segunda-feira, 22 de abril de 2024

CAPÍTULO 49 - PERTO DO FIM





De mãos dadas a Antoine, volto no Tempo. Um tempo longínquo, obscuro, irracional onde sou lançada de volta ao seu corpo. Através de seus olhos astutos, eu os revejo e procuro entender o meu presente. 

- E se eu me perder?

- Não vai. Estarei sempre ao seu lado. Quando se sentir em perigo, grite por meu nome. 

Agora, mergulhe...

Ravena - A.C.

Diante do fogo, eu me aqueço enquanto observo, lá embaixo, mais uma noite de bestialidade.

Entre minhas irmãs, posso manifestar meu lado  obscuro. Elas não me julgam. São como eu. Obstinadas e despudoradas. Farão de tudo por obter maior poder a fim de não serem escravizadas. Elas se unem aos homens. Eu, me uno aos anjos e demônios que passam por minha vida. Demônios que conjuro. Anjos que 'caem' do céu em guerra. Não é hora de temer punição de um Ser Divino. Não acreditamos em um. Minhas irmãs e eu cultuamos os deuses de nossos antepassados enquanto assistimos às práticas macabras dos homens da aldeia que se julgam superiores ao nosso clã. 

Não me recordo de meus pais, irmãos. Pelo que sei, sempre estive sozinha. Cresci entre as bruxas e, com elas, fui banida da aldeia para um lugar distante. Não tão distante a ponto de afastar um povo ávido por poder e prazer. 

Aprendi, desde cedo, a me defender de homens brutais e de mulheres ardilosas. Antes de ser atacada, eu me defendo, atacando aqueles que ameaçam minha existência nessa terra selvagem onde deuses de ouro são louvados. Onde humanos são mortos e oferecidos a esses deuses em noites de lua cheia. 

Lido com todos os seres místicos entre o Céu e a Terra. Ligo-me a eles de corpo e alma e, deles, sugo suas energias. Por esse motivo, sou vista como uma mulher estranha de quem se deve manter distância. Seria esplêndido viver sozinha, mas os que me caluniam, me procuram...me compram com suas moedas de ouro. Com suas propostas tentadoras. Não tenho escrúpulos. Quando bem paga, realizo desejos de quem me comprou sem me preocupar com suas possíveis vítimas. Não penso antes de fazer algo. Eu simplesmente faço. 

Manipulo as forças da Natureza com extrema facilidade. Após algumas luas de estudos e práticas, hoje, com um pensamento, sou capaz de mover os ventos que trazem a chuva consigo. Quando contrariada, ateio fogo às matas com um simples erguer de mãos. De onde vem o meu poder? Eu jamais soubera explicar. 



Nossa terra é fecunda, abundante. As árvores são tão altas que posso jurar que tocam o céu. A névoa cobre as plantações, irrigando-as. A violência entre os humanos é incessante, inesgotável. Eles me temem por lidar com seres distantes de sua capacidade mínima de compreensão. Isso me protege. O amor não existe entre eles. Somente a luxúria, a ira, a cobiça, a miséria, a fome. 

Nos dias em que vivo, tudo é permitido. Chego a duvidar da existência de um 'Poder Supremo'. Se Ele existisse, não permitiria a violação de crianças e mulheres indefesas por porcos humanos e imundos.

Diante de tanta maldade, endureci meu coração e me tornei uma mulher fria, cruel, vingativa, rancorosa.

Houve um tempo em que era meiga, feliz e crédula. O tempo em que o conheci. O tempo em que ele se apaixonou por mim. O tempo em que eu o feri profundamente.


A cada coito com anjos e com os 'filhos das trevas', mais forte eu me torno. Mais bela e confiante eu me revelo aos que me cercam. Jamais senti qualquer tipo de carinho por esse povo. Muito menos por anjos ou demônios. Jamais amei alguém por julgar o amor um sentimento que me tornaria fraca. E, sinceramente, em meio aos selvagens, não há lugar para a fraqueza. 

Curo crianças doentes com a mesma facilidade com que mato seus pais se os considerar uma ameaça à minha existência. Não há lugar para o arrependimento onde vivo. Apenas força, ódio, prazer, dor.

Dor. 

Aprendi a suportar a dor nas mãos de um anjo belíssimo e maligno. 

Minhas irmãs partiram. Outras, foram mortas por serem consideradas um perigo aos habitantes das aldeias ao nosso redor. Elas não os serviram, logo, foram condenadas, abandonadas quando mais precisavam de ajuda.

Ouvira seus gritos enquanto eram queimadas vivas. Houve quem recolhesse seus restos e os usasse como alimento.

Uma cena terrível. Difícil de ser esquecida. 

Abrutes escondidos sob roupas imundas, fétidas.

Odeio essa gente que se nutre da dor alheia. 

Dor.

Usei a mesma dor em homens que, talvez, não a merecessem. Minto. Todos merecem. Sempre os odiei. A cada parto, a cada grito de dor da mãe em sofrimento, prestes a parir, lembro-me do ódio pelos homens. Há  sempre tanto sangue misturado às fezes ao retirar de suas entranhas mais uma vida que, certamente, irá sofrer por fome, frio ou doença que, penso em desistir. Se pudesse, eu os mataria antes de virem ao mundo. Odeio-me por ser a única parteira nesse lugar miserável. Mesmo distante, elas me procuram, famintas, sujas, violadas, sozinhas nesse mundo sombrio. Por que não fogem daqui? Por que eu não fujo daqui?

 Por ele.

Jamais tivera a coragem de deixar o pobre homem que diz me amar. A cada palavra dita com carinho, eu o odeio mais e mais. O que ele viu em mim? Por que continua comigo se não lhe retribuo o carinho? 

Ele me dera tudo o que possuía. Deixara sua tribo por mim. Um selvagem gentil. Uma raridade. Eu o obriguei a se ligar a um demônio a fim de satisfazer meus desejos mundanos, meus caprichos. Eu o aprisionei a mim. Um jovem belo com um sorriso tímido que quase me cativou. Eu não o amo, porém, não o liberto de minha magia. 

Ga'al. 

Um belo nome para um belo homem com um coração cheio de compaixão de quem eu não gostaria de ter me afastado.

Ga'al.

Era bom demais para resistir à maldade que habita entre nós. Jamais o esquecerei. Morreu por mim. Em minha defesa, ele lutou com o mais temido, desleal e asqueroso ser da maldita aldeia de onde escapei. Em seu leito de morte, jurou me amar pela Eternidade enquanto eu, desesperada e egoísta, o amaldiçoei por me deixar sozinha nesse planeta.

"Muitas vidas viveremos juntos até que eu decida te libertar. Enquanto isso, não deixarás de me amar. Como homem ou demônio, tu irás me procurar".

Antes de morrer, ele sorriu. Minhas lágrimas molham sua cova enquanto eu o enterro. Com as mãos sujas de terra úmida e escura, praguejo contra os Céus. Ainda não sei o que me unia a ele, mas sentira sua falta até o dia em que dezenas de anjos invadiram a aldeia à procura de prazer.

Que tipo de deus permite que anjos cometam maldades? Daqui, eu os vi. Daqui, contemplei suas 'quedas'. Daqui, fui vista por um deles.

O mais belo dentre eles me atrai. Seus olhos de cobiça e curiosidade me assustam. Sua altivez me irrita. 

Se conhecesse seu poder e sua maldade antes de me entregar a ele, por uma única vez, eu teria me afastado assim que o vira. Há algo nele que me fascina.

Dor.

Em nosso único encontro, ele me fez sofrer durante o coito. De diversas maneiras, ele me experimentou e se deliciou com meu sofrimento. O que ele não poderia supor é que, dele, eu extrai um poder ainda maior.

Ele partiu, deixando sua semente maligna dentro de mim. O ser que já habita meu ventre me causa dores intensas. Decidida a ceifar essa semente maldita, tomo uma de minhas muitas poções. 

A mais fatal.

Uma dor ainda maior me faz gemer à beira do rio manchado por meu sangue. Um grito lancinante e eu mesma retiro o infeliz de minhas entranhas. Um sentimento estranho se apossa de mim ao segurar a criança em meus braços. Seu rosto enrugado, as pequeninas mãos se movendo, seu primeiro vagido de fome...

- Por Baal! Por que não consigo te matar!?


É um menino. Mais um a sofrer nesse mundo. Os monstros desse lugar devoram bebês como se fossem filhotes de porcos. Não há nada de seu pai em seu olhar doce. 

- Eu preciso te matar. Me perdoa. Vc vai morrer, de um jeito ou de outro.

- Talvez não. - Um brusco  movimento de meu braço e eu o faço recuar antes de tocar em mim. Arremessado contra a terra úmida, ele ri ao se defender.

- Eu não iria te tocar. Ainda estás suja. Precisas de cuidado. Tu e o teu pequeno filho. - Assim que o encaro, me encanto por seu sorriso, seus dentes brancos, seus olhos claros. Mais um deles. - Não sou como aquele que te fez mal. Apesar de conhecê-lo, não concordo com o jeito como trata os humanos. Posso te ajudar? Estás perdendo muito sangue. Em breve...- Sem controle sobre meu corpo, enfraqueço com meu filho nos braços. - Confia em mim. - Pede-me o anjo com um sorriso inocente em seu belo rosto e uma estranha obsessão.

