- E, o que eu faço agora, mãe?
- Nada. - Respondo deitada ao seu lado, em sua cama. Debaixo das cobertas, fixamos nossos olhos no teto de seu quarto enquanto ela confessa estar confusa após o beijo de Leo. - 'Deixa rolar', como diria seu pai. Ele disse alguma coisa? - Pergunto entre curiosa, enciumada e desesperada. Não posso perder minha menina, mas já perdi. - Ele te pediu em namoro? - Gargalhando, ela cobre seu rosto com as mãos e admite.
- Sim. Não é fofo? O que eu faço, mãe? - Nada! Fuja! Diga não! Vc é tão nova! - Mãe? - Voltando meus olhos a ela, afofo meu travesseiro e, expirando, respondo com outra pergunta.
- O que sente por ele, de verdade?
- Não sei. Nunca senti isso por vc ou por papai ou pelo vovô ou pelo maninho. Eu amo vcs e só conheço o amor que tenho por vcs.
- Faz sentido. - Rejeitando a teoria de que Antoine seja um querubim, conquanto todos os sinais me digam que ela é, prossigo. - Vc só viveu com a gente, filha. Não tem experiência com esse tipo de relacionamento. No máximo, vc teve dois ou três amiguinhas no colégio. O nosso querido Thor e nada mais. Normal que esteja confusa. O que sente quando ele está por perto?
- Medo de que ele se afaste.
- Continua.
- Medo de que ele suma da minha vida por me achar esquisita. Vontade de ser abraçada por ele porque, com ele, eu me sinto segura.
- E isso vc nunca sentiu quando estava comigo? Quando éramos somente nós duas?
- Sentia, mãe. - Responde-me ela, enlaçando-me pela cintura. Sua cabeça pousa entre meus seios quando ela me explica. - Eu sempre soube que vc estaria comigo. Onde quer que eu fosse porque vc é minha mãe e me ama. Com o Leo é diferente. Não é um amor eterno como o de mãe. É um sentimento que não é meu. Eu nem sei se existe. É algo que eu quero pra mim, mas que eu posso perder antes de ter conseguido.
- Tá complicado. - Brinco. - Fiquei tonta, filha. É seu, mas não é. Vc quer, mas tem medo.
- Não brinca, mãe. - Choraminga ela. - É sério.
- Eu sei, filha. É por isso que estou brincando. - Um beijo em sua bochecha e, contrariada, declaro. - Bem-vinda ao mundo dos adultos. Um mundo difícil de se viver, mas, eu ainda tô aqui e, mesmo achando tudo muito novo, eu sempre estarei ao seu lado.
- Não precisa ficar com medo, mãe. Eu não tenho nenhum tipo de desejo como o seu por meu pai.
- Eu nem pensei nisso. - Minto. - Do que tá falando?
- Que eu não penso em ter mais do que um beijo do Leo.
- Uma coisa leva a outra, filha. É por isso que me preocupo. Vc ainda é muito nova...
- Mãe, eu não vim à Terra para ser fecundada. Sequer ser tocada de maneira impura e Leo sabe disso.
- Sabe!? E Aceita!? - Erguendo meu tronco, eu a encaro. A luz da lua invade o quarto pela janela aberta. - Vcs já conversaram sobre isso!? Essa coisa de...!?
- Mãe, relaxa. Leo e eu nos beijamos porque queríamos ter essa experiência. Ele sabe que eu não vou além. E ele não deseja ir também. Assim como eu, ele é diferente. Nós só queremos ficar juntos enquanto nos restar tempo. - De volta ao travesseiro, fixo meus olhos no teto e, tentando entender o que acabo de ouvir, retruco.
- Então, vcs dois não serão namorados!? Vcs não sentem vontade de nada mais!? Nada além do beijo!?
- Nada além de amor, mãe. O que sinto por ele é muito maior e melhor do que qualquer coisa física. Ele quer ficar ao meu lado até...- Uma pausa e ela se cala.
- Até quando, filha!?
- Até quando 'Meu Pai' me chamar.
- O que Vincenzo tem a ver com essa história, Antoine!?
- Não esse pai, mãe. É o 'Outro'. Todos temos nosso tempo na Terra. O meu..
- Antoine! Eu não quero falar nisso! - Esclareço, inquieta na cama. - Podemos voltar ao assunto do beijo!? - Sorrindo, ela comenta.
- Vc é engraçada, mamãe. Tem medo de coisas bobas.
- Antoine! - Desconverso. - O que vcs dois pretendem fazer daqui por diante!?
- Viver, ué. Viver e lutar. Vamos lutar juntos na 'Grande Batalha'.
- Ai Jesus! Isso de novo!?
- Calma, mãe. Ele disse que ninguém vai tocar em mim. Ninguém vai me machucar enquanto ele viver.
- Que lindo...- Suspiro. - Ele disse que te ama, filha?
- Não precisa, mãe. Eu o amo por nós dois. - Arquejo, levando a mão ao coração. - Não sofre, mãe. Estou feliz. Ele também. Ele é especial. Tem poderes que eu ainda desconheço. Ele é forte e é meu melhor e único amigo. Eu jamais vou me esquecer do tempo em que fui feliz aqui na...- Com minha mão, tapo sua boca e imploro, contendo meu choro.
- Chega desse papo de despedidas. Ok? Vc ainda vai viver muito com o Leo ou sem ele! - Emocionada, minto. - Ele pode ser seu príncipe no baile de seus quinze anos! Sem aquele terno vermelho ao estilo 'Astaroth'! Lógico! - Ela ri enquanto seco minhas lágrimas. Pensei que conversaria com uma adolescente assanhada, ávida em desfrutar dos prazeres mundanos e encontro uma jovem contida, consciente do que quer e daquilo que a espera. - Não quero que sofra, filha.
- Isso é inevitável, mãe. Estou nesse planeta. Eles me alertaram que não seria fácil. - Amedrontada, pergunto.
- Eles quem, filha?
- Meus Superiores...
Arrepio-me. Abraçando-a com força, aspiro o cheiro de lavanda em seus cabelos e, num arroubo de coragem, sussurro.
- Quem te deixou naquela praça no dia em que te vi pela primeira vez? - Antes de ouvir sua resposta, Matteo invade seu quarto vestido com seu pijaminha dos 'Minions'. Atrás dele, Vincenzo com seu olhar desconfiado. Matteo escala a cama de Antoine e se joga sobre a irmã. Aos risos, ela o abraça e lhe faz cócegas. As gargalhadas de Matteo aliviam minha tensão. Vincenzo se senta na ponta da cama ao perguntar.
- Tudo bem com vcs?
- E por que não estaria!? Achou que eu daria um escândalo ao ver minha filha beijar um menino pela primeira vez!?
- Eu só perguntei se estão bem, Dess. Não quero briga.
- Nem eu...- Beijando a testa de Antoine, eu a deixo em sua cama e, andando até a porta, ouço sua voz suave agradecer. - Pelo quê?
- Vc me ouviu, mãe. Vc não me julgou, nem me condenou. Eu sempre soube que seria vc, mãe. Eu acertei ao te escolher. - Escondendo meu rosto, entre soluços, aviso.
- Tá na hora de dormir, filha. Vincenzo, trás o nosso filho. - Antes de alcançar o corredor, eu me despeço. - Durma com os anjos e sonhe com o Leo.
Abro os olhos. Reconheço a canção. A mesma que dancei, na audição, antes de ser aceita como professora na 'Just Dance'. Deixo-me levar por ela enquanto me aprecio no longo e retangular espelho na parede. Um salto e estaco, diante dele. Seu sorriso tímido cisma em permanecer em seu rosto, embora ele tente escondê-lo.
Sempre achei isso muito fofo nele...
- Vc não deveria estar livre.
- Saudades de vc também, baby.
- Vc fugiu do céu!? - Recuo enquanto ele se aproxima. Rindo de mim, ele refuta.
- Eu nunca estive no céu, baby. De onde tirou isso?
