Matamos as saudades de nossos corpos em nossa cama. Unimos nossas almas ao som da mesma canção que ouvíramos na banheira. Ele me tocou com delicadeza e os olhos úmidos. Seu coração batia tão acelerado quanto o meu enquanto me penetrava sem desviar seus olhos dos meus. Uma dor no peito e arquejo quando ele goza em mim. Procuro por sua boca mais uma vez e recomeçamos tudo até chegarmos no limite de nossas forças. Meu coração ainda dói quando, de conchinha, ele dorme em paz sem conhecer a verdade.
Algo de maligno tem possuído Cassie. Ao menos, quero acreditar nisso. Não posso crer que, de repente, ela tem pensado em roubar Vincenzo de mim. Não 'a minha Cassie'. Antoine pensa da mesma forma. Tem se mostrado fiel a mim e ao meu sofrimento enquanto vejo Cassie conversar com Vincenzo durante o jantar. Juro que, se não fosse por Sean, eu a teria expulsado de nossa casa quando, de maneira ousada, ela o beijou no rosto e lhe sussurrou algo que não ouvi. Vincenzo se nega a compactuar com minha suposta neurose.
- Não estou não. - Minto, sem forças. Estou ficando mais fraca a cada dia. - Vamos repassar tudo mais uma vez e eu as libero do ensaio. Ok?
- Ok. - Concorda uma das alunas na pré-adolescência. - Mas depois vc vai ter que explicar porque aquela coisinha deslumbrante não para de te olhar.
- Ele é meu marido. - Revelo, insegura.
- Uau, professora! Ele é lindo! Não tem ciúmes dele!? Se eu fosse casada, jamais traria um homem como ele até meu trabalho! Sabe como é, né!? Inveja é uma merda!
- Eu não o trouxe. - Refuto, contrariada. - Ele veio por vontade própria. Veio buscar nossa filha.
- Antoine???
- Sim. Vc a conhece?
- E quem não a conhece nessa academia, professora!? Ela é praticamente a 'diva' desse lugar! Todos gostam dela! Todos querem estar ao lado dela! Ela tem um carisma absurdo!
- Como sabe disso tudo? - Indago à aluna que costuma se manter distante das demais. Sempre a considerei estranha, no entanto, agora, eu me comparo a ela. Detesto estar entre as pessoas. Mais um transtorno!? Merda! - Vc conhece Antoine?
- De vista. Mas, assim que a vi, sabia que se tratava de alguém especial. Diferente. O mesmo acontece com aquele homem bonito, ali fora. Ele é especial. Não sei o que dizer sobre ele, além de ser especial. Ele gosta de vc, professora. - Longe das demais alunas, pergunto, intrigada.
- Vc sente isso?
- Sim. Seus sentimentos são verdadeiros. Seus caminhos, tortuosos.
- OI??? - Parecendo despertar de um transe ela me olha e pergunta.
- Na próxima aula, teremos aquele salto que vc tem proibido por achar que iremos nos machucar?
- O que quis dizer com 'seus caminhos são tortuosos'!?
- Eu disse isso!? Do que tá falando!? - Solto seus braços e, pedindo-lhe perdão, eu a dispenso. - Até amanhã, professora!
- Até amanhã. - Sorrio. Arrumando a sala vazia, após a aula, deixo-me levar por meus pensamentos. Sem notar sua presença, assovio a canção da coreografia enquanto guardo minhas sapatilhas em minha bolsa num dos cantos da imensa sala. Se eu não me cuidar, já não terei a mesma disposição de antes. Alongando-me na barra, assusto-me ao ouvir sua voz indagar.
- Se não se cuidar, vai perder o bonitão, meu bem. Sabe que sua querida Cassie não vai parar até conseguir atingir seu objetivo que, aliás, não é dela. É do quase novo líder da 'Legião' que tenta ser melhor do que a minha 'Legião'.
- Some daqui...- Rosno ao seu reflexo. - Me deixa em paz.
- Já não posso. Estamos unidos desde que usou aquele punhal, 'darling'. O pensamento de que poderia ter matado um ser humano te atordoa até hoje, não é mesmo? - De olhos fechados, imploro.
- Vá embora. Eu não estou bem. Não quero te enfrentar. Não aqui. Não agora.
- Nem eu, meu bem. É bom estar com o coração forte para o que está por vir e, dessa vez, não hesite. Acerte-o no peito, se possível, por diversas vezes. - Ainda de olhos fechados, pressionando minhas mãos na barra, grito.
