Por um tempo, não tenho notícias de Cassie ou de Sean. Por um tempo, não procuro saber se Liam está vivo ou morto. Por um tempo, priorizo minha saúde porque não quero morrer tão cedo.
Minha família precisa de mim e eu, dela.
Vincenzo pede a João que cuide da academia de boxe enquanto, de férias, nos leva até uma das casas de Enrico, em um local distante da cidade e próximo à natureza. Uma casa pequena e aconchegante, com lareira e vista para as montanhas. Enrico e Celeste concordaram em cuidar de nossa casa durante os poucos dias em que tentamos ficar longe dos problemas e vivermos como uma família comum entre pessoas comuns. Usando luvas, evito o contato físico, poupando-me do desgaste de ver e sentir tudo com intensidade. O que chamam de 'dom' tem me tirado as forças e adoecido meu coração que, aqui, agora, não dói. Não bate descompassado. Meu coração tem se comportado bem enquanto, ao lado de Vincenzo, vejo minha família se divertir sem o peso que deixamos na cidade. Antoine mergulha na água fria do lago em frente ao nosso chalé, aguardando Leo que, encorajado por Vincenzo, pula, receoso. Voltando à superfície, ele e Antoine nadam como dois atletas, lado a lado, disputando para ver quem nada com maior velocidade. Da cadeira confortável em madeira, coberta por um edredom, torço por Antoine que, assustadoramente, tem se mostrado mais hábil, forte e bela, a cada dia.
Nada sobrara da garotinha que resgatei na rua. Nada além de sua bondade e doçura. Uma pitada de raiva misturada a um ar de bravura a deixa ainda mais sedutora, mesmo que ela não saiba lidar com esse poder de sedução. Com Matteo em meu colo, sob o sol ameno, observo seu corpo perfeito coberto por seu biquini e seus longos cabelos que parecem ter crescido durante uma noite de sono tranquilo. Leo, imponente, forte e confiante, a cobre com uma toalha e a abraça de maneira fraternal. Beijando o topo de sua cabeça, ele comenta.
- Vc é simplesmente esplêndida. Como consegue ser perfeita em tudo?
- Sei lá. - Responde ela entre satisfeita e inconformada. - Eu faço por fazer e...
- E sempre me vence em tudo, bobinha.
'Bobinha'!?
Sinto daqui sua decepção. Minha filha cresceu e deseja ser amada como uma adolescente normal, mas, de normal, ela nada tem. Vincenzo brinca com Matteo correndo na grama enquanto meu filho, fugindo dele, eufórico, grita de alegria. Encolhida na cadeira, aquecida, penso que poderíamos viver aqui para sempre. Eu não quero voltar e ter de enfrentar tudo novamente. Não quero me desgastar ao contato com seres de 'outro mundo'. Sequer penso em voltar a trabalhar. Amo dançar. Amo ensinar a dançar, mas tenho me sentido cada vez mais fraca. Em minha última consulta, meu cardiologista me proibiu de exercer tarefas que exijam muito esforço. Meu coração está fraco. Escondo isso de Vincenzo que finge não ouvir meus pensamentos. Estou cansada de tentar esconder tudo dele. De vez em quando, ele me olha como se tivesse captado algum pensamento e me sorri sob a luz do sol. Não me canso de admirar sua beleza. Matteo está cada vez mais parecido com ele. Ambos me fascinam com seus sorrisos. Por que não moramos aqui...pra sempre?
- Basta vc querer e eu dou um jeito de ficarmos nessa cidade.
- Idiota. Vc me ouviu? - Reclamo de olhos fechados. - Após anos de convivência, vc continua a ser irritante.
- Digo o mesmo. Vc é um saco. - Retruca ele sentando-se na espreguiçadeira em madeira, com almofadas, ao meu lado. Matteo grudado ao seu tronco, descansa de bruços. Corado e feliz, ele me sorri. Uma pontada no meu peito e me recordo de Cassie e Sean. Onde devem estar? Como devem estar? Ela, até hoje, não me enviou mensagem. Nada. Nenhum indício de que estão bem. Talvez o pior tenha acontecido. De olhos fechados, Vincenzo comenta. - Isso. Continue a alimentar esses pensamentos e seu coração vai se enfraquecer ainda mais.
- Não consigo evitar...
- Quer nos deixar, Dess. Deixar sua família justo agora que estamos felizes e em paz?
- Estamos em paz, aqui, longe de tudo. Assim que voltarmos ao nosso lar, os problemas virão com toda a força. - Lastimo. - Não quero voltar.
- Não volta. Podemos ficar aqui, pra sempre. - Ainda de olhos fechados, resmungo.
- Antoine e Leo vão adorar essa vida de exilados. Ela está cada vez mais agitada e irritada com Leo que parece não se decidir. - Rindo, Vincenzo abraça Matteo e, olhando-me de lado, refuta.
- Ele já se decidiu. Só não tem coragem de fazer o pedido. Ele morre de medo de ser rejeitado.
- Que pedido???
- Dess!!!
- Que pedido??? - Ergo meu tronco da cadeira e, atordoada, repito. - Que pedido, Vincenzo???
- Porra, tu é cega ou tá de sacanagem!?
- Não entendi!
- Entendeu sim! Só não quer admitir que nossa filha cresceu e possui desejos que vc faz questão de ignorar!
- Ela é uma criança, bastardo!
- Não vejo nenhuma criança de onde estou, Dess! Ela cresceu e aprendeu a ser humana!
- Isso não tá certo, Vincenzo. Precisamos impedir.
- Impedir o quê, Dess? Já aconteceu. Ela tá apaixonada por ele e ele por ela.
- PARA!
- Ok. - Diz ele cruzando as mãos sob a nuca. - Continue em seu mundinho idiota.
- Não fala assim comigo! Vc sabe que ela não veio aqui pra isso! Vc me contou! Ela tem uma missão!
- E daí!? Todos temos uma! Enquanto se cumpre uma missão, não se pode ser feliz!? - Movendo meu tronco em sua direção, apoio-me em sua cadeira ao rosnar em seu ouvido.
- Não sendo a porra de querubim! Ou vc mentiu pra mim!?
- Não.
- Não o quê, Vincenzo!? Olha pra mim!?
- Não quero, Dess. Me deixa quieto.
- Ela é um querubim ou filha da filha da filha da filha de alguma mulher que vc fecundou antes de Cristo!? Não me olha assim! Eu tô confusa! Vc já me deu essas duas versões! Qual é a verdadeira!? - Lançando-me um olhar frio, ele pergunta.
- O que vc acha?
- Vincenzo!
- Mãe! Vc tá bem!? - Diante de mim, impedindo que os raios de sol incidam sobre meus olhos, ela se mantem de pé, repetindo o que faço com meus cabelos molhados: ela os enrosca e os torce como roupa lavada prestes a ser estendida no varal. Por minutos, enxergo sua beleza, seu sorriso ingênuo, sua luz...- Mãe! Vc tá bem!?
- Sim! Não precisa gritar!
- Não gritei. Vc não ouviu.
- Ela ouviu, filha. Depois da quarta vez que vc perguntou.
Rindo, Vincenzo, Leo e Antoine se divertem às minhas custas enquanto penso em como manter as mãos afoitas de Leo distantes do corpo de minha Antoine. - Não tem como, Dess. Desiste.
- VÁ PRO INFERNO! - Grito ao me levantar da cadeira confortável e correr para dentro da casa em madeira. Enrolada em meu edredom, sento-me de frente à lareira e me deixo hipnotizar pelo fogo, pelas chamas bruxuleantes e seu crepitar agradável. - Ela não pode se desviar. - Penso alto. - Se isso acontecer, talvez ela perca seus poderes. Talvez perca aquilo que a torna diferente e melhor do que todos nós: sua pureza. Por que Vincenzo não enxerga isso?
- Porque, talvez, ele queira que ela se perca. - Tapando meus ouvidos com as mãos, eu sussurro.
- Some daqui, seu verme. Eu te expulso em nome do Criador.