- No inferno!? - Indago entre curiosa e assustada. Posso sentir daqui seu cheiro másculo de sândalo. Não gosto disso. - De onde veio!? Por quê!? Por que estou aqui!? Eu estava dormindo em minha cama...- De súbito, ergo meu braço direito e o impeço de tocar em meu rosto. - De onde veio!? - Rosno. Contrariado, ele responde.
- Nem do céu, nem do inferno. De um lugar onde seres repulsivos como eu tentam aprender coisas boas. Ainda tem nojo de mim?
- Não. Desculpa. Eu nunca soube lidar com vc.
- Tem medo?
- Sim. Um pouco. - Confesso sentindo o toque suave de mão em meu rosto. - Fica longe.
- Ok, baby. - Um passo atrás e ele volta a sorrir timidamente. - Não vim pra te deixar com medo.
- E por que veio? Pra quê? Onde estou? - Olho ao redor. O longo espelho desaparece entre uma espessa fumaça branca. Amedrontada, grito por Vincenzo. Surgindo diante de mim, ele me parece entusiasmado ao revelar.
- Estou em treinamento.
- Pra quê!?
- Pra proteger!
- Quem!?
- Adivinha!
- Aiden! Não tem graça! Vc não deveria chegar perto de mim! Não depois de tudo!
- Não sou eu quem faz as regras, baby. São eles.
- Eles quem!?
- 'Os Superiores'. - Responde-me ele com simplicidade. - Posso dançar com vc?
- Não! Não me toca! Sou fiel a Vincenzo! Que merda! Todos têm 'Superiores'!? Antoine tem! Vc tem! Exceto eu! - Uma gargalhada espontânea e ele comenta.
- Certamente os superiores de Antoine são superiores aos meus. - Dança comigo?
- Eu já te disse que fiel a Vincenzo!
- Não quero trepar com vc, baby. É só uma volta no salão.
- Que merda de salão é esse!? - Deixo-me conduzir por suas mãos. Uma em minha cintura. A outra, segura a minha mão acima de nossas cabeças. Voltando a bailar com ele, insisto. - Que lugar é esse!? De onde vem a música!? - Recostando seu rosto ao meu, ele esclarece num tom de voz suave.
- Estamos em um plano um pouco acima da Terra. Estou aqui em missão de paz. Não ria. Eu também jamais imaginei que diria isso, mas é verdade. Ele Me perdoou. Mesmo depois de tudo, Ele Me perdoou.
- Ele quem?
- O 'Seu Criador'. O 'Deus' de Vincenzo.
- Mentira. - Rosno. - Vc errou muito. - Fazendo-me girar numa pirueta, ele se defende.
- Eu não minto. Não posso mais. - Num recuo, ele faz a música cessar e solta a minha mão. Um olhar triste e ele prossegue. - Estou tentando mudar, baby. Por vc. Por vc, eu estou evoluindo. Estou me redimindo do passado. Vc me perdoou e me libertou daquele inferno. Agora, já não quero mais errar. Eles reconhecem isso em mim. Vc não. Isso é triste, baby. Muito. Mas não importa. Estou aqui pra que vc saiba que não vai estar sozinha durante a 'Grande Batalha'. - Reviro os olhos e resmungo.
- Isso de novo!? Essa palhaçada de 'Grande Batalha'!? Foi Antoine quem inventou esse título! Ela estava brincando!
- Não, baby. Não estava. - Lamenta ele, acariciando meu rosto com o dorso de sua mão. - Infelizmente, vai acontecer. Não sei quando, mas vai acontecer e, quando o momento chegar, eu estarei contigo. Meu exército e eu estaremos contigo.
- Seu exército!? - Zombo. - Isso é patético!
- Vc tem medo. Sinto daqui.
- Minha família vai estar comigo. Não preciso de sua ajuda. Eu te agradeço, mas não preciso.
- Vai precisar, Adessa.
- Não me olhe assim. Não preciso de sua piedade.
- Não tenho pena de vc. Tenho amor. Meu amor é eterno, baby. - Recuando, evitando seu toque, refuto, assustada.
- Vincenzo e Antoine estarão comigo! - Movendo a cabeça lentamente, ele me contraria.
- Não. Não estarão.
- Não diga mais nada! - Grito, de olhos fechados. - Não quero ouvir! Vc mente! Sempre mentiu!
- Não estou mentindo, baby!
- Não quero lutar! Quero ficar em paz com a minha família!
- Eu não posso mudar seu destino! Se pudesse, eu o faria!
- Aonde vai!?
- Cuida do teu filho. Ele ainda tem cura.
- Não se atreva a falar do meu filho! - Dois passos adiante e imploro. - Volta! - Parecendo sofrer, ele se afasta enquanto a fumaça densa o encobre por completo. Em pânico, ouço sua voz antes de cair, de volta ao corpo.
- Somos os 'Guardiões', baby. Não se esqueça desse nome. Estaremos por perto.
- 'Guardiões'!?
- Um pesadelo, Dess?
- Sim. - Agarro-me a Vincenzo deitado ao meu lado e, sentindo o medo tomar conta de mim, imploro. - Não me deixa, amor. Não me deixa.
- Não vou.
Mente ele.
- Então, vc se achou no direito de se encontrar com seu antigo marido!?
- Eu não me encontrei com o Aiden. Foi um sonho.
- Um sonho!? Pensei que tivesse sido um pesadelo!
- Vincenzo, não se altere! Estou conversando com vc! Não vim pra brigar!
- Então por que está gritando!?
- Eu não estou!
- Tá sim!
- Eu não estava! Como vc quer que eu me controle se vc é o primeiro a perder o equilíbrio!?
- Se vcs quiserem que o pessoal da calçada ouça essa briga, vão precisar gritar um pouquinho mais alto. - Desconcertado, Vincenzo desce do tatame e pede desculpas a João. - Bobagem. Que casal não briga?
- Aposto que vc não trata sua esposa assim, João. - Retruco, saltando do ringue. Erguendo-me do chão, abraço João e, curiosa, indago. - Como estão as crianças? Minha afilhada tá bem? Qual será o nome do seu segundo filho?
- Filho!? Como sabe!? - Revirando os olhos, Vincenzo, resmunga.
- Ela tem um dom. É sempre a mesma coisa.
- Não seja grosseiro, Vincenzo. Ninguém precisa saber que vc deixou de me amar. - Magoada, caminho até a recepção. João me segue. Tentando sorrir, paro e respondo à sua pergunta. - Não é um dom, João. É meio que uma maldição. Eu toco em algo ou alguém e sinto o que eles sentem. Mais ou menos isso. Eu vi seu filhinho na barriga de sua esposa. Ele tá bem. Fica tranquilo. - Inquieto, ele replica.
- Mas ela não está. Tem sentido muita dor. O bebê chuta muito. A noite toda. Isso é normal? Ela tá com medo de que ele morra. Ela come muito e, depois, vomita tudo de propósito. Eu disse a ela que era perigoso. Já a levei a vários médicos e nada. Ninguém consegue fazer Amanda parar com isso.
- Calma, João. - Um outro abraço forte e recuo assustada. - Vai dar tudo certo. - Minto. - Por que tá me olhando assim?
- Vc viu alguma coisa?
- Não. - Minto outra vez. - Não é assim que acontece. Vc quer me pedir alguma coisa?
- Sim. - Diz ele sem rodeios. - Eu te vi, naquele dia da fumaça no escritório. Vi os símbolos. Vc poderia fazer a mesma coisa lá em casa? Não sou de ter medo à toa, mas, por ela e por nossa filha, eu...
- Fica tranquilo, João. Nós iremos. - Indignada, olho para trás e esclareço.
- Vincenzo, ele pediu pra mim. Eu vou.
- Nós iremos...juntos. - Seu sorriso cafajeste está de volta. É um dos meus preferidos. - Eu sei. - Impedindo-me de expor seu incômodo dom, Vincenzo me puxa para si e finaliza o assunto. - Nós iremos, irmão.