Tomada por um sentimento avassalador, protejo meu filho contra os ataques da tribo sanguinária, afastando-me, ainda mais, deles. Escondo-me em uma gruta onde passo grande parte do meu dia apreciando o crescimento do menino por quem meu coração pulsa de maneira diferente. Sinto paz ao seu lado. Ele é tão diferente de mim. Há inocência em tudo o que faz e fala. Eu me sinto flutuar a cada gesto seu. Seria isso o amor?

- Isso é amor. O maior do mundo. Toma cuidado.

- Com o quê? Já estou à léguas de distância do povoado. Eles me esqueceram. Minhas irmãs partiram.

- 'Com quem' é a pergunta correta. O pai de teu filho é invejoso. Odeia os humanos, principalmente, as mulheres. As mães, em especial. 

- Por quê?

- Por esse amor. Um amor incondicional que nunca nos foi concedido. Fomos criados por Deus, mas não possuímos o amor que tu consagra ao teu filho.

- Por que sempre vem me visitar? Sabe que odeio os homens e, principalmente, anjos? Não tem medo de mim?

- Não. Quero que me ensine algo. E só desejo aprender com vc.

- E o que seria? Magia?

- Não. - Um sorriso no canto de sua boca delicada e ele refuta. - Já conheço Magia. Meu desejo é outro e, como já se passaram quase duas luas após o nascimento da criança, creio que já está pronta para me ensinar. Soube que tu costumava atender aos desejos de alguns homens, anjos e até demônios.

- Por que me olha desse jeito?


Eu satisfazia sua obsessão por violência durante o coito. Em troca, ele oferecia proteção ao meu filho. Despertando um lado meu que apreciava sofrer, ele aumentava sua sede por ouvir meus gemidos de dor. Durante muitas luas, ele me visitava sempre à procura de prazer ao me violar e espancar. Por meu filho, eu o recebia. Eu o obedecia enquanto ele observava, com os olhos atentos, meu corpo ser usado por outros anjos, tão devassos quanto ele. A cada encontro, odiava seu deus por ter criado seres tão corrompidos quanto os humanos. 



- Por que gosta de me ver sofrer? Isso é estranho. Principalmente, para um anjo. - Em seus momentos de lucidez, ele se arrependia e me pedia perdão. Cuidava de minhas feridas e do meu pequenino por quem se afeiçoara. Seus sentimentos eram puros. Sua obsessão era legítima. Não era maldade. Era um impulso destrutivo. Havia mais bondade nele do que a estranha obsessão. - És um demônio?

- Não. Tinha curiosidade. Algo me impele a te machucar. Não gosto do que sinto. Mas eu sinto. O que significa esse desenho em tua nuca?

- Sou uma bruxa. Uma bruxa perdida de seu clã. Meu menino tem um sinal como esse em suas costas. Ele o protege do Mal.

- Se ele gosta de mim, então, não devo ser tão mau assim.

- Quem sabe?

- Por que continua a vender teu corpo?

- Porque tem quem o compre. Tu és um deles.

- Eu vou te curar.

- Tu!? És mais doente do que eu!

Eu não o amava, logo, não me importava em ser usada por ele ou por seus companheiros desde que me concedesse parte de seu poder e comida. Depois de tanto me machucar, ele me revela que se curou da obsessão.

- Agora que já não sou saudável como antes? Agora que tu me revela tua descoberta?

- Me perdoa.

- Nunca. Estou destruída por dentro. Minhas entranhas sangram, doem. Isso por tua estranha mania em me fazer sofrer. 

- Eu vou te proteger dos outros. Daqueles que trouxe comigo. Nenhum deles voltará a te tocar. Prometo.

- Não confio em vc. Jamais serei mãe novamente por tua culpa. - Parecendo arrepender-se, ele me pede perdão e antes de partir, sussurra.

- Nunca mais se venda a quem quer que seja. Estarei sempre contigo. Nada faltará a ti e ao teu filho.

- Promete?

- Prometo.

Acreditei.

Assim que meu amado filho completou cento e trinta luas cheias, seu maldito pai retornou à Terra. Escondidos e felizes, meu filho e eu, caçávamos juntos quando o ser repugnante surgira diante de mim e, com os olhos incandescentes, desdenhou.

"O macaco parece contigo". Avançando sobre a criança, ele a toca em seu braço. Indefeso, meu filho chora de dor. Enfurecida, arremesso minha lança contra o anjo maligno. Eu o acerto em seu peito. Curvando-se para frente, com as duas mãos no cabo de minha lança, ele a retira, lentamente, de seu corpo perfurado. Parecendo não sentir dor alguma, ele afirma ter direitos sobre o filho.

"Nunca!", protesto antes de reagir. Luto contra ele. Uma luta desigual. Seus poderes são maiores do que os meus. Ágil como o vento, ele escapa de meus golpes enquanto me fere com os seus. Recostada ao tronco da árvore mais alta, temo por meu filho quando o maldito, próximo a ele, corta a pele fina de seu antebraço com a unha afiada e imunda. Ergo-me e, com dificuldade, pulo sobre suas costas, cravando meu punhal em seu pescoço. Gargalhando, ele avisa.

- Sou imortal, idiota. - Tomando o punhal de minha mão, ele o enfia em meu coração. Caio contra a grama úmida enquanto vejo minha criança se ajoelhar e, com suas mãos espalmadas sobre a terra escura, invocar nossos deuses. Seu sangue puro  escorre de seu antebraço e pinga sobre a terra, fazendo-a tremer. Apavorada e surpreendida, eu ainda consigo assistir o maldito recuar.

- Tens medo. Maldito. Tu tens medo do meu filho. - Concluo, num suspiro. Cheio de fúria, ele rosna.

- Eu ainda vou encontrar essa criança. Sei esperar. 

- Quando isso acontecer, ele vai te vencer, abutre. Teu lugar é na Escuridão.

- Tu vens comigo. - Diz ele prestes a desferir um último golpe mortal contra mim quando o outro anjo surge e, agarrando-o pelas asas colossais, arremessa-o à distância. Jurando vingança, o maldito some enquanto o anjo pervertido se ajoelha ao lado de meu filho que chora, desolado, abraçado ao meu corpo quase sem vida.

- Cuida dele por mim. - Imploro, sem opção. 

- Cuido. - Promete-me ele, com os olhos azuis marejados. Tento retirar a lâmina do meu peito. Ele me impede e, com carinho, explica. - Vai morrer mais rápido se a retirar. Olha pra mim.  Ninguém tocará em teu filho. Apesar do sangue que corre em suas veias, ele é bom. Não te preocupa. - Com seu polegar sujo de terra, o anjo arrependido traça duas linhas retas em minha testa antes de me abençoar. 

- O que desenhou? 

- Uma cruz. 

- Não creio em teu deus.

- Mas eu sim. Não fale nada. Está muito faca.

- Não deixe meu menino sofrer...

- Descanse em paz, Ravena. Se puder, me perdoe pela dor que te causei. - Vendo-o acolher meu filho em um abraço, eu imploro, sentindo o líquido com gosto metálico borbulhar em minha boca. 

- Leve-o para longe daqui e seja seu protetor, vida após vida. Confio em ti, Cassiel. - Emocionado, ele sussurra.

- Eu vou te encontrar, vida após vida, Ravena. Farei disso, minha missão. Tu mudastes o meu jeito de ser.

- Tenho medo. - Confesso. Seus lábios tocam os meus e, pela primeira e última vez, ele se declara.

- Te amo.

Do céu escuro, caem gotas grossas de chuva. O rio transborda, rapidamente. A água inunda a grama verde, alcançando os troncos das árvores. Eu o vejo alçar voo e levar minha criança em seu colo enquanto tento não me afogar. Num dos troncos altos, protegendo meu filho com suas asas douradas, ele avisa.

- Todos serão punidos pelo dilúvio, Ravena. Esse mundo não tem salvação. Não resista. Não vai doer. 

Vejo o lindo rosto de minha pequena criança pela última vez. Debaixo d'água ainda penso se Cassiel será capaz de cumprir sua promessa. Engulo água do rio misturada à chuva. Galhos soltos cortam minha pele enquanto meu corpo é carregado pela correnteza do grande mar que, de repente, se formou. Quero retroceder e abraçar meu filho. Alcanço a superfície. Puxo o ar pela boca. Centenas de outros corpos são arrastados pela grande onda que devasta aldeias inteiras. Mãos me puxam para baixo. Volto a afundar. Não quero morrer. Quero meu filho de volta.

Tarde demais...

Dor. Medo. Pânico. Bolhas. Escuridão. 

O que devo fazer? O que devo fazer!? Um breve momento de lucidez e clamo por ajuda.

"Antoine!"

Sua mão firme me resgata da morte e me traz de volta ao presente.

- Onde está a criança!? - Pergunto, resfolegante. - Era vc!?

- Não. - Um olhar ao irmão ainda dormindo em sua cama e ela pergunta, reticente. - Não faz ideia de quem seja?



Bebo dois litros d'água de uma só vez. De olhos fixos nas árvores do jardim, apoio-me na pia da cozinha, em frente à janela. Ainda guardo as sensações de dor causada pelo maldito que, ao engravidar Ravena, dera início a uma geração de humanos com vestígios de seus genes e poderes. Ainda tenho o mesmo poder que Ravena? Matteo ainda guarda consigo algo da pobre criança separada da mãe? Não. Não acredito. Meu filho é normal. Ele é bom. Salvou o amiguinho na piscina. Antoine me mostrou o início do transtorno de Vincenzo, mas isso não revela os segredos que ele tenta esconder de mim. O que o atormenta tanto a ponto de não querer dividir isso comigo? Eu poderia perdoar esse passado. Ele, provavelmente, perdoou o meu. Meu instinto me diz que um segredo ainda maior e mais aterrador está prestes a ser revelado e eu não quero ouvir nada. Nada mesmo. 