- Eu não estou aqui, meu bem. Foi vc quem decidiu me ouvir ao duvidar de sua Antoine. Tem razão. Se ela se ligar a um humano comum, perderá sua Força, sua Luz. O que facilitaria, e muito, meus planos. - Prestes a tocar em seu rosto em meio ao fogo e agarrar seu pescoço, sou contida por Vincenzo que, num solavanco, assustado, me afasta da lareira ao indagar.
- Com quem tá falando!? Vc quase se queimou!
- Ninguém. - Minto. - Só me deixei levar pela beleza chamas. Elas têm várias cores. Já percebeu?
- Dess, olha pra mim. Não deixa que ele se aproxime novamente. Por favor. Seja forte.
- Eu sou. - Deixando-me abraçar por ele, descanso minha cabeça em seu peito onde me sinto segura. - Ele não tem poder sobre mim, amor. Mas, eu temo por Antoine e por Leo.
- Eles são mais fortes do que vc imagina. Mais fácil temer por nós dois, Dess. - Um olhar desconfiado e pergunto.
- Vc não tem motivos pra ter medo de seu ex-amigo traidor filho da puta. Tem?
- Não...
- Do que tem medo, Vincenzo?
- De te perder. De ter que te perder...
- Não entendi. Isso tem a ver com o pacto com Liam!?
- Não quero falar disso.
- Vc precisa se abrir comigo, marido. - Imploro. - O que prometeu a ele?
- Podemos ir à cidade e comer pizza, pai!?
- Estamos conversando, Antoine. - Repreendo-a, sutilmente. Vincenzo se ergue e, de súbito, desconversa.
- Por mim, tudo bem. Peça à sua mãe. - Um olhar indecifrável e ele declara. - É ela quem decide.
- Mãe?
- Filha...- Resmungo. - Nós temos tudo aqui. Vamos ficar juntinhos, unidos. Protegidos. Por favor. - Tremendo de frio, ainda molhada, envolta na toalha e pelos braços de Leo, ela concorda.
- Ok. Se Leo quiser, eu topo.
- É claro que eu topo, Antoine. - Diz ele, encabulado por ser nosso hóspede e absolutamente educado. - O que vcs quiserem, eu topo.
- Então, tá decidido. - Aviso, animada. - Hoje, quem faz a pizza é seu pai!
- Eu???
- É Vincenzo! - Rosno. - Vc não é italiano à toa! Vamos pra cozinha e botar a mão na massa! Antoine! Tome seu banho no banheiro do meu quarto. Leo, meu querido, tome o seu no banheiro principal. - Um sorriso tímido e Leo, compassivo, me compreende. - Assim que estiverem prontos, estaremos na cozinha, com a massa no forno.
- Ok, mãe. Não se preocupa. Leo não tem a menor intenção de ir atrás de mim durante o banho. Fica 'de boas'.
- Antoine! Eu não quis...!
- Mas pensou, mãe. Não tem importância. Leo me considera sua irmã mais nova. - Desanimada, ela segue até o nosso quarto e se tranca no banheiro. Leo, desorientado, baixa a cabeça ao lamentar.
- Não entendi. Eu fiz alguma coisa de errado? - Fez. Minto. Não fez, querido. Mas, para mim, está perfeito. - Ela parece triste.
- Isso passa, Leo. Vai lá. Tome seu banho e volte logo. O que prefere? Muçarela ou quatro queijos?
- Qualquer uma, tia. - Responde-me ele, desolado. - O que Antoine preferir. O que ela decidir, tá bom pra mim.
Deixando-nos sozinhos na sala, Leo caminha pelo corredor enquanto me pergunto o que devo fazer.
- Deixa rolar, Dess. Nada de tão grave vai acontecer. Nada além de um abraço ou, no máximo, um beijo inocente.
- Não...- Lamento num gemido. - Ela não pode. É muito nova. Inexperiente. - Sovando a massa da pizza sobre a mesa em mármore, prossigo. - Inocente. Nunca beijou ou foi beijada. Não nasceu pra isso.
- Como sabe? Vc a criou?
- Vc não é o pai dela! Fica quieto! - Calado, ele continua a sovar a massa enquanto eu a recheio e me arrependo de ter sido grosseira com ele. Acendendo o forno, ele se mantem calado. Com as mãos sujas de farinha de trigo, eu toco em seu rosto e lhe peço perdão. - Não foi isso que eu quis dizer.
- Mas disse. Se eu não sou o pai dela, quem é?
- Ela só tem um pai e esse pai é vc. Eu sou estúpida, medrosa e ciumenta. Não consigo ver nossa filha se relacionando com ninguém. Ela é tão nova, Vincenzo...
- Ela é mais experiente do que vc e eu juntos, Dess. Acorda, amor. O tempo está passando. Os sinais estão diante de nossos olhos. Ela precisa estar forte e feliz para o que está por vir.
- Para. - Imploro salpicando, nervosamente, farinha sobre o balcão. - Por favor. Não fala nisso. Não por hoje. Não enquanto estivermos aqui.
- Ok. - Beijando sua boca esbranquiçada, sorrio. - Vamos fingir que somos uma família normal em férias em lugar fabuloso.
- Combinado. - Concorda ele ao ratificar. - Somos uma família normal, feliz e simples. - Um arquejo de pavor e Vincenzo me empurra para o lado e corre em direção ao forno quente onde Matteo, curioso, espalma suas mãozinhas contra o vidro temperado. Grito, apavorada antes de me juntar a ele e examinar as mãozinhas de nosso filho.
- Nada?
- Nada. - Responde Vincenzo entre aliviado e desconfiado. - Era pra estar queimada...ardida...vermelha...com bolhas. Sei lá. - Evito seu olhar e, tomando Matteo em meus braços, beijo suas mãozinhas e, fingindo estar despreocupada, sigo até a sala onde o sento no tapete próximo à TV. Ao seu lado, pergunto a que filme ele quer assistir.
- 'Quero pidza', diz Matteo estirado sobre o tapete, com as mãos cruzadas sob a nuca, absolutamente alheio ao meu desespero interior. Como ele não se queimou ao tocar o forno a uma temperatura altíssima? Nada. Nenhuma lesão. Nenhuma vermelhidão. Talvez, ele seja tão especial quanto a irmã. Talvez, não. Talvez...
- Talvez, a pizza esteja no ponto, Dess. Levanta daí e para de pensar besteira. Por favor. - Assustada, respondo.
- Ok. Já vou. - Desorientada, pergunto a Vincenzo. - Vc viu aquilo? Como suas mãos estão perfeitas?
- Talvez ele não tenha encostado as mãos no forno, Dess. Eu não vi direito.
- Viu sim, Vincenzo! Não minta pra mim! Por que eu sinto que vc tá me escondendo algo!? Vc não me respondeu sobre o pacto com Liam, nem sobre a origem de Antoine!
- Discutindo de novo? - Resmunga Antoine sentando-se à mesa, com uma toalha enrolada na cabeça. - Vcs gostam disso, né? Meu maninho é especial. Aprendam a lidar com isso.
- Como assim???
- Dess, fica calma!
- Me solta, cretino!
- Mãe, não se exalte. Faz mal ao coração. - Arrastando outra cadeira, sento-me diante dela e, irritada com sua indiferença, indago.
- O que quis dizer com 'meu maninho é especial'!?
- O que eu disse. Ele é especial, mãe. Descende de...
- NÃO SE ATREVA, ANTOINE!
- Dess...- Lamenta Vincenzo, magoado enquanto Antoine prende o choro. - Vc passou dos limites. - Abraçando-a, ele a leva para a sala e me deixa sozinha na cozinha com minha culpa e raiva por não saber me controlar...ainda. Leo retira a toalha de sua cabeça e massageia seus cabelos molhados. Matteo, deitado no tapete, me sorri ao balbuciar um 'mamãe dodói'. Sentindo-me distante dos que amo, corro até a varanda de onde vejo o lago. Tomada por um súbito e estranho desespero, debaixo de uma tempestade, corro até ele e mergulho na água fria.
Deixo-me afundar até ouvir o som do silêncio e me acalmar. Não me incomodo com o frio intenso. Tudo o que desejo é permanecer aqui, nessa paz, sozinha e não machucar ninguém com minha impulsividade irritante. Solto bolhas pelo nariz e afundo ainda mais. Ao meu redor, luzes douradas formam um círculo. Encantada, vejo seu rosto surgir diante de meus olhos abertos.