- Obrigado. - Um forte abraço em Vincenzo e ele volta ao ringue. Irritada, cochicho.
- Vc contou a ele o meu dom. Por que não confessou o seu? Covarde.
- Porque ele é meu amigo. Não quero que saiba que ouço seus pensamentos. Porra. - Pressionada contra a parede por seu tórax, refuto.
- Eu também não quero que ouça os meus. - Seus lábios tocam os meus quando ele me pergunta.
- Por que estamos brigando? Isso não faz sentido. Sabe há quanto tempo a gente não transa? - Prestes a beijar sua boca, Leo nos cumprimenta. É sério??? É assim que vc quer meu consentimento para namorar minha filha??? Merda!!! - Depois a gente continua essa conversa, Dess.
- Desculpa. Eu não queria atrapalhar.
- Não atrapalhou em nada, Leo. - Minto. - Por que sumiu lá de casa? Tem alguém sentindo sua falta.
- Dess, deixa o garoto. Ele tá envergonhado. - De cabeça baixa, Leo ruboriza. Um beijo em sua cabeça e, antes de deixá-lo, recomendo.
- Não desaparece. Antoine gosta muito de vc, Leo.
- Eu também. - Confessa ele, acanhado. - Posso ir lá hoje, tia?
- Claro. - Sorrio com medo de tocar em sua mão e ver algo que me entristeça. Algo que, talvez, ele conheça. Quais são os seus poderes? De onde eles vêm? - Vá com Vincenzo, Leo. Preciso falar com Aninha. Ok?
- 'Tô ligado', tia. - Afastando-se de mim, ele me acena, mais confiante. - Te vejo daqui a pouco! - Retiro o sorriso do rosto assim que encaro Vincenzo. - Por que tá me olhando assim? Nunca me viu antes?
- Leo tem poderes!? Quem te disse isso!?
- Não te interessa.
- O que rolou no sonho?
- Puta que pariu! Isso de novo!? 'Me erra'! - Recuo enquanto ele caminha em minha direção. Dou-lhe as costas e sorrio ao ouvir seus protestos. - Eu não tenho que falar nada! Solta meu braço!
- O que fizeram no sonho!?
- Dançamos, porra! Só isso! Dançamos! E ele falou algo sobre...- Confusa, olho para o teto e exulto ao ouvir Vincenzo repetir o que Aiden havia dito no sonho.
- 'Guardiões'.
- Exato! Como sabe!?
- Vc acordou hoje falando esse nome. - Puxando-me pelo braço, ele sussurra. - Sabe o que significa, né?
- Não. Dá pra soltar meu braço? - Rosno. - Preciso...
- Eles habitam o submundo. Estão bem próximos aos humanos e seus desejos impuros.
- Não. Aiden disse que mudou. Ele me jurou que trabalha para o Bem.
- E vc acreditou!? - Uma gargalhada histérica e percebo seus ciúmes. - Não tenho! Não mesmo! Ele era a porra de um demônio, Dess!
- E vc já foi um anjo. Caiu e perdeu seus poderes e sua imortalidade. Logo, 'segura a tua onda'! Estamos todos no mesmo barco!
- Vc ainda o deseja!?
- Idiota! Eu tô falando de ajuda! Não de sexo!
- Eles são a escória.
- Não entendi.
- Adessa! Vc queria falar comigo!?
- Sim! Só um minuto! - Peço a Aninha em frente à recepção. Voltando-me para Vincenzo, ordeno. - Fala! O que é um 'guardião'!?
- Depois...- Diz ele em meu ouvido. - Em casa, eu falo. Por enquanto, fica longe desse guardião babaca. - Recuando, ele me sorri e comenta ao consultar seu celular. - Trezentos e trinta e seis, idiota! - Mordendo meu lábio inferior diante de seu sorriso, pergunto.
- O que é isso, panaca!?
- Duas semanas. - Responde-me Aninha, intrigada. - O que tem duas semanas? - Pergunta-me ela enquanto ele gargalha e sobe no ringue. Por que sinto que ele está com medo? - Adessa! Por que estão contando as semanas!? Vc tá grávida!?
- Não. Mas, vc está. Por que não me contou antes? - Debruço-me sobre a bancada em mármore e a encaro. - Ai! Por favor, não me pergunte como eu sei!
- Como sabe!? Não contei a ninguém!
- Tá escrito em sua testa, Aninha. - Minto pela enésima vez. Ela está magra, pálida, triste. - Quando iria me contar? Por que tá chorando, amiga?
- Eu tô grávida, Adessa! Vc não entendeu!? - Movo a cabeça, pisco meus olhos e, confusa, respondo. - Acho que sim. Um bebê tá chegando. Um bebezinho com os olhos da cor dos seus. - Sorrio. - Não está feliz?
- Não, Adessa. - Lamenta ela. - Como vou explicar isso à minha namorada?
- Putz. Vcs duas não combinaram?
- Não. Foi um acidente.
- Aaah...tá. - Sei. Vc abriu as pernas e caiu sobre o pau do pai dessa criança e, acidentalmente, ele gozou em vc? - Entendi. Como assim?
- Eu estava bêbada, triste. Tivemos uma briga feia. Ela saiu de casa. Eu fui a uma festa, bebi muito e...
- Já conheço o final dessa história. Para por aí. - Com padecida por sua tristeza profunda, pergunto ao tocar suas mãos com as minhas. - O que eu posso fazer pra te ajudar, querida? - Um susto e erguendo meu tronco, de súbito, protesto. - Não! Isso nunca!
Pensando em como evitar a morte injusta do filho de Aninha, procuro pelo lenço que roubei de Liam. Decidida a obter mais informações sobre a 'Legião', eu o deixo sobre a cômoda assim que ouço a voz de Leo vinda da sala de estar. Do corredor, chego a ver a euforia de Antoine ao saltar sobre ele e abraçá-lo. Ele corresponde ao seu abraço, de olhos fechados. Ao abri-los, ele enrubesce diante de Enrico e Celeste que, entusiasmada, bate palmas. Há algo em Celeste que ainda preciso descobrir. Aquele desejo impuro por Vincenzo sumira como num passe de mágica assim que ela se redimiu e escapou da 'Legião'? Por que eu a vi conversando com Liam quando eu a abracei? Ela não seria capaz de nos trair. Não depois de ter nos reconquistado. Não.
- Não pode.
- Por que, mãe!?
- O quê!?
- Ela não ouviu, filha. Estava pensando em arrumar mais problemas. - Lançando meu olhar de reprovação a Vincenzo, protesto.
- Para de ler meus pensamentos e cuide de sua vida. Por que não me deixa em paz?
- Porque eu não consigo.
- Tenta. - Rosno ao passar por ele e abraçar Leo. - Que bom que veio.
- Por que não deixa ele dormir aqui, mãe? A gente não vai fazer nada de errado.
- Mas eu não disse nada!
- Nem ouviu também! Sua filha te pediu pra ele dormir aqui por duas vezes e vc pensando em assuntos que já foram esclarecidos!
- Não foram!
- Ele pode!?
- O quê!?
- Dormir aqui, mãe!
- Não precisa gritar!
- Mas vc não me ouve!
- Vai com calma, Antoine. - Repreende-a Leo com ternura. - Sua mãe já ouviu. Se não der, tudo bem.
- Não tá! Vc não pode sair com essa chuva toda! O mundo tá desabando lá fora!
- Ele acabou de chegar!
- Mas vai sair, mãe!
- Ele pode dormir aqui, Antoine! Eu não te ouvi da primeira vez!
- Nem da segunda. Nem da terceira. - Provoca-me Vincenzo. - Se ela parasse de pensar em bobagens...
- No dia em que vc parar de ouvir o que penso, eu paro de pensar. Ok?
- Não discutam por bobagens. - Pede-me Enrico. - Isso leva ao distanciamento e dá brechas ao inimigo.