- SOME, MALDITO!
- Dess?
- Vincenzo. - Despenco, recostada ao espelho. Minhas mãos frias o assustam. Meu rosto pálido o faz se sentar diante de mim e exigir.
- O que tem no coração, Dess? Conta agora ou eu te levo ao hospital e ouço a verdade da boca de um especialista. Escolha.
- Eu vou contar. Mas não aqui. Preciso desocupar a sala. Me ajuda? - Erguendo-se com destreza, ele me oferece seu braço e me faz levantar. De pé, diante dele, eu o encaro e, com medo da resposta, pergunto. - Por que escolheu Anahita dentre tantas humanas? Por que ela? Por que eu?
- Não sei. Assim que vi vc, eu me senti atraído e, o resto, vc conhece.
- Vc não mentiria pra mim, né? - Apagando as luzes da sala, ele responde num tom sombrio.
- Não. Não sobre o meu amor por vc. - Sentindo-me fraca, tento me concentrar ao segurar suas mãos. Por segundos, vejo o rosto de Liam. Seus lábios se movem. Sua mão direita cumprimenta uma outra. Algo reluz na mão sem rosto: nossa aliança de casamento. - Dess!? Sua pressão está baixando!
- Eu vou...
Desmaio.
- Por que não me disse antes, Dess!? Essa doença é grave!
- Nem tanto. - Resmungo enquanto sorrio ao ver Matteo correr, com seu aviãozinho na mão direita, ao redor da bancada em nossa cozinha. Ele imita o som do avião fazendo biquinho. Ele está cada vez maior e mais forte. Ele é tão cativante...
- DESS!? ME OUVE!
- Não me assusta! Quer me matar antes da hora!?
- Ninguém aqui vai morrer. - Avisa Antoine ao entrar na cozinha vestindo sua camisola longa, larga e branca. Seus músculos estão mais definidos, seus cabelos, mais longos. Seus seios, maiores. Definitivamente, eu perdi a minha garotinha e sou abraçada pela adolescente amorosa e fiel. - Se vc tomar os remédios corretamente, mãe, não vai ficar cansada. - Revoltado, Vincenzo move os braços aleatoriamente enquanto protesta.
- Ela não pode se extenuar, filha! Essa doença causa o espessamento das paredes do músculo cardíaco, dificultando a circulação sanguínea! Quanto mais esforço ela fizer, mais ela vai exigir de seu coração que vai trabalhar menos!
- Fica calmo, pai. Assim, nervoso, vc piora tudo.
- Quem sabe seja esse o plano? - Sugiro, encarando-o incisivamente. - Piorar tudo. Talvez, eu esteja sobrando nessa casa.
- Nunca mais fale uma merda dessa, Dess. - Rosna ele, debruçando-se sobre a bancada. Suas mãos pressionam meu rosto quando ele, com os olhos marejados, magoado, retruca. - Isso me ofende, Dess. Não vaguei pela Terra por tantos séculos pra te deixar morrer ou te fazer morrer. Nunca mais duvide de meu amor por vc. Eu morreria por vc. Entendeu? - Minha voz embarga ao responder.
- Sim. - Ainda debruçado, ele argumenta, mais calmo.
- Vc precisa parar de dar aulas, Dess. Eu vi seu esforço. Eu vi seu empenho durante a aula. Seu cansaço. É visível. - Irritada, refuto.
- Eu não vou largar algo que levei minha vida toda pra alcançar. Esquece isso. - Um soco contra o mármore e ele se exalta.
- Vc precisa se cuidar! Deixa de ser teimosa! - Assustado, Matteo corre em minha direção e pede colo. Agarrada a ele, choro em silêncio. - Dess, me perdoa. - Sentando-se na banqueta ao meu lado, ele sussurra. - Eu não quero te perder.
- Não vai, pai. Eu prometo. Eu não vou deixar.
- Antoine Rossi! - Repreendo-a, aos prantos. - Não se atreva a pensar no que deve estar pensando!
- E o que a pirralha tá pensando? - Cassie, usando uma de minhas camisolas sexys, caminha, sensualmente, ao redor da ilha até tocar no ombro de Vincenzo e, olhando-me triunfante, beija seu rosto. De frente para Vincenzo, enxergo uma mistura entre desprezo e surpresa em seu rosto antes de se erguer e a repreender com severidade.
- Nunca mais faça isso novamente! Entendeu!? - Recuando, indignada, ela choraminga.
