domingo, 22 de maio de 2022

CAPÍTULO 3 - O INCONCEBÍVEL






Acordo bem disposta após muitos meses. Os raios de sol invadem meu quarto pelas brechas da persiana trazendo conforto à minha alma. Não penso que devo trabalhar hoje à noite no 'California' ou nos clientes que já entupiram minha caixa de mensagens aguardando meu contato. Pulo da cama, tomo uma ducha e calço meus tênis de corrida. Estranhamente, sinto-me feliz sem sequer saber o porquê. Minto. Eu sei. A voz dele em minha mente ontem, antes de dormir, foi tão real...

Corro oito quilômetros na orla, sorrindo para cada criança que vejo junto aos pais. Lembro-me do sonho recorrente com a 'borboletinha com asas púrpuras'. Uma ideia ridícula passa pela minha cabeça em frações de segundos e some. Ser mãe!? Eu!? Nunca! Uma puta não tem tempo para ser mãe. Eu acho. Sei lá. De repente...


Desatenta, sou empurrada por alguém que corre na direção oposta à minha. Eu o xingo. Ele gargalha sem olhar para trás. Irritada, arremesso um chinelo velho largado na calçada, contra suas costas. Acerto em cheio já aguardando por uma revanche.

- NÃO DOEU! - Grita ele. Ainda rindo de mim, ele me zoa. - Da próxima, vc acerta! - Dando-me as costas, ele acena com uma das mãos enquanto fico parada observando-o desaparecer entre os pedestres na ciclovia.


- Filho da puta. Perdi a vontade de correr.

- Mas vc tá suada!



- Ah! Então! - Reviro os olhos exageradamente e, bufando, explico à garçonete da cafeteria onde servem o melhor cappuccino da cidade. - Eu corri oito quilômetros, mas fui impedida de continuar por um babaca que me empurrou na pista. Essa gente começa a correr do nada e acha que pode concorrer comigo! É mole!?

Tomo um gole do cappuccino fumegando e, sorrindo, agradeço.

- Giulia, quando crescer, vc vai ser dona de sua própria cafeteria. NÃO! - Exclamo enquanto degusto um 'croissant' de queijo maravilhoso. Engulo um pedaço e, concluo. - Dona de uma rede de cafeterias espalhadas pela cidade! Seu croissant é fantástico! Leve...desmancha na boca! Hummmm! - Debruço-me sobre o balcão. Rindo, ela beija minha bochecha e me chama de exagerada.

- Mas, valeu tia! Que Deus a ouça!

- Já ouviu. - Garante o homem que se senta na cadeira giratória ao meu lado. - Ele sempre ouve as almas puras. - Gargalho de costas para ele e provando um pedaço de torta de chocolate, refuto.

- Então seu deus tem que ouvir a Giulia porque a mim, Ele não ouve não! Repete aí, Giulia!

- O 'Meu Deus'? Vc não acredita n'Ele? - Ainda de costas, respondo, de boca cheia.

- Não.

- E por que Ele não te ouviria?

- Porque já deixei de ser inocente faz tempo.

- Ah...entendi. Não tem problema. Vc não precisa acreditar n'Ele, mas Ele acredita em vc.

- Aaaah! Vá! Tu não é um daqueles que ficam, de casa em casa, entregando pa...pa...- Giro, de súbito, a cadeira e, limpando os cantos da boca com guardanapos de papel, engulo em seco diante dos olhos mais azuis que vi na face da Terra. - Papel...pa...papel...sei lá. O que vc disse? - Puta que pariu. Vc é lindo. Fofo. - Tá rindo de mim???

- Não! Só não quero levar outra chinelada nas costas!



- Cacete!!! Era vc???

- O babaca que acha que pode correr enquanto vc corre? Sim.

Cubro meu rosto com as mãos e, envergonhada, peço desculpas.

- Eu sou um pouco impulsiva...

- Um pouco?

- Muito! - Avisa Giulia servindo um cappuccino ao desconhecido que me encanta enquanto toma o primeiro gole. Seu Pomo-de-Adão se move a cada golada. 'Nuss'... - Acorda, tia!

- Oi!? - Os olhos de Giulia giram nas órbitas enviando-me uma mensagem subliminar do tipo: "Tá dando muito mole! Acorda!" - Ah! Tá! Vou pagar a conta! Tenho...tô...tem...cacete! Quanto te devo!?

- Eu pago. - Adianta-se o estranho mostrando-me seu cartão em uma das mãos. Crédito ou débito? - Débito. - Arquejo, arregalando meus olhos. Ele leu meus pensamentos? Abrindo um lento sorriso, ele se dirige a Giulia ao pedir. - Inclua o dela, por favor.
- Nunca! - Afoita e estranhamente irritada, retiro o cartão de sua mão e o jogo contra seu lindo rosto. Giulia resmunga um 'caraca, tia' enquanto ele me observa, curioso. Seu olhar puro me incomoda. - O quê!? Acha que não tenho grana pra pagar por brioches e café!?
- Minha intenção não foi a de te ofender.
- Tia, ele só queria ser gentil.
- Conheço esse tipo de homem. - Rosno, encarando-o. Ele mantem seus lindos olhos ligados aos meus. Há algo de fascinante neles. Algo de sobrenatural. Nossa. Devo estar ainda sob o efeito daquela noite maluca na lareira. 
- Talvez não.
- Porra! Tu leu meu pensamento! - Acuso-o. Um sorriso infantil e sinto algo 'na boca' do estômago.


- Tia! - Repreende-me Giulia. - Ele é meu cliente!

- Que cliente, Giulia!? Ele sequer comeu um brioche! - Debruçando-se, desleixadamente, sobre o balcão, ele brinca.

- Não seja por isso...- Uma piscadela a Giulia e ele pede sem tirar os olhos dos meus. O que há na porra desse olhar que me deixa imobilizada? - Um brioche, por favor. - Sem controle, eu o ofendo.

- Eu sei o que ele queria, meu anjo! É desse tipo de homem que vc deve se manter afastada, entendeu??? - Meus olhos insanos encontram os de Giulia. Toco em sua mão e a vejo gritar por socorro em algum lugar imundo. Retiro a mão, desconectando-me da visão. Tropeço na cadeira, caindo de bunda no chão. - PORRA! QUE PORRA É ESSA QUE EU VI? NÃO! NÃO ME TOCA!

- Deixa eu te ajudar...- Recua ele, intrigado. Abano a cabeça e, arrependida, tento explicar.

- Não. Perdão. Não toca em mim. Eu tenho um...

- Ela tem um poder. Ela vê coisas quando toca ou é tocada por alguém.

- Giulia...- Resmungo, erguendo-me do chão. - Não é um poder. É uma faculdade que qualquer um pode ter.

- Eu não tenho, ué! - Replica ela, indignada.

- Cala a boca, 'coisinha fofa'. - Peço, entredentes. - Depois eu te ensino a praticar e, de repente, vc até ganha uma graninha pra comprar a primeira de muitas padarias. Porra, cadê a carteira!? - Sentado diante de mim, ele me observa enquanto eu retiro tudo da mochila e esparramo tudo no balcão. Seu olhar incide sobre um pacote de camisinhas. Ligeiramente, eu o empurro contra Giulia, fazendo-o sumir. - Não é o que vc imagina.

- Eu não pensei em nada. - Diz ele, pacientemente.

- Pensou sim que eu sei!

- Além da Psicometria, vc também domina a Telepatia?

- Aaaah...não ferra! - Retirando uma nota de cem da carteira, eu a grudo no balcão com as mãos espalmadas. - Fica com o troco e...por favor...- Inspiro e expiro profundamente e imploro sem tocar em Giulia. - Não sai de casa hoje. Fica com a tua mãe. Ok?

- Não vou sair, tia. 'Fica de boas'.

- Confio em vc. - Afirmo num tom de repreensão. Beijo sua bochecha e, jogando minha mochila nas costas, vou caminhando em direção à saída quando ele abre a porta da cafeteria para mim. - Obrigada, mas não precisava.

- Mas eu quis. Algum problema?

- Nenhum. - Mas se me olhar assim novamente, eu pulo em seu pescoço e beijo sua boca e, de repente...- Porra...

- O que houve?

- Eu me esqueci...

- Do quê?

- Da bike.

- Onde estacionou?

- Não. Não sei se vim pedalando ou andando. - Culpa sua! Idiota! Não sorria assim pra mim porque sou capaz de te mostrar quem eu sou! Quem eu não gostaria de ser...- Ah! Vou andando mesmo! É perto!

- Quer carona? Tô de moto. - Puta que pariu. Moto. Agarrar vc por trás. Fala sério. Solto uma gargalhada repentina. Olho para ele que me encara, sorrindo. Tá rindo de mim ou para mim? - Sorrindo pra vc. Vc é engraçada. Isso me surpreendeu.

- Vc ouviu o que eu...?



- O que vc o quê? - Outro riso histérico e, movendo as mãos aleatoriamente, peço.

- Ih! Deixa pra lá! Eu não tenho estado bem da cabeça! Vc vai me seguir?! Não me diga que vc é um psicopata!?

- Não sou, mas, se fosse, eu não diria. Né?

Paro de andar e mergulhando em seus olhos azuis, retruco, meio que abobalhada.

- Acho que não...