- Concordo. - Fixando meus olhos nos de Vincenzo, prossigo. - Eu não quero brigar, Enrico. Seu filho tem me provocado à toa. Ele deve gostar de me ver magoada.
- Não fique assim...- Lamenta Enrico ao me abraçar. - Ele te ama. Não faz de propósito. - Há tanta bondade em seus olhos que me emociono e, meio que perdida, choro. Em seu ouvido, sussurro.
- O inimigo tá mais perto do que imaginamos, Enrico.
- Dess, para. Agora não. - Recuando, olho incisivamente para Celeste e me calo. - Aonde vai?
- Ficar longe de vc. - Dando-lhe as costas, aviso. - Não me siga!
- Dess!
- Leo! - Do corredor, grito. - Fique à vontade!
- Não vai lanchar com a gente, mãe!? - Antes de entrar em meu quarto e fechar a porta, respondo, ressentida.
- Daqui a pouco, filha. Agora, preciso de paz.
Sentada no tapete, de pernas cruzadas, fecho os olhos. Demoro a perceber algo. Aos poucos, as imagens vão surgindo, desconexas. Dentro da ampla sala de estar, eu me reconheço diante do espelho. Atrás de mim, o reflexo de Liam parece não me enxergar enquanto cobre a cabeça com o capuz vermelho e ajeita o manto da mesma cor. Há um brilho sombrio em seus olhos. Escondo-me num dos cantos da sala onde, há meses, bebemos e conversamos, juntos e felizes, em frente à lareira. Cuidadosamente, eu me aproximo do círculo formado por homens e mulheres cobertos pelo mesmo manto. Eles não me veem. Estou dentro de minhas visões...
Novamente.
À minha frente, deitada em uma mesa em madeira, gigantesca e circular, reconheço Cassie, fora de si. Chamando por Liam, ela geme de prazer assim que ele a penetra. Olho para Liam, eu me assusto com a cor amarelada de seus olhos lascivos. Grito por Cassie, mas ela não me escuta. Estou no passado. Não há como despertá-la de seu torpor. Impotente, eu assisto o ser demoníaco dominar o corpo de Liam e fecundar Cassie enquanto o reverenciam. Abruptamente, sou lançada a um passado mais recente onde Cassie, grávida, reclama de dores no ventre. Liam a abraça e diz ser normal sentir dores durante a gravidez. Cassie desmaia de dor ao dar à luz. Ao seu redor, a equipe médica sorri, satisfeita diante de Sean, chorando, de cabeça para baixo, ainda ligado a Cassie pelo cordão umbilical. Tento escutar o que cochicham entre si. Um passo atrás e me apavoro.
'Enfim, ele chegou', celebra o médico obstetra, em êxtase, junto ao anestesista. Um outro salto no Tempo e encontro Liam, no quarto de Sean. Sean chora em seu berço enquanto Liam, ensandecido, injeta uma seringa fina no corpo franzino do filho. Horrorizada, sou surpreendida pela presença do mesmo ser demoníaco que vira no ritual. Enfurecido, ele avança sobre Liam e o ergue do chão com garras em seu pescoço.
'Não ouse tocar em meu filho', rosna a voz gutural antes de arremessar Liam à distância. Desorientado, Liam se ergue e, prestando reverência à entidade, ele se desculpa. Confusa, volto ao presente. A imagem de Celeste entre os membros do manto vermelho se fixa em minha mente. Assusto-me ao ouvir Vincenzo esmurrar a porta de nosso quarto e ordenar que eu a abra.
- Por que ainda se desgasta com essa merda, Dess??? Quer morrer mais cedo??? Isso te suga as energias!!!
- Não grita. - Imploro levando as mãos à cabeça dolorida enquanto abro a porta. - Não sei o que pensar.
- Não há o que pensar, Dess. - Diz ele assim que me abraça e beija o topo de minha cabeça. - Se esqueça disso, por favor. Vamos lanchar com as crianças.
- Eu vou...- Com a mente conturbada, eu o sigo. Sua mão se prende à minha com força e vigor. Quase ouço seu pensamento. Seu clamor. - Vincenzo!?
- Dess, pelo amor de Deus, para de pensar nisso. Para de imaginar teorias de conspiração. Tenta viver nossas vidas. Eu te imploro.
- Do que tem medo!? - Indago antes de chegar à cozinha e fritar os ovos do 'egg burguer' de Leo e de Antoine. - Eu não entendo! Preciso te contar o que vi!
- Não conte, amor. Vamos viver nossas vidas. - De joelhos, ele suplica. - Esqueça o que viu ou pensa ter visto. Nada é mais forte e poderoso do que o nosso amor. Não remexa o passado. Eu quero...eu preciso de sua ajuda pra continuar aqui.
- E o que vc tem a ver com o que acabo ver? - Um olhar sombrio e ele declara ao montar os sanduíches.
- Não quero falar sobre isso, Dess. Chega. Por nosso amor, chega.
- Faça o que ele pediu, mãe. Ele precisa ficar entre nós. - Levando os 'eggburgers' para a bancada, Antoine beija Leo na bochecha e conclui. - Deixe o passado no passado, mãe.
- Vcs sabem de algo que eu não sei! - Exalto-me após retirar o avental e arremessá-lo contra Vincenzo. - Vai me contar ou não!?
- Vamos comer em paz. - Pede Celeste num murmúrio. De cabeça baixa, ela se cala, ao lado de Enrico, com Matteo em seu colo. Sentindo-me deslocada dentro de minha própria casa, impulsiva, reajo quando deveria me calar. - Eu vi vc, Celeste! - Acuso debruçando-me sobre a bancada, diante dela. - Vc estava no ritual onde fecundaram Cassie! Sean não é filho de Liam! Havia algo maligno ocupando seu corpo naquele momento! Vc viu! Vc sabe de coisas e as esconde de nós! Por quê!?
- Dess...
- Me solta, Vincenzo! Eu preciso saber! Ela mora em nossa casa! Nós a acolhemos com amor mesmo depois de tudo! Eu ainda não confio em vc, Celeste! - Lágrimas escorrem de seu rosto. Solidário, Enrico a abraça. Constrangido, Leo morde seu sanduíche. Antoine move a cabeça, contrariada. Vincenzo, de braços cruzados, me encara. Contrariando minha intuição, prossigo. - Por que se encontrou com Liam!? Ele é nosso inimigo! Que tipo de sentimento sujo vc tem pelo meu marido!?
- Basta. - Diz ela, olhando-me nos olhos. - Isso nunca. Eu nunca senti nada além de amor de mãe por Vincenzo. Não me acuse disso.
- Eu senti seus ciúmes no dia do parque quando nós duas brigamos! Eu nunca mais me esqueci!
- Dess, vc tá passando dos limites.
- E vc, Vincenzo, parece estar ao lado dela! Contra mim!
- Eu estava no ritual. - Confessa Celeste, abatida. - Eu não me orgulho disso. - Atônitos, nós a escutamos. - Eu sempre soube que Sean não era filho de Liam. Não tem seu sangue. Em suas veias corre sangue da besta. Eles desejam poder. Mais poder do que o de Lúcifer. Eu precisava estar entre eles. Precisava conhecer seus segredos. Precisava proteger o meu neto.
- Não fale mais nada, amor. - Suplica Enrico.
- Eu preciso. Eu vi tudo. Eu sei o que eles desejam agora. Custei a entender e, quando vi tudo com clareza, eu quis fugir e proteger meu neto. - Matteo parecendo entender toda a conversa, balbucia um 'bobó'. Sorrindo, ela enxuga suas lágrimas e o beija na testinha. - Não posso deixar que façam mal ao meu neto. Não posso deixar que façam com ele o que fizeram ao pobre Sean.