Na verdade, a conclusão a qual cheguei é que ele continua a ser o monstro que já foi há milênios, mas, ainda assim, eu poderia perdoar seus erros e tentar viver em paz ao seu lado. Meu amor por ele é maior do que o pânico em conhecer seu grande segredo.

- Meu Deus! - Corro até o quarto ao ouvir o choro de Matteo. Sentado na cama da irmã, ele ergue os bracinhos e reclama com um magoado 'neném dodói'. Sentando-o em meu colo, observo seus braços e, atordoada, reconheço o arranhão.

- O que é isso, filha!?

- São vestígios do passado. Vai sumir, mãe. Fica tranquila. - Beijando o rostinho de meu filho e o seu machucado, revolto-me.

- Por que eu voltei ao passado!? Isso pode afetar o presente!

- Isso pode esclarecer o presente, mãe. Esclarecer.

- Vc tá me escondendo alguma coisa!? - Questiono enquanto a sigo até a cozinha. Com Matteo em meu colo, ordeno. - Antoine! Me conta tudo!

- Não posso, mãe. Só o meu pai pode fazer isso.

- 'Neném dodói' - Lamenta Matteo mostrando-me os braços. 

A marca das unhas de Lúcifer sumiu. 



- Porque ela não aguentaria. Minha mãe é humana, pai. Tantas vidas em sua memória só a deixaria ainda mais doente.

- Então, por que voltar a esse assunto!? Ela não precisava saber! - Do corredor, ouço os cochichos entre Vincenzo e Antoine, trancados em seu quarto. Perturbada, permaneço recostada à parede, sofrendo a cada palavra dita. - Ela se afastou de mim. Não sei mais o que fazer. 

- Não faça nada, pai. Deixe que ela o procure. - Aconselha Antoine num tom autoritário. - E, enquanto isso, tente não cometer os mesmos erros. Já perdemos muitos. Eu não vim aqui pra ver vc se perder novamente.

- Me ajuda...- Sinto medo na voz de Vincenzo. Por quê? - Eu não quero mais errar.

- Temos pouco tempo, pai. Não me decepcione. - Um súbito movimento na maçaneta e eu corro, desnorteada, até o quarto de Matteo. Tranco a porta por dentro e, com o coração aos pulos, observando meu filho dormir tranquilamente, pergunto-me se devo continuar a confiar em minha família ou se foi tudo um grande engano. 

Até mesmo de Antoine, eu desconfio.

Sinto falta de Enrico. Ele me diria a verdade. Subitamente, penso ter ouvido o som de sua voz distante a me afirmar.

"Ainda não terminei minha missão".



Antoine e eu ensaiamos os passos para a coreografia de sua festa de quinze anos. Uma festa que não posso organizar sozinha e não pretendo voltar a conversar com o homem que me esconde seus segredos, embora sinta a falta de nossas brigas, nossas brincadeiras, risos, beijos, abraços apertados. Quero de volta o pai dos meus filhos. Estamos cada vez mais sozinhos e indefesos e ele ainda tem medo de me confrontar e me contar a verdade. 

Covarde.






- Essa música é impactante, filha. Por que a escolheu?

- Porque é um flashback e vc adora flashbacks.

- Mas é a sua festa, filha. Deveria ter músicas modernas.

- Mãe, não há muitas opções de músicas boas, ultimamente. Pode acreditar.

- Acredito. - Sorrio. - Vc não faz ideia de quanta porcaria minhas alunas ouviam durante o intervalo entre nossas aulas. Sua geração, infelizmente, não sabe o que é música de verdade.

- Minha geração, mãe?

- Antoine! Vc entendeu! Não me deixa nervosa!

- Ok. - Diz ela, sorrindo. - Não vou começar a falar do que vc não gosta de ouvir.

- Gosto do ritmo. É meio que intimidador...

- Essa é a intenção, mãe. Intimidar. Amedrontar. Avisar que estamos prontos.

- Prontos pra que, Antoine?

- Quer mesmo saber?

- Não! - Cubro minha cabeça com o capuz e, atordoada, imploro. - Nunca mais fale dessa coisa de 'A Grande Batalha'. Isso não existe.

- Ok, mãe. Ok.

- Por que tá me olhando assim? - Num arroubo de carinho, ela me encara ao confessar.

- Tenho orgulho de vc, mãe. Apesar de toda a dor que já sentiu, superou todos os obstáculos e cuidou de mim e do meu maninho e aceitou meu pai, como ele é. - Diante de seu reflexo no longo e retangular espelho preso à parede de meu quarto de dança, refuto. 

- Eu não posso aceitar alguém que desconheço, filha. Quem é o seu pai?

- Já se esqueceu?

- Do quê? - Um sorriso singelo e ela me beija ao concluir.

- Melhor assim. Quando podemos ensaiar com o Leo?

- Antoine! Não desconversa! Esqueci do quê!?

- Das suas suspeitas, ué. Por isso, vcs não se falam. Ainda. - Semicerrando os olhos, eu a encaro e, absolutamente decidida a não desconfiar de minha filha, eu me calo. - Quando?

- O quê?

- O ensaio com o Leo, mãe!

- Aaah tá. Quando quiserem. - Desanimada, comento. - Filha, sua festa não tem convidados. Vou fazer o possível pra ser um pouco do muito que merece. Ok?

- Mãe. - Outro beijo em minha bochecha e ela exulta. - Minha festa será simplesmente esplêndida! Cheia de surpresas! Vc vai ver!

Odeio surpresas...






- Não sei como te ajudar, Aninha. 

- Tenta qualquer coisa. Eu confio em vc. 

- Nem eu confio em mim mesma, querida. - Lamento. - Não faço ideia do que fazer com minha vida.

- Problemas com Vincenzo? - Encarando o menino carrancudo ao seu lado, minto. 

- Não. Estamos bem. - Bem distantes. - O que tem sentido?

- Dores nas costas. - Responde-me ela sentada em seu sofá, em sua sala minúscula, enquanto tomamos vinho. Volto no tempo e me recordo de como Vincenzo e eu fomos felizes no sobrado da academia de boxe. Éramos pobres e felizes...e normais e, então, vieram as doenças. - E, à noite, já não consigo mais dormir. Sinto a presença de alguma coisa. De alguém com muita raiva. Ouço seus passos. Sua respiração ofegante bem próxima ao meu ouvido. Tenho medo. Muito medo. - Hesitante, ela pergunta. - Vc acredita em fantasmas? - Extremamente triste e solitária, respondo após um riso histérico.

- Eu acredito em tudo, Aninha. Fantasmas, gnomos, duendes, querubins, bruxas, demônios, espíritos, mortos, arcanjos e anjos. Anjos falsos. Anjos que machucam...

- Do que tá falando?

- Quantas vezes abortou? - Indago, enfática. - Não precisa mentir pra mim. Não vou te julgar. 

- Três...- Responde-me ela, curvada, sob o peso do menino em suas costas. Essa situação já está me deixando 'puta'. - Eu não poderia sustentar uma criança sozinha.

- Entendo...- Minto novamente. Algo dentro de mim se revolta. - Sua namorada sabe que vc gosta de homens? 

- Não. - Confessa ela. - Nem pode saber. Eu a amo. Não quero que ela sofra.

- Já pensou em parar com seus encontros secretos? Por que nunca se preveniu? Temos acesso a muitas informações sobre sexo seguro nos dias de hoje.

- Vc disse que não me julgaria. - Lamenta ela. - Pra vc, eu sou uma assassina.

- Não disse isso. Pra mim, vc é uma jovem leviana. É diferente. Mas...- Um outro gole do vinho e movendo meus braços aleatoriamente, cruzo minhas pernas e declaro. - Isso não vem ao caso. Já deu. O que passou, passou. Agora, encare as consequências de ter alguém gritando por justiça sem compreender que, na verdade, deseja vingança.

- Quem???

- Seu filho. - Um olhar desesperado ao redor e ela pergunta. 

- Onde??? - Elevo meu olhar acima de sua cabeça e, encarando o espírito vingativo, respondo num tom sombrio.

- Em suas costas.

- Me ajuda!!! 

Grita ela antes de se deixar possuir e cair contra o chão da sala, convulsionando. Sob a ação maléfica do menino, ela se contorce como um boneco de mola. Imobilizada, eu a ouço implorar por socorro num sussurro de dor enquanto sua coluna vertebral se curva para trás, forçando sua cabeça a se encostar em seus pés. Ouço o estalar dos ossos a cada movimento brusco. 

Minha raiva aumenta.



Tomada por um sentimento bem distante da compaixão, eu o confronto.

- Saia da vida dela ou vou te tirar de um jeito ou de outro. 

"Não. Ela deve sofrer".

Em outras ocasiões, eu apelaria à bondade de Miguel, o Arcanjo. Agora, estranhamente irritada e longe de ser o que já fui um dia, ajoelho-me ao lado do corpo contorcido de Aninha e, traçando um círculo repleto de sinais cabalístico que desenho com o giz que trouxe de casa, no chão da sala, invoco seres não tão iluminados como o Arcanjo. O odor fétido os precede. Os pelos de minha nuca se eriçam. Eles atendem ao meu chamado e obrigam o menino a se afastar daquela que o matara por três vezes. Enfurecido, ele rosna.