"Ainda não chegou sua hora.", diz sua voz diáfana. "A luta ainda não terminou. Retorna, querida. Estarei sempre ao seu lado".
"Uma sereia!?", penso. "Não. Uma amiga. Uma amiga muito antiga", responde-me ela, sorrindo.
Movendo-se na água, ela me empurra para cima enquanto luto por permanecer ao seu lado e desistir de lutar. Abro a boca. Engulo água. Desespero-me ao vê-la sumir. A escuridão me cerca enquanto tento, em vão, respirar. O medo toma conta de mim. Mais borbulhas ao meu lado e ele me puxa para cima com seu braço envolto em minha cintura. De volta à superfície, puxo o ar pela boca aberta. Vincenzo, ao meu lado, entre irritado e preocupado, pergunta.
- Por que fez isso, Dess!? Por que quer nos deixar!?
- Mãe! - Grita Antoine do 'pier' em madeira. Estendendo-me sua mão, ela me pede, angustiada. - Não faz mais isso! A gente precisa de vc! Vem!
Vincenzo, nadando, me carrega até a margem do lago. Deitando-se sobre o solo seco e arenoso, ele respira com dificuldade. Antoine me ajuda a levantar enquanto Leo segura Matteo em seu colo. Ele chora e estende seus bracinhos em minha direção. Cobrindo-me com um cobertor grosso e quente, Antoine diz ao irmão.
- Ela já vai te pegar, maninho. Não chora. - Vincenzo, chacoalhando sua cabeça, respingando água em todos, passa por mim, sem sequer me olhar. Leo, sem saber o que fazer, me entrega Matteo enquanto Antoine me beija no rosto e sussurra em meu ouvido.
- Não faz mais isso, mãe. Da próxima vez, pode ser fatal. Não nos deixe sozinhos. Precisamos de vc.
- Vem, tia. - Leo me enlaça pela cintura e me auxilia a caminhar até a varanda da casa. Antoine toma Matteo de meus braços e ordena.
- Vá já tomar um banho quente antes de contrair uma gripe ou coisa pior, mãe!
- Eu vou. Cuida de seu irmão, filha. - Peço com um olhar distante. - Vou tomar um banho e já volto. - Antes de entrar no banheiro rústico e pequeno, Vincenzo me puxa pelo braço e, num lamento, me avisa.
- Vc tá agindo exatamente como eles querem, Dess. Em breve, não terei opção.
- Seja direto, Vincenzo. O que fez? O que prometeu a Liam em troca da liberdade de nossos filhos?
- Isso não importa. Só não tenta mais fugir de nossa família e, por favor, tenta permanecer saudável. Antoine e Matteo precisam de vc.
- E vc?
- O que acha, Dess? Se soubesse o que fiz por vc...
- FALA! - Grito, aflita, antes de ser empurrada por ele até o chuveiro e, debaixo da água quente, com roupa e tudo, ouvir sua voz amargurada pedir.
- Não grita comigo. E não me mande mais 'pro inferno'. De tanto ouvir isso, talvez, um dia desses, eu acorde lá.
- Vincenzo!
Eu o chamo sem resposta.
Como se nada houvesse acontecido, Vincenzo, Leo e Antoine conversam, animadamente, enquanto devoram as pizzas. Matteo, em meu colo, se diverte com o tubo de 'ketchup' que cobre, por inteiro, seu pedaço da massa. "Pidiza dodói!", avisa-me ele, gargalhando. Beijando sua testinha, sorrio.
- É. Pizza 'dodói', filho.
- Mamãe 'dodói'? - Pergunta-me ele, sentido. Seus lábios tremulam ao repetir. - 'Mamãe dodói'?
- Não, meu amor. Mamãe não tá 'dodói'. Come um pedaço da pizza. Come. - Retirando da mesa outro pedaço da pizza de muçarela, eu a fatio em pequenos pedaços e o faço comer. Sentindo-me sozinha, à mesa, agradeço por ele ainda se importar comigo. - Tá gostoso, filho?
- 'Gotoso. Hmmmm. Gotoso'. - Brincando com um de seus bonecos, ele se distrai. Erguendo meu olhar eu os vejo saborear as pizzas enquanto não param de falar. E, nenhuma das palavras são dirigidas a mim. Devastadoramente solitária, ergo-me da cadeira e, com Matteo em meu colo, caminho até o quarto onde Vincenzo e eu dormimos. Sim. Dormimos. Ele não me tocou desde que chegamos aqui. Eu não o condeno. Sou a louca. A desequilibrada que pulou no lago por me sentir deslocada. Exatamente como me sinto agora.
Olhando pela janela, penso alto.
- Por que ele não fala comigo? Perdeu o interesse em mim?
- 'Mamãe dodói'? - Cutuca-me Matteo, de pé, ao meu lado. Agachada, beijo sua bochecha corada e, mais uma vez, respondo.
- Não, filho. Mamãe tá bem. Ok.
- 'Ok?'
- Ok. - Repito, rindo, admirada com sua inteligência. - 'Mamãe ok?'
- Isso! - Vibro enquanto ele escala a cama e se deita no colchão. - 'Icho!' - Diz ele, rindo de si mesmo. Com seu boneco na mão, ele o faz voar imitando o som da sirene de um caminhão do 'Corpo de Bombeiros'. Eu o beijo na testa rindo de sua confusão. Encosto a porta do quarto. Não quero que ele fuja e se machuque enquanto me distraio. Lá fora, a chuva continua. O ar frio entra pela varanda. Sento-me na velha poltrona de couro da sacada do segundo andar. Coberta por um edredom, aprecio as luzes da cidade lá embaixo, sempre de olho em Matteo.
- Por que não podemos ser felizes? Normais como eles?
- Porque somos especiais, Dess. - Trazendo uma garrafa de vinho debaixo do braço, ele olha ao redor antes de abrir um sorriso cafajeste e me perguntar. - Onde eu vou me sentar? Só tem uma cadeira aqui? - Dando de ombros, ainda ressentida, resmungo.
- Se vira.
- Levanta. - Ordena-me ele diante de mim. - Recuso-me a beber em pé. - Ergo-me da cadeira e, antes de fugir dele, ele me segura pela mão e, sentando-se na cadeira onde eu me sentei, ele me faz cair em seu colo. Resisto enquanto ele me pede num sussurro.
- Fica, Dess. Por favor. - Largando a garrafa ao lado da poltrona, seus braços me enlaçam pela cintura, forçando-me a me recostar em seu tronco. Vencida, exausta de brigar, tombo minha cabeça para trás, em seu ombro. Um beijo em meu pescoço e ele pergunta o óbvio. - Ainda me ama?
- Talvez. Cadê Matteo!?
- Sossega. Antoine e Leo estão com ele. - Rindo, ele leva a garrafa de vinho à boca. Dois goles e ele se assusta quando a roubo de sua mão e, no gargalo, dou quatro goladas. - Não olha assim pra mim. Foi vc quem trouxe. Tem certeza de que Matteo tá com eles?
- Sim. Em uma missão especial. - Rindo ele revela. - A de impedir que eles se beijem.
- Não brinca com isso, Vincenzo. Isso me preocupa.
- Sem brigas, Dess?
- Ok. Sem brigas. - Unindo nossos dedos mínimos, pergunto. - Jura que não vai mais me machucar com sua indiferença?
- Juro. Jura que vai parar de duvidar de meus sentimentos por vc?
- Juro. - Mais dois goles do vinho e, virando-me de lado, em seu colo, pressiono seu rosto com minhas mãos geladas e, encarando-o, indago. - Vai responder às minhas perguntas sem mentir? - Sua voz entaramelada diz 'sim'. Seu sorriso volta a me encantar. Seus olhos mansos me observam enquanto pergunto sem rodeios. - Antoine é um querubim ou fruto de algum de nossos relacionamentos? O que vc quis dizer com ter medo de ter que me perder? Vc não disse que tem medo de me perder. Disse 'medo de ter que me perder'. - Ele faz menção de que vai responder quando o interrompo com outra pergunta ainda mais séria. - Vc prometeu a Liam que se juntaria à 'Legião', lutando contra Lúcifer, pra nos proteger? É esse o pacto? - Eu o impeço de esvaziar a garrafa, retirando-a de sua mão. Eu a esvazio antes de ouvir suas respostas. Rindo de mim, ele joga a cabeça para trás e, antes de responder, ele solta o ar dos pulmões pela boca e comenta.