- Do que tá falando!? - Avanço sobre ela. Vincenzo me impede de alcançá-la segurando-me pela cintura. Imóvel, em sua cadeira, ela ergue a cabeça, corrigindo sua postura. Com tristeza em seu semblante, ela me causa pavor ao revelar. - Eles querem o sangue de Matteo. Acreditam que se juntarem o sangue de Sean ao de Matteo, criarão algo invencível. Um ser vivo ou algum vírus letal. Não sei...- Recuo, entre apavorada e perplexa. - Eu me encontrei com Liam a fim de negociar minha rendição em troca da vida de Matteo. Mas, fiz bobagem. Ele riu de mim e me chamou de 'medíocre'. Foi isso o que viu, filha. Só isso. - Devastada, solto o ar dos pulmões pela boca e recosto minha cabeça no mármore frio da bancada.
- Satisfeita? - Pergunta-me Vincenzo num tom sarcástico. - Estragou a noite. - Uma dor fortíssima no coração e me calo. Não vou chorar. Não na frente dele.
- Perdão pelo que disse naquela noite. - Celeste toca em minha cabeça e, com sua voz doce, conclui. - Sei que não gosta de mim. Já fiz coisas ruins, mas, agora, eu quero ser melhor. - De súbito, beijo o dorso de sua mão e lhe peço perdão.
- Eu devo estar enlouquecendo. Obrigada por cuidar de meus filhos.
- Nossos. - Corrige-me Vincenzo sentando-se ao meu lado. Ressentida, evito seu olhar. - Não adianta me evitar. Dormiremos na mesma cama.
- Não mesmo. - Rosno. Leo gargalha. Antoine, de boca cheia, o imita. Matteo volta a me perguntar.
- Mamãe 'dodói'?
- Não, filho. - Erguendo-me da cadeira, dou a volta na ilha e o retiro do colo de Enrico. Um abraço forte e penso que Matteo é o único a me amar de verdade. Do jeito que sou.
- Tá errada. De novo.
- Vá à merda.
- Precisamos de paz, filha. - Diz Enrico num tom de lamento. - Não estamos sozinhos.
- Como assim!?
- Eles estão lá fora, mãe. Por isso, pedi pra que o Leo dormisse aqui.
- Eles quem!?
- A 'Legião', Dess. - Esclarece Vincenzo, amargurado. - A 'Legião'. E tudo o que eles desejam é uma brecha para entrarem aqui e levarem consigo o que mais anseiam. - O medo me impede de perguntar o que eles desejam. - Não adianta ter medo, Dess. Eles são muitos e fortes. Quando quiserem, eles invadirão nossa casa.
- NUNCA! - Num arroubo de fúria, mágoa, remorso e rancor, devolvo Matteo a Enrico e corro até a varanda de onde grito. - SE ESTIVEREM AÍ, SAIBAM QUE, DENTRO DA MINHA CASA, O MAL NÃO ENTRA! - Debaixo da chuva forte, caminho, resoluta, até o jardim. Da varanda, ouço seus gritos.
- VOLTA, DESS! POR FAVOR!
Por que tanto medo, Vincenzo? Por que deixou de me amar? Por que tem me magoado tanto? - DESS! VOLTA!
Um relâmpago atinge uma das árvores do quintal. Sua luz clareia, por segundos, a escuridão da rua. Agarrados aos nossos portões, rostos deformados, sorrisos sinistros dos seres revoltados.
- DESS! - Antes de ser tocada por Vincenzo, flexiono minhas pernas e toco a grama com as palmas de minhas mãos. - Dess.
- AGORA NÃO!
Concentro-me e chamo por seu nome. Ela toma conta do meu corpo enquanto ouço sua voz ordenar.
- RECUA, CASSIEL!
Não compreendo as palavras que ela repete incessantemente através de minhas cordas vocais. De mim, escapa energia enquanto ondas de uma luz azul percorre a grama até atingir o portão. De olhos fechados, ouço gritos de dor.
As ondas de luz azul se erguem do chão e envolvem nossa casa por inteiro. É um muro de proteção? Sim. Aqui, eles não entram. Hoje não. Estou me sentindo muito fraca. Perdão. Foi vc quem me invocou. Não faça isso com frequência. Apenas em casos extremamente necessários. Isso pode te matar. SÉRIO??? E VC FALA ISSO AGORA??? Adeus, querida. O perigo já passou.
- Anahita...- Sussurro contra a grama molhada antes de, exausta, fechar os olhos e tentar respirar. - Não toca...
- Dess, meu amor, vc não muda...nunca.
- Te odeio.
Desmaio em seu colo.
- Por que não me disse nada sobre o que aconteceu na escolinha de natação, Dess?
- Porque vc já não conversa comigo. Dá pra largar a porta porque eu já tô atrasada?
- Aonde vc pensa que vai, Dess?
- Não te interessa. - Aumentando o volume do som, dentro do carro, eu o impeço de ouvir meus pensamentos. Um sorriso cínico e pergunto. - Gostou!? Tenta ouvir o que estou pensando agora! - Puxando-me para fora do meu carro, ele se joga no banco do motorista e desliga o som. Diante de mim, ele refaz a pergunta.
- Aonde pensa que vai?
- Eu não penso! Eu vou! Grosseiro! - Massageando meu pulso, choramingo. - Doeu. - Beijando o dorso de minha mão, ele me fala com carinho.
- Dess, vc não pode mais usar seu dom como antes. Eu preciso de vc. Nós precisamos de vc. Já tomou seus remédios hoje?
- Óbvio, idiota. Me dá a chave do carro.
- Não antes de saber aonde vai. E não adianta ligar o som. A porta tá fechada. - Sorrindo, ele arregala seus lindos olhos azuis. Esses olhos já brilharam por mim...- E ainda brilham, Dess. Se vc soubesse que tudo o que faço é por vc e pelas crianças, vc não pensaria assim.
- O que fez, Vincenzo!? Mais um pacto idiota? !Tá me escondendo o quê!? - Seu sorriso some ao responder.
- Nada. É vc quem não deve fazer besteiras. Se ficar quietinha, vivendo sua vida normal, permaneceremos unidos.
- Vc tá pensando em me largar, Vincenzo!?
- Não mesmo. É exatamente isso o que eu não quero. Fica em casa, Dess. Hoje vc não tem aula. Eu também não. Pensei em...
- Pena que só fique no pensamento, Vincenzo! Agir que é bom, nada! Faz tempo que eu não sinto o peso do seu corpo sobre o meu! Me dá a porra da chave! Para de me olhar assim! Eu me sinto pior do que já estou!
- Não diz isso. Vc é tudo o que tenho. A razão de tudo ao nosso redor. Nossos filhos. Nossa família.
- Para...
- Cretina. - Ronrona ele em meu ouvido antes de me roubar um beijo em nossa garagem. - Não deixa completar três semanas, Dess. Tô com saudades.
- Eu também. - Confesso enquanto ele me pressiona contra o carro e, com as mãos em meu rosto, me excita com outro beijo. Agora, mais voraz. Se continuar assim, vou ter que desmarcar com o João. Puta que pariu. - Fica longe!
- O que vai fazer na casa do João, porra!?
- Usando de métodos sujos agora, Vincenzo!?
- Não foi pra isso que te beijei! Tenho saudades da minha esposa! Vc não pode continuar agindo como se fosse uma heroína, Dess! Para e pensa em sua família! Vc não é a porra da 'Feiticeira Escarlate'!
- Não mesmo! - Refuto, furiosa. - Se fosse, não teria deixado meu marido morrer! Teria retornado ao passado e evitado tudo! Ela é burra! Eu, não!
- Ela perdeu seus filhos, Dess! - Grita ele, inseguro, amedrontado.
- Foda-se! Outra burrice! Me dá a porra das chaves! - Num tom soturno, ele comenta.
- Os filhos dela descendem de um ser diabólico. 'Mephisto'. Coincidência. Não?
- Qual é a graça, Vincenzo!? Por que deseja me tirar a paz!? - Tomado por alguma força que desconheço, ele prossegue.