- Mas...tio...!
- Não sou seu tio! Nunca fui! E essa mulher aqui! - Grita ele, descontrolado, apontando seu indicador para mim. - Nunca foi sua tia! Ela te acolheu em sua casa quando vc perdeu seus pais! Ela te tratou como filha, mas ela não é sua mãe! - Imobilizada, aprecio cada momento de seu descontrole. - Acorda, Cassie! Vc já passou dos limites! Se quiser ficar nessa casa, respeite minha esposa e a mim! Deu pra entender!? Responda! - Com ódio nos olhos, ela responde num tom grave.
- Deu, Vincenzo. - Seu corpo treme antes de se dividir em dois em fração de segundos. Sua imagem desfocada, revida. - Mas não foi isso o que me disse ontem. - Sufoco um soluço enquanto ela nos dá as costas e, passando por Celeste, com Sean em seu colo, abre a porta da sala e desaparece.
- Eu não fiz nada, Dess. - Defende-se Vincenzo. - Eu juro. Jamais a toquei. - Levando a mão ao meu coração, puxo o ar com a boca aberta e aviso.
- Não precisa se defender. A 'minha Cassie' não é aquela mulher que saiu daqui, agora.
- Ela sequer olhou para o próprio filho. - Lamenta Celeste, abismada. - Eu conheço aquele cheiro. Eu jamais vou me esquecer dele.
- Que cheiro, vovó!? - De olhos fechados, ela se arrepia antes de responder.
- Do inferno.
- Aquela não é a Cassie. - Afirmo, preocupada. - Eu vi.
- Suas visões te roubam energia, Dess.
- O que eu posso fazer? Não é algo que eu possa controlar.
- Mas pode evitar encrenca. Nem pense em tentar ajudá-la. Dess, olha pra mim. Tá me ouvindo? - Exausta, encaro Vincenzo e, amedrontada, indago.
- E quem vai livrar a Cassie da porra daquele súcubo!?
Cassie, após aquela noite, desaparece, deixando seu filho à sua espera. O pobre Sean chora noite e dia sem nos dar sossego. Ele se nega a se alimentar com leite de fórmula. Cassie, antes da 'overdose', fazia questão de amamentá-lo até seus seis meses, no mínimo. Ainda me recordo de seu sorriso singelo enquanto o embalava até ele golfar em seu ombro. Por que tudo muda a todo instante?
- Por que vc não para de chorar, bebê? - Pergunto ao pequeno Sean em meu colo. - Tá com saudades de sua mãe? Eu também. Ela vai voltar. Eu prometo. - Abraçando-o com força, choro ao me lembrar da 'minha Cassie'. Ela jamais o deixaria passar fome.
A canção triste que vem da sala, faz meu coração doer. Na cadeira de balanço, eu o embalo sem ter noção do que fazer. A 'Mãe Natureza', perfeita, guia sua pequenina mão até meu seio esquerdo. Uma ideia estúpida surge em minha mente exausta. Meu coração dolorido sugere: 'Tente. Por que não?'
Sozinha, no quarto de Matteo, deixo cair a alça de meu vestido, mostrando-lhe meus seios. Instintivamente, Sean procura por meu mamilo e, com sua boquinha, o suga, insistentemente. Há meses, deixei de amamentar. Não poderia supor que a vontade de viver do pequeno Sean fosse tão persistente.
- Deus...- Sussurro, perplexa, assim que o leite sai de mim, a princípio, ralo. Posso enxergar, de olhos fechados, os seres de Luz dentro do quarto enquanto revezo os seios e, enfim, eu o alimento. Enfim, seu choro cessa. Meus lábios trêmulos, beijam a testinha do pequeno grande Sean. Da porta do quarto, Vincenzo me observa, impactado, emocionado. - Não deixe nosso filho entrar. Não quero que ele fique enciumado. - Imploro, sentindo-me culpada e feliz. Beijando minha boca, Vincenzo seca suas lágrimas com o dorso de sua mão e responde.
- Deixa comigo. Vou levá-lo à pracinha. Fica tranquila.
- Obrigada...- Sorrio, chorando. Da porta, ele confessa antes de partir.
- Te amo ainda mais, Dess.
Não paro de chorar e de amamentar até que ele se farte e durma em paz. Levando-o até seu berço no quarto de hóspedes, sinto que doei mais do que meu leite ao filho de Cassie. Doei meu amor e um pouco de minha hereditariedade.