As ondas do mar, o céu de um azul perfeito. A brisa morna em meu rosto me faz fechar os olhos e voltar a um tempo que não conheço.

Dói...

- Vc tá bem? Deixa te levar até a sua casa, por favor. Eu fico na porta e vc entra, ou se preferir, eu fico de longe e não preciso saber onde mora, exatamente, já que está com medo de mim.

- Não estou não. Sei lidar com homens. - Mais do que vc pode imaginar. Mais do que eu gostaria de saber. Por que eu estou me sentindo assim? O que tem nele que me faz querer largar tudo? - Eu???

- Claro! Tem outra mulher bonita e louca por aqui? Sobe, vai! - Eletrizada, sento-me atrás dele na moto que ronca quando ele gira os punhos, irritando-me, propositadamente, com os ruídos do motor. - Com ou sem emoção!? - Encostando meu rosto em suas costas, ouço sua voz através de sua caixa torácica e respondo, sentindo-me viva após muito tempo.

- COM EMOÇÃO!!!

Eu não o vejo há dias. Volto sempre à cafeteria onde Giulia trabalha, na ânsia de rever aqueles olhos azuis e intensos e nada.

- Amiga, acorda! - Alerta-me Sweet Child, suada após seu inigualável espetáculo de horrores. Tadinha. Eu não devo pensar assim. Faço o mesmo, exceto aquela porcaria de me deitar no palco. Minto. Eu fazia. Mas, agora eu não quero fazer. A grana é boa? Sim. Mas...eu não quero. - Vai, bicha!!!

- NÃO ME EMPURRA, VACA!!! - Pigarreio, lançando um olhar devastador à plateia de bêbados idiotas e absolutamente previsíveis. Freddie, o DJ, deixa rolar a música que pedira a ele antes do meu show que eu dedico à 'voz sem rosto' e ao carinha da moto. Quem sabe ele não esteja por aqui? - JÁ VOU, PORRA! - Respondo a Sweet que me espia pela cortina de miçangas. O que há comigo hoje? - Ok! - Um sinal ligeiro com o polegar e volto a ouvir a canção romântica que narra o encontro de dois corações em uma cafeteria. Sorrio ao me lembrar dele erguendo suas mãos para o alto, na defensiva, enquanto giro ao redor do palco calçando minhas botas em couro preto até os joelhos. No corpo, apenas um biquini cavado com lantejoulas que devo retirar ao final da música.


De cabeça para baixo, na barra de 'pole dance', tento enxergá-lo dentre os outros homens que me desejam, mas não me terão. Não nessa noite.

"You don't know my name", cantarolo dando-me conta de que não sei o nome dele também. Que merda. Dois homens fantásticos e nenhuma chance de tê-los ao meu lado. Agora que estou livre de Ga'al, poderia largar tudo e viver...

- NÃO ME TOCA, SEU IMBECIL! - Grito ao chutar o braço de um cliente abusado que tenta arrancar minha calcinha quando me agacho para recolher as notas de cem que deveriam gastar com suas famílias. Estúpidos. Eu os odeio. - ME LARGA! - Berro ao terminar o meu show e chutar o queixo de outro verme lascivo.

- Calma, meu anjo. - Diz Doc, meu melhor amigo e segurança do "California". - Eu dou conta deles. Vá para o camarim. Ok?

- Ok. Obrigada, amigo. - Sigo de volta ao camarim, desconsolada. Ele não estava entre a multidão. Ele não vai voltar a me ver. Não nasci para ser feliz. Minha mãe me dizia isso. Por que não? - Claro que não!

- Por que não??? - Pergunta-me, indignada, Sweet. - É o que dá mais grana. Trepar com eles no palco. Fala sério! O que vc tem hoje?

- Uma tristeza profunda. Só isso. Quero ir pra casa.

- E seus clientes???

- Atendo amanhã. Hoje eu só quero ir pra casa e chorar e beber e chorar e beber até cair em minha cama e sumir desse mundo.

E assim foi feito.

Chego ao meu apartamento luxuoso sentindo uma dor pungente no peito. Tomo uma ducha e abro uma garrafa de vinho tinto. Dispenso o cálice, tomando-o no gargalo. Um vento morno se espalha pela sala onde tento assistir TV enquanto penso na 'voz sem rosto'. No homem que me salvara dos estupradores. Enquanto penso no carinha legal da moto que não pode suspeitar da vida que venho levando, um torpor percorre meu corpo quando me deito na cama.

Tocando-me intimamente, penso em gravar tudo em meu celular. A compulsão por sexo havia regredido com o tratamento e o afastamento de Ga'al, no entanto, agora, eu quero...eu preciso ser vista por alguém ou por muitos.

- Essa é pra vc que me salvou daqueles monstros...- Falo diante da câmera que capta o exato momento em que tenho um orgasmo.



Durmo. Acordo em algum lugar sombrio onde seres bestiais me acolhem sem me tocar. Sou conduzida, através de uma caverna fétida e claustrofóbica, iluminada por tochas presas às paredes de pedra, a um altar onde eu o reconheço, sentado em seu trono.



- Vc não pode me tocar! - Alerto, amedrontada. - As bruxas me libertaram de vc! Quero voltar! Eu quero voltar ao meu quarto!

- Aqui quem manda sou eu, Adessa. Vc iniciou o ritual. Vc me invocou inconscientemente. Vc veio até mim. Eu não te chamei.

- Mentira! Traidor! Eu não te suporto! Onde estão as minhas roupas!?

Recuo enquanto ele avança em minha direção. Em algum sonho lúcido, eu me perco em suas mãos e, por ele, volto a ser violentamente usada diante de uma multidão de degenerados.

- Isso não é justo! Vc não pode ter tanto poder sobre mim! - Revolto-me com ele e seu membro dentro de mim.

- Vc ainda goza comigo, Adessa. Não negue. Vc é e sempre será a minha puta. - Ouço sua voz gutural enquanto ele volta a me usar por horas.





Exausta, acordo em minha cama. Choro por compreender que ainda não estou livre dele. Ainda não estou curada da ninfomania.

Ainda não sou quem eu gostaria de ser.


Passo na cafeteria onde Giulia trabalha após correr por dez quilômetros na estúpida tentativa em reencontrar o carinha da moto. Guardo poucas lembranças da noite passada, mas, do pouco que me lembro, tenho nojo.

Talvez seja um progresso...

- Talvez.

- Vo vo vo...

- Seu avô deve chegar daqui a pouco. Por enquanto, só eu mesmo. - Gargalho de jogar a cabeça para trás. Ele me apoia com um braço em minhas costas para que eu não caia da cadeira giratória. - Vc não me parece bem.

- Tô sim. Agora que vc chegou. - Merda. Deu mole. Idiota. - Digo...agora...que...eu corri...digo...eu te vi...e...ah...deixa pra lá!

- Não sei quanto a vc, mas eu estou bem melhor agora que te reencontrei.

- Digo o mesmo. - Ruborizo evitando seu olhar, sugando o milk shake com canudinho. - Tá me seguindo? Eu nunca te vi aqui antes e agora...

- E agora o quê? Eu não posso ter gostado daqui e voltar?

- Não no mesmo horário em que eu frequento esse lugar!

- Ele é público.

- Mas eu o vi primeiro! - Rosno.

- É sério que vcs dois vão brigar feito adolescentes!? - Indaga Giulia, incrédula. - Tia, 'pega leve'. Ele é meu cliente. Eu já falei. - Dando de ombros, concordo.

- Ok. Venha quando quiser, desde que gaste muito porque ela ganha por comissão e aceita gorjetas.

- Tia!!! Que mico!!!

- Vcs são parentes?

- Não exatamente...- Interrompo Giulia e a refuto.

- Somos sim! Eu a vi crescer e a ensinei a dançar. Sou amiga de sua mãe, logo, posso dizer que somos parentes sim. Sem mencionar que eu a amo. - Apoio meu tronco sobre o balcão e a beijo na bochecha enrubescida. - Vc fica uma gracinha envergonhada, Giulia.

- E vc não muda nunca, tia! Adora me tratar como criança!

- Vc é uma criança, Giulia! Eu preciso cuidar de vc! Sua mãe me pediu!

- Concordo, Giulia. Em um mundo como o nosso, é sempre bom ter alguém mais velho com quem contar. - Apoia-me o carinha da moto que, aliás, não me disse seu nome. - Vincenzo. - Revela ele girando a cadeira em minha direção. Que porra! Ele ouviu...???

- Cruzes! Como faz isso!?

- Isso o quê? Eu não fiz nada. - Um tapa em seu braço e repito, meio que empolgada.

- Como leu meu pensamento??? Não ria! Responda! Não é a primeira vez!

- Não vai atender? - Pergunta-me ele apontando para o meu celular ''berrando" em minha mochila. Não posso atender. Certamente é um de meus clientes. O que vou dizer? "Ok. Daqui a duas horas vc me pega e me fode, mas antes eu quero ver o depósito em minha conta!" - Ele pigarreia baixando a cabeça e repete a pergunta. - Não vai atender? Pode ser importante. - É importante, mas não é tão legal quanto estar aqui...com vc, idiota. - Atende. Vai.

- Não! Eu não quero! - Irritada com sua insistência e com a porra do 'ringtone' do meu celular, eu o pego e o desligo diante dele. - Pronto. Acabou. Finito. It's over! Cacete! Tá satisfeito!?