- Dizem que ela existiu de verdade. Que foi fecundada por um algum demônio e deu à luz a um homem de grande inteligência e poder. Famoso por suas invenções revolucionárias.
- Fodam-se todos! Inclusive vc! As chaves!
- Desculpa. Eu eu não sei...
- Vincenzo! Acorda! - Um tapa em seu rosto e grito assustada. - O que há com vc!?
- Fica comigo, Dess.
- Seu amigo - não o meu - tá precisando de ajuda, cacete! Como posso negar!?
- Eu vou junto!
- Não! - Com a mão em meu pescoço, ele perde o controle ao ordenar.
- Me espere aqui. Vou pegar minha carteira e já volto. Não se atreva a sair sem mim. Entendeu? - Movo a cabeça sem poder falar. De súbito, ele se afasta e me pede perdão. - Meus impulsos violentos estão acordando, Dess. Não me abandona. Tenho medo.
- Não tenha. Eu tô aqui. Nada de ruim vai acontecer a vc. - Um rápido abraço e ele me pede ao chegar na varanda.
- Me espera!
- Ok! Merda! Eu odeio celular! - De volta, Vincenzo se mostra preocupado ao indagar.
- Mensagem?
- Sim. - Arfando, comento. - É do Liam.
- Não leia!
- Me solta, Vincenzo! É importante!
- Nada que venha desse verme é importante, Dess! Leia depois! - Tomando o celular de minhas mãos, ele o arremessa contra a grama do jardim. Eu xingo um palavrão enquanto ele me puxa pelo braço e me faz sentar no banco do carona. - Não vai quebrar, Dess! É de última geração! Foi o seu 'ex-maridinho' que te deu! Lembra!?
- Não seja ridículo! Ele é antigo! Vai molhar, porra! - Travando as portas, ele me impede de sair do carro. Ofegante, ele olha para trás e, atingindo a velocidade de sessenta quilômetros por hora, em poucos minutos, retira o carro da garagem, alcançando a rua de paralelepípedos.
- Vc nem olhou se tinha alguém na calçada, Vincenzo! Que desespero é esse!?
- João precisa da gente, Dess! João precisa da gente!
Intrigada, eu o observo enquanto dirige. Mais calmo, ele sorri ao me pedir para relaxar.
- Tá tudo certo.
- Não tá. Eu sei. Eu sinto. - Rindo, ele zomba do que acabo de dizer.
- 'Eu sei. Eu sinto'. Vc sempre diz isso, Dess.
- Não ria de mim. Eu sofro com isso.
- Eu sei. E eu também. Acha que gosto de te ver adoecer aos poucos? - Sem desviar os olhos da estrada, ele pergunta. - O que houve na escolinha de natação, Dess? Outro barraco? - Ofendida, refuto.
- Refaça a pergunta e eu te respondo. - Sua mão pousa em minha coxa quando ele me pede perdão...
Novamente.
Solto uma gargalhada ao me lembrar da cena onde ataco, com fúria, a mãe de Fernando.
- Ok. Sem problemas. Vc acabou acertando mesmo.
- Vc lutou contra quatro mulheres ao mesmo tempo!?
- Lutei não. Aquilo não foi luta. Foi um circo de horrores. Nenhuma delas sabe lutar. Perdi algumas centenas de fios do meu cabelo. - Resmungo. - Quando vão aprender a lutar de verdade? - Prendo o riso e conto tudo o que aconteceu enquanto eu enviava fotos de nosso filho para ele. - Elas o acusaram de assassino! Uma criança com menos de dois anos! Assassino!? Fala sério!
- Bobagem! Como alguém poderia ter certeza da intenção de Matteo!? Ele só queria brincar! Nada bem pra caramba! Não quis sair da água e puxou o amiguinho!
- Será? - Em frente ao semáforo, nós nos entreolhamos, receosos. - Tenho medo, marido. Ele tem o sangue daquele maldito.
- Eu já disse que sangue não define caráter, Dess. Eu, enquanto anjo, conheci dois irmãos com o mesmo sangue herdado da mesma mãe. Um era pacífico. Cuidava de ovelhas. O outro, era ambicioso. Maligno. Ele matou o irmão por inveja. Porque Deus preferiu, segundo o que contam, a oferta de Abel e repudiou a de Caim.
- Porra! Tu tá me contando a história narrada na Bíblia!? - Rindo, ele confirma.
- Ué! Eu estava lá! Eu vi tudo! Foi um horror!
- Cara. - Inspirando e expirando, resmungo. - Tu me dá medo.
- Chegamos, Dess. - Segurando minha mão esquerda, ele me pede antes de eu sair do carro. - Por favor, não se desgaste. Ok?
- Ok.
Minto.
Assim que chegamos ao apartamento de João, eu a vejo, de pé, logo atrás de sua esposa grávida. Amanda, sentada no sofá, acariciando sua barriga arredondada, nos cumprimenta. Sem perceber nossa presença, a entidade continua a sugar a energia de Amanda que se esforça em se levantar do sofá e vir me abraçar. Suas ideias se confundem com as da mulher que a acompanha. Abraçada a Amanda, ela deseja continuar a viver sem se lembrar de que tirou sua própria vida, ainda grávida. Ausento-me por minutos ao ouvir seu nome.
- Dess? Vc tá bem?
- Sim. - Minto. Estou me sentindo fraca, sem ar, claustrofóbica. - Vc poderia conversar com João enquanto Amanda me mostra a casa? Adoraria ver o quarto do bebê. Onde está minha afilhada? - João e Amanda trocam olhares aflitos antes de João elucidar.
- As coisas estão esquisitas aqui em casa, Adessa. Nossa filha precisou sair daqui e ficar, por algum tempo, com a mãe da Amanda. Ela chorava à noite, com medo de algo ou alguém. Não sei ao certo. Ela é ainda muito pequena pra entender o que vê. Eu não tenho dom algum. Não vejo nada. Não sinto nada. Sou uma porta. - Vincenzo gargalha. Eu o beijo na bochecha e peço.
- Leva o João pra rua, amor. Amanda e eu queremos privacidade. Coisas de mãe e de mulher. Vc entende. Né? - Um olhar penetrante e eu o acordo.
- Ah! Sim! Claro! Entendo! Vamos tomar umas cervejas lá embaixo, João!
Eu vi um bar cheio de 'novinhas' assanhadas perto daqui!
- Ha ha ha ha ha. Idiota. Vai e leva o João e não faça merda. Eu vou descobrir. Mais cedo ou mais tarde. - Impulsivamente, ele me sufoca com outro beijo apaixonado e me joga contra o sofá antes de partir. Rindo, eu ruborizo e comento, meio que sem graça. - Ele não tá bem, Amanda.
- Somos dois. - Lamenta ela. - Ou melhor, três. Meu filho vai morrer, Adessa. Se eu não me livrar dela, ele vai morrer.
- Dela??? Vc a vê também???
- Sim. Ela era minha irmã. Gêmea.
- Aaaah tá.
Amanda me conta sua história complicada junto à irmã minutos mais velha do que ela. Eram amigas e rivais com relação ao amor dos pais. Amanda diz ser a mais calma entre ambas. A mais compreensiva, no entanto, há resquícios de raiva em seu semblante. Amanda se casou com João, ex-namorado da irmã morta, duas semanas após o casamento da mesma, abrindo uma enorme brecha entre elas. Sem manifestar culpa alguma, ela continua a falar enquanto escuto a versão da morta, sentada diante de mim.