- Tá frio aqui.
- Não desconversa, marido. Me conta tudo. Como iremos vencer essa batalha se não formos sinceros um com o outro?
- Querubim. - Responde-me ele, lançando um olhar distante ao lago revolto. - Nossa filha é um querubim. Inventei a história de que ela descende de nosso primeiro relacionamento porque achei bonito. Mais fácil de vc aceitar e compreender.
- Não foi.
- Eu sei. Não é fácil pra mim também. Eu era um anjo de uma ordem inferior. Como poderia supor que o Criador confiaria a mim a missão de cuidar de um ser infinitamente superior?
- Ele viu seu coração. Seu Deus te conhece, amor.
- Nosso Deus, Dess. Nosso Deus. Ou melhor, O Criador, como vc costuma se referir a Ele. Isso é coisa de bruxa?
- Vincenzo!
- Sem mentiras. - Alerta ele, relaxado. - Vc lidava com Magia Obscura quando eu te vi pela primeira vez. Certo?
- Certo. Eu não me lembro bem, mas acredito ter lidado com poções que não eram exatamente para curar pessoas. Se quiser maiores detalhes, posso invocar Anahita. - Com um beijo, ele me cala.
- Não. Só vc. Eu quero só vc, amor. Não me importo com o que já fez. Tenho medo do que pode fazer daqui por diante. - Eu também. Um trovão o impede de ouvir meus pensamentos. Assustada, eu o abraço com força. - Tá frio aqui, né?
- Sim. - Cobrindo-o com meu edredom, aviso.
- Eu vou te aquecer, bastardo. Responde.
- Já respondi.
- Vincenzo Rossi, retire esse sorriso sonso da cara. Têm mais perguntas sem respostas. - Revirando os olhos, ele bufa. - Vincenzo!
- Ok. Liam ainda não matou Cassie e Sean porque eu prometi que o ajudaria a lutar contra Lúcifer. Como? Não faço ideia. O idiota acredita que eu tenho poderes pra isso. Fiz esse pacto...minto...esse trato com ele pra que ele não se aproxime de Antoine, Matteo e de vc. Ele não faz ideia do poder que vcs três, juntos, podem ter.
- Nós??? Que poderes Matteo e eu temos, Vincenzo!?
- Essa já é outra pergunta. Vou responder a penúltima e chega de sabatina por hoje. - Indignada, refuto.
- Não! Não pode!
- Dess, sem brigas. Lembra? - Inspirando e expirando, concordo.
- Ok. Sem brigas. - Um olhar ao céu coberto por nuvens de um cinza escuro, eu peço, meio que tonta. - A última resposta.
- O medo de ter que te perder resulta do acordo com Liam. Se eu vencer, eu perco. Se ele não tocar em vcs, eu devo me submeter ao que prometi. E, se eu for tragado pela Escuridão, juntando-me a Liam e àquele bando de bostas, eu sei que vc vai querer fazer de tudo pra me salvar...
- EU VOU!
- Não vai. - Refuta ele, desanimado. - É disso que tenho medo. Se um dia, algo parecido acontecer e eu desaparecer de suas vidas, será por um bom motivo. Eu terei salvo a minha família, Cassie e Sean.
- NÃO! - Ergo-me, num repente. De pé, cambaleando, agarro-me à cerca em madeira e, aflita, discordo. - Esse acordo é absolutamente ridículo! Não vou permitir que vc se sacrifique por nossa família porque nossa família jamais será atingida por aqueles porcos!
- Dess...- Ergue-se ele da poltrona, puxando-me para longe da cerca. Num abraço forte e apertado, ele me pede. - Nunca tente me salvar. Jamais tente me tirar da 'Escuridão' quando ela chegar.
- Vincenzo! - Um sorriso triste e seu bendito dedo pousa entre minhas sobrancelhas. - Não. Não mesmo...
- Perdão, amor. É preciso.
- Muito! - Bocejo, sorrindo. - Onde tá o nosso filho!?
- Já acorda assustada, mulher!?
- Não...- Levando a mão ao coração, expiro. - Foi só um sonho. - Erguendo-me da cama, indago, atordoada. - Ainda é noite?
- Sim. Vc cochilou, Dess.
- Onde estão os nossos filhos!?
- Lá embaixo. - Antes de Vincenzo tentar me deter, eu corro até a porta do quarto e desço os degraus em madeira até o térreo. Matteo, risonho, bate palmas diante da lareira enquanto Antoine e Leo, abraçados no sofá, assistem - ou fingem assistir - a um filme antigo. De onde estão, eles não o veem esticar os braços tentando tocar no ser que se move dentro do fogo. Gargalhando, meu filho se deixa lamber pela chama quando eu me lanço sobre ele e o afasto daquilo que se retrai assim que o encaro. O choro de Matteo chama a atenção de Leo e Antoine. Vincenzo chega logo em seguida, segurando Matteo em seu colo. Chorando, Matteo balbucia. 'Fogo dodói! enquanto procuro por algum extintor de incêndio. O réptil sinistro toma forma e ganha espaço. Escapando da lareira, ele rasteja em minha direção. Lembrando-me das fagulhas de fogo deixadas pelo súcubo que me causou extremo sofrimento, eu permito que o ódio tome conta de mim. Prestes a lutar contra algo semelhante a um dragão, duas vezes mais alto do que eu, sou impedida por Antoine que, de mãos dadas a Leo, de olhos fechados, ordena, com a voz firme.
- Recua, em nome do Meu Pai.
Em segundos, o réptil gigante recua. O fogo se extingue e nada mais resta na lareira além de cinzas. Imobilizada de pavor, eu a ouço pedir desculpas.
- Foi um segundo de distração, mãe, e o meu maninho sumiu.
- Sem problemas, filha. - Releva Vincenzo agarrado a Matteo. - Isso acontece.
- Desde quando? - Indago, incrédula e contida. - Desde quando Dragões-de-Komodo, em chamas, escapam das lareiras, Vincenzo?
- Desde que eu entrei em suas vidas, Dess. Perdão.
Assim que regressamos à nossa casa, na cidade, ainda temendo pelo ataque bizarro ao nosso filho, recebo uma mensagem de Cassie pelo meu e-mail. Assim que o abro, sinto uma pontada no peito. A foto de Cassie e Sean ao lado de Liam me faz arquejar. Antes de ler o texto, tenho uma crise de choro porque sinto que, de qualquer forma, irei perder alguém que amo muito. Resta saber o nome. - Cassie, Sean...ou Vincenzo?
'Estamos bem, tia. Fica calma. Liam conseguiu nos encontrar aqui, na Irlanda, para onde fugimos. Não sei como ele conseguiu me rastrear. Paguei a passagem de avião em 'cash'. Não usei celular. Estou escrevendo pra vc, por e-mail, em uma cafeteria, próxima ao 'pub' onde Antoine, vc e eu dançamos juntas naquela noite fantástica. Eu nunca mais vou me esquecer daqueles dias tão felizes e sombrios. Eu não tinha cometido, ainda, o pior erro de minha vida. Eu ainda era livre e o meu pobre Sean não havia nascido. Liam não pode saber que te escrevi, tia. Ainda que ele esteja me tratando bem e não tenha tocado em Sean, eu o temo. Há algo de maligno em seu olhar. Como eu não percebi isso durante o tempo em que namoramos e nos casamos? Por que somente depois do nascimento de Sean, Liam mudou? Quem são aqueles amigos? De onde eles surgiram? O que eles querem, tia? Eu estava trabalhando em um 'pub' enquanto a família de uma conhecida cuidava de Sean. Ele está mais forte, tia. Sean e eu estávamos felizes até o retorno de Liam às nossas vidas. Agora, tudo parece embaçado. Tenho medo. Nunca deixo Liam sozinho com o meu Sean. Preciso parar de escrever. Liam está aqui, na cafeteria. Sean está aqui, em meu colo. Ele tem saudades de vc, tia. Infelizmente, eu nunca mais consegui amamentar meu filhinho. E eu amava tanto esse momento...