- Vc precisa dominar sua impulsividade. Isso pode te trazer prejuízos no futuro.



- Desde quando vc é habilitado pra falar de minha impulsividade ou do meu modo de ser?

- Desde que me formei em Psiquiatria há alguns anos. Conheço um pouco do Ser Humano. Saca? - O canudo faz barulho quando esvazio o copo e, soltando o ar pela boca, eu me calo. - Desculpa. Eu não queria...

- Não. - Digo num tom baixo. - Tô de boas. Vc tem razão. Eu preciso 'segurar minha onda' de vez em quando. Preciso retornar à terapia. - Encosto minha testa no balcão e repito num lamento. - Preciso retornar à terapia. Por que parei?

- Ei...- Vincenzo acaricia meus cabelos enquanto sinto a paz que ele irradia. - Não fica assim. Tudo tem jeito. Se acha que deve retornar à terapia, retorne. Vai te fazer bem. Vai te ajudar a se controlar em outros aspectos.

- Que 'outros aspectos'??? - Pergunto com a cabeça erguida. - Eu tenho cara de quem não tem controle sobre a minha vida???

- Eu não disse isso. - Defende-se ele, sorrindo. - Eu só quero que vc fique bem.

- Por quê???

- Por que não???

- Porque vc não me conhece. Não sabe do que vivo, como vivo, com quem eu lido todos os dias. Não conhece a vida dura que eu levo ou de quem eu tenho fugido sem êxito!

- Tia, calma...

- É fácil falar de mim sem ter noção do que é viver como eu vivo!

- Tia...para. - Ignorando Giulia, eu explodo. - Tem coisas que eu não quero fazer e sou obrigada porque paga bem. Porque preciso da grana. Caso contrário, eu já estaria bem longe daqui, escrevendo meu livro! - Salto da cadeira e sigo em direção a 'Juke Box', chutando-a com meus tênis. Escolho uma música qualquer e me surpreendo quando a máquina a escolhe por mim. Parada em meio ao salão, penso alto.

- É a mesma música de ontem.

- Tem tudo a ver com vcs, né? - Comenta Giulia limpando o balcão com um pano de prato úmido. - Fala de um casal que sempre se encontra numa cafeteria. Será que o destino...?

- Tira esse risinho do seu rosto, fofinha. Isso é ridículo. - Percebendo a insinuação de Giulia, Vincenzo, interessado, pergunta.

- Vc dançou essa música ontem? Onde? - Antes de mentir, sou bruscamente interrompida pela voz soturna que, num tom sarcástico, responde à pergunta de Vincenzo.

- No 'California'. Conhece?

- Jack! Não!

- Adessa! Que surpresa! - Sentando-se onde eu estava sentada há pouco, ele me olha com raiva nos olhos e, num tom irônico, comenta. - Vc é realmente inabalável. Ainda hoje, estava no palco e agora, pela manhã, já está aqui, linda como sempre.

- Palco? Vc é atriz? - Imobilizada e muda, eu deixo que 'Jack Tequila' arruíne minhas chances com Vincenzo. - Por que não me disse antes?

- Adessa!? Vc não a conhece!?

- Jack, sai daqui! Vc não é bem-vindo! - Grito sem conseguir me mover. - Vá embora!

- Vc é a proprietária da cafeteria!? Comprou com o suor do seu trabalho digno!? - Provoca-me ele, abrindo um sorriso sinistro. - Aaah...perdão. Seu amigo não sabe...?


- Adessa, vc tá bem? Vc tá tremendo.

- Eu já disse pra ela usar mais roupas durante o trabalho, mas ela não me ouve...

Finalmente eu me movo, com os punhos cerrados, em direção a Jack. Gargalhando, Jack me incita a me descontrolar. Vincenzo percebendo minhas intenções e meu estado emocional salta da cadeira e me impede de socar o rosto desprezível do barman do 'California'. Inusitadamente, Vincenzo me abraça e cochicha.

- Não liga pra ele. Tudo o que ele deseja é te ver descontrolada. Se acalma.

Em seu abraço, eu me demoro sentindo a paz retornar ao meu coração.

- Passou?

- Sim. Obrigada. - Cochicho.

- Quer ir embora daqui?

- Não posso! Não com ele aqui, perto da Giulia! Ele é perigoso! Eu sinto!

- Bobagem...- Diz Jack lançando seu olhar repugnante sobre a minha menina. - Que mal eu faria a um 'docinho' como esse?

Seu indicador ergue o queixo de Giulia quando num impulso selvagem, eu empurro Vincenzo com meu corpo e salto sobre Jack, jogando-o contra o chão da cafeteria. Giulia grita, nervosa. Vincenzo tenta me conter, segurando-me pela cintura enquanto, sentada sobre o corpo de Jack, distribuo socos em seu rosto. Seu sorriso continua ali. Exausta, eu me deixo levar por Vincenzo de volta à cadeira. Meus punhos e dedos estão doloridos e ensanguentados. Lavo as mãos na pia do outro lado do balcão quando meus pelos da nuca se eriçam ao ouvir Jack me ameaçar, antes de fechar, bruscamente, a porta de saída.

- Isso não morre aqui, Adessa. Vai ter volta. Em breve, a gente se encontra. Vc, eu e essa gracinha de criança com gosto de tutti-frutti.

- Maldito!!!

- Eu preciso trabalhar. Obrigada por tudo. Vc tem sido um cara bem legal.

- Porque vc merece. Merece que pessoas legais estejam contigo.

- Não. - Refuto diante do edifício onde moro. O vento frio esvoaça meus cabelos. Seus dedos retiram os fios que escondem meu rosto. Tento disfarçar o nervosismo, mas não consigo. - Eu não mereço não.

- Por que não? Vc é filha de Deus.

- Não. Não sou. Não sou digna de seu Deus.

- Adessa, por favor, para de falar de 'Meu Deus' como se Ele não fosse o Seu também.

- Ok. - Concordo baixando a cabeça. Seu indicador ergue meu queixo quando falo. - Não sou o tipo de mulher com quem vc deve estar acostumado a lidar. Sou meio que...- Puta? Stripper? Perseguida e usada por um demônio? - Meio que...esquisita.

- Mesmo que vc fosse uma psicopata, eu ainda gostaria de ser seu amigo. - Amigo??? Nada mais??? E o que ele poderia querer com uma garota de programa??? - Amizade é mais importante do que qualquer outro tipo de relacionamento. - Seus olhos sob a luz do sol me fitam com doçura quando ele corta meu coração em pedaços ao declarar. - Ainda que eu me apaixonasse por vc, eu deveria abdicar de meus sentimentos.

- Po por quê!? - Arregalo os olhos enquanto improviso um coque no topo da cabeça com uma caneta que encontro dentro da bolsa. Vc é gay? Casado? Morto? Ele deixa escapar um riso triste e mata o que estava florescendo dentro de mim.

- Eu sou padre. Eu posso te ajudar a se livrar...- Reagindo da pior maneira possível, eu o afasto num empurrão. Mortalmente ferida em meu orgulho de mulher desejada por muitos, aviso num tom rude.

- Fica longe de mim! Não preciso de sua piedade!

- Espera um pouco...- Pede-me ele na defensiva. - Eu não quero me afastar de vc.

- Mas eu quero! - Grito, reativa. - Não sou do tipo que precisa de amigos!

- Todos precisam.

- Não eu! Engula seu sorriso complacente, Vincenzo, e vaza da minha vida!

Antes que eu me apaixone por vc...

Faz tempo que não o vejo. Melhor assim. "O que os olhos não veem, o coração não sente", dizia minha mãe. Ainda assim, sinto sua falta. Um vazio dentro de mim como se o conhecesse há séculos. Um vazio que tento preencher com meu trabalho que me leva de volta à ninfomania. Saber que ele poderia me curar se me amasse me faz ter raiva e a raiva, transforma-se em lascívia.

- Me fode com força, porra! - Grito em alto e bom tom uma das poucas 'falas' de minha personagem em um dos muitos filmes eróticos que volto a gravar. Um sexo mecânico, sem sentimentos. - Tô tentando! - Respondo, irritada, ao diretor que me pede para demonstrar tesão em minhas feições. - NÃO É VC QUE TÁ COM DOIS PAUS ENFIADOS NO TEU CORPO! 

- Vc é paga pra isso, Adessa. E muito bem paga! - Repreende-me ele bem próximo a mim. - Faz cara de quem está gostando.

Esqueço-me de Vincenzo e me entrego aos prazeres da carne. Filmes, vídeos caseiros, programas com um ou mais parceiros. Minha conta bancária está rechonchuda enquanto eu me sinto sugada, desnorteada. Por que aquele homem surgira em minha vida? Depois dele, eu nunca mais fui a mesma. Sexo e culpa andam de mãos dadas enquanto danço no palco do 'California' ao som de meus 'flashbacks'. Retiro o sutiã ansiando que ele me veja e, talvez, me deseje e...talvez...me queira um dia. Mas ele nunca surge diante de mim para me retirar do palco e me cobrir com sua jaqueta jeans e me repreender afirmando que sou dele...somente dele.