"Amanda me roubou o amor de João e me fez cair em depressão profunda. Ela sempre soube ser a mais bela. A mais atraente. Ela não o amava. Ela apenas o queria para mostrar a mim o seu poder de sedução. Com o tempo, desenvolvi transtornos mentais. Detestava o espelho porque me via distorcida. Minha imagem era muito diferente do que eu imaginava ser, então, comecei a provocar vômitos após ingerir muita comida. Meus pais não se preocupavam comigo. Amanda era a preferida. A caçula por questão de minutos. Apesar de tudo, éramos muito ligadas. O sofrimento dela era o meu também. Eu não sou má. Não desejo vingança. Juro. Não sei como desfazer o elo que nos liga. Infelizmente, ela tem sentido tudo o que senti antes de morrer. Antes de perder meu filhinho. Eu engravidei de um homem severo. Um narcisista psicopata que acabou, de vez, com minha pouca autoestima. Foram dias e dias ouvindo o quanto eu havia mudado por conta da gravidez indesejada por ele. Contrária ao aborto, eu resistia, resoluta. Teria o meu filho se ele não tivesse me envenenado antes de seu nascimento. Meu filho lutou em meu ventre a fim de permanecer vivo. Antes do fim, eu sentia seus pezinhos chutando minha barriga. Ele queria viver e eu também, mas, a vida sempre foi injusta comigo. Meu filhinho desceu ao túmulo sozinho. Eu ainda o procuro vagando pela escuridão. Talvez, ele esteja na barriga de Amanda. É por isso que não posso me desligar dela. Não agora. Meu filho vai nascer e ele precisa saber que eu jamais desisti dele. Eu sempre esperei por ele. Vc poderia me ajudar?'
- Eu???
- Sim, Adessa. Leve ela embora daqui. - Pede-me Amanda, desesperada. Suas mãos frias pousam sobre as minhas quando suplica. - Pelo meu filho. Por João. Tire minha irmã de nossas vidas. Ela quer meu filho. Não permita que ela o leve. - Desnorteada e emocionada, repito.
- Eu???
- Sim! João disse que vc tem um dom! Afaste minha irmã de nossas vidas com seu dom! Não quero perder meu filho! João não merece isso!
- Vc se arrependeu de ter roubado João de sua irmã? - Assombrada, ela recua no sofá. Enquanto ela se recupera do susto, eu prossigo. - Acaso sabe onde o filho dela foi enterrado? Pode me ajudar a enterrá-lo na cova de sua irmã?
- Deus do céu...- Sussurra Amanda sem erguer a cabeça. A morta me observa com um sorriso triste em seu rosto pálido. - Como sabe disso tudo?
- Seja sincera, Amanda. Vc ama João ou só casou com ele pra afastá-lo de sua irmã? - A morta, ao meu lado, encara a irmã, ávida por sua resposta.
- Eu não o amava quando me casei com ele. Fiz pra causar dor em minha pobre irmã, mas hoje, eu o amo muito. Fui mesquinha, covarde e egoísta. Eu queria que ela soubesse que me arrependo do mal que fiz a ela.
- Ela já sabe, Amanda. Ela já sabe. - Afirmo ao sentir a incômoda mão gelada da morta em meu ombro. - Precisamos agir logo, antes que o bebê fique fraco demais. A partir de agora, ela vai se afastar de vc. - Não vai? - Dirijo-me à morta.
"Sim. Vc vai tentar encontrar meu filhinho?" - Movendo a cabeça, assumo o compromisso. "Ela precisa ir também. Juntas na vida e na morte".
- Juntas na vida e na morte?
- Quem te falou isso!? Era o nosso lema desde crianças!
- Eu ouvi. Não sei de onde. Vamos ter que contar tudo a João. Não quero ir ao cemitério sozinha com vc, nesse estado. Vc está quase parindo.
- Sem problema. Ele vai comigo. Sei onde meu sobrinho foi enterrado. O marido dela cometeu uma tremenda injustiça separando-os após a morte. Eu preciso...eu vou consertar esse erro. Prometo.
- Eu irei com vcs...- Um olhar compassivo à irmã morta e concluo. - Com vcs duas.
João, Amanda, Vincenzo, a morta e eu fomos ao cemitério onde o bebê fora enterrado, separado da mãe. Ainda hoje, emociono-me ao rever a cena. No colo de uma senhora fofa e negra, com o sorriso tão lindo quanto o de Doc, um bebê chora até que, num impulso maternal, a irmã morta de Amanda o reconhece e, aos prantos, o embala em seus braços enquanto o resto de nosso grupo tenta convencer o coveiro a abrir o túmulo.
Após dois dias do encontro entre mãe e filho mortos, João me envia uma mensagem pelo celular que resgatei da grama úmida. Por sorte, ele ainda funciona.
"Não sei como agradecer o bem que vc fez à nossa família. Amanda e o bebê estão ótimos. E eu também. Sua afilhada voltou pra casa. Somos uma família feliz graças a vc."
Feliz, respondo com um pedido.
"Se quiser fazer algo por mim, ore por Vincenzo e por nossa família. Beijos".
- Deus sabe que vamos precisar. - Resmungo antes de me assustar. A mensagem de Liam ainda está aqui. Eu não a visualizei. Receosa, olho para os lados e, antes de iniciar a aula na 'Just Dance', enchendo-me de coragem, eu a leio. Sufoco um soluço e despenco da barra de alongamento até o chão, onde permaneço sentada, de olhos fechados, até que meu coração volte a bater compassadamente. - Vamos. Leia de novo. Eu eu me enganei. - Suando frio, fixo meus olhos na tela do celular e, tentando não chorar, releio a mensagem.
"Passando para agradecer por ter amamentado meu filho com seu leite. Agora, Sean, Matteo e vc tem algo em comum. Não preciso dizer o que é. Certo? Ah! Já que não posso - e nem desejo - tocar em Sean, penso em oferecer Cassie em seu lugar. O que acha? Aguardando por sua resposta, Adessa Love".
- Vc tá pálida!
- Cancela a aula, Aninha. - Peço apoiando-me na bancada da recepção. Puxando o ar pela boca, caminho até a porta de saída. Preocupada, Aninha me ampara e se assusta com minhas mãos geladas.
- Vc não pode sair assim, amiga! Deixa eu ligar pro Vincenzo!
- Não. Não. Ele não. Por favor. Eu vou ficar bem. Peça desculpas às alunas.
- Deixa comigo! Seu carro está do outro lado, amiga! - Avisa-me Aninha que ainda pensa em aborto. Eu odeio esse dom maldito. Estou quase morrendo e ainda sou obrigada a ver coisas ruins sobre pessoas que eu amo.
- Eu sei! Vou...preciso...de ar! - Com o celular no bolso do casaco, cubro minha cabeça com meu gorro. Calço minhas luvas e, sem rumo, sigo adiante. Por que ele me enviou essa mensagem? Se ele quisesse matar Cassie, já o teria feito. O maldito sabe que não é o pai de Sean. Seria possível que o meu leite tivesse contaminado o pobre Sean? Não. Meu leite é bom. Meu filho é bom. Eu não sou uma pessoa ruim. Vincenzo sempre diz que o sangue não define caráter.
- E ele está certo.
- Quem é vc!? Não toque em mim! Como me ouviu!?
- Muitas perguntas. - Um sorriso franco e ele estende sua mão. Enfiando as minhas no casaco, eu o faço rir. - Não tenha medo. Vc não poderia sentir nada ao apertar minha mão. Eles apagam nossas memórias de vidas passadas. Melhor assim. Somos um livro com páginas em branco e, ainda que eu tivesse memórias, vc não as captaria. Vc calçou suas luvas. - Apavorada, eu recuo. Prestes a chutar seus bagos com uma de minhas pernas, ele volta a rir e se afasta. - Calma aí, mocinha. Isso vai doer.
- Quem é vc, filho da puta!?
- Ninguém. E minha mãe não é puta. Só queria que soubesse que vc não está sozinha. Quando a 'Escuridão' chegar, estaremos ao seu lado.
- Nós!? Quem!? - Grito antes de vê-lo sumir. Sua resposta ecoa no ar frio.
- Os Guardiões!
- Porra! De novo essa porra de guardião!? - Perdida, olho ao redor e resmungo. -Gente esquisita.
- Dess???
- Vincenzo??? O que faz aqui??? - Movendo a cabeça, ele sorri. - Responde!!!