Amo vcs.
De sua Cassie, pra sempre.
Diga a Antoine que a 'safada' morreu...😢
Não. Por favor. Não diga nada.
Isso não é um 'adeus''.
- Que susto! Quando voltou da academia!? - Girando em sua cadeira, eu o encaro. Seus olhos se fixam na tela de seu computador. Incrédulo, ele ordena.
- Desliga essa merda e vamos viver a nossa vida! Ela o aceitou de volta!
- Não! - Refuto, desesperada. - Ele a encontrou! Tá escrito! Ela precisa de ajuda!
- E quanto a mim, Dess!? Eu estou livre da porra do acordo! Se ela voltar pra ele, de livre e espontânea vontade, eu estarei livre do acordo e poderei viver com a minha família! As pessoas que mais amo nesse e em outro mundo!
- Não grita comigo!
- Não me ferra, porra! Desliga isso e deleta, tudo o que leu, da tua cabeça! Eu tô aqui! Vamos viver juntos e felizes o tempo que nos resta!
- Tá me dando medo...- Volto a chorar na cadeira. De cabeça baixa, aviso. - Alguém...eu vou perder alguém, Vincenzo. - Ajoelhado, ele procura por meus olhos e, arfando, pergunta.
- Dentre nós três, quem vc escolheria pra continuar ao seu lado? Cassie, Sean ou eu?
- Não preciso pensar pra responder, merda.
- Responde!
- Vc! É óbvio! Eu nunca vou desistir de nós dois! Aqui ou em outro mundo!
- Dess...- Chorando, ele me abraça forte. Por minutos, ouvimos nossos batimentos cardíacos desacelerando. Após longos minutos deitados sobre o tapete de seu escritório, em casa, rimos de nosso arroubo até que a campainha nos faça arquejar de pavor. - Quem deve ser?
- Não sei...- Parecendo amedrontado, ele me pede. - Não atenda, Dess. Fica comigo.
- Já atenderam...- Lastimo ao ouvir o choro inconfundível de Sean. Erguendo-me do chão, de olhos fechados, com saudades e medo, lamento. - Eles estão aqui.
- Saudades, pirralha! - Diz Cassie num tom de lamento ao abraçar Antoine, efusivamente. Posso jurar que ela sussurrou algo ao ouvido de minha filha antes de eu ser ofendida por Liam, claramente disposto a brigar.
- Vc é famosa, Adessa. Acabamos de chegar da Irlanda e lá, encontramos amigos que assistiam aos seus filmes.
- Imagino o tipo de amigos que vc têm, Liam. - Ironiza Vincenzo, enciumado.
- Alguns dentre milhares, 'irmão'. Milhares que sua linda e pura esposa desvirtuou durante anos de atuação lasciva.
- Não sou seu irmão, seu verme e não fale da minha esposa ou vai sentir o peso da minha mão. Novamente. Não. De novo? Isso tá cansativo.
- Do que ele tá falando, mãe?
- De nada, filha.
- Dos filmes onde sua mãe mostrava a todos, abertamente, suas aptidões em atuar.
- Pare agora e vá embora dessa casa. - Aviso, insegura. - Não queremos confusão. - Enrico se posiciona ao meu lado. Celeste protege Matteo em seu colo. Antoine e Leo, ao lado de Cassie procuram compreender nosso diálogo quando Vincenzo me defende.
- Se não me engano, vc foi proibido de pisar em nossa casa, Liam. Estou enganado, esposa?
- Não! - Corro até a cozinha e, com sal em minha mão direita, usando palavras de poder, traço uma linha ao redor de Liam. Cassie, curiosa, olha para trás e, reconhecendo a dificuldade de Liam em ultrapassar a linha dando um passo adiante ou recuar, ela gargalha ao perguntar.
- Isso funciona de verdade, tia!? - Afastando-se de Liam, com Sean em seu colo, ela zomba. - Como diria Antoine: Isso é simplesmente esplêndido! Me ensina!?
- Sabe o que é esplêndido, 'Little Princess'? Ver nosso filho chorar com fome enquanto vc ainda tem leite. - Um aperto no peito e me apoio em Vincenzo. Liam me lança um sorriso sarcástico ao prosseguir. - Vc nunca parou pra pensar no porquê de Sean recusar seu leite?
- Ela o abandonou por dias enquanto vc a dopava, bandido! Sean precisava se alimentar! - Defendo-me antes da acusação.
- E vc se adiantou e ofereceu seus seios ao nosso filho. Seios impuros, tocados...manipulados por muitos!
- Mais uma palavra e eu te arrebento, Liam!
- Não entendi...- Diz Cassie, confusa. - O que tem meu Sean a ver com minha tia e sua dificuldade em voltar a mamar em meus seios?
- Idiota! - Grita Liam impedido de tocar em Cassie e Sean fora do círculo traçado com sal. Bizarro. Nem eu mesma entendo o poder desse círculo. - Sua tia o amamentou durante sua ausência. Enquanto vc me acusava de cometer atrocidades, ela se fazia passar por vc e lhe roubava o direito supremo e sagrado de amamentar! Agora é tarde! Ele quer somente o leite dela!
- Mentira...- Rosna Cassie. - Vc é um porco mentiroso. Nojento. Falso. Eu jamais pensaria isso de minha tia.
- Pergunte a ela.
- Por que não sai de nossa casa, Liam? - Sugere Enrico com sua cruz sagrada na mão esquerda. - Deixe-nos em paz.
- Eu deixo. - Diz ele num tom irônico. Erguendo os braços, na defensiva, ele argumenta. - Eu saio se ela confessar que fez mal ao meu filho.
- Vc sai quando eu disser pra sair. - Confronta-o Antoine em minha defesa. - Mas, antes, eu quero entender algumas coisas que não ficaram claras.
- Não me diga, Antoine. - Zomba Liam. Ainda mais confusa, Cassie me encara enquanto tenta compreender porque Sean move seus bracinhos em minha direção, num choro desesperado. Aflita, eu peço a ela que me deixe cuidar dele. - Mãe. Não. - Adverte-me Antoine. - Os laços já foram cortados.
- Oi??? Que laços, pirralha???
- Cassie, sente-se e alimente seu filho.
- Ele não aceita o meu leite, Antoine!
- Porque se acostumou ao leite da vaca da sua tia! - Insufla, maliciosamente Liam. Cassie, atordoada e enciumada, pergunta-me se é verdade o que ele diz. Sem poder negar, defendo-me, acuada
- Ele chorava sem parar, Cassie. Vc sumiu por dias. Eu não poderia deixar que o nosso Sean sofresse tanto, então, eu tentei...e...- Antes de terminar de me explicar, sinto o peso de sua mão em meu rosto. Engulo minha impulsividade em revidar e me esforço por compreender sua raiva.
- Vagabunda! Como ousou dar esse leite imundo ao meu filho!?
- Cassie! - Exalta-se Celeste. - Ela é sua tia! Ela ajudou a te criar! Tenha um pouco mais de respeito!
- Ela nos criou com dinheiro sujo! Garota de programa, stripper, vagabunda, atriz de filme pornô! Trepava com qualquer um por qualquer quantia e se atreveu a amamentar o meu Sean!? - Em total desequilíbrio, ela chora e gargalha ao mesmo tempo. Longe de ter raiva de seus insultos, eu me apiedo dela. Ainda muito jovem, já sofre uma realidade fora do normal e, nada do que ela fala é mentira. Eu já fui tudo isso...- Nunca mais ouse falar comigo ou tocar no meu Sean. - Rosna ela apontando seu indicador para o meu rosto ardido. - Entendeu!?
- Nunca mais ouse falar assim com a minha esposa, Cassie. - Alerta Vincenzo, num tom de voz acima do normal, protegendo-me com seu corpo. - Desde que eu te conheço, vc dependeu dela. Vc viveu às custas dela. Se não fosse por essa mulher que vc tenta humilhar, vc já teria feito coisas piores do que a acusa de ter feito. Saia dessa casa e não volte mais.