- Tem visto aquela coisinha linda da cafeteria, Adessa? Ou devo dizer "The Flashbackgirl"? - Um súbito calafrio e, em pé, diante do bar, sem encarar Jack Tequilla, peço secamente.

- Um 'Sex on the Beach', por favor. - Seu riso sinistro me incomoda, mas permaneço ali, remoendo sua pergunta, de costas para ele. Eu, de fato, não voltei à cafeteria desde o último encontro com Vincenzo. Não tenho notícias de Giulia. Por que diabos ele continua a rir? De súbito, volto-me em sua direção e o esnobo. - Tá pronto!? Não quero ficar aqui! Tua presença me faz mal! - Um gole do drink e gargalho diante de sua pergunta. - Vc e eu...juntos? Nunca!

- Eu pago bem. - Defende-se ele, visivelmente ofendido. - Eu só queria...- Esvazio o copo e cuspindo em seu rosto desfocado, eu o ofendo, sentindo-me superior a ele.

- Daria meu corpo de graça a qualquer um daqui, Jack, mas pra vc, nunca! Vc é a escória! Tenho nojo de vc...- Esbarro no copo. Ouço o som do vidro se partindo contra o chão acarpetado. Olho ao redor e só vejo sombras. Doc!? - Chama o Doc pra mim...por...favor. - Peço, agarrando-me ao balcão. Seu rosto vem e vai enquanto minhas pernas vão perdendo as forças. 

- Doc precisou sair, Adessa. - Avisa-me ele num tom soturno. - Mas eu fiquei. Não é engraçado? Vc e eu estamos aqui, sozinhos e vc ainda me trata mal. - Tonta, pergunto com a voz entaramelada.

- So...zi...nhos? - Seus braços me erguem e me deitam sobre o balcão. Estou com frio. Fraca. Não consigo socar seu rosto...sequer mover minhas mãos. - O que vc...fez...cretino?

Antes de apagar, eu o ouço dizer baixinho contra minha boca.

- Alguns chamariam de vingança, mas eu prefiro o termo "Justiça".

- Onde eu tô? Que cheiro horrível é esse!?

- Bem-vinda ao meu lar, Adessa Love.

Abro os olhos. Ainda tonta, minhas lembranças vem em flashes. A última dança no palco do 'California'. O gosto amargo do 'Sex on the beach'. Os olhos insanos de Jack encarando-me, triunfante antes de desmaiar.

Tento manter a calma, embora a sensação de claustrofobia me tome por inteiro. Tateio, na escuridão, o espaço ao meu redor. Está molhado. Levo as mãos ao nariz e vomito. O odor fétido de urina e fezes se alastra pelo quarto fechado. Engatinho até um dos cantos. Percebo que estou com minhas botas de cano longo, ainda de biquini. Encolho-me, enojada. Ouço o som agudo de ruídos de ratos. Chuto para todos os lados, aleatoriamente quando grito, horrorizada.

- JACK!!! ME TIRA DAQUI!!!

Apuro minha audição e ouço uma respiração fraca...no outro canto do quarto.

- Tem alguém aí? - Pergunto com pavor da resposta que vem num sussurro.

- Me ajuda...

- Deus do Céu! - Seguindo o som da voz, engatinho até esbarrar em um corpo estendido no chão. Grito por socorro enquanto tomo coragem para tatear o corpo.



Toco em sua mão e sinto seu pulso latejar com fraqueza. Mãos pequenas. Cabelos longos, sujos. O corpo esquálido. O rosto frio. Presumo que seja uma menina.

- Vc pode me ouvir? Qual o seu nome, meu anjo? - Sinto seu esforço em se mover. Eu a puxo para mim, acomodando sua cabecinha em meu colo. Seu cheiro é insuportável. Deve estar aqui há muito mais tempo do que eu. - Pobrezinha. Fala comigo. Eu vou te tirar daqui. - Prometo, entre lágrimas. - Meu nome é Adessa. Vc consegue falar? - Movendo a cabeça numa negativa, imagino que esteja extremamente fraca. Eu a abraço com força e a nino como o faria à minha filha. Sua pele fina está 'craquelada' como se algum líquido tivesse secado ali, ao redor da boca. O pânico aumenta quando sussurro. - Eu vou te salvar. - Ela chora em meu colo, enlaçando seus braços fracos em minha cintura. Sinto sua aflição. Seu desespero. Cerro os olhos e mergulho em suas memórias.

Gente sorrindo. Música na 'Juke Box'. O pano úmido sobre um balcão. Ouço seu riso. Ela caminhando à noite. Uma rua deserta. Música em seus fones de ouvido. Bolas de aniversário presas às mãos de um homem com capuz. O rosto de Jack enquanto a empurra num furgão. Ela grita por sua mãe.

Sorrio ao lado de Vincenzo...

- Não. Não não não...Giulia???



Choro copiosamente, beijando o topo de sua cabecinha enquanto ela me abraça forte, sem formar frases. O som sai de sua garganta, mas ela não fala. Por quê???

Com dificuldade, eu a carrego em meu colo até um ponto do quarto iluminado pela luz da lua que atravessa brechas de uma janela em madeira. Procuro por seus olhos. Estão inchados e úmidos. Aquele maldito a espancou. Chorando e beijando sua testa continuo a prometer tirá-la dali quando solto um grito de horror ao observar sua boca aberta numa súplica. Eis o motivo pelo qual ela não fala. Imaginando o quanto ela sofrera, eu a aperto contra meu peito e digo a mim mesma, de olhos fixos no teto.

- Ele cortou sua língua. Miserável. Eu vou matar esse monstro.

Sua roupa rasgada, o sangue entre as pernas...

Ergo-me à beira da loucura, esmurrando a porta com minhas botas até tirar lascas da madeira velha...podre. Rasgo a pele das mãos ao tentar alcançar a maçaneta do outro lado quando, repentinamente, sou arremessada contra a parede, abaixo da janela. Jack abre a porta violentamente e, gargalhando como um louco, deixa a luz invadir o quarto. Demoro minutos para enxergar o que nunca deveria ser visto.

Arrasto-me até Giulia que não consegue se mover. Rosno para ele enquanto a seguro em meu colo. Ela está mais magra e avassaladoramente mais triste, quase sem vida.

- MALDITO! EU VOU TE MATAR!

- Mesmo? Acho difícil. - Diz ele, sarcasticamente. - Em pensar que tudo isso poderia ter sido evitado se não fosse por vc e sua arrogância, Adessa.

- NÃO! NÃO SE APROXIMA DE MIM!

- Não. - Replica ele num tom contido. - Não é vc quem eu desejo. É a garota 'tutti-frutti'. - Com minhas botas, eu o atinjo entre as pernas antes de ele tocar em Giulia que demonstra horror em seus lindos olhos castanhos...e inocentes. - Não adianta gritar ou tentar me bater, Adessa. Estamos sozinhos e longe da civilização. Nem mesmo seu padrezinho de merda pode te salvar agora. - Protegendo o corpo de Giulia com o meu, eu berro numa súplica.

- NÃO TOQUE NELA! EU TE IMPLORO! FAÇA O QUE QUISER COMIGO! ELA JÁ SOFREU DEMAIS!

- Que nada! Ela até gostou! - Outro chute certeiro de minhas botas contra seu rosto e o vejo lamber o sangue que escorre de sua testa. Vou enlouquecer a qualquer momento enquanto ouço Giulia urrar de medo. - Uma pena ela ter gritado tanto. Eu não queria ter feito isso...- Aponta ele para a boca de Giulia. Voltando a rir, ele assume. - Mentira! Queria sim! Odeio trepar com mulheres escandalosas! A língua dela serviu de alimento aos ratos.

Num impulso movida pela ira, revolta e asco, eu me jogo contra ele e o derrubo no chão pestilento. Apoio minha mão em seu pescoço e, com o punho da mão livre, cerrado, soco seu rosto repetidas vezes. Fraca, ele me vence ao me empurrar para o lado e, com suas mãos em meu pescoço, ele me sufoca enquanto movo freneticamente, braços e pernas até que ele me liberte. Puxo o ar pela boca, voltando a respirar quando ele avisa, abrindo um lento e repugnante sorriso.

- Não vou perder meu tempo com vc agora. Ainda não terminei de conversar com aquela gracinha ali atrás.

- NÃO, JACK! POR FAVOR! NÃO! NÃO! - Arrasto-me sobre urina e sangue até alcançar seu tornozelo. - Faça comigo. - Imploro ao ver um pedido de ajuda no rosto, antes plácido, de Giulia, nos momentos felizes na cafeteria. - Ela é só uma criança...- Chutando meu rosto, bato com a cabeça contra uma poça de sangue enquanto ele a arrasta pelos cabelos até a sala em frente à nossa. - POR FAVOR! NÃO! ME LEVA! ME LEVA!


Com o sangue de Giulia em meu corpo, engatinho até a porta que se fecha bruscamente. Sua voz impregnada de maldade, alerta pelas frestas.

-Tenho outros planos pra vc, Adessa.

Surtando com os urros de Giulia que não pode gritar, jogo-me, repetidas vezes, contra a porta fechada, sem me importar com as farpas da madeira rasgando a pele do meu corpo.

- ABRA A PORTA! ABRA A PORTA, JACK! ME PERDOA! ELA NÃO TEM CULPA! ELA NÃO TEM CULPA! ABRA A PORTA!