- Eu trabalho aqui, Dess! - Um abraço forte e ele tenta me acalmar. - O que houve, amor? Como veio parar aqui? Seu coração tá batendo muito rápido. Dess, isso não é bom.
- Culpa do guardião. - Reclamo contra seu peitoral coberto por uma blusa de malha com mangas compridas. - Aquele filho da puta. Gente maluca.
- Que guardião, Dess?
- Não sei. Ele esbarrou em mim e queria que eu apertasse a mão dele e depois disse um monte de merda e sumiu.
- Por que veio até aqui?
- Eu precisava respirar. Depois da mensagem, eu passei mal e cancelei as aulas. Agora, eu tô melhor, exceto pela mensagem.
- Que mensagem, Dess? - No estacionamento da 'Round 666', eu peço ainda agarrada a ele.
- Me leva pra casa? Lá eu te mostro. Por favor. Eu quero ver meus filhos.
- Ok, Dess. Ok.
- Não se exalte, filho. Ela não tem culpa. Não sabe de nada.
- Saber do quê, Enrico? O que vcs estão me escondendo?
- Não é justo que ela não saiba.
- Do que, Celeste!? Fala comigo! Todos aqui sabem de algo que eu não sei!? - Vincenzo, transtornado, avança em minha direção, aos gritos.
- Eu te disse pra não ler nada que ele te envia! Não ouvir nada, porra! Por que não o bloqueou!?
- Não fala assim comigo! Eu sou a mãe dos teus filhos! E não tenho nada de burra! Por que ele quis me provocar!? Fala, Vincenzo!
- Mais brigas!? - Lamenta Antoine saindo de seu quarto. - Vcs estão dando munição ao adversário! Parabéns!
- Sua mãe tá dando ouvidos àquele verme!
- Mentira! Eu li uma mensagem que não foi respondida! Eu sei que ele tá me provocando só não sei o porquê!
- Porque, se vc fizer algo pra salvar a Cassie e o Sean, meu pai se ferra!
- Antoine não! - Berra Vincenzo, absolutamente alterado. Andando de um lado ao outro na sala de estar, ele chuta as almofadas com violência. Penso que, talvez, ele queira descontar sua raiva em mim quando ele aponta seu indicador em direção ao meu nariz. - NUNCA! TUDO O QUE EU QUERO É TE PROTEGER E CONTINUAR AQUI! - Encolho-me no sofá com medo de levar um soco dele. Em meu colo, Matteo chora, assustado.
- Papai mau. Não 'podi'. Ai ai ai.
- Não pode. - Sussurro em seu ouvido. Entre soluços, eu o abraço enquanto Antoine pergunta, sem temor.
- Não vai contar a ela, pai!? Se não contar, eu conto!
- Jesus...- Lastima Celeste. - Vamos nos acalmar. Precisamos de orações.
- Concordo, meu amor. Concordo. - De olhos fechados e mãos dadas, Enrico e Celeste oram, silenciosamente, sentados à mesa de jantar enquanto Vincenzo se joga no chão e chora, cobrindo os olhos com o antebraço. Deixando Matteo em seu 'cercadinho', eu engatinho até seu pai e o beijo na testa. Cobrindo seu rosto com as mãos, ele me pede.
- Fica longe. Eu falhei. Eu fiz merda. Agora, eu vou ter que pagar por isso.
- Deitando-me ao seu lado, sussurro.
- Estamos juntos, amor. Nada pode nos separar se o Criador não quiser.
- Eu burlei a lei do 'Seu Criador', Dess. - Murmura ele, erguendo o tronco, recostando-se à parede. Impedindo-me de tocar em seu rosto, ele enxuga suas lágrimas com a barra da camisa e, de olhos fechados, lamenta. - Errei novamente, mas, foi por um bom motivo. Mas, ainda assim, errei. - Sentando-me ao seu lado, refuto num tom de voz baixo. - E daí? 'Seu Deus' é misericordioso. Ele não julga. Vc sempre me diz isso. O que fez de tão terrível, Vincenzo? Por que tem se enfurecido com tanta facilidade?
- Não quero falar sobre isso.
- Então eu falo!
- Antoine! - Repreende-a Vincenzo, prestes a permitir que a fúria tome conta dele novamente. - Eu não quero falar sobre isso! Me respeita!
- Eu não tenho tempo, pai! Vc sabe disso!
- Parem os dois! Agora! - Uma crise repentina de choro e aviso. - Vc ainda vai viver muito, Antoine! Nunca mais fale isso!
- Ok. - Concorda ela, ajoelhada à minha frente. Preocupada, ela aconselha. - Fica calma, mãe. Seu coração...
- Meu coração tá doendo por vcs. - Entre soluços, advirto. - Se não me contarem tudo, eu vou até o Liam. Tenho certeza de ele vai me contar. - Um outro arroubo de fúria e Vincenzo rosna ao cravar sua mão em meu pescoço e ameaçar.
- Não se atreva a chegar perto dele, Dess. Eu fiz o que fiz pela segurança de vcs.
- Pai! - Caída sobre o tapete, ela implora. - Para! Esse não é vc!
- Largue o pescoço dela, filho. - Orienta Enrico, de joelhos, diante dele. Sua mão envolve o pulso de Vincenzo enquanto tento respirar. A voz suave e firme de seu pai, ordena. - Largue seu pescoço agora, filho. Ela precisa respirar.
- Perdão...- Pede-me Vincenzo, de volta a si, vencido, fraco, confuso. Seu antigo transtorno quer sair da cela onde o trancamos junto ao meu. Beijando meu rosto, acariciando meu pescoço com as marcas de suas mãos, ele demonstra pavor. - Vc tá bem? Dess, perdão. Eu tô com medo de mim mesmo.
- Não tenha. Eu não vou me aproximar de Liam. Não vou chegar perto de Sean ou de Cassie. Não vou te entregar nas mãos do líder da 'Legião'. Por que esse acordo, Vincenzo?
- Vc viu. - Afirma ele, cobrindo o rosto com as mãos trêmulas. - Eu eu...não era pra vc saber.
- Era sim. Vc se arriscou por mim. Por nossa família. Vc se colocou nas mãos imundas de Liam pra evitar que a 'Legião' invadisse nossa casa e nos destruísse. Vc uniu seu sangue ao dele e selou o pacto. Eu vi. Infelizmente, eu vi e não foi agora, amor. Estava esperando que me contasse.
- Eu eu tentei...
- Não suporto ver vc assim, sem forças. Não se culpe. Não se preocupe. Não estamos sozinhos. - Erguendo-me do chão, puxo o ar pela boca e, olhando em seus olhos injetados, prossigo. - Não se entregue ao mal que há dentro de vc. Essa é a maior brecha que temos. Vc me tirou da escuridão. Eu não vou deixar que vc mergulhe em outra, por minha causa. Vc não 'caiu' pra se vender. Liam é um incapaz. Medíocre, como gosta de chamar os outros. Ele teme Lúcifer, mas o deseja junto à 'Legião'. - Tenho a atenção de todos na sala. Até mesmo Matteo parou de chorar para me ouvir. Uma brisa morna me envolve quando volto a encarar Vincenzo, perplexo, mudo. - Um bando de anjos falidos de merda que precisam de vc, porque somente vc tem poder sobre o 'Anjo Caído'. Lúcifer te deseja. Eu já havia comentado isso contigo e vc não quis me ouvir. Não. Não fala nada. A partir de agora, vamos viver em paz. Vamos mostrar a eles quem nós somos. De onde viemos. Do que somos capazes de fazer por nossa família. - Estendendo meu braço a ele, concluo. - Nossa família...unida...pra sempre. - Envergonhado e receoso, ele se deixa erguer por mim e me abraça com força...e medo. Meu homem teme a 'Escuridão' que se aproxima. Eu, não. Eu já estive lá.
- Fica longe deles, Dess. - Sussurra-me ele. - Não quero te perder.
- Não vai.
Minto diante do inevitável.
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