- Meu Deus. - Emito um gemido de dor. - Não faz isso, Vincenzo. Ela é uma criança. - Recuando, transtornada, agarrando o pobre Sean que chora sem parar, ela refuta, aos berros.
- NÃO SOU! VOU CUIDAR DO MEU FILHO! SOZINHA! ELE VAI VOLTAR A MAMAR NO MEU PEITO! VAI SIM! - Chorando, ela olha para o filho e implora. - Volta a mamar na mamãe, filho. - Liam gargalha, diabolicamente, enquanto eu choro, impotente. Vincenzo a faz se sentar no sofá e, num arroubo de fúria, acerta o queixo de Liam com seu cotovelo. Do chão, ele se cala ao ver Antoine se aproximar de Cassie e repetir seu pedido.
- Cassie, alimente seu filho.
- Pirralha...
- Faça isso agora. - Um toque no topo da cabeça do pequeno Sean e ele para de chorar. Sorrindo, no colo de Cassie, ele procura por seus seios. Assustada, ela o ajuda a encaixar sua boca faminta em um de seus mamilos. Emocionada, ela chora enquanto ele suga seu leite com força. Sorrio, agradecida. Liam se ergue do chão e, sem conseguir ultrapassar a barreira invisível mais forte do que a que eu criei, cheio de ódio, assevera.
- Fracos. Eu tentei ter filhos fortes com vc. Filhos que poderiam modificar o mundo, mas vc é fraca, pequena, medíocre. - Encantada por voltar a alimentar seu filho, Cassie não o escuta. Antoine, imponente, o enfrenta.
- Foi por isso que vc matou sua primeira filha?
- Mentira.
- Foi vc. Vc usou minha avó para matar a primogênita. Ela me contou. Vc poderia ter levado Cassie e o bebê ao hospital, mas deixou que a minha mãe levasse a culpa tentando fazer o parto dentro de nossa casa.
- Filha.
- Deixa ela, Dess. - Alerta Vincenzo ao seu lado. - É a hora da verdade.
- Por que lutou contra os homens que queriam me levar? Os capangas do juiz? Poderia ter se livrado de mim ali mesmo. São coisas que eu não entendi até agora, Liam.
- Cala a boca, vadia. - Antoine, com seu braço, contem a fúria de Leo e, resoluta prossegue. - Vc pagou pelo tratamento do meu pai. Vc tentou evitar que ele lutasse porque sabia que ele poderia morrer. Por que, se vc nos odeia? - Incomodado, ele ordena.
- Vamos embora, Cassie! - Cassie, embriagada de amor e completamente fora de si, cantarola uma canção de ninar enquanto embala Sean, satisfeito. - Cassie! Acorda! - Juntando-me a Antoine, questiono.
- Vc me confessou ter 'caído' por curiosidade. Por admirar a coragem de Vincenzo. Vc chantageou Celeste pra que ela levasse Eileen embora, deixando-me livre, de volta ao meu corpo. Vc trouxe de volta o nosso Enrico! Um arcanjo de volta à Terra pra impedir Celeste de cometer erros!
- Ele me fazia errar! - Revela Celeste, com pavor em seus olhos. - Ele me obrigou a empurrar Cassie da cadeira! Ele ordenava que me machucassem porque eu não queria mais fazer mal a vcs!
- Não faz sentido, Liam! Vc fingiu ser nosso amigo! Pra quê!? Por quê!?
- Eu me nego a prestar contas da minha vida a um bando de humanos covardes como vcs. - Olhando, exageradamente, ao meu redor, pergunto.
- Onde vc vê humanos normais aqui, Liam? Antoine? Vincenzo? Celeste? Enrico?
- Puta vadia. Me deixa partir.
- Vc é livre. - Zombo. - Por que não se move?
- Vc me prendeu, sua bruxa puta vadia.
- Seu repertório é extenso. - Zombo novamente. - Foi assim que conquistou sua 'Little Princess'?
- Puta. - Rosna Liam. - Vc me prendeu.
- Eu???
- Não foi ela. Fui eu. - Surpreendendo-nos a todos, Leo revela. - Bastou um fio de seu cabelo e a Magia se fez. Não é interessante o poder que um fio de cabelo pode ter?
- De onde surgiu esse 'merdinha'? - Avançando sobre Liam, ele lhe diz algo ao ouvido. Algo que o faz arregalar os olhos assustados.
- Já ouviu falar nele? Dizem que tenho o mesmo talento que ele. Tenho o dom de prever o futuro dos mortais. Ah! Mas vc é um anjo!
- Não é mais! - Vibra Antoine. - Desde que seu filho, segundo ele, medíocre, nasceu, ele é um simples mortal. Pode morrer a qualquer momento. Basta um estalar de dedos e...
- Pow! - Grita Leo estalando os dedos no ouvido de Liam. Aterrorizado, ele tenta recuar. Antoine e Leo riem de seu temor. - Se eu fosse vc, tomaria mais cuidados ao andar por aí ou ao dirigir. Tudo pode acontecer.
- Vão pro inferno! - Grita Liam.
- Não é a 'minha praia'. Mas, ouvi dizer, que tem gente lá te esperando.
- Cassie! Vamos embora! CASSIE! ACORDA!
- Ela fica. Vc vai. - Decido. - Quer apanhar mais do meu marido? Por que tá me olhando com essa cara? Vaza, cretino! Some da minha casa! Deixa a minha família em paz! - Um empurrão em seu peito e ele se livra do meu feitiço. Ou seria de Leo? Desde quando ele tem poderes? Recuando até a porta de saída, Liam me amaldiçoa.
- Vc ainda vai vagar pela Terra, sozinha. - Outro aperto no peito e, fingindo destemor, ironizo.
- E vc não vai estar aqui pra assistir. Que pena. - Da calçada, ele grita.
- Isso não fica assim! Quando eu voltar, não estarei sozinho!
- Vai lá, covarde! - Grita Celeste, num súbito arroubo de coragem. - Vá embora, seu crápula! Bandido! Espancador de mulheres! Cachorro!
- Celeste, querida, me dá meu filho! - Grito enquanto resgato Matteo, assustado, de seus braços. Enrico a impede de ir até a calçada enquanto ela continua a gritar e a despejar toda a raiva guardada por anos de servidão à 'Legião'. Tremo de nervoso com Matteo em meu colo. De volta à sala, amparada por Vincenzo, eu choro ao ver Cassie e Sean dormindo no sofá lateral. Em seu rosto, um sorriso de felicidade.
- Será que ela vai me perdoar?
- Se não perdoar, foda-se.
- Vincenzo!
- É isso mesmo, mãe. Vc precisa parar de tentar ajudar todo mundo. É hora de viver sua vida com o papai. De ser feliz com ele e com o maninho.
- E com vc?
- Comigo também. - Um abraço apertado e ela confessa. - Sem vc, eu não vivo.
- E sem mim? - Pergunta Enrico, encabulado.
- Vovô! Sem vc, a vida não tem graça! - Um beijo em sua testa e Antoine tenta acalmar Celeste que ainda xinga Liam. - Já deu, vovó. Já deu.
- É. - Ajeitando os cabelos, ela concorda, soltando o ar dos pulmões pela boca. - Já deu. Vou pegar umas cobertas pra Cassie e o Sean.
- Eu vou com vc! - Avisa Enrico. Lançando-nos um olhar preocupado, ele cochicha. - Vai que ela recomeça a surtar...
Rindo, Vincenzo toma Matteo do meu colo e o deixa correr até a brinquedoteca. Antoine e Leo parecem vigiar a casa, sentados na varanda. Vincenzo me arrasta da sala ao protestar.
- Dá pra seguir o conselho de sua filha e viver comigo? Pra mim?
- Vou pensar no seu caso. - Tentando sorrir, eu choro. - Tenho medo.
- Por que, Dess? - Indaga-me Vincenzo ao me abraçar. - Agora tá tudo tranquilo.
- Não, amor. Agora é que a batalha começa.