Novamente sou arremessada contra a parede pela porta aberta, bruscamente. Jack me observa com seus olhos malignos e, sorrindo diabolicamente, muda de ideia.



- Tem razão. Vou deixar a porta aberta. Vc precisa assistir a tudo, de camarote. - Vindo em minha direção, ele me ata à cordas e me faz ajoelhar. Penso que Giulia está livre de sua maldade. Agora é a minha vez. Que Giulia se livre dele.

Mas eu me enganei. O que vejo a seguir jamais sairá de minha cabeça. Jack amarra Giulia sobre uma mesa, atando seus punhos e tornozelos, deixando suas pernas abertas. Giulia chora como a criança que é e aquilo me mata por dentro. Meus berros implorando que ele a solte não o impedem de violar o corpo dela de diversas maneiras, sem descanso. Ajoelhada, ele puxa meus cabelos, obrigando-me a assistir a tudo e quando já não suporto mais e baixo a cabeça, ele chuta meu queixo com violência. Chego a pensar que desloquei o maxilar de tanta dor que sinto, caída no chão, amarrada, impotente. Giulia para de gritar e fixa os olhos no teto. Parece não estar ali. Penso que o horror terá fim, mas eu me engano...novamente.

É quando o pior acontece. Jack crava um punhal em seu peito e com extrema habilidade, retira seu coraçãozinho, ainda pulsando, e o mostra para mim sem nenhuma expressão em seu rosto. Cerro os olhos inchados de tanto chorar e já não tenho voz para gritar quando vejo brotar sangue da boca de Giulia. E eu nada fiz para salvá-la. A culpa foi minha. Minha soberba matou a 'minha menina'. - MONSTRO! - Urro de repulsa e ira ao vê-lo comer seu coração sem tirar os olhos frios de mim. - EU VOU TE MATAR! - Vai mesmo? - Com o rosto sujo pelo sangue puro de minha de Giulia, ele vem em minha direção. Arrasto-me pelo chão sem conseguir pensar no que fazer porque eu não quero morrer antes de assistir ao seu fim. NÃO MESMO! - Vc não vai a lugar algum, Adessa.

Jack se livra do corpo de Giulia com extrema frieza, jogando-o contra o chão. Eu a toco e peço que sua alma saia do corpo e não se lembre de mais nada. Antes de terminar minha oração, sou jogada contra a mesa, sobre o sangue inocente de minha querida amiga, meu anjo.

- Sua vez chegou. - Avisa-me Jack, lambendo meu rosto. - Ainda não sei o que fazer com vc. Te matar é pouco. - Diz ele enquanto me prende às cordas como o fizera a Giulia. Cuspo em seu rosto. Ele atinge o meu com um soco. Meu pescoço gira, violentamente. Volto a ver o corpinho de Giulia sem vida, jogada no chão imundo como se fosse um lixo. - Por que se negou sair comigo? Eu te pagaria bem pelo que vou fazer agora, de graça.

- Vc não sabe com quem está lidando, Jack. - Rosno enquanto ele me penetra com seu pau pequeno. - Faça o que quiser comigo, mas saiba que, daqui, vc não sairá com vida.

Ajoelhada ao lado do corpo de Giulia, não grito enquanto ele me chicoteia, aos risos. Ver Giulia morta por minha culpa, anestesia a pele flagelada de minhas costas.

- VC MERECE MAIS! MUITO MAIS, ADESSA!

Observo tudo com maior clareza. Olho ao redor e os vejo ao lado de Jack, insuflando...incentivando-o a cometer mais barbaridades. O verme é uma marionete nas mãos de seres bestiais que se alimentam do sangue de suas vítimas.



Há outro corpo próximo à porta de saída. Giulia não fora a primeira. Cansado de tanto me chicotear, ele me chuta na altura das costelas. Caio ao lado de Giulia e, rindo histericamente, eu o incito a perder o controle. Em posição fetal, defendo meu rosto de seus chutes. Um brilho metálico surge em meio à escuridão. Os seres bestiais se movem, frenéticos ao redor da mesa de onde caí.





- Últimas palavras, Adessa? - Pergunta-me ele com um punhal na mão erguida. De costas para ele, ajoelhada, traço riscos no chão com o sangue inocente de Giulia. Num tom baixo, falo em um dialeto que desconheço. Um dialeto que vem do fundo do meu ser tomado pelo ódio. Eu repito as palavras por diversas vezes, aumentando a velocidade com que as pronuncio até gritar por seu nome. Sei que perderei minha liberdade. Sei que voltarei a ser dele, mas eu não vou...eu não posso...eu não quero e não admito que Jack permaneça vivo. - O que é isso que vc tá fazendo!?

- Com medo, Jack Tequilla!? - Meus olhos incidem sobre um ponto acima de sua cabeça quando ordeno, com toda a fúria que há em meu ser.

- Destroce-o, Ga'al! Acabe com esse verme agora e serei sua novamente!

Ga'al sorri para mim. Um sorriso de triunfo quando o ergue pela gola da blusa. Jack se desespera, debatendo-se no ar. Seus olhos assustados procuram por alguém ao seu redor quando Ga'al se materializa aos seus olhos e, com as garras no pescoço de Jack, avisa com sua voz gutural.

- Agora é a sua vez!

Jack Tequilla pede clemência antes de ter sua coluna vertebral partida ao meio. Fecho os olhos, aterrorizada. Nunca vira Ga'al ser tão feroz. Abro os olhos e o vejo retirar o coração de Jack, ainda pulsando e, mordê-lo como um cão raivoso. Escorrego no sangue de Giulia enquanto tento fugir dele.

Meu Deus, o que eu fiz!?

- Vc me invocou e agora, serás minha novamente. - Diz Ga'al contra minha boca. Sorrindo, ele se desfaz, aos poucos, ao revelar enquanto ouço chutes na porta de entrada. - Ele novamente. Seu padrezinho veio te salvar. - Arremessando o corpo de Jack contra a porta, ele me faz tremer de medo ao anunciar. - Estarei contigo hoje à noite...Adessa.




- Como me achou?

- Não importa. - Responde-me Vincenzo, desorientado. Ele me cobre com seu casaco em moletom e me pede para ficar no carro, sentada no banco do carona. De onde estou, escuto seu urro de raiva, seu choro de impotência. Eu o vejo trazer em seu colo o corpo sem vida de Giulia. Sem nada falar, ele me lança um olhar onde fúria e compaixão se misturam. Ele acomoda o corpo de Giulia no banco traseiro do carro como se ela estivesse dormindo. Recostando a testa ao volante, ele demora antes de me perguntar, soltando o ar pela boca. - Quem fez aquilo com o Jack?

Um arrepio sacode meu corpo quando evito seu olhar e, voltando-me para meu reflexo na janela fechada, respondo.

- É melhor não saber.

- Adessa!

- Me leva pra casa, pelo amor de Deus. Eu ainda preciso me encontrar com a mãe...

Não completo a frase porque minhas lágrimas embargam a minha voz. Choro copiosamente nos braços de Vincenzo que me consola, sussurrando.

- Eu vou te livrar dele. Prometo.



Abraço a mãe de Giulia, avassaladoramente inconsolável. Jamais lhe contarei a verdade surreal. Inventara algo mais sutil como um acidente de moto com uma das amigas. Sua mãe não vira seu corpo. O caixão permanecera fechado do início ao fim do funeral. Ainda fraca e horrorizada, lembro-me de seu fim. Vincenzo me apoia para que eu não caia sobre seu túmulo baixando à terra. Terra úmida e escura que cobre a madeira maciça.

"Não recuse minha ajuda, por favor. É o mínimo que posso fazer", peço à sua mãe com os olhos distantes e, agora, sozinha na vida. Deposito uma quantia em sua conta corrente, pedindo-lhe que realize o sonho da filha.

"Sei que luta com dificuldade. Não é hora de ter orgulho. Aceite. Quando a cafeteria estiver pronta, dê a ela o nome de Giulia. É o mínimo que posso fazer".

É o mínimo que posso fazer já que não consegui salvar a vida de um anjo.

- Eu não consegui. - Repito jogando uma rosa sobre o túmulo de Giulia.



Tento dormir sob efeito de ansiolíticos. Vincenzo pede-me para dormir no sofá, em meu quarto, alegando estar preocupado comigo.

- Eu não sou tão boba quanto vc pensa. Eu fui a culpada por tudo. Mereço um castigo.

- Não fala assim. - Repreende-me ele, cuidando de meus ferimentos, após lavar meu corpo debaixo de uma ducha morna. - Deus não castiga.

- Pois deveria. Como seu Deus pôde deixar que aquele verme tocasse em um ser tão puro?

- Eu não sei te dizer. Sei que, onde quer que ela esteja agora, estará em paz, dormindo um sono profundo e, quando acordar, vai encontrar o Mestre.

- Quando eu dormir, vou encontrar com um demônio...- Bocejo enquanto ele me cobre com meu edredom. - Não me olhe assim. Eu precisei invocá-lo. Deveria ter feito antes de Giulia morrer, mas eu eu não...não raciocinei...deveria...

- Durma, meu anjo. Eu estarei aqui quando ele chegar. Eu espero por esse encontro há muito tempo.