"Me deixa! Ela precisa pagar pelo que fez!"

- E vai! - Afirmo, entredentes. - Mas não será vc a cobrar por isso! Agora vá! Por bem ou por mal, vc deve partir! - Insistindo em permanecer, ele reforça meus instintos selvagens e a minha fúria crescente. Erguendo meu braço direito, eu o expulso, sem o menor vestígio de culpa ou piedade. - Volta pro inferno de onde saiu, verme!

Um gemido de dor e ele sucumbe nas mãos dos seres tão vingativos quanto eu.

O que eu acabo de fazer? Eu não era assim.




Acordo tarde. Incomodada, sem saber o porquê, visto-me apressadamente e, antes de entrar no quarto de Matteo, no corredor, esbarro em Vincenzo que, sem jeito, pede-me desculpas. Mordendo meu lábio inferior, de costas para ele, arquejo, cheia de saudade de sua voz, de sua presença. De cabeça baixa, passo por ele e vou ao encontro do nosso filho. Pela primeira vez, em dias, ele fala comigo.

- Dess?

- Sai da frente. Preciso vestir meu filho. Ele vai comigo até meu trabalho. 

- Posso ficar com ele. Não vou trabalhar hoje.

- E daí?

- Ele fica comigo. Vc trabalha tranquila.

- Tranquilidade é algo que nunca mais senti, Vincenzo. - Lamento enquanto luto por vestir Matteo que brinca de me irritar ao se recusar a vestir o macacãozinho. Vincenzo se aproxima com a intenção de me ajudar enquanto eu o afasto, arremessando-o contra o piso, com um ligeiro e brusco movimento de mão. Do chão, ele me olha assustado ao me perguntar.

- Como fez isso, Dess?

- Fiz o quê? 

- Dess! - Erguendo-se do chão, com os olhos arregalados, ele me impede de chegar ao corredor.

- Me deixa passar! Tô atrasada!

- Não posso. Não antes de conversar com vc. 

- Não tenho o que falar, Vincenzo. - Chorando, Matteo se joga no colo do pai. Incrédula e enciumada, eu o puxo para mim. Matteo chora mais alto. Atormentada e confusa, eu o deixo no colo de Vincenzo e grito, antes de sair pela porta da sala. - Quer ficar com seu pai!? Fique! Fui!

Dentro do carro, choro compulsivamente. Sinto que estou perdendo tudo o que mais desejei em minha vida: minha família. 

No rádio, uma canção triste. Tão triste quanto eu...



- Dess. Não fica assim. Fica em casa hoje. Fica com seus filhos. Fica comigo. - Um arquejo e ele confessa. - Não suporto mais ficar longe de vc, amor. Me dá uma chance. Só uma. Por favor.

Com a testa no volante, continuo a chorar com saudades do que tínhamos. Era tudo tão simples. Ele me amava. Eu o amava. Nós amávamos nossos filhos e planejávamos um futuro para eles. O que mudou!? Por que mudou!? - Dess. Olha pra mim. - Com Matteo em seu colo, ele se senta no banco do carona e insiste. - Olha pra mim, amor. Eu te machuquei. Eu fui o culpado por toda confusão em sua cabeça. Me deixa consertar tudo. 

- Mamãe 'dodói'? - Pergunta Matteo ao pai. Beijando sua testa, Vincenzo assente com a cabeça e o responde com a voz baixa e triste.

- Sim, meu filho. Mamãe 'dodói'. Papai 'dodói'. Papai muito 'dodói' sem mamãe.

- Para. - Choramingo, levando as mãos ao rosto. - Deixe ele fora dessa sujeira toda.

- Que sujeira, amor? Do que tá falando?

- Não sei...- Insegura, permito que ele toque meu rosto com o dorso de sua mão. Percebo que sem seu toque a vida fica mais triste. Abrindo a porta do carro, caminho até a varanda de onde aviso. - Não se aproxima de mim. Vc me faz mal, Vincenzo. Não sei como. Não me lembro como, mas eu sei que vc me faz mal.

Dando-lhe as costas, caminho até nosso quarto onde sento na beirada de nossa cama e volto a chorar. Um imenso vazio ameaça tomar todo meu corpo, meu peito, meu coração dolorido. Puxando o ar pela boca, imploro.

- Me ajuda, Jesus.

- Vc O aceitou...- Suspira Vincenzo sentando-se ao meu lado. Matteo me sorri com seus quase vinte dentinhos de leite. Um sorriso inocente e cheio de luz. Desmancho-me. - Ele te ama, Dess. 

- Quem? Jesus ou nosso filho?

- Ambos. O Filho de Deus vai te amar pra sempre, independentemente do que fizer, assim como nosso filho. Vc é a mãe perfeita, Dess.

- Não me olha assim, idiota. Sou cheia de defeitos. Defeitos de fábrica.

- Eu amo todos eles, Dess.

- É impressão minha ou a música do carro tá tocando na sala? - Um riso inocente e ele comenta.

- Acho que sim. O Universo quer que vc me perdoe. Quer nos ver juntos novamente.

- Pra vc me machucar de novo?

- Nunca mais, meu amor. Eu nunca mais vou tocar em vc pra te machucar. Mesmo que vc me peça por isso. Vc não sabe o quanto me arrependi. - Seus lindos olhos azuis estão úmidos quando afirmo, confusa.

- Sei sim. Não me pergunte como, mas eu sei. Vc me disse. Em algum momento, vc disse isso. E eu acreditei.

- Acredite. É verdade. No passado e agora, eu me arrependo de todo o mal que te fiz, Dess. Vc sempre foi e sempre será o motivo de eu estar aqui. Ainda que coisas terríveis venham à tona, nunca se esqueça de que eu sempre te amei. Do meu jeito, eu sempre te amei e somente a vc. - Mergulhando em seus olhos, indago.

- Coisas terríveis?

- Dess, volta pra mim. Vamos viver o que nos resta.

- Tenho medo.

- De quê?

- De te perder.

- Não vai. Eu prometo.

- Vc nunca cumpre suas promessas, Vincenzo.

- Prometo ficar do seu lado até o fim.

- Não fala assim...- Apavorada, volto a chorar. Recostando minha cabeça em seu peitoral, imploro. - Não fala assim. Isso me dá medo. Não quero ficar sem vc.

- Não vai, meu grande amor. - Sussurra ele, acariciando meus cabelos. Matteo, entre nós dois, com sua mãozinha espalmada, toca no espaço entre meus seios e ordena franzindo as sobrancelhas.

- Mamãe 'dodói' passou! Papai e mamãe 'dodói' não!

Compartilhamos um riso tímido. Nossos olhos se encontram. Há esperança no semblante de Vincenzo quando Antoine, repentinamente, surge e, sem nada dizer, toma Matteo dos braços de Vincenzo e nos dá as costas. 

- Mamãe 'dodói' passou, 'nininha'. - Diz ele enquanto é levado para longe. Aos risos, do corredor, Antoine confirma

- Eles vão ficar bem, maninho. Podes crer. Vão ficar bem.

Ao seu lado, como uma adolescente tímida diante de seu grande amor, eu me encolho. A música se repete em algum lugar da sala, chegando ao nosso quarto. Vincenzo toca em minha mão e, receoso, pergunta.

- Dança comigo, Dess?

- Tantos problemas em nossa cabeça, em nossas vidas, e vc me pede pra dançar. Só vc, Vincenzo. - Desdenho. - Só vc...

- 'Sem música, a vida seria um erro', já dizia 'Niezstche'. - Encantada por seu sorriso sedutor, reviro os olhos e aceito seu convite. Em seus braços, sorrindo, resmungo.

- Te odeio, Vincenzo.


Ele me tocou com tanto amor! Tanta paixão! Tanto cuidado! Eu me senti uma virgem em sua primeira noite com o homem que sempre amou. Como a estudante que viveu ao lado de seu melhor amigo desde o primário e, com ele, compartilhou o primeiro beijo; com ele, se casou. Havia magia ao nosso redor enquanto nos amamos em nossa cama. Havia dor, ressentimentos e uma imensa vontade em recomeçar. Pela primeira vez, eu me esqueci de alimentar Matteo, de levar Antoine ao treino e de trabalhar. Envergonhados, rimos enquanto corremos até a cozinha e, de lá, voltamos com frutas e vinho até nosso quarto e, loucos de saudades, um pelo outro, recomeçamos a nos amar com ternura e um toque suave de dor.

Enquanto explorávamos nossos corpos, ouvíamos a música preencher o quarto, inexplicavelmente. 

- Ainda a ouve?

- Sim. Estranho, né?

- O que em nossa vida é normal, Dess?

- Nada. - Rindo, tomo outro gole de vinho no gargalo e, de lingerie, eu o convido. - Dança comigo? - Absolutamente nu, ele me abraça com força, beijando meu pescoço. Eu o guio ao som da canção e sussurro um pedido. - Não minta pra mim, amor. Agora que estamos juntos novamente, não deixe que as brechas nos separem. Estou disposta a perdoar tudo. Sei que me perdoou por tudo. Eu vou te perdoar também. Não minta pra mim. - Hesitante, ele murmura em meu ouvido.

- Não vou, Dess. Podemos parar de dançar?

- Por quê? - Mostrando-me seu pau ereto, ele me pergunta, sorrindo.

- Preciso responder?

- Não! - Respondo, rindo euforicamente.