Pela manhã, notamos sua ausência. Mais uma fuga. Mais um bilhete. Um novo mergulho de Cassie no inferno. Ela escolheu estar ao lado de Liam mesmo que Sean esteja correndo risco de morte. Ela não pensou no filho, mas em si mesma. Isso cava um buraco fundo dentro de mim. Enquanto Antoine lê seu bilhete de despedida, vou permitindo que o gelo tome conta do meu coração doente. Vou tentando apagar as boas memórias que nos uniam. O amor que sinto por Sean. O desespero em imaginá-lo nas mãos sujas dos membros da 'Legião'. Ao final, Antoine me observa ao ler em voz alta.
- 'P.S.: Ainda te amo, tia'. Que bela maneira de demonstrar amor. - Considera Antoine, revoltada. - O que faremos agora, mãe!?
- Nada. - Respondo com um olhar distante. Surpresa, ela repete.
- Nada!? Sean vai morrer!
- 'Maktub'. - Sussurro sem derramar uma lágrima sequer. Não posso mais ajudar quem não quer ajuda. Não vou sofrer por eles e perder a minha saúde. - Está escrito, filha. Vamos deixar nas mãos do Criador. - Com a manta que cobriu meu pobre Sean nos braços, decido. - Vamos viver nossas vidas. Eles que vivam as deles.
- Concordo, Dess. - Diz Vincenzo com seu olhar compassivo. - Vamos viver o que nos falta, amor. - Revirando os olhos, ele declara, risonho. - O 'Seu Criador' que é 'O Meu Deus' vai cuidar de tudo. Acredite.
- Eu creio. - Afirmo sem convicção. Atrás de mim, Enrico comenta.
- Uma péssima escolha, mas, Cassie exerceu seu livre arbítrio. Fazer o quê?
- Tomar café. - Respondo enquanto sigo até a cozinha e sou seguida por todos. Olhando ao meu redor, percebo que estou cercada por muito amor. Não vou desperdiçar meu tempo e saúde com quem não me ama de verdade. Vincenzo, sentado na banqueta alta me aplaude. - Odeio essa falta de privacidade, marido.
- Eu sei, esposa. E o café? - Arremessando uma penca de bananas em seu peitoral, ordeno.
- Amasse-as! Agora! Seu filho tá com fome!
- Somos dois! - Vibra Antoine. Leo, ainda sonolento, ergue o braço ao informar.
- Somos três. - Ligando a cafeteira, resmungo.
- Imagino que vc esteja fraco hoje, Leo.
- Por que, tia?
- Não se lembra de ontem? Do fio de cabelo? Do muro invisível que vc criou?
- Eu??? - Rindo, ele comenta. - Não sei do que tá falando, tia. Eu me lembro da 'parada' do sal. Irado. Tá ligado? - Erguendo uma de minha sobrancelhas, eu o encaro e respondo.
- Tô ligada. Super ligada. - Antoine me envia uma piscadela e alerta.
- Creio que temos um outro anormal entre nós, mãe.
- Total. - Abrindo um sorriso triste, ainda pensando no destino de Cassie e Sean, replico. - Seja bem-vindo ao nosso mundo, Leo.
Antes de ouvir seu agradecimento, grito assim que o vejo de sunguinha nova correndo em minha direção.
- Meu bebê! - Ganho um abraço de Matteo que balbucia, feliz e animado.
- 'Meguio'!
- Isso, filho! Hoje é dia de mergulho! Natação, né!?
- Eu comprei essa sunga porque a dele já estava esgarçando, querida. - Explica Celeste, amedrontada. - Espero que vc não fique zangada.
- Ficou lindo! - Sem defesas, eu a abraço. Um recuo súbito e agradeço. - Fi fi ficou lindo.
- Dess?
- O quê!?
- As bananas já estão amassadas. Vc tá bem?
- Sim. - Respondo tentando esconder o que senti no abraço. Disposta a não acreditar em tudo o que vejo e sinto através de minhas mãos, proclamo. - Chega de brigas, separações, resgates imbecis! Chega! Vamos viver em paz o tempo que nos resta!
- Concordo. - Diz Antoine antes de abocanhar seu 'queijo quente'. De boca cheia, ela comenta. - Temos uma festa 'irada' pra comemorar nossa nova fase, mãe!
- Não entendi. Temos? Quem 'temos'? Que festa?
- Acordou a 'fera'. - Resmunga Vincenzo. - Eu avisei pra não falar sobre isso hoje.
- Vincenzo Rossi! Vc sabia!? Vcs estão compartilhando segredos de novo!?
- Não! Eu não fiz nada! - Defende-se ele, cobrindo a cabeça com os braços. Descarrego minha raiva e impotência nos tapas que dou em seus antebraços. - Isso dói, porra! Eu não sei de nada!
- Para, mãe. - Pede-me Antoine tocando em meu rosto. Já não preciso baixar a cabeça para falar com ela. Temos o mesmo tamanho. Isso é mais do estranho. É bizarro. - No que tá pensando, mãe? Eu não gosto quando me olha assim. Não sou uma aberração.
- Nunca. - Sussurro enquanto a abraço. Após anos, eu me dou conta de que jamais captei qualquer lembrança de minha filha. Nada sobre futuro, passado. Nada de importante. Nada que me faça crer que ela já viveu na Terra antes. - Vc nunca foi uma aberração. Vc sempre foi e será especial e vai viver comigo por muitos e muitos anos.
- Mãe...- Lastima ela.
- Dess. Tá na hora da natação. Acorda.
- Já estou acordada, Vincenzo! Não me chateia! - Dando-lhe as costas, eu os ouço cochichar.
- E a festa, pai?
- Depois, filha. Depois. - Carregando meu filho no colo, reclamo.
- Odeio quando me excluem de suas vidas.
- Dess!
- Me deixa em paz, porra! Eu tô atrasada!
Foi tudo muito rápido. Faltando poucos minutos para a aula de natação terminar, ouço o grito de uma das mães pedindo por socorro enquanto envio fotos de nosso filho, debaixo d'água, a Vincenzo. Mal consigo ler sua mensagem. Corro até a borda da piscina e enxergo os dois corpos voltando à superfície. Atordoada, puxo Matteo pelos braços, retirando-o da água aquecida. Ele sorri para mim enquanto o outro bebê chora após segundos de apreensão. O professor o ressuscita com manobras em sua boca e nariz. Agarro-me ao meu filho quando a mãe da outra criança vem em minha direção e, aos berros, acusa o meu filho de assassino.
Oi???
- Eu vi! Ele puxou as pernas do meu Fernando lá embaixo! Esse menino queria que ele se afogasse! - Assustado com a ira da mulher, Matteo chora enquanto cuspo no rosto da mãe desequilibrada. Prestes a largar meu filho no chão e avançar sobre ela como uma leoa faminta, sou detida pelo professor que nos afasta num grito.
- Senhoras! Chega! Isso acontece!
Tento acalmar Matteo enquanto tremo dos pé á cabeça. Enrolando-o em sua toalhinha com capuz, fujo da confusão causada pela mãe de Fernando e suas amigas. Odeio 'panelinhas'.
- Desocupadas. - Rosno ao passar entre elas e seguir até o carro estacionado em frente à escolinha de natação. Enquanto sou obrigada trocar a sunga nova e molhada de Matteo por seu roupão de banho seco, no banco traseiro do carro, ouço versões maliciosas sobre o que aconteceu. Prendendo-o à sua cadeirinha, enxugo suas lágrimas. Um beijo em seu rostinho e peço. - Espera a mamãe quietinho. Ok?
- Ok. - Concorda ele tomando seu suquinho de laranja pelo canudo da garrafa térmica com a estampa dos 'Minions'. - Mamãe 'dodói'?
- Só um pouquinho. - Rosno. - Mas já vou melhorar. Me espera. - Fechando a porta traseira, deixando a janela aberta, recuo sem tirar os olhos dele. De costas, esbarro em uma das mães que jura ter visto tudo.
- Esse menino é mau. Não é a primeira vez que ele causa confusão.
- Mentira, vagabunda. - Refuto-a, entredentes. - Eu sempre estive com ele desde o início das aulas e nada havia acontecido até hoje.