- Vcs se conhecem? - De olhos fechados, estranho sua resposta.

- Todos nós nos conhecemos.






Caminho sem medo. Ele me aguarda em seu trono, em sua forma diabólica. Seu pau enorme à mostra. Seu sorriso lascivo. Os lábios se movem ao dizer.
- Bem-vinda, Adessa.
- Onde estou?
- Onde quiser estar. Aproxime-se. Não tenha medo. Não vou te ferir.
- Vai sim.
- Só um pouquinho, mas vc vai gostar.

Mais uma vez, vejo-me em minha camisola branca com mangas bufantes que ele rasga com suas garras. Garras que me arranham. De olhos fechados, envolvo meus braços em seu grosso pescoço e me deixo usar por quem me salvou da morte.
- Quero um filho teu. - Sussurra sua voz gutural em meu ouvido. Reajo, empurrando seu tórax extenso para trás. - Eu mereço.
- Nunca!!! Que tipo de ser humano acha que sou??? Dar um ser inocente a um demônio??? Já basta o que fizeram comigo!!!
- Seu pai ou sua mãe?
- Não sei...- Respondo emitindo um gemido longo de prazer. - Sabe quem fez o pacto comigo? Quem te entregou a mim?
- Não...- Dentro de mim, ele aumenta a velocidade das estocadas. - Quem?
- Sua mãe pensou. Seu pai realizou o ritual. Ela o queria para si. Ele desejava sair da pobreza e aproveitar os prazeres de uma vida mundana...sem compromissos e com muito dinheiro. Sua mãe partiu dessa vida sem o amor de seu pai que ainda vaga pela Terra à procura de mais prazeres. O que sente por aquele padre deitado em seu sofá? Vc o ama?
- Não. - Minto. Eu o amo e não sei quando isso aconteceu. Eu simplesmente o amo. - Ele é um bom amigo. - Com a mão imensa em meu pescoço, ele me ameaça.
- Não minta para mim, Adessa. Aqui, eu ouço os seus pensamentos.
- Ele também...- Suspiro. Arrepio-me ao encarar seus olhos pulsando de ódio. Largando-me em um chão de terra batida, ele rosna.
- Basta.
- Posso voltar? Estou livre?
- De mim, sim. Volte e continue a dormir.
- O que pretende fazer???
- Volte, Adessa! Agora!

Ainda atordoada, eu o vejo sobre mim com seus olhos azuis mais escuros do que o normal. Espanto-me. Dentro de mim, ele faz meu corpo chacoalhar quando, enfim, sinto seu líquido quente escorrer entre minhas coxas.

Sem ter certeza do que acaba de acontecer. Durmo.

Pela manhã, abro os olhos e, estarrecida, encontro seu corpo nu, deitado ao meu lado...ainda dormindo. Não sei o que dizer quando ele, assustado, cobre-se com um lençol e pergunta.

- Que porra eu tô fazendo aqui!?
- Era exatamente isso que eu iria te perguntar!
- Mentira!
- Não ouse pensar que eu...- Erguendo-me repentinamente da cama, de costas para mim, ele examina seu pênis e conclui, entre abismado e irritado.
- Caralho! Eu tô...vc...vc e eu! - Recostada à cabeceira, abraço meus joelhos e, confusa, aguardo que ele termine seu raciocínio. - O que vc fez!? Por que eu...!?
- Nada, idiota! Não sei! Talvez vc tenha se cansado do sofá e tenha se deitado aqui e tido algum sonho devasso que te fez ejacular! Não olha pra mim assim!!! Eu não toquei em vc!!!
- Vc me usou, cretina! - Ofendida, mostro minhas coxas com resto de seu esperma. - EU NÃO FIZ ISSO! - Defende-se ele.
- FEZ SIM! COVARDE! ACHA QUE EU TE FIZ DEITAR SOBRE MIM, DORMINDO???
 
Enrolando o lençol na cintura, ele volta a me acusar.
- Vc se sentou em mim e fez tudo acontecer!

Um punhal em meu peito não me traria mais dor do que ouvi-lo me chamar de 'piranha'.

- Aaah tá! - Ergo-me enfurecida. Avanço sobre ele até tocar meu indicador em seu nariz. Ele recua lançando um olhar furtivo ao meu corpo. - Então eu te estuprei, idiota!?
- Com certeza! - Seus olhos estão fixos em meus seios quando ele refuta. - Eu jamais tocaria em vc por vontade própria! Como fez isso, bruxa!?
Gargalho sarcasticamente antes de encarar seus olhos azuis e, decepcionada, pedir.
- Leia a minha mente, padre. Veja se há algum resquício de seu suposto estupro.

Ele recua, desorientado. Apiedo-me dele tão confuso quanto eu. Estou tentando me lembrar do que houve ontem após adormecer e tudo de que me recordo é da figura dantesca de Ga'al sobre mim.

- Por que esses olhos arregalados!? Vc me viu chupando seu 'membro de ouro' e me sentando nele!? Saiba que eu ganho pra fazer isso em outros homens! E ganho muito bem! Não preciso de subterfúgios para conquistar quem eu quero! Eu simplesmente conquisto! POR QUE TÁ ME OLHANDO ASSIM???

- Eu sabia...- Diz ele, os olhos distantes.
- DO QUÊ??? FALA LOGO E SAI DA MINHA CASA!!!


Vestindo-se com agilidade, ele lava o rosto na pia do meu closet. Corro até ele e, espantada com seu temor, fico ali, parada encarando seu reflexo no espelho. Ele seca o rosto e, num desalento, diz.

- Preciso me afastar de vc. Ele é mais forte do que eu supunha.
- Ele quem!? Do que tá falando!?

Cubro meu corpo com o mesmo lençol que o cobrira antes e, desanimada, ouço sua voz lastimar.
- O demônio que te possui. Eu fui designado a afastá-lo de vc e falhei.
- Tá de sacanagem!? Vc se aproximou de mim por causa da porra de um demônio!? Não foi por mim!?

- Adessa...- Avançando um passo em minha direção, ele tenta tocar meu rosto. Recuo dois passos porque sei...sinto que nunca mais nos veremos e isso dói. - Perdão. Eu falhei e ele, possivelmente, me usou pra fazer algo que eu jamais faria. Eu jamais me deitaria com vc. Eu falhei. Preciso me afastar...
- SAI DAQUI! EU NÃO PRECISO DE VC! - Minto cheia de ódio e mágoa. - Guarde sua piedade! Some da minha vida! Eu não te pedi nada! Eu não quero nada de vc! - Além de amor. - Seu merda! Vc tá me machucando agora! Mais do que os homens com quem eu saio!
- Adessa...
- TIRA A MÃO DE MIM, VINCENZO! VAI EXORCIZAR O PAPA! EU SEI ME VIRAR SOZINHA!
- Espera! - Abro a porta da saída do meu apartamento. O lençol escorrega de meu corpo nu e tocado por ele. Seus olhos voltam a me fitar. Não consigo decifrar o que eles dizem, porém, indiferença, certamente não é. - PARA DE PENSAR E ME DEIXA FALAR, PORRA! TÁ ME DEIXANDO MALUCO!
- SAI DA MINHA CASA E DA MINHA VIDA! QUAL A PARTE QUE VC NÃO ENTENDEU!? QUER QUE EU DESENHE!
- Não...- Exala ele enquanto sinto seu cheirinho de maçã verde, talvez, pela última vez. - Eu queria...- Sua mão se aproxima de meu rosto. Eu a seguro acima de nossas cabeças e, por frações de segundos, eu o vejo sorrir diante de minha foto na vitrine do 'California'. Vejo asas enormes. Algo caindo sob o céu repleto de nuvens. Seu corpo nu se deitando ao meu lado na cama. Ele mentiu. Ele fez alguma comigo. - Vc tá louca! - Afasta-se ele, olhando-me com desprezo. - Eu jamais trairia meus votos com uma vagabunda! Nem tudo o que vc vê ou sente quando toca alguém é real! Não seja ridícula!
- Vagabunda é a tua mãe! Eu trabalho pra me sustentar! Sai da minha frente antes que eu te 'estanque na porrada', padrezinho de bosta! - A porta do elevador se abre. Seu último olhar para mim é de tristeza. Antes da porta se fechar, grito com o coração partido. - ESPERO NUNCA MAIS TE VER OUTRA VEZ! VC ME MACHUCOU, VINCENZO! EU TE ODEIO POR ISSO!
- Perdão. Eu errei novamente.
A porta do elevador se fecha enquanto ele leva consigo o meu coração.

- Isso não acaba aqui, Vincenzo. Eu sinto. Sinto sua semente dentro de mim.

Continua...

quarta-feira, 20 de abril de 2022

CAPÍTULO 2 - O PACTO





Ga'al me dera de tudo como havia prometido. Vivo em festas com gente rica, bacana. Gente com quem me relaciono intimamente e ganho muito com isso. Não é só pela grana. São os contatos mega importantes que me ligam a outras pessoas super importantes que me fazem ganhar ainda mais. Não sou do tipo que joga dinheiro fora, logo, eu o aplico em investimentos indicados por meus clientes. Posso dizer que já tenho o bastante para comprar uma casa na praia e ficar 'de boas', por lá, sem fazer nada para ninguém. Um dos meus sonhos é morar em uma pequena cidade na Itália ou Irlanda e escrever sobre minha estranha vida. Em breve, com a grana que tenho ganhado, creio que vou conseguir, caso, Ga'al não acabe comigo antes. Sua fome por sexo é insuportavelmente inextinguível.