Fizemos amor até o amanhecer. Ele me fodeu com força. Ele me beijou com doçura. Adormecemos, abraçados, jurando que nada iria nos separar.

E, assim foi, por um tempo.


Juntos, Vincenzo e eu, organizamos uma festa surpresa para Antoine que ainda ensaia os passos de nossa coreografia com Leo, sem sequer perceber nossos esforços em alugar um grande salão, DJ, decoração, buffet para pouquíssimos amigos. Excetuando João e sua família, não sobrou nenhum outro amigo vivo.

Não quero chorar. Não no dia de escolher seu vestido. A roupa de 'pajem' para Matteo está perfeita. Camisa social branca de mangas compridas e uma calça em linho. 

Ele ficou tão fofinho!

Talvez, nada disso valha a pena, mas eu preciso pensar e sonhar que teremos um dia feliz e normal como todos os outros pais de debutantes. Vincenzo escolhe um terno simples que, em seu corpo fica absolutamente avassalador.

'Super sexy!', sussurra-me ele ao me ver dentro de um vestido preto, longo e decotado na altura dos seios e abertura na lateral. Apesar de tudo ao nosso redor estar prestes a ruir, estou gostando da sensação de fingirmos que está tudo sob controle.

- Qual dos dois? 

- Melhor que ela escolha. Não acha?

- Sim. - Assumo, encabulada, ao abraçar os dois vestidos de princesa em meus braços. Um lilás e outro azul. Ambos longos, ao estilo 'fada'.

- Por que me olha desse jeito?

- Porque vc é linda e generosa.

- Deixa de ser idiota. - Resmungo enquanto dou um nó em sua gravata no interior do provador da loja especializada em debutantes, noivas e afins. - Não me faça chorar antes do grande dia. Eu odeio seus rompantes emotivos. - Num tom sombrio, ele declara.

- Eu te amo, Dess. Não se esqueça disso.

- Tá me assustando. - Aviso. - Para com esse assunto e vamos embora daqui. Nosso filho tá surtando aqui dentro. - Rindo de Matteo puxando as roupas dos cabides, alerto. - Daqui a pouco, seremos expulsos pela dona da loja.

- Leo e eu já decoramos os passos da coreografia, mãe. Tá simplesmente esplêndido. Vc precisa ver.

- Prefiro ver no dia do seu 'níver', filha.

- Sério? Vai ser aqui mesmo...- Comenta ela, desanimada. - Podemos mostrar agora ou...

- No dia de seu 'níver' de quinze anos, filha. - Decido, animada com nossa surpresa. - Até lá, ensaie ainda mais. Bailarinas normalmente chegam à exaustão. Continue a ensaiar. - Uma piscadela a Vincenzo e ele me sorri de volta. Diante da mesa farta, Leo observa, devorando o prato com feijão, arroz, bife e batatas fritas.

- Antoine tem o dom de dançar, tia. 

- Eu sei. Puxou a mim.

- Ela dança como se estivesse sentindo tudo o que a letra da canção diz. Tipo...sentindo na 'real'! Saca!?

- Saco. - Sorrio.

- Quem nunca sentiu raiva, Leo? - Pergunta Antoine, olhando-nos nos olhos, catando uma das batatas de Leo. Engolindo-a, lentamente, ela considera.  - Eis um sentimento inerente ao ser humano. Raiva. 

- Mas, a canção não se refere à raiva, filha. É meio que um grito de liberdade e encorajamento. 

- Exatamente. - Diz ela. - Encorajamento a ter raiva contra o sistema. Contra o mal. Raiva.

- Raiva. - Repito, incomodada com seu olhar incisivo. - Vc tá bem, filha? 

- Nunca estive melhor, mãe. E vc, papai? Já fez o que deveria ter feito ou vou ter que fazer, por vc, o que já deveria ter feito?

- Oiii???

- Calma, mãe. É um assunto nosso.

- Não existem assuntos entre vcs, Antoine! Não enquanto eu estiver aqui! Entendeu!? Ainda sou sua mãe! Aquela que te pegou na praça e...

- Já sei, mãe. - Interrompe-me ela, com os olhos fixos em Vincenzo. - Conheço essa história. Graças a vc, estou aqui e, daqui, não saio enquanto houver algo a ser consertado. Algo que se quebrou com o tempo.

- Antoine! - Protesto sentada à mesa, diante dela. Vincenzo, ao meu lado, baixa a cabeça e emudece. - Não gosto de enigmas! Seja clara! E não desrespeite seu pai!

- Dess. Deixa pra lá.

- Não, Vincenzo! Ela tá claramente te afrontando!

- Não foi afronta, mãe. Foi só uma pergunta e, quem precisa ser claro é o meu pai. - Insiste ela com uma calma irritante. Sem desviar os olhos dele, ela me faz arfar, puxando o ar pela boca ao perguntar. - Já contou a ela tudo o que deveria ter contado, pai?

- 'Pega leve', Antoine.

- Não, Leo. Não tenho tempo pra 'pegar leve'. O tempo não para. Nem mesmo pra mim.

- ANTOINE! CHEGA!

- Tá assustando sua mãe, filha. - Pendendo, exageradamente, a cabeça  para o lado direito, ela esboça um sorriso e pressiona Vincenzo com a voz grave.

- Vc ou eu? Quem vai contar a verdade? 

- Parem...- Imploro, tonta, fraca. - Meu remédio, Vincenzo...

- Já volto! - Avisa ele retirando-se, apressadamente, da mesa de jantar sob o olhar atento de Antoine. - Aguenta firme, Dess!

- Antoine...- Sussurro antes de ceder aos sintomas de minha doença. - Para com isso. Ele é seu...pai.

- Eu sei, mãe. É por esse motivo que ele ainda está entre nós. Ele é o meu pai e eu o amo. Sempre o amei e estou sendo cobrada por esse amor.

- Dess!? Amor!? - Um tapa em meu rosto e o ouço gritar. - Não me deixa! Acorda!


Surpreendida por sua beleza ainda mais diáfana dentro de seu vestido de debutante, esqueço-me de suas insinuações e do silêncio suspeito de Vincenzo enquanto a assisto brilhar no meio do salão, ao lado de Leo em seu smoking preto. Há algo de imponente nele. Algo de desafiador. Definitivamente, há uma aura de mistério ao nosso redor. 

- Uau...- Arqueja Vincenzo, com Matteo em seu colo, assim que Antoine se posiciona no meio da pista de dança e, num gesto ligeiro e decidido, retira a saia do vestido que se transforma em um macaquinho com lantejoulas douradas e cintilantes.

- Minhas botas de cano alto!? - Indago, entre indignada e surpresa. - Pra quê!? Ela nem me pediu!

- Fica quieta, Dess. - Cochicha Vincenzo. - Ela sabe o que faz. - Um outro olhar ao redor e, além dos poucos convidados que conhecemos, sentados às mesas, revejo Doc, Adele, Jujuba, Mimi e Sweet num dos cantos do salão, mergulhados na penumbra. Eles me acenam. Extremamente emocionada, erguendo o braço direito, aceno de volta. Por que não encontro Cassie? E Enrico? Uma pontada em meu peito e tento não pensar no pior.  Contenho minhas lágrimas assim que encaro Aiden na porta de entrada por onde dezenas de jovens acabam de entrar, vestidos de preto, calçando coturnos. Assustado, Vincenzo resmunga. - Que diabos é isso? - Um sorriso e caçoo.

- Fica quieto, Vincenzo. Ela sabe o que faz.

Soltando os cabelos presos por adornos, Antoine aponta seu indicador ao DJ e, ao olhar para mim, avisa, eufórica.

- Estamos prontos, mãe!

- Pra quê? - Sussurro antes de ouvir seus pés chocando-se contra o chão num movimento rítmico, seguidos por palmas, assim como eu ensinei. - Quem são eles?

Vincenzo me abraça forte. Matteo, no chão, arranca risos dos convidados - vivos e mortos - ao dançar do seu modo. 

O que vejo, daqui, não me parece uma simples coreografia entre jovens. Parece-me um grupo de soldados prestes a iniciar uma batalha.

- 'A Grande Batalha'. - Suspira Vincenzo, alheio aos meus pensamentos. 



Vejo lágrimas em seus olhos. Sinto seu coração acelerar junto às batidas fortes e compassadas contra o piso laminado. O coro de vozes enfurecidas, liderado por Antoine, parece alertar:

"We will rock you!"

- Não tô gostando disso, Vincenzo.

- Dess, é um flashback. - Um sorriso triste e ele comenta. - É uma homenagem a vc. 

- Não é não...- Erguendo-me da cadeira, encaro o olhar preocupado de Aiden à procura de algo ou alguém. - Merda. Vai acontecer alguma coisa.

- Fica, Dess!

- Me solta!

Avançando em direção ao grupo aplaudido de pé por todos, eu me misturo a eles ao segurar Antoine pelo braço e, insegura, perguntar.

- O que tá acontecendo aqui, filha!? Eu tô com medo!

Num abraço forte, ela me sussurra algo ainda mais amedrontador.

- Vc precisa ser forte. A batalha começou. 

Os jovens desconhecidos recuam. Leo se afasta, olhando-me com tristeza. Antoine volta a encarar Vincenzo que, ao meu lado, com Matteo em seu colo, murmura num tom de lamento.

- Preciso te dizer a verdade.

- Puta que pariu! - Recuo, apavorada. - Que merda tá acontecendo aqui!? Era pra ser uma festa!