Não. Não vou me preocupar com isso agora. No corredor, tocando no retrato onde Cassie e eu nos abraçamos na areia da praia, antes mesmo de Liam surgir em sua vida, penso no título da canção e sussurro.
- Somente o amor pode quebrar seu coração. É isso, Cassie. Uma vez, eu te trouxe de volta à vida. Vou tentar te resgatar da Escuridão, querida. Seu filho precisa de vc. Mesmo que isso me tire um pouco mais de minha saúde, eu vou te trazer de volta à vida.
Sean ainda te espera.
Antoine e Leo dançam juntos na pista de dança. Matteo os acompanha, do seu jeito desengonçado e fofo. Animadíssimo com sua primeira festa de aniversário, nosso filho chama a atenção dos poucos convidados. Não alugamos salão de festas. Por tudo o que vem acontecendo em nossas vidas, optamos por algo mais simples e aconchegante e, principalmente, seguro. O galpão de boxe de Vincenzo fora transformado em um 'playground' com direito à cama elástica, piscina de bolinhas coloridas, brinquedos infláveis e tudo o que Antoine poderia imaginar para alegrar a festa de um ano e meio de seu maninho. Como sempre, eu reclamei sobre o exagero. Afinal, Matteo não tem amiguinhos ainda. As únicas crianças presentes na festa não puderam brincar como ele. A filha de João ainda não anda. Sean sequer consegue se sentar sem tombar para o lado. As netas de meus queridos e inesquecíveis amigos Doc e Adele, se surpreenderam com o notável desenvolvimento de Antoine que ainda brinca como uma criança. Leo e ela pulam na cama elástica aos berros. Competem para saber quem pula mais alto e com mais estilo. Antoine vence, descaradamente. Leo comemora sua vitória com um forte abraço. Antoine ruboriza diante da câmera do meu celular. Ela me confessou que Leo lhe dera um 'selinho' na boca antes de chegarmos à festa. Eu a adverti, enciumada e apavorada: 'Melhor parar por aí, filha. O menino ainda tá cheio de traumas'. Vincenzo, sempre me contrariando, comemora.
- Finalmente ele acordou! - Brinda ele, erguendo uma tulipa de cerveja entre seus alunos e amigos. Sentindo-me estranha e solitária, eu me distancio de todos. Ainda espero que Cassie atravesse a porta da academia e, com seu riso inocente, exclame, eufórica: "Tia! Que cara é essa!? Vamos nos divertir!"
Mas ela não veio. Ela não retornou desde que fugira de nossa casa vestindo uma de minhas camisolas, carregando consigo, um ser diabólico. Liam é o culpado. Ele a comanda agora.
- Eu vi.
- O que, Dess? O que viu? - Embriagado, ele ri enquanto eu o puxo em direção à porta da academia e o confronto.
- Vi sua mão apertar a mão de Liam, Vincenzo. Isso não faz muito tempo. Por que fez isso? O que tem com ele? Vc é um deles? - Esvaziando sua terceira tulipa de cerveja, ele se enfurece e retruca.
- Nem vou te responder, Dess! Hoje eu não quero me chatear! É o dia do nosso filho, porra! Para de pensar no que não existe! - Dando-me as costas, ele arremessa a tulipa contra a parede chapiscada. Os cacos de vidro brilham sob os letreiros em neon. Apesar de sua fúria, eu insisto.
- Mas eu vi! O que vcs têm em comum!? Por que se encontraram!? - Dando meia volta, enfurecido, ele vem em minha direção e esclarece.
- Fizemos um trato! Ele não toca em ninguém da minha família e eu não me meto em sua vida! Ele aceitou! Apertamos nossas mãos e eu voltei pra casa! Satisfeita!? Ou quer detalhes!? Quer saber qual foi o preço que paguei pelo pacto!? Quer saber como eu me vendi pra não ver vc se foder!? Sabe quem ele queria, Dess!? Sabe o que eles queriam fazer com vc e com o nosso filho, porra!? Com aquela criança inocente que tá brincando e se divertindo na porra da festa que sua filha, meus pais e eu organizamos porque vc foi contra desde o início!? - Temendo seu descontrole, eu me encolho e, de olhos fechados, tento me explicar.
- Eu...eu não acho seguro...