Por que eu!? Há tantas mulheres no mundo! Por que ele escolheu a mim?
"Porque vc gosta de ser puta", dissera-me ele enquanto me penetrava. Pedi que me desse um tempo porque eu precisava trabalhar, descansar, estudar. Coisas que os humanos costumam fazer. Coisas que demandam um certo tempo. Tempo que ele usava para me violentar quase todas as noites. E, para falar a verdade, descobri que sinto prazer em ser acordada dessa forma brusca. Talvez algum trauma de infância deixado pelo amigo de meu pai - aquele filho da puta - que abusara de mim enquanto todos dançavam na sala ao lado do quarto onde tudo aconteceu.
COMO MINHA MÃE ME DEIXOU SOZINHA COM AQUELE VERME???

Pobre mãe. Sua paixão doentia por meu pai a levaria a um final devastador.


Foi difícil persuadir Ga'al a me dar uma folga, mas consegui. Combinamos que seria dele quando voltasse à minha casa desde que ele parasse de me seguir ou me tocar enquanto estivesse trabalhando ou trepando com outros caras. Ele meio que aceitou, mas ainda assim, por vezes, eu era surpreendida.

Ele sabe que gosto disso. Ele pressente quando estou excitada e seus dedos tocam no lugar exato, esfregando-o em todas as direções até me enlouquecer e me fazer gozar múltiplas vezes. Quando isso acontece, ele ri de mim. Ele gosta de me usar e eu gosto de ser usada por ele. Há momentos em que gostaria de ter uma amiga. Alguém com quem desabafar. Existe uma garota com quem trabalho. Dançamos na mesma boate. Por vezes, bebemos juntas e relaxamos. Ela tem duas filhas adoráveis. Eu...eu tenho um demônio. A vida é justa? Não. Se fosse, ela não precisaria se vender a fim de sustentar as filhas. Finjo não perceber seu interesse por mim. Não curto transar com mulheres. Em filmes, tudo bem. A grana é boa. Descobri que mulheres que transam com mulheres, no mundo da pornografia, ganham mais. Mas, isso não me atrai. Na verdade, nada nessa vida me atrai além do dinheiro.

Na verdade, ela nunca foi minha amiga.

Mas, isso, eu descobriria anos depois.




Ter um ser demoníaco em sua vida nada tem de glamouroso. É incômodo. Estar sendo sempre vigiada, usada, violada. Ainda me pergunto como eu fui tão burra a ponto de ir àquela lareira na maldita noite em que o encontrei pela primeira vez.

Tenho pensado em me livrar dele. Como? Não faço ideia. Ele está sempre próximo a mim. Eu o sinto em todos os lugares, prestes a me atacar. Ou, pior, atacar pessoas que conheço e que ousam me tocar.
Daria tudo para voltar no Tempo.
Minto. Já sofri muito a fim de guardar minha grana mais do que suada. Ainda preciso de mais.
Mais. Sempre mais.
É assim que ele pensa. Ga'al. Verme. Por que ainda não me livrei dele?

Isso, um dia, vai acabar ou eu 'acabo' antes.



Ergo-me do sofá e entro no clima. Caminho nua pelo set de gravação onde sou apalpada pelos homens que me veem passar. Não estava no script, mas o diretor me incentiva a continuar. Trata-se de uma cena onde sou atacada por homens num bar. Uma cena clichê. Adoraria criar cenas onde danço e sou aplaudida por algum homem solitário que queira conversar comigo antes de transar.

ACORDA!

Sou empurrada para longe da mesa de sinuca onde jogava sozinha e tenho meu vestido rasgado por dois deles. Peço que parem. Peço por socorro, mas sou levada até um sofá em couro onde me jogam, seminua. Sou puxada pelas pernas até o espaldar do sofá onde somente meu tronco fica nele. Tento escapar, xingando-os, movendo meu tronco de um lado para o outro. Um deles crava sua mão em meu pescoço e mostra seu pênis ereto, então, tudo se repete. Dois ou mais homens se revezam dentro de mim e eu finjo gostar e 'blá blá blá'.

Tudo por dinheiro e nenhuma emoção.

Passara de 'Garota de Programa' à 'Rainha de Filmes Pornôs' do dia para a noite.

Ou seria o contrário?



Ga'al, com sua fome por sexo, despertara meu pior lado e me fizera adoecer.

"Ninfomania", explica a ginecologista em quem eu confio. Estou chocada com seu diagnóstico sobre meu gosto exagerado em ser sodomizada.

- Transtorno do Desejo Sexual Hiperativo.

- E como posso me curar...digo...se um dia eu quiser parar com tudo?

- Internando-se em uma boa clínica, com acompanhamento de psiquiatras e psicólogos. Quando quiser parar com tudo, Adessa, me avise. Eu estarei aqui pra te ajudar.

De volta ao meu apartamento luxuoso, tão vazio quanto meu coração que estranhamente passara a sentir falta de algo que não conheço, penso no diagnóstico da ginecologista e me nego a acreditar que esteja doente.

Que tipo de viciado assume seu vício? A menos, que esteja à beira da morte. Ainda assim, o cérebro pede por mais. Mais bebida, mais cigarro, mais cocaína. Mais pornografia. Mais celular. Mais adrenalina.

Estudos da Neurociência afirmam que se o viciado conseguir se privar de seu vício pelo período de trinta dias, o cérebro deixa de pedir por mais dopamina e, talvez, ele consiga se curar. Talvez, se eu conseguisse ficar longe de sexo por esse tempo, eu poderia ser alguém normal.

Diante do espelho, já não enxergo a garota que se formou em Educação Física e sonhou em lidar com crianças.

- Me deixa dormir. - Imploro a Ga'al que volta a me acender com sua língua, mãos, dedos e seu pau enorme e quente dentro de mim. Noites se repetem sem que ele desista de mim. - De onde eu te conheço?

- Não importa. Tu és minha e eu sou teu. É tudo do que precisas saber.

Falto às aulas na faculdade de Psicologia por não ter forças para me levantar da cama onde ele me mantem presa. Penso em uma maneira de me livrar dessa maldição. Como tudo começou? De onde ele me conhece?

Ao final, eu entenderia tudo.



Francamente decidida a limitar o acesso de Ga'al em minha vida, leio livros sobre Magia, Bruxarias e Feitiços.

Encontro algo em um site sobre o assunto. Bruxas reverenciam sua deusa, duas vezes ao ano e, uma dessas vezes será daqui a alguns dias.

Sem que Ga'al consiga ler meus pensamentos, envio mensagens ao grupo que me acolhe de braços abertos.

"Nós te libertaremos dele!", promete-me a administradora do grupo e sacerdotisa que, em breve, conhecerei, pessoalmente.

Parecendo pressentir minhas intenções, Ga'al me machuca mais do que das outras vezes. Há raiva em seu olhar enquanto me faz sacodir com suas estocadas intermináveis. Ardendo por dentro, peço que pare. Imploro. Suplico. Gargalhando, ele continua a me invadir e, com os punhos cerrados, soca meu rosto, surpreendendo-me, o que aumenta...triplica a minha intenção em me livrar dele.

Para sempre!


Por vezes, penso que ele quer se vingar de algo ou alguém.

Por vezes, pressinto algo de humano nele.



Cá estou em mais uma clareira onde uma grande fogueira acesa parece querer me dizer algo. Se ouvisse, uma segunda vez, minha intuição, correria daquele lugar.

Esquece. Ainda tenho muito a aprender.

Encontro-me com as bruxas que, supostamente, me libertarão de Ga'al. Estou doente. Já não consigo estudar ou me alimentar graças a ele que não me deixa em paz.

E, quando estou sozinha, a compulsão por sexo me toma por inteiro. Ainda que me odeie por isso, gravo a mim mesma enquanto me toco diante da tela do meu celular onde quer que eu esteja. Vídeo pronto e postado. Dinheiro depositado e meu coração dilacerado pela culpa.

O QUE ESTÁ ACONTECENDO COMIGO???

Eu costumava gostar de ser puta!

- Seja bem-vinda, Adessa. Vc está bem?

- Perdão. Eu não te ouvi. - Cumprimento a mulher com os olhos penetrantes e escuros como a noite. - Eu...eu não sei o que fazer. - Confesso, insegura.

- Não faça nada até que eu a mande fazer. Confia em mim? - E eu tenho escolha??? - Confia?

- Sim. - Minto. - Claro que sim.

- Venha! - Puxa-me a mais nova das mulheres ao redor da fogueira. - Se solta! Beba e dance conosco! - Claro. É tudo o que não devo fazer. Ficar bêbada em frente ao fogo tendo um bando de mulheres malucas e nuas se atracando como gatas no cio. - Venha, 'sua linda'! - Convida-me uma delas. Contrariando minha intuição, num instante, estou entre elas.



"Há Magia nele", avisa-me a mais fogosa. Entre as três, deixo-me tocar e sinto um prazer diferente de tudo que sentira antes. Após me deitar ao lado da fogueira, tonta, pergunto o que devo fazer para matar Ga'al de uma vez por todas.