- Dess, se acalma. Os convidados vão ouvir. - Puxando-me pelo braço, ele me leva até a entrada do salão enquanto o DJ se empenha em animar alguns poucos casais que se atrevem a dançar. Matteo, empolgado, volta a alegrar a festa pulando, eufórico, sobre a pista 'Light Way'

- Ele não pode ficar sozinho, Vincenzo!

- Dess! Calma! Tá tudo sob controle! João tá ali, com ele!

- Se está tudo bem, por que vc tá nervoso, Vincenzo!?

- Eu preciso te contar algo. 

- Esse não é o momento pra termos conversas íntimas ou revelações, Vincenzo! - Impaciente, ele grita.

- Por que não para e me ouve!?

Sob as luzes dos holofotes coloridos movendo-se de um lado ao outro, sentindo-me no palco do 'California', angustiada, cubro meu rosto com as mãos e respondo.

- Aiden tá aqui. 

- Aiden??? O que esse bosta veio fazer na festa de nossa filha??? - Encarando-o, pergunto, assombrada.

- O que um guardião faz, Vincenzo!? 

- 'Guardião' porra nenhuma!!! - Deixando-me para trás, ele pragueja. - Esse demônio não vai estragar a festa de nossa filha!!!

- Volta! - Tentando alcançá-lo, ordeno. - Para! Não consigo correr com a porra desses sapatos! Vincenzo!

De volta ao salão, eu o vejo desnorteado entre os convidados e garçons. Retiro os sapatos com saltos altíssimos e os arremesso contra suas costas. Enfim, consigo sua atenção.

- Eu odeio quando faz isso!

- Eu odeio quando me ignora, Vincenzo! 

- Onde aquele verme está, Dess!? - Procurando-o com meus olhos atentos, minto.

- Não sei! Sumiu! O que queria dizer pra mim!

- Dança comigo, pai? Afinal, eu sou a debutante. 

- Por que tá usando seu vestido novamente, Antoine!?

- Mãe. Não surta. Não gosto de ficar com as pernas de fora.

- E o que quis dizer com 'a batalha começou'!?

- Dess. Ela quer dançar comigo. Podemos?

- Não me empurra, ordinário!

Um sorriso cafajeste e ele me dá as costas. No centro do salão, pai e filha deslizam ao som de uma antiga canção. De onde ela a conhece? Por que tão triste? Ela ainda se sente sozinha?



Vincenzo, emocionado, ergue os olhos úmidos. Antoine, de olhos fechados, recosta sua cabeça no ombro do pai. Matteo, alheio a tudo, corre ao redor do casal, erguendo os bracinhos. Ao se deparar comigo, ele faz cara de assustado e pergunta num tom alto.

- 'Mamãe dodói'!? - Rindo, movo minha cabeça numa negativa. Recuo enquanto ele volta a correr pela pista de dança, encantado com as luzes no chão. Vincenzo move seus lábios ao sussurrar algo a Antoine. Antoine sorri e volta a olhar o pai com orgulho. Eu me sento na cadeira de uma mesa qualquer e, absolutamente desorientada, permito-me chorar. Procuro por Doc. Preciso de um abraço. Um daqueles apertados e cheios de compaixão que somente ele sabia dar. Alguém se senta ao meu lado. De olhos fechados, sinto o toque suave de sua mão sobre a minha. Sua voz rouca confessa.

- Daria tudo pra dançar com vc, baby.

- O que faz aqui, Aiden?

- Saiam daqui. Antes que seja tarde demais. - Enxugando minhas lágrimas com o guardanapo em tecido, indago, confusa.

- Por quê!? A festa ainda não terminou! - Erguendo-se, subitamente, ele insiste.

- Vão embora. Agora, baby.

- Espera!



- Com quem falava, Dess?

- Com Doc. - Minto. - Eles estavam aqui. Doc, Sweet, Mimi, Jujuba e Adele. - Evito o olhar incisivo de Vincenzo quando Antoine anuncia.

- Papai tem algo muito importante pra te dizer, mãe.

- Em casa, filha. Em casa. 

- Mas, mãe. Não temos tempo. - Um temor toma conta de meu corpo e coração quando me ergo da cadeira e, atordoada, pergunto. 

- Cadê Matteo!?

- Ele estava...-Repentinamente, Vincenzo fixa seu olhar cheio de cólera em um ponto no exterior do salão e corre até lá. Descalça, eu o sigo. Ao lado de Vincenzo, estaco.

- Larga ele. - Rosno contendo a ira de Vincenzo com meu corpo. Matteo sorri para mim e, inocentemente pergunta.

- Ele é 'bobô' meu?

- Nunca! - Vincenzo me empurra para o lado e avança em direção a Lúcifer quando o maldito ameaça cortar a gargantinha de meu filho, em seu colo, com sua unha afiada e imunda. Recuando, Vincenzo implora, erguendo os braços na defensiva.

- Não faça isso. O que quer de mim? Peça e eu o farei.

- Não! - Protesto sem compreender como fui parar ao lado de Lúcifer ou como uma adaga pulsa em minha mão. Deixando-me guiar pela raiva, rasgo a pele de seu braço. Um corte em meu antebraço e uno meu sangue ao dele ao ordenar num rosnado. - Deixa meu filho em paz, maldito. - Demonstrando nojo e uma certa fraqueza, ele devolve Matteo a Vincenzo antes de desdenhar.

- Toma. 'Argh'. Como sua esposa é desagradável. Eu só queria matar as saudades de meu neto. - Outro golpe em seu peito e murmuro com a mão pressionando o cabo da adaga.

- Conheço teu ponto fraco e não é aqui. Lembra da espada forjada no interior do vulcão? Do anjo que tentou ultrapassar a barreira invisível e não conseguiu? Da cicatriz que Anahita deixou? - Um sorriso sarcástico e, livrando-se do punhal cravado em seu corpo, ele me provoca.

- Isso não te faz lembrar de algo? De uma outra lança ou de um filho perdido? De um amante brutal e animalesco? Um anjo pervertido?


- Cala a boca! - Grita Vincenzo saltando sobre Lúcifer. Suas asas colossais se abrem enquanto o golpeia com seus punhos. Lúcifer gargalha assim que Vincenzo recua, exausto. Do gramado ao lado do caminho de pedras, ele volta a me provocar.

- O bonitão já confessou seus pecados?

- Não...por favor...- Lamenta Vincenzo. Acuado, ele abraça Matteo enquanto, confusa, observo Antoine erguer seus braços e atingir o maldito com chamas azuladas. Incomodado e irritado, ele avisa.

- Seu tempo está acabando, menininha e, infelizmente, o covarde de seu 'escolhido' não soube dar o valor que vc merece. Posso dizer que vc é simplesmente patética. - Um chute com o coturno em seu queixo e Lúcifer desaparece.

Por que Antoine trocou as botas? 

- Aonde ele foi?

- Dess! Seu braço tá sangrando!

- Fica longe, Vincenzo.

- Dess...

- Eu quero meu filho. - Rosno antes de tomar Matteo de seus braços. Caminhando em direção à saída do imenso jardim iluminado, sou impedida por Antoine que me faz chorar ao argumentar.

- Mãe. É a minha festa. Ainda não terminou. Volta. Fica comigo. Talvez...seja a última.

Eu deveria ter seguido minha intuição e partido. Deveria ter ouvido o conselho de Aiden e fugido daquele salão, mas...

Eu fiquei até o fim.



Vincenzo e João, bêbados, comemoram a brilhante festa. Com a voz entaramelada, ouço João estranhar.

- Ela cresceu muito rápido, irmão.

- É...- Confirma Vincenzo, abobalhado. - Querubins são assim.

- 'Queru' o quê!?

Ambos hesitam antes de gargalharem juntos. Leo e Antoine dançam uma canção de amor. Ela o beija no rosto. Ele, enfim, vence a timidez e a beija nos lábios como se fosse a última vez. Choro enquanto danço com Matteo em meu colo. Ele enxuga minhas lágrimas com suas mãozinhas e vibra ao apontar para o chão e proclamar.

- Ele 'bria', mamãe! Ele 'bria'! - Beijo sua testinha suada e concordo.

- O chão brilha, meu filho. Ele brilha. - De costas para a entrada do salão vazio, ouço palmas. De olhos fechados, pressinto sua presença nefasta. - Não é possível. Ele não.

Antoine e Leo se afastam e me protegem com seus corpos. 

- Fique com seu irmão, filha. Eu cuido disso.

- Mãe!

- Me obedeça.

Vendo-o mancar em direção ao DJ, eu o observo. Um olhar acima de nossas cabeças e reconheço as sombras com rostos patibulares. São muitas. Excetuando a família de João, não há qualquer convidado presente.

E, de que adiantaria o salão cheio? 

Corro até a cabine do DJ onde o confronto.

- Verme. O que faz aqui? Não foi convidado. Saia agora.

- Seu marido bêbado ainda não te contou seu segredo? - Que porra de segredo é esse que todos sabem exceto eu!? - Acorda, Adessa. - Tomando o microfone da mesa do DJ, Liam manca até o centro do salão. Lançando-me um olhar triunfante, ele cumprimenta os presentes. Vincenzo, enfim, o reconhece. Demonstrando um imenso esforço em se manter de pé, incrédulo, ele pergunta.

- Liam!? O que faz aqui!? - É sério!? Só isso!? Cato um copo de vidro da mesa e, enchendo-o com a água da fonte próxima ao banheiro, corro até Vincenzo e, movida pela decepção, molho seu rosto ao ordenar, aos gritos.