- CLARO! NADA PRA VC É SEGURO! TUDO TEM QUE TER A PORRA DO SOBRENATURAL AGINDO POR TRÁS DE TODOS NÓS! VC NÃO ACEITA A VIDA COMO ELA É! VC TÁ DOENTE, DESS! PARA E PENSA! VIVA! VIVA COMIGO! VIVA POR MIM E POR SEUS FILHOS E PARE DE SURTAR, PELO AMOR DE DEUS!
Agachada num dos cantos da recepção, eu choro entre estarrecida e amedrontada. Eu nunca vi Vincenzo tão alterado. Eu o vejo partir em direção à festa enquanto tento parar de tremer. Pacto? Ele fez um pacto com o líder da 'Legião'? Que preço ele pagou?
- Filha...- Reconheço sua voz impregnada de compaixão antes mesmo de olhar em seus olhos que sorriem. - Vem. Vamos conversar.
- Tô com medo, Enrico. Alguma coisa ainda vai acontecer e eu já não sou forte como antes. Quem vai defender nossa família? Quem vai proteger o pequeno Sean?
- O Criador. Ele sempre cuida de tudo. Vem. - Estendendo-me seu braço, ele me ergue do chão. Arfando, caminho ao seu lado. - Tomou seus remédios hoje?
- Sim.
- Fique calma, querida. Vai dar tudo certo. - Apazigua Celeste com Sean em seu colo. Um súbito arrepio e corro em direção a Matteo que, eletrizado, tenta imitar sua irmã ao deslizar no escorregador inflável. Antes de ele tocar seus pés no chão, eu o retiro do brinquedo e o afasto de todos. Vincenzo, colérico, vem em minha direção quando, do nada, o escorregador inflável estoura, assustando crianças que esperavam por sua vez. Um pequeno alvoroço e me afasto com meu filho em meu colo. Antoine, atenta, nos protege com seu corpo. Leo está atrás de mim como se algo de terrível e importante estivesse prestes a acontecer. Cantamos o 'Parabéns pra vc'. Ainda assustada, com Matteo em meu colo, sopro a vela faiscante enquanto ele vibra e bate palminhas. Assim que a vela se apaga, ele pede.
- "De movo! De movo!"
Vincenzo captura sua alegria com sua câmera profissional. Ainda magoada com ele, eu o encaro. De longe, ele me lança um olhar arrependido. Antoine e Leo o empurram até mim. Ao meu lado, diante do bolo, ele me pede perdão.
- Eu me descontrolei, Dess. Tenho medo de te perder...
- Eu também. - Sussurro prendendo o choro. Antoine, agitada, berra.
- Dá pra olhar pra câmera ou tá difícil!?
Rimos juntos enquanto Vincenzo me puxa para si com sua mão em minha cintura. Matteo me beija na bochecha. Vincenzo o pega no colo e se afasta de mim, dando espaço a Celeste que corta fatias do bolo aos convidados e se encanta com a vela faiscante acesa por Leo a seu pedido. Enrico, inquieto, lança um olhar suspeito ao redor enquanto embala Sean em seu carrinho.
A festa termina em paz. Todos os convidados se foram. Extenuados, Antoine e Leo se deitam, desleixadamente, sobre o tatame. Eu retiro minhas botas de salto alto e descanso minhas pernas sobre a cadeira em madeira. Vincenzo ainda tem forças para correr atrás de Matteo que, aos risos, ergue os bracinhos e se joga sobre mim.
- 'Bate papai, mamãe'! - Pede-me ele, suado e feliz. Sentando-se ao meu lado, Vincenzo, suado e exalando seu cheiro de maçã verde, comenta.
- Eu mereço. Pode bater. Vc me perdoa por ter te tratado tão mal?
- Esquece. - Um beijo em minha bochecha me faz sorrir. - Talvez, vc tenha razão. Tenho visto coisas ruins em tudo e acabo perdendo o melhor da vida.
- Fica comigo, Dess. Não deixe que nada nos separe. Por favor. - Um beijo em sua boca e prometo.
- Nada vai nos separar.
- 'Nada mamãe papai', balbucia Matteo em meu colo. Vincenzo e eu beijamos suas bochechinhas rosadas enquanto ele gargalha. Um grito de pavor nos assusta. Ergo-me, de súbito, deixando Matteo no colo de Vincenzo. Meu coração dispara ao perceber o desespero de Celeste segurando o carrinho de Sean...
Vazio.
Impulsiva, corro até a calçada sob os protestos de Vincenzo que me segue. Alcanço Cassie e a puxo pelos cabelos, obrigando-a a parar. Dentro do carro, próximo à calçada, Liam abre um sorriso sinistro.