A mais velha observa-me enquanto me perco na orgia onde estou mergulhada. Ansiosa, ela espera que eu atinja o orgasmo uma vez mais e, com seus dedos longos, colha o líquido e o guarde em um cálice em ouro com minuciosos detalhes de caveiras entalhadas em seu bojo. Há Magia em tudo e em todas. Um tipo de Magia suja. Não a Magia com que sempre sonhei. A Magia onde vejo uma linda garotinha com asas de borboletas. Asas púrpuras. Faz tempo que não sonho com ela. O que estou fazendo aqui? Não é o meu lugar. Tenho nojo.

De volta ao inferno, ouço os uivos e gemidos das mulheres ao meu redor. De repente, a sacerdotisa pede por silêncio. Saio do transe e, cambaleando, vou até o lago onde desejo me limpar. A mulher velha e irritante me impede, puxando-me pela mão. - É preciso ter cheiro de sexo para atraí-lo. Venha. Chegou a hora. - O que devo fazer? - Receosa, pergunto. - Que palavras devo usar? - Eu te direi assim que ele gozar em você. Adessa, vc realmente deseja se libertar desse demônio? - Com todas as forças da minha alma. - Assevero, deitando-me sobre a pedra de sacrifícios. Além de nojo, tenho medo. Todas me cercam. Outro orgasmo e, mais uma vez, a mais velha colhe meu líquido. Isso é repugnante. Prefiro os filmes que gravo. São mais higiênicos. Mais uma vez, pergunto-me o que estou fazendo aqui. Meio que dopada, questiono. - Pra que serve isso? - Vc vai ver...- Seu sorriso é macabro, mas preciso confiar nela porque já não suporto a presença daquele verme em minha vida. - Ele está chegando. - O que eu faço!? - Entregue-se a ele.

Eu a obedeço deixando que Ga'al me penetre pela última vez.

Ao menos, era essa a intenção.




Ouço o som do trovão ao longe. Os pingos da chuva molham meu corpo e caem em minha boca aberta. Sobre mim, Ga'al repete seu ritual de brutalidade. Seu aspecto é terrível. Sobre a pedra, ele despeja seu líquido quente dentro de mim. Confusa e dolorida, ainda consigo ver a bruxa mais velha colher seu gozo e juntá-lo ao meu, no cálice de ouro. Enojada, vomito sobre a pedra. Ao nosso redor, as mulheres dançam e giram enlouquecidas. Cantam em um dialeto que desconheço a canção "Dessumiis Luge". Eu a conheço por conter maldições em sua letra, tornando tudo ainda mais bizarro.




A histeria toma conta de todas quando a mais velha alerta num grito.
- Está acabando!
Invocando Hécate, a deusa que vagueia despenteada e selvagem entre as tumbas e crematórios, eu a ouço enquanto encaro os olhos flamejantes de Ga'al que não se cansa...jamais. Estou prestes a desmaiar de dor quando a ouço clamar. - Que Ga'al seja amarrado com esse talismã! Que Ga'al seja amarrado e amordaçado com esse talismã e banido da face da Terra! Que seja banido desse mundo e da vida de Adessa, tua filha, com esse talismã que consagro a ti!





Tudo acontece ao mesmo tempo, em uma perfeita sincronia. Uma das mulheres solta um grito de horror ao final da canção enquanto Ga'al vai perdendo a forma até se esvair por completo, sugado por um espaço aberto acima de nossas cabeças. Uma espécie de buraco negro o engole e se fecha antes que ele possa me amaldiçoar. - Acabou? - Sussurro totalmente devastada. - Sim. - Garante-me a bruxa mais velha cujos olhos brilham tanto quanto os de Ga'al. - Descanse. Vc está livre dele...até que o outro tome seu lugar. Outro??? Que outro??? Quero gritar, mas, sem forças, desmaio.

Ga'al desaparecera de minha vida desde aquela noite sinistra. Pensei estar curada do meu vício longe dele, mas...eu me enganei.

Continuo a dançar e tirar a roupa no 'California', a boate mais famosa da cidade por suas strippers fogosas, e a sair com meus antigos clientes. Meu apetite por sexo não fora amenizado na ausência de Ga'al, o que me faz pensar que o mal não estava nele e sim, em mim.

Eu sou o meu mal. Sou a minha doença. Sou a compulsão por transar com qualquer um aqui, nessa festinha onde estou nesse exato momento.

Danço sozinha na pista enquanto o garçom não para de me oferecer garrafas e garrafas de 'Ice' já abertas sem retirar um sorriso esquisito de seu rosto. Ainda não compreendo o porquê de ter aceitado o convite de Sweet.

Queria estar dormindo em minha cama.

Arfando, descanso minhas mãos nos joelhos estranhando meu súbito cansaço. Cerro os olhos e, ao abri-los novamente, estou deitada em um colchão imundo, em algum lugar claustrofóbico. Corpos, rostos embaçados. Risos, urros de vitória e meu corpo é empurrado contra a parede. Leva um tempo até que eu consiga entender onde estou e o que estão fazendo comigo. - NÃO! - Grito cheia de ódio. - EU DISSE NÃO! Gargalhadas e um coro de "mais um!" me fazem pensar que nós, mulheres, não temos direito ao nosso corpo. Em teoria, eles deveriam parar de me violar, no entanto, eles continuam com mais força, um após o outro enquanto grito por socorro. Um deles tapa minha boca com sua mão imunda. Um outro, estapeia minha face, meus seios, rindo de si mesmo. Enjoada e com dor, vomito em um deles assim que liberam minha boca. Um soco me faz cuspir sangue. Estou prestes a desistir quando eu o ouço pela primeira vez...nessa vida. - BANDO DE COVARDES! - Grita ele, colérico enquanto tento abrir meus olhos inchados, doloridos. - Me ajuda...- Suplico, estendendo o braço em sua direção. Sua sombra é cheia de luz. Luz que cega meus olhos semiabertos. - Eu não quis... - Eu sei, meu anjo. Vc foi dopada. Vem... Levando-me em seu colo, ele beija o topo de minha cabeça e me faz acreditar que tudo vai mudar quando promete. - Eu nunca mais vou deixar que te machuquem. E eu acreditei.



Eu o procuro por toda parte, ainda que não o tenha visto. Lembro-me de seu perfume cítrico e da voz grave e cheia de ternura. Por que não abri meus olhos e fixei sua imagem em minha mente quando ele me socorreu?

Porque eu estava bêbada, drogada e havia acabado de ser violentada por tantos homens que, sequer, tenho ideia da quantidade? Por que meus olhos não se abriam, por mais que eu tentasse?

Após semanas à sua procura, volto ao local da festa e tudo o que consigo é um convite para outra festinha animada como aquela onde fui salva pelo homem que procuro, ansiosamente. "Pagam quanto?"


Sem o menor escrúpulo, aceito o convite para uma outra festa onde me comprometo a transar com, pelo menos, quatro homens. O valor é mega alto e ainda resta a esperança de reencontrar o 'carinha' que está me tirando o sono. Dessa vez, eles não me drogam enquanto me prendem à cordas. Tenho medo de perder o controle e, principalmente, de não ter ele aqui para me salvar e me levar a casa.

Tenho medo de reconhecer que eu não valho nada.

Mais uma vez, eu me deixo usar e me perco entre bocas, mãos e línguas que saciam sua fome lasciva em mim. Enquanto vou tirando a roupa, tendo ao meu redor homens tão doentes quanto eu, penso no meu salvador que, talvez, esteja entre eles.

Outro erro. Outro grande erro em minha lista imensa de erros cometidos.

Talvez seja um erro procurar por ele. Talvez eu deva me perder em outras mãos porque as dele são santas e jamais tornariam a me tocar.

Talvez, eu deva morrer porque, somente então, eu estarei livre da ninfomania que me mata, aos poucos.



Olho para a cartela de ansiolíticos ao lado da garrafa de vinho. Descarto seis comprimidos e os jogo em minha boca. Desesperançada, sozinha, culpada, tomo o primeiro gole do vinho quando o ouço em minha mente.

"Não faça isso! Por favor! Cuspa agora!"

Mais pelo susto do que pela razão, enfio dois dedos em minha garganta e vomito o que não chegara a ser engolido.

- Quem tá aí, porra!?

Pergunto enquanto olho ao redor. Não há nada. Ninguém em meu quarto além de mim e de minha tristeza e ansiedade crescentes ao ouvir sua voz repetir.

"Eu nunca mais vou deixar que te machuquem".

Durmo, repleta de alegria, com um sorriso patético em meu rosto.


Ao acordar, tento me lembrar de quando eu me comprometi com Ga'al e não me recordo.
Não me lembro de pacto algum. Nada. Ele invadiu minha vida. Ele ainda não partiu.
Eu sei. Eu sinto.
Algo me diz que ainda vou sofrer muito. Com ou sem ele.

Algo me faz acreditar que posso ser feliz se reencontrar o meu salvador.
Algo me diz que sou estúpida e que devo me matar.

VOLTE A DORMIR, IDIOTA!

Obedeço.


Continua...





EPÍLOGO

  Abro os olhos. Encaro o teto do quarto, tentando não me recordar do sonho. Um sonho ruim. Chove lá fora. Dentro do quarto, faz frio. Meu c...