorrindo, ela comenta.

- Ela é especial. E o Leo também. Os dois formam um casal e tanto.

- Menos, Celeste. Bem menos...- Brinco ao tossir. Vincenzo se ergue da poltrona e, com a expressão sisuda, me faz beber do xarope em uma colher. - Vai continuar a me evitar? Me olha nos olhos, amor.

- Não dá. Vc não me ama. Não dá a mínima pra mim, nem para os nossos filhos.

- Não fala assim...

- Falo sim! Se me amasse, procuraria viver em paz. Quando eu estive doente, vc cuidou de mim e eu segui as ordens do médico e aos seus apelos. Parei de lutar porque vc pediu. E tudo o que eu peço é que pare de tentar salvar o mundo, Dess! Vc não é a porra de uma personagem do universo 'Marvel'! Acorda, Dess! - Fraca demais para discutir, eu lhe dou as costas e, cobrindo meu rosto com o edredom, choro baixinho, impotente, impulsiva, idiota. Celeste beija minha cabeça e me abençoa antes de nos deixar a sós. Vincenzo, se deita ao meu lado e, aconchegando seu corpo junto ao meu, me pede perdão. - Pensando bem. Vc poderia ser a 'Feiticeira Escarlate'. - Sorrio, escondida. - Poderes vc têm.

- Sou uma bosta. Isso sim. 

- Não é não. Vc é o ser humano mais humano que eu conheço. - Beijando meu pescoço, ele prossegue. - Dess, vc precisa se cuidar. Não me deixe sozinho com nossos filhos. Precisamos de vc. Pensa na gente.

- Não fica perto de mim. Pode ser contagiosa essa pneumonia.

- Foda-se. Não me importo. Eu daria a minha vida por vc.

- Foi esse o valor do pacto com Liam? - De costas para ele, aguardo por sua resposta. - Vincenzo?

- Descansa, Dess. - Diz ele, levantando-se da cama.

- Volte aqui! - Ordeno, erguendo meu tronco, puxando o ar através da boca aberta. - Olha pra mim, Vincenzo e não minta. Foi esse o preço pra que Liam nos deixasse em paz? A lei da Imortalidade vale pra todos os anjos que caem e têm filhos com humanos?

- Sim. Aonde quer chegar, Dess?

- Ao pacto que fez com ele! Por quem Liam abriria mão de Cassie e Sean!?

- Eu nunca disse isso, idiota. - Tomando-me em seus braços, ele olha em meus olhos e esclarece. - O meu pacto com ele era para mantê-lo longe dos meus. Longe de vc, de Antoine e Matteo. Infelizmente, vc ainda não percebeu o quanto vcs valem para a 'Legião'. Três criaturas com diferentes graus de poderes e importância. Por vcs, a 'Legião' devastaria populações inteiras. 

- Tá me assustando...

- É assustador. Por isso, fiz o que fiz.

- E o que vc fez, amor? - Pergunto em seu colo. Nossos olhares se encontram. Há pavor e tristeza em seus lindos olhos azuis quando ele confessa. - Eu concordei em me juntar à 'Legião' e combater Lúcifer em troca da vida de vcs. Chega de tanto sofrimento, Dess. Vc precisa de paz. - Um tapa em seu rosto e, tossindo, curvo meu tronco para frente e protesto.

- Não aceito! Esquece a porra desse trato!

- Para de falar, Dess. Descansa. - Revoltada com minha tosse persistente, luto por me livrar dele. -  Dess!!! 


De pé, diante de Vincenzo, eu os repreendo aos berros. Minha garganta queima enquanto proclamo, usando o restante de minhas forças e o crucifixo em madeira que Vincenzo me deu. Imobilizado, ele me observa, apavorado.


- Ninguém! Nenhum ser maligno toca em minha família enquanto eu existir! Mesmo após a minha morte, eu os protegerei com todas as minhas forças! Está feito! Está feito! Está feito! 

- Dess!

- Porra...- Tonta, resmungo. - De novo não. 

Ao acordar, mais forte, sem a presença de Vincenzo em nosso quarto, ouso caminhar pela casa estranhamente vazia. Apoiando-me nas paredes, sigo até a sala. Enrico assiste a um de seus filmes de faroeste. Extremamente focado, ele não nota minha presença. Recuo e sigo até o quarto de hóspedes esperando encontrar Cassie e Sean. Meus seios estão doloridos e cheios de leite. Ainda não sei como explicar a Cassie essa questão da amamentação, mas, espero que ela a aceite com naturalidade. Foi pelo bem de seu filho.

- Ninguém??? 

Olho ao redor e nada vejo. Nada que lhe pertença. Abro o guarda-roupas vazio. Uma dor em meu peito e penso no pior. Apoio-me na beirada da cama e, mantendo o equilíbrio, inspiro e expiro, profundamente. - O que houve aqui? - Tateando o colchão, toco em um envelope. Dentro dele, um bilhete que me abalaria profundamente. Minhas lágrimas borram suas letras enquanto leio sua carta de despedida.

"Tia, te amo. Gratidão por tudo o que fez por mim e por meu filho durante todos esses anos. Foram os melhores anos de minha vida. Gostaria de poder voltar no tempo e jamais ter aceitado aquele emprego no mercadinho da praia. Gostaria de ter morrido com meus pais, mas, então, eu não teria o meu Sean comigo. É por ele e por vcs que vou partir. Já não suporto ver vc e o tio brigando por mim. Lutando por mim e por meu filho. Chegou a hora de crescer. Vou fugir desse país, tia. Roubei dinheiro daquele monstro. Dinheiro suficiente para me manter longe dele e de vcs por um longo tempo. Dinheiro suficiente para salvar o meu Sean do pior. 

Eu vi o que eles fazem, tia. Eu não consigo mais dormir. Eu preciso salvar o meu filho.

Por favor, me entenda. Vc me ensinou a ser uma boa mãe.

Ore por mim. Ore por Sean. Vamos precisar.

Assim que chegar a algum lugar seguro, mando notícias.

Diga a Antoine que a amo muito.

Peça perdão ao tio Vincenzo.

Te amo, tia.

Isso não é um adeus.

De sua Cassie com muito amor."


Assim que acabo de ler a carta, apesar de abalada, corro até a sala e, aos gritos, aviso.

- Enrico! Eles fugiram! Eles fugiram! Me ajuda! Me diz aonde eles foram! 

- Quem???

- Cassie e Sean fugiram! - Afirmo com o papel cujas letra borradas tremulam em minhas mãos. - Liam vai encontrar a Cassie! Eu sei! Eu sinto!

- Meu anjo...- Olhando-me com seriedade, ele me orienta antes de pousar a mão em minha cabeça e me fazer dormir. - Pense no Criador. Cassie e Sean estão em Suas Mãos agora. Descanse e se cure. O destino deles já está selado.


Continua...








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CAPÍTULO 45 - TOMANDO FÔLEGO

  Por um tempo, não tenho notícias de Cassie ou de Sean. Por um tempo, não procuro saber se Liam está vivo ou morto. Por um tempo, priorizo ...