- Ele é um psicopata. - Afirma a mãe de Fernando com ele no colo. Lembrando-me de Sean, deixo duas lágrimas caírem de meus olhos. Eles estarão vivos? Sean continua a ser usado por Liam? Por que até hoje eu não toquei na porra daquele lenço? Sendo de Sean ou de Liam, deve ter algum tipo de informação. - ACORDA, VACA! EU VOU TE PROCESSAR!
- Repete! - Ordeno com os olhos semicerrados. Ela me obedece enquanto movo os dedos de minhas mãos, nervosamente. - Vc viu meu filho puxar o seu no fundo da piscina!? É isso!?
- Sim! Ele puxou e ainda riu!
- Cretina! Estúpida! Se o meu filho tivesse rido embaixo d'água, ele teria engolido água e, certamente, não estaria naquele carro, vivo, tomando o suco que eu mesma preparei pra ele! Ai! - Reviro os olhos, levando a mão à cabeça. Não vou brigar. Não vou. Não mesmo. Vincenzo vai me chamar de 'barraqueira' novamente. Já perdi as contas dos meus 'barracos'. - Eu odeio gente burra! Não vou perder meu tempo e força com vcs! Fui! - Dando-lhes as costas, ouço algo que me desequilibra por completo.
- Seu filho tem sangue ruim...
- Quem disse isso!? Quem disse isso!?
São minhas últimas palavras antes de avançar sobre a 'panelinha' e distribuir socos e chutes aleatoriamente. Ensandecida, sou guiada até o meu carro pelo professor que, antes de abrir porta do motorista, aconselha.
- Mantenha a calma, por favor. Leve seu filho pra casa. Volte na próxima semana. Até lá, todas terão esquecido esse evento desagradável e já estarão procurando por outro tumulto em suas redes sociais.
- Desculpa. - Peço, ao volante. - Eu não queria...
- Elas provocaram. Eu vi. - Um sorriso para Matteo e o professor comenta. - Ele é especial. Tome conta dele.
- Não entendi.
- Entendeu sim. - Um brilho fulgurante em seu olhar e eu me arrepio. Com o pé no acelerador, eu me afasto dele. Um olhar para o retrovisor interno e gargalho, histericamente enquanto tento arrumar meus cabelos desgrenhados. Coisa irritante de mulher que não sabe lutar é puxar os cabelos da adversária.
- Acabei com elas, filho! - Gabo-me ao vê-las sentadas na calçada. Desleixadas, despenteadas. Mais uma vez, eu não me contive. Parabéns. Já posso ouvir Vincenzo me pedir para ser menos impulsiva. - Saco!
- 'Chaco'. - Balbucia Matteo. Olhando-o pelo retrovisor interno, admiro seu sorriso. A admiração dá lugar ao medo assim que ele encara os 'Minions' na garrafa térmica e os repreende. - 'Neném mau. Ai ai ai! Fez dodói! Nã nã não podi! Miguinho cholô, mamãe!"
- Chorou...
Assombrada, volto meu olhar ao asfalto e me pergunto no que devo acreditar. Uma olhadela para o céu encoberto e imploro. - Curem meu filho.
- Foi vc quem me pediu pra vir, Dess! Tá louca!?
- Wow! Tá super irada, mãe! - Vibra Antoine assim que pisamos no salão decorado com fotos aleatórias de grandes ícones de todos os séculos. Todos modificados por 'Inteligência Artificial'. As luzes coloridas, a música eletrônica atrapalham minha concentração, embora a 'brisa' da 'Cannabis Sativa' me relaxe...um pouco. - Vc tá bem!? - Grita Antoine entre centenas de jovens tão coloridos quanto a decoração.
- Não! Esse lugar não é seguro pra vcs! - Alerto sem largar a mão de Vincenzo. - Aonde vão!?
- Deixa eles, Dess. - Sussurra Vincenzo ao meu ouvido. - Não tem nada de perigoso. Relaxa.
- Não me peça pra relaxar! A maioria aqui tá fumando maconha!
- Vc também fuma! - Grita ele, aos risos.
- Vincenzo! Não me confunda com essa gente! Eu fumo em casa! E muito raramente! E eu sou adulta!
- Tia! Vou dar um abraço no meu amigo e já volto! - Avisa-me Leo. - A 'vibe' não tá legal! Antoine não tá acostumada a isso!
- Tem razão! - Grito em resposta. Mais um ponto comigo, Leo. De mãos dadas a Antoine, ele a guia por lugares mais tranquilos. Sem desviar meus olhos dela, eu a admiro. Tão linda! Tão jovem! Tão cheia de vida! - NÃO É JUSTO!
- Mulher! O que houve!? - Sem poder ouvir meus pensamentos, sequer os dele por conta do volume exagerado do som, ele indaga, assustado. - Quer ir embora!?
- Sim!!! Mas não antes deles voltarem!!! Acho que vou atrás deles!!! O que acha da ideia???
- Péssima!!! Ridícula!!! Vc acha que eles vão fazer alguma coisa no banheiro dessa espelunca, Dess???
- Não...- Murcho. - Não quero que ela morra. - Confesso. - Não antes de ser feliz.
- NÃO ENTENDI!!!
- VAMOS DANÇAR!!! - Puxando-me para si, ele se nega.
- NÃO! NÃO É UM FLASHBACK!
- NÃO ME IMPORTA! O RITMO É FOFO! VEM!
Entre uma multidão de braços erguidos, copos cheios até as bordas e sorrisos forçados de corações doloridos, eu volto no tempo. Sentindo-me no 'California', tendo meu melhor amigo, Doc, como protetor, deixo meus braços caírem sobre os ombros de Vincenzo enquanto ele segura minha cintura com suas mãos firmes. Eu o guio, prestando atenção à letra da canção que excita a multidão dentro do minúsculo espaço da casa de festas.
- Por que tá chorando, amor? Tô dançando tão mal assim? - Um sorriso tímido me faz sorrir. - O que houve?
- A letra da música. É exatamente o que eu quero com vc. É exatamente o que somos, amor. 'Birds of feather flocks together'. Seus olhos continuam os mesmos desde que te vi pela primeira vez.
- vc não tem asas, Dess.
- Vc me empresta as suas, amor. - Murmuro em seu ouvido. Emocionado, ele me beija no rosto e dança comigo até o final da canção. No telão, acima do DJ, o vídeo da jovem cantora e a letra da música que me conquistou. Deixo a pista de dança segurando a mão do homem da minha vida. Meus lábios tremulam em pensar que posso perder minha filha e meu companheiro.
- Dess, não pensa bobagem. - Pede-me ele na calçada em frente ao salão. - Dess!?
- Onde estão Antoine e Leo!? - Pergunto enquanto os procuro, ao meu redor. - O que foi!?
- Se eu disser onde estão, vc vai se comportar!?
- Onde eles estão, Vincenzo!? - Ele aponta seu indicador em direção ao oceano. Sufoco um soluço ao reconhecer minha filha na areia da praia em frente ao salão de onde saímos. Irradiando luz, ela abraça Leo após seu primeiro beijo de amor. Sob a chuva fina, minha primeira reação é a de correr até ela e impedir...
- Que ela seja feliz por pouco tempo, Dess? - Chorando, sussurro contra seu peito. - Eles não deveriam ter se beijado, amor. Não. Agora, eles estarão ligados pra sempre. Ela vai sofrer, Vincenzo. - Beijando minha cabeça, ele refuta.
- Não, Dess. Quem vai sofrer é ele. - Eu o abraço com força, sentindo meu coração bater com força. Muita força. - Dess, fica comigo. Foca em mim. Em nosso amor.
- Por que tá falando assim? - Porque eu não sei até quando vou poder ficar contigo.
- Não fala nada...- Imploro.
- Eu preciso, Dess.
- Agora não. - Beijo sua boca. Sob a lua que surge dentre as nuvens pesadas, prometo. - Aonde vc for, eu irei te buscar. Onde quer que esteja, eu vou te encontrar.
- Dess. Tenho medo.
- Eu também.
- Te amo.
- Pra sempre?
- Pra sempre.
Nenhum comentário:
Postar um comentário