- ACORDA! NOSSOS FILHOS CORREM PERIGO!

- Não. Não correm perigo. - Refuta Liam ao microfone. - Não vim para machucar ninguém. Nem eu, nem meus amigos. - Um olhar às sombras e ele prossegue. - Pelo que vejo, meu irmão não cumpriu sua promessa. Nossa querida Antoine não conseguiu redimir o anjo bom que se perdeu por gostar de violar mulheres.

- Dess, vamos embora. - Pede-me Vincenzo, molhado, suado, transtornado, apavorado. - Vem!

- Não. - Lamenta Liam, irônico. - Não. Não agora que o melhor vai começar, meu irmão.

- Não sou seu irmão. Nunca fui. Nunca serei.

- Não mesmo. Eu jamais me escondi em pele de cordeiro, Vincenzo. Eu sempre fui um lobo. Um lobo silencioso, mas um lobo.

- ASSASSINO!

- Grite o quanto quiser, puta. Antes de eu partir daqui, eu a verei chorar de vergonha por ter agarrado o homem errado. - Caminhando em sua direção Vincenzo, mais lúcido, avisa.

- Para de falar ou te mato, miserável.

De onde estou, penso em João e em sua família e no que devem estar pensando dessa cena grotesca. Incrédula, eu os vejo dormir debruçados sobre a mesa. Até mesmo, as crianças. Matteo abraça minha perna direita e choraminga um 'tio mau'.

Com ele em meu colo, ainda ouço a insinuação maliciosa de Liam antes de levar um soco de Vincenzo.

- Quer saber como seu grande amor te encontrou na noite do estupro coletivo, Adessa?

Impactada, cambaleio para trás. Leo me ampara e não me deixa cair. Antoine retira Matteo de meus braços e, visivelmente abatida, avisa.

- Mantenha-se forte, mãe. 

Do chão, Liam prossegue, sem o microfone. 

- Já se perguntou como ele te ouviu naquela noite, idiota?

- Ele ouviu meus pensamentos...- Respondo, insegura. Encarando Vincenzo, ordeno. - Fala pra ele. Fala.

- Pai! É agora ou nunca!

- Eu vou embora...- Digo a mim mesma com o coração pulsando forte. Agarrando-me às cadeiras, tento chegar até a saída quando ouço a voz de Vincenzo confessar.

- Fui eu, Dess. - Entre soluços, ele completa a frase que não quero ouvir. - Eu organizei aquele ato hediondo.

Caio de joelhos. De costas para ele, emito um longo gemido de dor. Apoio minhas mãos no piso sujo e relembro de cada detalhe daquela noite terrível. Recordo-me de me observar no espelho do meu quarto. Do vestido preto e curto. De não querer aceitar o convite insistente de Sweet. De me sentir tonta após beber duas ou três garrafas de 'ice'. Dos rostos, do cheiro de suor e esperma misturados ao bafo de cerveja. Da falta de ar. Do quarto claustrofóbico. Da música vinda do lado de fora do quarto. Dos risos, dos meus gritos de socorro. Da dor dilacerante. Da voz de Vincenzo e de seus braços envolvendo meu corpo ferido, imundo. - Eu era um monstro, Dess. Eu sempre tive essa compulsão por machucar mulheres. Eu não te conhecia. Não como a 'minha Dess'. Eu te procurava, século após século, por que te amava, mas a doença continuava dentro de mim e eu mantinha a esperança de que somente vc poderia me curar e me curou! Dess, vc me curou! - Um urro de dor e ele curva o tronco para frente, descansando as mãos nos joelhos flexionados. Arrasto-me até a pilastra em mármore onde recosto meu tronco, levando minha mão até o espaço entre meus seios. Arfando, puxando o ar pela boca, observo Antoine ao lado do pai. Leo, com Matteo em seu colo, parecendo chocado, me olha com compaixão. Matteo afasta Leo com os bracinhos e de pé, no chão, corre até mim. Parecendo saber o que se passa, ele se encolhe ao meu lado e cochicha um 'papai mau' em meu ouvido. Quero rir dele, mas tudo o que consigo é chorar de mágoa, dor, repulsa, ódio e piedade pelo homem diante de mim.

- Sai, papai! - Ordena Matteo, abraçando-me com força. - Papai mau faz mamãe 'dodói'!

Ajoelhado, diante de mim, ele prossegue com os olhos injetados.

- Eu sempre quis te contar, Dess. Nunca tive coragem. Como dizer à mãe dos meus filhos que eu paguei monstros como eu pra machucar seu corpo e sua alma porque aquilo me satisfazia àquela época? Eu assistia aos seus filmes e te julgava tão doente quanto eu. Eu não te conhecia. Eu te perseguia porque te amava, mas, a vontade em te ver sofrer ainda me impelia a continuar a te seguir e a atrapalhar sua vida até que eu percebi que te amava, de verdade. Eu errei, amor. Errei e mereço sofrer pelo resto de minhas vidas sem o teu amor. Sem o teu perdão. Vou sair de casa e nunca mais vc vai ter que me olhar e se lembrar do quão repulsivo eu sou.

- Por que não me contou antes? Eu já conhecia tua compulsão. - Engasgando-me com meu choro, continuo. - Eu implorei pra me contar tudo. Eu te implorei pra não me esconder nada. Pra não darmos brechas ao mal.

- Eu tive medo, Dess. Já enfrentei seres diabólicos, ditadores, reis e bispos impiedosos. Já passei fome. Já vivi a solidão por centenas de anos e nada disso me causou tanta dor e medo quanto pensar em te perder. 

As sombras se avolumam sobre nossas cabeças. No relógio digital próximo á cozinha faltam dez minutos para as três horas da manhã. Um súbito arrepio e pergunto.

- Sweet me levou pra lá sabendo de tudo?

- Não. Eu a paguei pra te levar à festa. Ela não sabia o que iria acontecer.

- Vcs foram amantes? - Baixando a cabeça, ele se cala. Suas mãos nervosas se abrem e fecham. Os ossos de seus dedos estalam. - Responde.

- Sim. - Um repentino tapa em seu rosto e ele me pede perdão. - Ela alimentava minha compulsão, mas jamais teve o meu amor.

- Eu sabia. Sempre soube. Eu te odeio, Vincenzo. - Respirando com dificuldade, eu tento me erguer do chão. Ele me auxilia. Outro tapa em seu rosto e grito de ódio. - NUNCA MAIS TOCA EM MIM!

- PAPAI MAU! - Grita Matteo, colérico. Choro por meu filho inocente que chora em meu colo. - Mamãe 'dodói'...

- Dess, vc precisa dos seus remédios.

- Eu preciso que suma da minha frente, monstro.

- Perfeito. - Liam bate palmas, de pé. - Um final feliz para uma festa feliz. Espero que a debutante aprecie o show que está prestes a começar. 

Erguendo seus braços, como um maestro, ele invoca sua legião que se torna visível aos nossos olhos. Envolvendo-nos em um círculo, ele nos mantem acuados. Vincenzo é o primeiro avançar contra Liam. Um ser sinistro e ágil como a luz o arremessa à distância. Agarrada a Matteo, assisto Antoine arrancar a saia do vestido longo e, ao lado de Leo, partir para o ataque. Ambos lutam contra seres mais ágeis e fortes do que eles. Bestas com troncos curtos e membros superiores descomunais. Outros se assemelham a animais com feições levemente humanas. 



Atordoada, acordo Vincenzo que, num pulo, se ergue do chão e volta a lutar. Minha família forma um pequeno círculo à espera do ataque final quando Leo assovia, alto e forte.

O batalhão de jovens que dançou com Antoine surge dos vários cantos do salão, munidos de porretes, facas, 'soco inglês', machados e outras armas brancas. Corro até a mesa onde João e sua família ainda dormem. Um a um, eu os arrasto até a lateral do salão, longe do perigo. Matteo me acompanha como se me compreendesse e estivesse pronto a lutar comigo.

Estou surtando ou isso é um pesadelo?

- Vc me entende, filho? - Movendo os ombrinhos, ele sorri, apontando o indicador ao teto e avisa.

- Monstro mau. - Antes de ser tocado por algo asqueroso com aspecto de uma aranha gigantesca, eu o abraço com força ao nos imaginar dentro de uma cápsula invisível e impenetrável. Desesperada, abro os olhos e a vejo mover as pernas peludas contra algo que não vejo. Algo que nos protege.

Eu acabo de dar vida ao que imaginei.

Desistindo de nos ferir a gigantesca aranha asquerosa se afasta. Agacho-me ao lado das mesas com Matteo sempre ao meu lado. Um sinal e lhe peço que permaneça calado. Mais uma vez, ele me entende e me obedece.

Esquisito...

- Não saia daí, filho! Entendeu!? - Outro sorriso e ele concorda. Um breve olhar e percebo que Vincenzo foi atingido por algo cortante em seu abdômen. Antoine e Leo, exauridos de tanto lutar, recuam, de mãos unidas, até a cabine do DJ que deve ter fugido antes da luta começar. Muitos dos jovens são trucidados por monstros com o triplo de seu tamanho e força.

Seria essa a 'Grande Batalha'?

Não. Não me parece. Desperto assim que percebo a intenção de Liam prestes a atingir Vincenzo com seu patético taco de baseball. Sem raciocinar, corro até Liam e salto sobre suas costas. A perna manca, falha. Caímos contra o chão onde sangue se mistura à purpurina. Rolo até Vincenzo. Um grito de horror e vejo sangue escapando por entre seus dedos pressionando o ferimento. Nossos olhos se encontram. Por segundos, volto a amar o pai de meus filhos. 