- Deixa o Sean comigo!
- Não posso, tia. - Recuo, horrorizada. 'Minha Cassie' está cadavérica. Cabelos ralos, os lábios ressecados. Os braços e pescoço tomados por hematomas. Seguindo meu instinto, eu a abraço com força, envolvendo Sean em seu colo. Chorando por seu sofrimento, sinto o que ela sente. Pavor, medo, solidão, tristeza, desesperança. - Ele vai matar meu pobre Sean se eu não não entrar no carro, tia.
- Cassie!? - Constrangida diante de Vincenzo, ela se desculpa.
- Tio, perdão por ter te tratado com desrespeito. Eu não sei o que deu em mim.
- Esquece, Cassie. Eu te conheço. Vc é uma boa menina. Não se deixe levar por ele.
- É tarde demais, tio...- Lamenta ela, recuando em direção ao carro. - Amo vcs.
- Vincenzo, não deixa Liam levar os dois! - Imploro enquanto Cassie abre a porta do carro e me lança um olhar de profunda tristeza. - Faz alguma coisa!
- Ele não pode, Adessa. - Debocha Liam. - Temos um trato. Ele te contou, não é? - Ignorando-o, suplico.
- Não entra, Cassie! Fica! - O carro se move. Descalça, eu tento impedi-lo de avançar, segurando-o pela janela aberta como se eu tivesse o poder de parar um carro em movimento. Dentro do carro, Liam gargalha enquanto Sean chora como se me pedisse por sua ajuda. Agora, ele faz parte de mim, assim como eu faço parte dele. É o meu leite que o alimenta. - Cassie! Acorda! Eu te amo! Eu amo o Sean! Fica com a gente!
Vincenzo logo atrás de mim, ordena.
- Para, Dess! Isso vai te fazer mal! - Antes de Liam acelerar, Cassie beija o dorso de minha mão e me diz adeus. Debaixo da chuva forte, continuo a correr tentando alcançar o carro. Vincenzo me segura pelo braço e grita.
- Chega! Eles se foram! Já não podemos fazer mais nada! Ela quis assim!
- NÃO! ELA NÃO QUIS! EU SENTI, VINCENZO! ELA ME PEDIU AJUDA!
- VC TÁ DOENTE! NÃO PODE SE CANSAR! DESS, FICA COMIGO!
- NÃO! NÃO AGORA! QUEM FEZ O PACTO FOI VC! NÃO EU!
Ainda consigo enxergar o carro de Liam quando volto a correr. Um cansaço intenso toma conta do meu corpo. Cambaleando, grito por Sean. Sem ar, caio de joelhos no asfalto. Desesperançada, choro sob as gotas da chuva que vergastam minhas costas.
É quando os vejo passar por mim, tão rápidos e fortes como guepardos.
- Filha. - Sussurro esticando meu braço, tentando tocá-la. - Cuidado...com...
Ergo-me com dificuldade e, aos poucos, volto a correr. Vincenzo me alcança e, sem me olhar, me ultrapassa. De onde estou, consigo enxergar Antoine do lado esquerdo do carro, estilhaçar o vidro dianteiro, com golpes fortes e precisos com um taco de baseball. Do outro lado, Leo, enlouquecido, com um martelo nas mãos, amassa a porta de Liam, junto à maçaneta, impedindo-a de se abrir. Vincenzo, com a ajuda de Antoine, abre a porta do carona e resgata Cassie e Sean. Leo, parecendo maior do que costuma ser, chuta a porta, tranca Liam lá dentro e, logo em seguida, destrói, com seu martelo reluzente, o mecanismo de abertura da porta. Preso, Liam urra como uma fera enjaulada. Mantendo-me de pé, consigo sorrir ao reconhecer Cassie cobrindo o corpinho de Sean com o seu, vindo em minha direção. Imponentes, marchando como dois soldados, Antoine e Leo brilham na escuridão da noite. Vincenzo, encarando-me com raiva, me segura pelos pés e, forçando-me a cair sobre seu ombro esquerdo, me carrega como um saco de batatas. Ainda lúcida, volto no tempo e nos vejo na casa de praia quando ele me carregou assim até o seu interior. Éramos jovens, saudáveis e cheios de planos para o futuro.
Num esforço hercúleo, ergo meu tronco e, ao sorrir, chamo por seu nome.
- Cassie. 'Minha Cassie'.