Por segundos...

- Dess! Não! - Com o taco de baseball em minhas mãos, eu provoco Liam que se ergue com dificuldade.

- Se eu te matar, sua legião de bosta some!?

- Não, vagabunda. Não é assim que funciona. Não sou o pai deles. 

Uma risada histérica e, movendo meu corpo de um lado ao outro, debocho.

- Vc não é pai de ninguém, Liam! Nem mesmo de Sean! Vc jamais conhecerá outra mulher para fecundar! Sean tem o que vc sempre quis, sem fazer esforço algum! Ele tem poder, Liam! Ele vai dominar parte do mundo! Isso, se eu não o impedir! Depois de sua morte, advinha quem vai cuidar dele como sua mãe!? 

- Vadia. Vc não pode. Não se lembra? - Olhando ao redor, percebo que seus monstros se aproximam de minha família. Um olhar a Matteo e o vejo escondido debaixo de uma das mesas. Outro riso histérico e o provoco. 

- Não é fantástico! O grande homem que sugava o sangue do filho pra ser mais forte, vai morrer aqui, no salão de festa de uma debutante!

- Eu ainda estou vivo, miserável.

- Ainda. - Outro golpe em sua cabeça e ordeno. - Afasta teus amigos da minha família ou te mato agora. - Tremendo de medo, afirmo. - Vc sabe que eu posso.

Um ligeiro gesto e a turba bestial recua. Filetes de sangue escorrem pela lateral de seu rosto enquanto ele me encara com ódio. 

- Vc não pode me matar.

- Claro que posso. - Rosno. - Eu vou.

- MÃE! NÃO! - Grita Antoine recostada à parede. - PENSA!

- Vou te matar, miserável! - Insisto, inconsequente. - Por Cassie, eu vou te matar! Ela foi a única a se apaixonar por um verme como vc! Ela não o conhecia! Nem eu! - Vacilante, abaixo o taco e prossigo, protegendo Vincenzo com meu corpo. - Ela era inocente, boa. Não viu maldade em vc. Fui eu quem errou...

- A Pitonisa teria poupado muita dor à amiga que, agora queima no inferno, se tivesse sentido minhas intenções no dia em que nos conhecemos. - Um certeiro golpe contra sua perna manca e berro consumida pela culpa.

- MALDITO!

- A verdade dói, Adessa.

- Dói! - Afirmo antes de ser erguida e arremessada, por um morcego gigante, contra a pilastra da entrada. Minhas costas queimam. Cuspo sangue pela boca. Vincenzo cambaleia em minha direção, com sua mão pressionando o ferimento. De onde estou, ainda vejo a foto de Antoine no painel iluminado da recepção. Volto no tempo e a vejo feliz ao lado de Leo antes do fotógrafo capturar seu melhor sorriso. Estávamos felizes naquele dia. Minha família e eu. 

Desperto com o lamento doloroso de Leo ao apoiar, em seu colo, a cabeça de Antoine. Mancando em minha direção, Liam, exibe a adaga manchada com o sangue de minha filha. Sarcástico, ele se vangloria.

- Foi mais fácil do que pensei. Mas, fique tranquila. Ela não morreu. Ainda...

Fecho os olhos sentindo meu sangue fervilhar por dentro. Atordoado, Vincenzo mantem o corpo da filha em seus braços. 

Meus olhos escurecem. Já não os vejo com clareza. Sem controle sobre minhas mãos, eu as espalmo no chão e clamo por ele.

Que Arcanjo Miguel me perdoe, mas, agora, eu sou apenas Escuridão. 



Matteo, ao meu lado, me observa, curioso. Encarando Liam, esqueço-me dos gritos de Vincenzo implorando para que não seja impulsiva e me entrego ao mal que habita em mim.

- Se estiver me ouvindo, me ajuda. Me vinga.

- Tola. É preciso ter mais ódio. Observa! - Assevera ele espalmando suas mãos, ao lado das minhas. Os dedos longos, as unhas escuras me fazem sorrir ao perceber o horror nos olhos de Liam. O chão treme. Vincenzo e Leo protegem o corpo de Antoine. Ela vive. Eu sinto. - Te concentra, mulher! Deixa teu ódio escoar por suas mãos! - Eu o obedeço sentindo eletricidade escapar de meu corpo. Assombrada e excitada, observo o piso do salão se partir ao meio, separando a pista de dança em dois lados opostos. - Viu!? Não és tão burra quanto pensei! Acabe com ele!

Da imensa fresta, labaredas de fogo se erguem como serpentes. A cratera engole monstros e meninos heroicos. Liam, cambaleante, agarra-se a uma das pilastras. Seus olhos estatelados temem o fogo que se ergue do buraco profundo. Os poucos aliados da 'Legião' que ainda sobrevoam nossas cabeças, tentam resgatá-lo. Encorajada por Lúcifer, ergo minha mão e, com um grito repleto de fúria, eu os assusto. Um vento súbito e forte os repele. Com extrema frieza, caminho, lentamente, até Liam que implora por clemência. Indiferente à sua dor, olhando o interior da cratera, indago.

- Este é o seu inferno, Lúcifer?

- Não, meu bem. É a porta da porta da porta de entrada. Acabe logo com isso. Tenho mais o que fazer.

- Ok. 

- NÃO, DESS! ELE NÃO PODE MORRER!

Surda aos apelos de Vincenzo, consumida pela ira e poder, diante de Liam, eu me despeço dele. 

- Isso não é um adeus. É um 'até breve', seu merda. Vou procurar minha Cassie e, juntas, vamos te fazer sofrer ainda mais.

- DESS! NÃO! 

- Faça. - Ordena-me Lúcifer, ansioso. - Faça logo. Não pense. 

- Por que eu sinto que não devo fazer isso? - Pergunto a mim mesma.

- Porque é burra! Acabe com ele antes que ele acabe com sua família! Antoine precisa de cuidados!

- Minha filha...

- Acabe com ele! - Intrigada e nervosa, eu o confronto. 

- O que ganha com a morte dele, Lúcifer!?

- Mais uma alma idiota! Empurre-o!

- Eu a amava. - Confessa Liam, expressando sinceridade e remorso. - Ela foi a luz dos meus dias aqui na Terra. 

- Liam...- Lamento. - Por que não me disse isso antes?

- Vc sempre foi tão egoísta. Tão autoritária e intrometida. Eu a teria salvo da morte se vc não tivesse chegado e estragado tudo. Ela pulou por medo de vc. De seu julgamento, vadia. Ela sabia que vc a reprovaria por me amar e continuar ao meu lado. Do nosso jeito, nós éramos felizes. 

- Não...- Sussurro, confusa. - Ela me disse...

- Disse o que vc queria ouvir, Adessa. Ela estava grávida quando pulou da janela. 

- NÃO! 

- Viva com essa culpa. - Rosna ele com os olhos avermelhados. - Pode me matar. Eu vou me encontrar com minha 'Little Princess'.

- Vc mente! - Acuso, perturbada. - Maldito!

- DESS! NÃO! - Um olhar a Vincenzo e murmuro, com os olhos distantes.

- Acabou, amor. Acabou. A 'Grande Batalha' acabou. 

Arrastando-se em minha direção, do outro lado do abismo, ele ergue seu braço enquanto espalmo minhas mãos no tórax de Liam e o empurro com todas as minhas forças. Seu corpo cai e, antes de sumir entre as chamas, eu o vejo sorrir.

Um sorriso de tristeza.



A grande fenda se fecha causando um novo tremor. Caio de costas sem compreender o que acabo de fazer. Matteo, ao meu lado, aponta seu indicador a Vincenzo e choraminga.

- Papai 'dodói'. Nininha 'dodói'. Homem mau, mamãe. - O toque de sua mãozinha em meu rosto me faz despertar. Com ele em meu colo, afasto-me de Lúcifer e me aproximo de Vincenzo e de Antoine. Ajoelhada, toco na ferida de Vincenzo e a imagino curada. Milagrosamente, o sangue estanca. Sinto escapar de mim grande parte de minha pouca energia. Penso em repetir o que acabo de fazer, na ferida de Antoine que parece dormir, quando Vincenzo, recostado à parede, lamenta com a voz fraca.

- Não vai adiantar, Dess. Ela não é como eu ou como vc. 

- Creio que alguém aqui vai perder mais do que imaginou.

- O que faz aqui, maldito!?

- Ora! Vc me invocou!

- Vc me enganou, Lúcifer! Vc me obrigou a matar Liam! 

- Na na na na não. Vc seguiu seus impulsos, meu bem. Parabéns. Vc acaba de condenar seu marido ao sofrimento eterno.

- NÃO! - Salto sobre ele e caio contra o chão. Ele se foi e, com ele, minha dignidade. Ajoelhada, olhando minhas mãos sujas de sangue, volto a me perguntar. - O que eu fiz? - Encarando Vincenzo, prometo, num desespero. - Eu não vou deixar que te levem! 

Um sorriso triste em seu rosto sujo e ferido e ele avisa.

- Agora é tarde, Dess. Não se culpe. Vc fez o que pensou ser o correto.

Dor. 

Ela me acompanharia até o fim.





Continua...









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EPÍLOGO

  Abro os olhos. Encaro o teto do quarto, tentando não me recordar do sonho. Um sonho ruim. Chove lá fora. Dentro do quarto, faz frio. Meu c...