- Tia! O que vc tem!? Sua voz tá fraca!
- E o Liam? - Indago num fio de voz. Orgulhoso, Leo com o martelo em seu ombro, comenta. - Esse aí não vai poder andar por um bom tempo. Martelei os dois joelhos.
- Wooohoo! - Vibra Antoine. Vendo-me preocupada, ela me alcança e cochicha. - Descansa, mãe. Vai dar tudo certo. Ok?
Perco os sentidos, em paz.
Cassie e Sean estão de volta ao nosso lar e, infelizmente, nada mudou. Eles ainda correm riscos enquanto Liam estiver vivo.
- A lei funciona pra todos os anjos que caíram?
- Que lei, Dess?
- Não fala assim comigo. - Peço, ainda em recuperação. Após meu imenso esforço, debaixo da chuva forte, contraí pneumonia. A terceira ou quarta...sei lá. - Eu estou querendo entender o que fizemos.
- O que vc fez, Dess! - Corrige-me Vincenzo sentado em sua poltrona enquanto não consigo me livrar da porra dessa cama. - Não consegue porque é teimosa! Quer se meter onde não deve! Quer ser a heroína da porra da história!
- Não fala assim...- Peço com a voz fraca. - Liam teria matado os dois.
- Eu já havia acionado a polícia, Dess! - Resmunga Vincenzo. - Ele seria preciso por sequestro de incapaz!
- Duvido. Eles estão infiltrados, amor. Há membros da 'Legião' em todos os lugares.
- Falou a especialista em legiões demoníacas...
- Não fale assim com ela, filho. - Defende-me Celeste, sentada na beira da cama, acariciando meus cabelos. - Ela foi uma heroína sim. Nem quero imaginar o que seria do pobre Sean se Adessa não os tivesse resgatado.
- Não fui eu, Celeste. Foram as crianças. Foi...- Arfando, continuo. - Foi incrível. Eles surgiram do nada e frustraram com os planos daquele ser diabólico. Vc precisava ter visto sua neta. - Sorrindo, ela comenta.
- Ela é especial. E o Leo também. Os dois formam um casal e tanto.
- Menos, Celeste. Bem menos...- Brinco ao tossir. Vincenzo se ergue da poltrona e, com a expressão sisuda, me faz beber do xarope em uma colher. - Vai continuar a me evitar? Me olha nos olhos, amor.
- Não dá. Vc não me ama. Não dá a mínima pra mim, nem para os nossos filhos.
- Não fala assim...
- Falo sim! Se me amasse, procuraria viver em paz. Quando eu estive doente, vc cuidou de mim e eu segui as ordens do médico e aos seus apelos. Parei de lutar porque vc pediu. E tudo o que eu peço é que pare de tentar salvar o mundo, Dess! Vc não é a porra de uma personagem do universo 'Marvel'! Acorda, Dess! - Fraca demais para discutir, eu lhe dou as costas e, cobrindo meu rosto com o edredom, choro baixinho, impotente, impulsiva, idiota. Celeste beija minha cabeça e me abençoa antes de nos deixar a sós. Vincenzo, se deita ao meu lado e, aconchegando seu corpo junto ao meu, me pede perdão. - Pensando bem. Vc poderia ser a 'Feiticeira Escarlate'. - Sorrio, escondida. - Poderes vc têm.
- Sou uma bosta. Isso sim.
- Não é não. Vc é o ser humano mais humano que eu conheço. - Beijando meu pescoço, ele prossegue. - Dess, vc precisa se cuidar. Não me deixe sozinho com nossos filhos. Precisamos de vc. Pensa na gente.
- Não fica perto de mim. Pode ser contagiosa essa pneumonia.
- Foda-se. Não me importo. Eu daria a minha vida por vc.
- Foi esse o valor do pacto com Liam? - De costas para ele, aguardo por sua resposta. - Vincenzo?
- Descansa, Dess. - Diz ele, levantando-se da cama.
- Volte aqui! - Ordeno, erguendo meu tronco, puxando o ar através da boca aberta. - Olha pra mim, Vincenzo e não minta. Foi esse o preço pra que Liam nos deixasse em paz? A lei da Imortalidade vale pra todos os anjos que caem e têm filhos com humanos?
- Sim. Aonde quer chegar, Dess?
- Ao pacto que fez com ele! Por quem Liam abriria mão de Cassie e Sean!?
- Eu nunca disse isso, idiota. - Tomando-me em seus braços, ele olha em meus olhos e esclarece. - O meu pacto com ele era para mantê-lo longe dos meus. Longe de vc, de Antoine e Matteo. Infelizmente, vc ainda não percebeu o quanto vcs valem para a 'Legião'. Três criaturas com diferentes graus de poderes e importância. Por vcs, a 'Legião' devastaria populações inteiras.
- Tá me assustando...
- É assustador. Por isso, fiz o que fiz.
- E o que vc fez, amor? - Pergunto em seu colo. Nossos olhares se encontram. Há pavor e tristeza em seus lindos olhos azuis quando ele confessa. - Eu concordei em me juntar à 'Legião' e combater Lúcifer em troca da vida de vcs. Chega de tanto sofrimento, Dess. Vc precisa de paz. - Um tapa em seu rosto e, tossindo, curvo meu tronco para frente e protesto.
- Não aceito! Esquece a porra desse trato!
- Para de falar, Dess. Descansa. - Revoltada com minha tosse persistente, luto por me livrar dele. - Dess!!!
De pé, diante de Vincenzo, eu os repreendo aos berros. Minha garganta queima enquanto proclamo, usando o restante de minhas forças e o crucifixo em madeira que Vincenzo me deu. Imobilizado, ele me observa, apavorado.
- Ninguém! Nenhum ser maligno toca em minha família enquanto eu existir! Mesmo após a minha morte, eu os protegerei com todas as minhas forças! Está feito! Está feito! Está feito!
- Dess!
- Porra...- Tonta, resmungo. - De novo não.
Ao acordar, mais forte, sem a presença de Vincenzo em nosso quarto, ouso caminhar pela casa estranhamente vazia. Apoiando-me nas paredes, sigo até a sala. Enrico assiste a um de seus filmes de faroeste. Extremamente focado, ele não nota minha presença. Recuo e sigo até o quarto de hóspedes esperando encontrar Cassie e Sean. Meus seios estão doloridos e cheios de leite. Ainda não sei como explicar a Cassie essa questão da amamentação, mas, espero que ela a aceite com naturalidade. Foi pelo bem de seu filho.
- Ninguém???
Olho ao redor e nada vejo. Nada que lhe pertença. Abro o guarda-roupas vazio. Uma dor em meu peito e penso no pior. Apoio-me na beirada da cama e, mantendo o equilíbrio, inspiro e expiro, profundamente. - O que houve aqui? - Tateando o colchão, toco em um envelope. Dentro dele, um bilhete que me abalaria profundamente. Minhas lágrimas borram suas letras enquanto leio sua carta de despedida.
"Tia, te amo. Gratidão por tudo o que fez por mim e por meu filho durante todos esses anos. Foram os melhores anos de minha vida. Gostaria de poder voltar no tempo e jamais ter aceitado aquele emprego no mercadinho da praia. Gostaria de ter morrido com meus pais, mas, então, eu não teria o meu Sean comigo. É por ele e por vcs que vou partir. Já não suporto ver vc e o tio brigando por mim. Lutando por mim e por meu filho. Chegou a hora de crescer. Vou fugir desse país, tia. Roubei dinheiro daquele monstro. Dinheiro suficiente para me manter longe dele e de vcs por um longo tempo. Dinheiro suficiente para salvar o meu Sean do pior.
Eu vi o que eles fazem, tia. Eu não consigo mais dormir. Eu preciso salvar o meu filho.
Por favor, me entenda. Vc me ensinou a ser uma boa mãe.
Ore por mim. Ore por Sean. Vamos precisar.
Assim que chegar a algum lugar seguro, mando notícias.
Diga a Antoine que a amo muito.
Peça perdão ao tio Vincenzo.
Te amo, tia.
Isso não é um adeus.
De sua Cassie com muito amor."
Assim que acabo de ler a carta, apesar de abalada, corro até a sala e, aos gritos, aviso.
- Enrico! Eles fugiram! Eles fugiram! Me ajuda! Me diz aonde eles foram!
- Quem???
- Cassie e Sean fugiram! - Afirmo com o papel cujas letra borradas tremulam em minhas mãos. - Liam vai encontrar a Cassie! Eu sei! Eu sinto!
- Meu anjo...- Olhando-me com seriedade, ele me orienta antes de pousar a mão em minha cabeça e me fazer dormir. - Pense no Criador. Cassie e Sean estão em Suas Mãos agora. Descanse e se cure. O destino deles já está selado.
Continua...
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